terça-feira, 18 de dezembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 6 de maio: Uma Visita ao Estabelecimento Óptico do Reis


Ontem, por volta de nove horas do dia, saí de casa com tenção de visitar o novo estabelecimento óptico do Reis, à Rua do Hospício nº. 71.

Tinham-se feito tantos elogios deste armazém, do seu arranjo e elegância, que assentei de julga-lo pelos meus próprios olhos.

Não foi, porém, esta a única razão que  excitou a minha curiosidade. O que principalmente me levava àquela casa era um sentimento egoísta, um desejo de míope.

Les yeux sont les fenêtres de l’âme, diz Alfonse Karr num livrinho espirituoso que dedicou às mulheres

Ora, há muitas almas que têm a felicidade de poderem de manhã cedo abrirem as suas janelas de par em par, e se debruçarem nelas para espreitarem o que se passa diante do nariz.

Outras mais modestas, como as almas das mocinhas tímidas, abrem a meio as suas janelas, mas se escondem por detrás das gelosias que formam seus longos cílios de seda; e assim vêem tudo sem serem vistas

Algumas, porém, são tão felizes, que, quando abrem as suas janelas, vêem-se obrigadas a descerem imediatamente as empanadas. Estas são as almas dos míopes que usam de óculos fixos.

Estou, portanto, convencido que as janelas d’alma são em tudo e por tudo semelhantes às janelas das casas, com a única diferença do arquiteto.

Assim, há olhos de sacada, de peitoril, de persianas, de empanadas, de cortinas, da mesma maneira que há janelas azuis, pretas, verdes, de forma chinesa ou de estilo gótico.

Essas janelas d’alma são de todo o tamanho.

Umas excedem a medida da Câmara Municipal, e deviam ser multadas porque afetam a ordem e o sossego público; são os olhos grandes de mulher bonita.

Outras não passam de pequenas frestas ou seteiras, como certos olhos pequeninos e buliçosos que, quando olham, fazem cócegas dentro do coração. 

O que, porém, dava matéria a um estudo muito interessante é o modo por que a alma costuma chegar à janela.

A alma é mulher, e como tal padece do mal de Eva, da curiosidade; por isso, apenas há o menor barulho nas ruas, faz o mesmo que qualquer menina janeleira, atira a costura ao lado e corre à varanda.

Entretanto cada um tem o seu sistema diferente.

As almas francas e leais debruçam-se inteiramente na sacada, sorriem ao amigo que passa, cumprimentam os conhecidos, e às vezes oferecem a casa a algum dos seus íntimos.

Outras, ao contrário, nunca se reclinam à janela, ficam sempre por detrás da cortina, e olham o que se passa por uma pequena fresta. Deste número são as almas dos diplomatas, dos jesuítas e dos ministros de Estado.

Em compensação, há também algumas almas que, quando pilham um espírito descuidado, saltam pela janela como um estudante vadio, e vão flanar pelas estrelas, abandonando por um instante o corpo, seu hóspede e companheiro.

Animula vagula, blandula,
Hospescomesque corporis.

As almas andaluzitas, e de algumas mulheres coquettes que eu conheço, têm um costume mui lindo de chegar à janela.

Escondem-se e começam a brincar com as cortinas, a fazer tantos requebros graciosos, tantos meneios encantadores, que seduzem e martirizam um homem.

Para exprimir esta travessura d’alma na janela, os espanhóis inventaram uma palavra mui doce, o verbo ojear, que não tem tradução nas outras línguas.

Ia eu meu caminho, pensando em todas estas coisas, e formando um plano de estudo sobre as janelas d’alma, quando encontrei um amigo que se prestou a me acompanhar.

Chegamos juntos ao armazém óptico da Rua do Hospício nº. 71. O seu proprietário nos recebeu com toda a amabilidade e cortesia, e nos mostrou o seu estabelecimento.

Com efeito, não eram exagerados os elogios que me tinham feito dessa casa, onde se encontra um sortimento completo de instrumentos e objetos de óptica, tudo perfeito e bem acabado.

Vi um telescópio que me asseguraram se o melhor que existe no Rio de Janeiro atualmente, e com o auxílio do qual pode um homem uma bela noite ir fazer uma visita aos planetas e examinar de perto os anéis de Saturno.

Vi muitos outros instrumentos para medir as distâncias, tomar as alturas das montanhas, estudar as variações da atmosfera, muita coisa enfim que os nossos avós teriam de certo classificado como bruxaria.

Chegamos finalmente, aos óculos, e entre todos aqueles primores d’arte, no meio de tantos trabalhos delicados e de tantas invenções admiráveis, causou-me reparo uma velha luneta de grossos aros de tartaruga, de feitio tão grosseiro que me pareceu ser uma das primeiras obras do inventor dos óculos.

Estava metida numa caixa de marroquim roxo, sobre o qual se destacavam uns traços apagados, que me pareciam de letras desconhecidas de alguma língua antiga.

Disse-me o proprietário que esta luneta lhe viera por acaso entre uma coleção de elegantes pince-nez que lhe chegara ultimamente da Europa; excedia o número da fatura, o que fazia supor que naturalmente tinha-se confundido com as outras, quando o fabricante as arrumara na caixa.

Embora não me dê a estudos de antiquário, contudo aprecio esses objetos de outros tempos, que muitas vezes podem ter um caráter histórico.

Continuei a examinar a luneta, levei-a aos olhos, e por acaso fitei o amigo que me acompanhava.

Horresco referens!

Li na boca do meu companheiro, em letras encarnadas, estas formais palavras:

- Forte maçante! Está me fazendo perder o tempo!

Agarrei mais que depressa a minha alma que ia lançar-se à janela; e, disfarçando a minha surpresa, voltei-me para o proprietário.

Através do seu ar amável e cortês, li ainda o seguinte:

- Que extravagância! Com tantos óculos bonitos, ocupar-se com uma luneta velha que não vale nada!

Enfim, olhei para o caixeiro da casa, e vi imediatamente a tradução de um sorriso complacente que lhe assomava nos lábios:

- Ah! se o homem me livra deste alcaide! Dizia o sorriso do caixeiro.

Não havia que duvidar. Tinha em meu poder a célebre luneta mágica de que falam os sábios antigos. Comprei-a por uma bagatela, apesar da insistência do proprietário que não queria abrir preço a um traste velho e sem valia.

Despedi-me do meu amigo, pedindo que desculpasse a maçada, guardei com todo o cuidado a minha luneta, e segui o meu caminho.

Precisava refletir.

 Como é que aquele vidro mágico que se perdera na antiguidade, e que depois Frederico Soulié achou nas Memórias do Diabo, o emprestou um instante a Luigi, se achava nesse momento na minha algibeira?

Por que fatalidade o lorgnon de Delfina Gay viera parar ao Rio de Janeiro, e se achava naquela casa, desconhecido, ignorado de todos, podendo cair nas mãos do chefe de polícia, que então se veria obrigado a prender nove décimos da cidade?

Pensem que turbilhão de idéias, que torvelinho de pensamentos, me agitava a mente  exaltada por este fato. Visões fantásticas surgiram de repente começavam a dançar um sabbat vertiginoso no meu cérebro escandecido.

Via cenas do Roberto do Diabo, de Macbeth, do Paraíso Perdido e da Divina Comédia, mais bem pintadas do que as de Bragaldi, de Dante, de Milton, e de todos os pintores e poetas do mundo.

Enfim, decidi-me e fui almoçar.

O almoço – e especialmente o almoço diplomático e parlamentar – é um dos mais poderosos calmantes que eu conheço. Atua sobre o espírito pelo sistema homeopático.

Se este ano pudesse haver a mais pequena sombra de oposição, aconselharia os ministros que pusessem em voga nesta estação os almoços parlamentares.

Depois de almoçar, senti-me mais senhor de mim, e pude refletir friamente sobre a posse da minha luneta.

Lembrei-me que era escritor, e avaliei o alcance imenso que tinha para mim aquele vidro mágico.

Bastavam-me três ou quatro coups de lorgnon, para escrever uma revista que antes me roubava bem boas horas de descanso e sossego.

Não precisava mais estar preso a uma banca, a escrever, a riscar, a contar as tábuas do teto em busca de uma idéia a esgrimir contra a musa rebelde.

O meu folhetim tornava-se um agradável passeio, um  doce espaciar, olhando à direita e à esquerda, medindo a calçada a passos lentos, e rindo-me das coisas engraçadas que me revelaria a minha luneta.

Assim, pois, não é um artigo ao correr da pena que ides hoje ler, mas um simples passeio, uma revista ao correr dos olhos

São duas horas.

É a hora da flânerie parlamentar.

Lá vêm braço a braço dois deputados oposicionistas.

Oposicionistas?... Quero dizer queixosos. Oposicionista é uma palavra  antediluviana, cujo sentido se perdeu na confusão das línguas da Torre de Babel, e que naturalmente existiu no tempo que havia governo.

 Oposicionistas ou queixosos eram dois belos tipos a estudar. Isto é, eu pensava que eram dois: mas, fitando-lhes a minha luneta, vi com pasmo que ambos pensavam não só da mesma maneira, mas com as mesmas palavras.

- A falar a verdade, diziam os olhos de ambos, é uma asneira comprometer-me com o ministério, que parece estar seguro a duas amarras. O melhor é esperar!... entretanto vamos a ver se este sujeitinho, que aqui vai, toma a coisa ao sério, e mete-se na corriola!...

Quase ao mesmo tempo em que terminavam esta idéia luminosa, um deles virou-se para o outro:

- Então sempre está decidido?

- De pedra e cal.

- Pois conta comigo.

Um sorriso, um aperto de mão, e separaram-se na mais estreita entente cordiale.

Um tomou a direção do Caminho Novo de Botafogo; o outro entrou no Jornal do Comércio.

Estava ainda moralizando o fato, em pé na porta do Walerstein, quando descobri um moço político, esperanças da pátria, que vinha mordendo os beiços de uma maneira desesperada.

- Que lhe terá acontecido? Disse eu comigo.

E assestei-lhe a luneta.

Um interessante monólogo, que tinha lugar no seu espírito, acompanhava as furiosas mordeduras de beiços.

- Que época! Que época! pensava o homem. Le monde va de mal em pire.Tudo se profana! Tudo se desmoraliza!

“Não há mais crédito senão no comércio. Em política é vender a dinheiro e não fiar de ninguém.

“Esses oradores, que prometiam esmagar o ministério, nem se atrevem a tocar na casa dos marimbondos; antes de começarem os discursos, já adoçaram a boca; já beberam o copo d’água com açúcar.

“No tempo de Cícero e Demóstenes não se usava o copo d’água com açúcar; por isso nota-se que o estilo daqueles famosos oradores é forte e vigoroso. 

“Os de hoje, ao contrário, levam mel pelos beiços, e por isso têm sempre palavrinhas doces e açucaradas.

“E tenha um homem princípios numa quadra como esta! Tudo é mentira! Tudo é falsidade!

“Fronti nulla fides! Não há homem hoje em dia no qual se possa acreditar.

“Até o reverendo consta-nos do Jornal do Comércio já não é uma verdade oficial, uma confidência de ministros, uma página da pasta....

”Esse pigeon ministerial, mensageiro fiel dos segredos de Estado, tornou-se velho, mudou de penas, e hoje não passa de um canard, que por aí anda mariscando à beira da praia os poissons de primeiro de abril!

“Há dias fez o Sr. José Ricardo tomar posse da presidência duas vezes; ontem nomeou um Chefe de Polícia que infelizmente o Ministro da Justiça não quis confirmar”.

Neste ponto do diálogo o nosso filósofo dobrou a esquina de modo que não pude mais acompanhar o seu monólogo.

Voltando-me, dei com um representante de província que caiu sob o raio do meu lorgnon.

Estava ocupado a guardar um livrinho verde; o seu Agenda.

Veio-me a curiosidade de ler uma página desse livro; e com o auxílio da luneta o consegui.
A primeira folha rezava assim:

LEMBRANÇAS

1.º - Encomendar um fraque de cor no Dagnan, e visitar os ministros.
2.º - Projeto para que se trate seriamente de providenciar a respeito do papel existente no mercado, a fim de que não se sinta falta com o consumo feito em regulamentos.
3.º - Proposta para que se autorize o governo a confeccionar um  regimento de custas para a Câmara dos Deputados, com o fim de estimular o trabalho e fazer com que se abra a assembléia no dia marcado.

Pouco depois do representante, passou um folhetinista dando o braço a um personagem importante.

- Então como é isso? Dizia o personagem; desvaneceu-se a nuvem negra? Não há mais oposição?

- Não; tudo isto acabou.

- Ora, senhor...

- De que se admira, meu amigo?

- Pois esses homens que gritavam tanto...

- Ouviram a missa do Espírito Santo, meu caro.

- E então?...

- Ficaram inspirados.

- Ah! Intendo, como diz o Gentile.

- Por falar nisto, retrucou o folhetinista, lembra-se que na ocasião da abertura da assembléia, a música tocava a ária de tenor do 4.º ato do Trovador: Madre infelice, corro a salvarti!.... 

- Seria uma alusão?

- Não sei, meu amigo; mas a época é de calembures e trocadilhos..

Enganei-me: é um correio de ministro vestido em grande uniforme.

Depois que os estafetas de correio adotaram a jaqueta de pano com vivos, é justo que o estafeta do ministro, que constitui a aristocracia da classe, recorra à sobrecasaca militar. A tout seigneur tout honneur.

Tinha já visto tanta coisa, faltava-me ver o que existe dentro de uma pasta de ministro.

Em primeiro lugar, havia o rascunho de um projeto para estabelecer o emprego de escritor público, à guisa do promotor, do professor e do advogado público.

Necessidade de marcar-se um bom ordenado ao escritor público, o qual deve ser examinado como o professor, e marchar de acordo com a polícia como o promotor.

Vi também os papéis relativos à nomeação do novo inspetor da instrução pública, lugar que exerce interinamente o ilustrado e infatigável Dr. Pacheco da Silva.

Entre os nomes li o do Sr. Visconde de Sapucaí, do Sr. Marquês de Abrantes, e de muitas outras pessoas habilitadas; mas num cantinho descobri escrito de um modo especial o nome do Sr. Herculano Pena.

Deixei estes papéis, convencido que a dignidade e energia com que o Sr. Visconde de Itaboraí exerceu este cargo, exige que o governo medite bem antes de decidir-se na escolha do seu sucessor.

Vi também uma porção de pedidos de demissões de presidentes, de nomeações de outros, de lembranças a respeito que me deram a entender ia haver uma contradança geral nas altas posições administrativas.

Tudo isto, porém, ainda é segredo, e vos conto em confidência.  

Parece que os Srs. Pena e Zacarias renunciaram as suas presidências, e que irá para o Alto Amazonas o atual Presidente do Maranhão, um dos mais dignos caracteres e dos mais notáveis administradores que temos.

Os Presidentes da Bahia e Rio Grande do Sul vêm assistir a esta sessão com a idéia firme de não reassumirem os seus cargos.

Ia-me esquecendo dizer que estava na tal pasta um voto de agradecimento da Província de Rio de Janeiro, por se acharem na vice-presidência e no cargo de chefe de polícia dois dignos fluminenses.

Vinha de envolta uma pequena queixa por ser tudo isto apenas uma interinidade; mas também, para uma província cuja deputação não tem em seu seio quem a possa reger, é ser muito exigente.

Passou o tal capitão improvisado e eu limpei os vidros da minha luneta, guardei-a cuidadosamente para me servir em melhores ocasiões, e fui tratar de escrever alguma coisa, para que os meus leitores não me tomem por negligente.

Li hoje um belo folhetim lírico, em que se acha mau tudo quanto o Mercantil caiu na asneira de achar bom. Li-o com muito prazer, e sem surpresa.

Quem julga que a Zechini encantou na Luísa Miller devia lógica e necessariamente achar que a Charton cantou como uma fúria nos Puritanos.

O Campestre deu sua partida no dia 28 de abril. O baile vai em decadência quanto à dança; mas, em compensação, o serviço é excelente e de uma profusão inesgotável. O Francioni conseguiu vencer a sorvete e à empada a carga cerrada dos cossacos e zuavos de vinte polegadas de altura.

A nova empresa lírica fez a eleição da sua diretoria, e da notícia que publicaram os jornais haveis de ver o acerto da escolha. O Sr. Visconde de Jequitinhonha aceitou a presidência.

No horizonte poético da bela sociedade já se lobriga um baile do cassino, uma regata em Botafogo, e algumas partidas familiares e encantadoras.

Venham essas flores do mês de maio, flores perfumadas dos salões, que apenas vivem uma noite, mas que deixam na alma tantas reminiscências.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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