sábado, 15 de dezembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 22 de abril: A Estação das Flores


O Botafogo continua a ser o rendez-vous da sociedade elegante desta corte.

As tardes não têm sido tão lindas como deviam; mas felizmente aí vem o mês de maio, o mês das flores, da poesia, a verdadeira primavera da nossa terra.

Começa a estação dos bailes e dos saraus. O Campestre dá a sua primeira partida por estes dias; o Cassino nos promete uma bela noite antes do fim do mês.

Teremos naturalmente, como nos anos passados, uma febre dançante. Ninguém escapará à epidemia; e até alguns malévolos espelham que o próprio ministério fará uma contradança.

Venha, pois, o mês gentil, a estação das flores, com as suas belas tardes, com as suas lindas manhãs de cerração, com os seus dias puros e frescos!

Quanta coisa bonita que se prepara este tempo! Que belas noites, que alegres divertimentos nos promete ainda o arrabalde do Botafogo!

Uma regata, um baile popular, e um fogo de artifício suspenso sobre as águas límpidas da baía! Que magnífico espetáculo!

A minha pena, coitadinha, já está tremendo de susto, só com a idéia de que há de ser obrigada a descrever todas essas maravilhas! Que se arranje como puder; é coisa que bem pouco me embaraça.

Além destes encantadores divertimentos, ainda teremos outros que por ora estão em segredo, e que se revelarão a seu tempo; assim como muita novidade política que se está guardando para a abertura das câmaras.

Que novidades são estas? Não sei; correm tantas versões, que é impossível acertar com a verdadeira. Cada um descreve a situação à sua maneira, forma conjeturas, e acaba fazendo uma pergunta que está no pensamento de todos:

- Haverá oposição?

Entretanto, na minha fraca opinião, a situação é a mais bela e a mais esperançosa que é possível. Navegamos num mar de rosas ao sopro das brisas bonançosas; faz um tempo soberbo: tudo sorri, tudo brilha.

E, se não, lancem os olhos sobre a atualidade e estudem com atenção os prognósticos favoráveis que vão aparecendo.

Com a entrada da boa estação, as folhas de uma árvore que diziam carunchosas, as folhas da Constituição, reverdecem. Hércules reveste-se da túnica de Nesso, e dispõe-se a recomeçar os sete grandes trabalhos. A nossa marinha se enriquece consideravelmente com uma nau de pedra, invento que não possuem os países mais civilizados da Europa. Finalmente, o exército teve uma promoção!

Não há, pois, que duvidar. A época é toda de esperanças; e, se por aí se vêem esvoaçar urubus, não é porque o ministro esteja doente. Qual! é porque estamos tratando agora da limpeza das praias.

Há também uns sujeitinhos que espalham que o ministério já não regula. Que contra-senso! O ministério dos regulamentos! Bem se vê que são coisas a que não se deve dar o menor crédito.

Assim, pois, creio que se pode responder negativamente à pergunta que fazem todos os políticos. Não teremos oposição. Tratar-se-á de uma outra questão jurídica e administrativa; far-se-ão algumas interpelações, e nada mais.

Quatro meses depressa se passam; e os ministros, que gostam tanto do gabinete, mas que têm uma ojeriza particular às câmaras, tomarão um meio termo, e decidirão nos salões com os deputados as questões mais importantes da administração.

O salão é um terreno neutro entre a câmara e o gabinete. No gabinete só entram os íntimos, aqueles que estão no segredo do dono da casa e que gozam da sua familiaridade. A câmara é o aposento onde ordinariamente têm lugar os arrufos e as zanguinhas do marido com a mulher, onde de ralha e se passam algumas horas de mau humor.

No salão, porém, recebem-se todas as visitas de cerimônia ou de intimidade; dão-se bailes, reuniões dançantes e concertos. Conversa-se ao som da música; conferencia-se a dois no meio de muita gente, de maneira que nem se fala em segredo, nem em público.

Se a palestra vai bem, procura-se alguma chaise-longue num canto da sala, e, a pretexto de tomar sorvete ou gelados, faz-se uma transação, efetua-se um tratado de aliança.

Se a conversa  toma mau caminho, aí aparece uma quadrilha que se tem de dançar, uma senhora a que se devem fazer as honras, um terceiro que chega à propósito; e acaba-se a conferência, e livra-se o ministro do dilema em que se achava, do comprometimento de responder sim ou não.

Um ministério prudente deve por conseguinte procurar sempre o salão antes de entrar na câmara, e isto até mesmo por uma analogia com o que se passa nas relações domésticas e na vida familiar.

Um namorado imprudente que, prescindindo das etiquetas, quisesse logo do primeiro dia penetrar na câmara de alguma beleza fácil que requestasse, corria seu perigo de ver-se obrigado a saltar pela janela, a quebrar uma perna, e talvez a ser agarrado pela polícia.

Ao contrário, um conquistador de tática, que primeiro se faz apresentar no salão, que concilia as boas graças da mamãe, e se inicia nos negócios do papai, que se faz necessário, daí a pouco passa à varanda, ao gabinete, e por fim conquista a câmara.

Bem entendido, conquista a câmara com o auxílio da igreja; assim como o ministério deve conquistá-la com o auxílio da justiça.

Está, pois, definido o programa da nossa situação política. O ministério deve abrir os seus salões, dar um baile as noites, e tratar de fazer com que haja bons espetáculos líricos, a fim de os teatros serem concorridos.

Realizando este programa, não deve ter medo dos deputados, porque ninguém deixará as belas salas iluminadas e as elegantes rainhas da moda com todas as fascinações, para se ir meter numa câmara velha e escura, que até já foi cadeia!

Além do sossego de espírito, ganharão os ministros uma popularidade espantosa entre as moças, entre os leões da cidade, e até entre os músicos e os sorveteiros, que abençoarão este diário consumo de notas e de sorvetes.

Nenhum folhetinista poderá deixar de fazer o seu elogio quando no domingo passar em resenha os magníficos saraus que tiverem lugar durante a semana, e acharem nas suas recordações as mais belas idéias e as mais bonitas inspirações para um artigo poético.

As moças com este trato contínuo fascinarão de todo os seus adoradores; e o número dos casamentos se multiplicará consideravelmente, trazendo um sensível aumento de população, devido unicamente à política do ministério.

Deixemos por um momento esta perspectiva brilhante, para olhar um quadro triste da semana, uma cena de luto em que devemos tomar parte.

Faleceu na noite de segunda-feira o Sr. Conselheiro João Duarte Lisboa Serra. Ainda na flor da idade, sucumbiu a uma enfermidade cruel, depois de um longo sofrimento de cerca de três meses.

Reunia às virtudes cívicas e à inteligência e integridade de vida pública os mais nobres sentimentos do homem; era um zeloso empregado, um cidadão honesto, um amigo leal, e um excelente pai de família.

Não há muito tempo, numa carta que nos dirigiu, ofereceu-nos uma poesia feita nas suas noites de insônia e de padecimento. Mal sabíamos nós, ao ler estes versos tão simples e tão repassados de mágoa e de sentimento, que ouvíamos o canto do cisne.

Aqui os copio com o trecho da carta. Os seus amigos, aqueles que o estimavam, ouvirão ainda uma vez as suas palavras.

“Adeus!

“Bem quisera terminar mandando-lhe alguma flor mimosa colhida como por encanto no meio das vastas e monótonas Campinas deste meu prosaico retiro. Mas apenas deparo com os ramos fúnebres do cipreste.
...............................................................................................................................
“Leia, pois, no meio das esperanças que lhe sorriem, esses tristes versos do desengano; e receba no grito do moribundo uma lembrança indelével do amigo.

“É a minha oração da manhã.
Domine, exaudi orationem meam!
Morrer tão moço ainda! Quando apenas
Começava a pagar à pátria amada
Um escasso tributo, que devia
                 A seus doces extremos!

Morrer tendo no peito tanta vida,
Tanta idéia na mente, tanto sonho,
Tanto afã de servi-la, caminhando
               Ao futuro com ela!...

Se ao menos de meus filhos eu pudesse,
Educados por mim, legar-lhe o esforço...
Mas ah! que os deixo tenras florezinhas
            À mercê dos tufões.

Vencerão das paixões o insano embate?
Sucumbirão na luta do egoísmo?
As crenças, a virtude, o sentimento,
            Quem lhes há de inspirar?

Não te peço, meu Deus, mesquinhos gozos
Deste mundo ilusório; mas suplico
Tempo de vida, quanto baste apenas
           Para educar meus filhos.

É curto o prazo; dai-me embora ao fel
Dos sofrimentos; sorverei contente.
Lúcida a mente, macerai-me as carnes
          Estortegai meu corpo.

E após, tranqüilo, volverei ao seio
Da eternidade. A fímbria do teu manto,
Face em terra, beijando, o meu destino
          Ouvirei de teus lábios.

Andaraí, 1855.”.

Voltemos a página, e passemos dos dramas verdadeiros e reais aos dramas escritos, às cenas do teatro.

O Ginásio deu a sua terceira representação, na qual estreou uma espirituosa menina, que tem um belo talento e as melhores disposições para a cena. Em algumas ocasiões especialmente representou com tanta inteligência, com tanta graça, que arrancou aplausos gerais.

A companhia vai perfeitamente, tanto quanto é possível aos modestos recursos de que dispõe. É conhecida geralmente a falta que temos de bons atores; e por isso não há remédio senão ir criando novos. O Ginásio por ora é apenas uma escola; mas uma escola que promete bons artistas.

A sala é pequena; entretanto a circunspeção que reina sempre nos espectadores, a lotação exata das cadeiras e gerais, a regularidade da representação, fazem que se passe uma noite agradável, e muito mais divertida do que no Teatro de São Pedro de Alcântara.

Se as minhas amáveis leitoras duvidam, vão examinar com os seus próprios olhos se falto a verdade. Vão assistir a uma noite de espetáculo, e ver brincar na cena com toda a naturalidade aquela interessante e maliciosa menina de que lhes falei.

As minhas leitoras se recusariam por acaso a fazer este benefício à arte, dando tom a este pequeno teatrinho, que tanto precisa de auxílio e proteção?

Estou certo que não; e está me parecendo que esta noite enxergarei pelos camarotes muito rostinho gentil, muito olhar curioso procurando ver se eu os enganei e faltei à verdade.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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