quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 13 de maio: A Arte Conversar


Estou hoje com bem pouca disposição para escrever.

Conversemos

A conversa é uma das coisas mais agradáveis e mais úteis que existe no mundo.

A princípio conversava-se para distrair e passar o tempo mas atualmente a conversa deixou de ser um simples devaneio do espírito.

Dizia Esopo que a palavra é a melhor, e também a pior coisa que Deus deu ao homem.

Ora, para fazer valer este dom, é preciso saber conversar, é preciso estudar profundamente todos os recursos da palavra.

A conversa, portanto, pode ser uma arte, uma ciência, uma profissão mesmo.

Há, porém, diversas maneiras de conversar. Conversa-se a dois, en tête-à-tête; e palestra-se com muitas pessoas, en causerie.

A causerie é uma verdadeira arte como a pintura, como a música, como a escultura. A palavra é um instrumento, um cinzel, um craion que traça mil arabescos, que desenha baixos-relevos e tece mil harmonias de sons e de formas.

Na causerie o espírito é uma borboleta de asas douradas que adeja sobre as idéias e sobre os pensamentos, que suga-lhes o mel e o perfume, que esvoaça em ziguezague até que adormece na sua crisálida.

A imaginação é um prisma brilhante, que reflete todas as dores, que decompõe os menores átomos de luz, que faz cintilar um raio do pensamento por cada uma de suas facetas diáfanas.

A conversa a dois, ao contrário, é fria e calculada como uma ciência: tem alguma coisa das matemáticas, e muito da estratégia militar.

Por isso, quando ela não é um cálculo de álgebra ou a resolução de um problema, torna-se ordinariamente um duelo e um combate.

Assim, quando virdes dois amigos, dois velhos camaradas, que conversam intimamente e a sós, ficai certo que estão calculando algebricamente o proveito que podem tirar um do outro, e resolvendo praticamente o grande problema da amizade clássica dos tempos antigos.

Se forem dois namorados em tête-à-tête, que estiverem a desfazer-se em ternuras e meiguices, requebrando os olhos e afinando o mais doce sorriso, podeis ter a certeza que ou zombam um do outro, ou buscam uma incógnita que não existe neste mundo – a fidelidade.

Em outras ocasiões, a conversa a dois torna-se, como dissemos, uma perfeita estratégia militar, um combate.

A palavra transforma-se então numa espécie de zuavo pronto ao ataque. Os olhos são duas sentinelas, dois ajudantes-de-campo postos de observação nalguma eminência próxima.

O olhar faz as vezes de espião que se quer introduzir na praça inimiga. A confidência é uma falsa sortida; o sorriso é uma verdadeira cilada.

Isto sucede freqüentemente em política e em diplomacia.

Um ministério, aliás bem conceituado no país, e que se sente cheio de prestígio, vê-se incomodado por uma pequena oposição nas câmaras, e recorre à conversa.

Como faziam os exércitos antigos, como fez Roma e Alba, em vez de uma batalha campal, acha mais prudente e mais humano apelar para o juízo de Deus, e decidir a vitória pelo combate dos Horácios e dos Curiáceos.

Novo Horácio, separa os inimigos por uma ruse de guerre e combate, isto é, conversa com cada um dos inimigos.

Ora, todos nós sabemos, desde o tempo em que traduzimos Tito Lívio, que um Curiácio não é para se medir com um Horácio; por conseguinte, o resultado da conversa é sabido com antecedência.

Instâncias de uma parte, confidências da outra, protestos, acusações, queixas e promessas, tudo de mistura, eis em resumo os elementos de uma conversa ministerial e parlamentar.

De ordinário, esta conversa começa friamente. Caminham lado a lado, mas guardando uma certa distância. Nota-se na fisionomia alguma reserva, uma indecisão mesmo. As palavras trocam-se lentamente, e como que medidas e pesadas.

São os primeiros passos, os botes preliminares de dois jogadores de florete.

Dentro em pouco tempo, há um pequeno arranhão, faz-se sangue. Os homens tomam fogo, falam ao mesmo tempo, gesticulam desesperadamente, e medem o assoalho a passos largos e desencontrados.

Depois de procelosa tempestade,
Sombras de oposição que leva o vento,
Traz a pasta serena claridade
Esperança de voto e salvamento. 
(Camões)

A conversa chega ao seu terceiro período, à sua última fase. Passeiam então braço a braço, ou sentam-se nalgum canto, risonhos, contentes, satisfeitos, como dois amigos que se encontram ao cabo de uma longa ausência, como dois amantes que se abraçam depois de pequeno arrufo.

Desde que começou a ter voga este gênero de conversa governativa, ou política, imediatamente certos espíritos metódicos e sistemáticos trataram de classificar por ela as diversas espécies de oposicionistas ou descontentes.

Assim, há hoje três classes distintas de oposicionistas: 1.ª) dos que já conversaram; 2.ª) dos que querem conversas; 3.ª) dos que não admitem conversa.

Esta última classe dizem que é das mais pobres, e com toda a razão. É preciso ser-se bem misantropo e anti-social para fugir a uma conversa tão amável e de tão grande interesse.

Não vão tomar à má parte esta expressão. Quando eu disse que a conversa ministerial é de grande interesse, foi no sentido de ser instrutiva e de deleitar o espírito, deixando impressões agradáveis.

Mas, voltando ao nosso assunto, é inegável a influência benéfica que exerce a conversa sobre a alma do homem civilizado.

Nos primeiros dias da sessão da câmara, como ainda há pouco se tinha conversado, a chapa ministerial da comissão de resposta à fala do trono sofreu um échec.

Porém neste dia mesmo conversou-se. O ministério tem neste ponto uma grande vantagem: é um senhor que conversa por seis bocas.

O resultado foi que a coisa tomou outro caminho, e entrou nos seus eixos.

Dizem, é verdade, que a nomeação dos Srs. Ferraz e Assis Rocha para as comissões de fazenda e justiça civil foi uma verdadeira derrota.

Não creio; estou mesmo convencido que o ministério desejou de coração que duas inteligências distintas, como são estes senhores, fossem aproveitadas, cada uma na sua especialidade.

E tanto isto é assim, tanto essas veleidades de oposição não tomam aspecto sério, que a resposta à falta do trono apresentada ontem mostra a inteira adesão que presta a câmara à política do governo e à marcha da administração.

Felizmente estamos no tempo das ironias; e não se me dá de crer que a câmara é capaz de aprovar aquela resposta, e pouco depois declarar-se em oposição aberta.

E nisto não fazia mais do que seguir o exemplo dos ministros que prometem, protestam, dão palavra, e amanhã nem se lembram do que disseram na véspera.

Ora, não vejo porque a câmara não aproveitará das lições dos seus mestres, ainda mesmo que seja para dar-lhes lição.

Terá medo de dissolução? Acreditará num boato que por aí espalham certos visionários?

Custa-me a crer. O tempo em que os ministérios dissolviam as câmaras já passou; agora estamos no tempo em que as câmaras é que hão de dissolver os ministérios.

Outrora, quando os deputados vinham por sua vontade, com toda a pressa, o ministério os mandava embora.

Atualmente, que é preciso que o governo mande buscar os deputados, é natural que estes mandem embora o ministério.

É a regra do mundo. Depois da ação vem a reação.

Aqui vejo-me obrigado a abrir um parêntese, e a trocar a minha pena de folhetinista por uma pena qualquer de escritor de artigos de fundo.

Não brinquem, o negócio é muito sério.

Vou escrever uma tirada política.

A situação atual apresenta um aspecto muito grave, e que pode ter grandes conseqüências para o país.

Chegamos talvez a esse momento decisivo em que os sentimentos políticos, por muito tempo adormecidos, vão novamente reaparecer e tomar um grande impulso.

No meio do indiferentismo e do marasmo em que se sepultavam os antigos partidos políticos, começam a fermentar algumas idéias, algumas aspirações, que talvez sejam o germe de um novo partido.

Os princípios desapareceram; as opiniões se confundem, as convicções vacilam, e os homens não se entendem, porque falta o pensamento superior, a idéia capital, que deve traçar a marcha do governo.

A política e a administração, deixando de ser um sistema, reduziram-se apenas a uma série de fatos que não são conseqüência de nenhum princípio, e que derivam apenas das circunstâncias e das necessidades do momento.

A conciliação apresentada como programa pelo ministério atual ficou sem realização.

Foi apenas um meio transitório a que se recorreu quando sentiu-se a necessidade de criar esperanças, que foram depois iludidas.

Todos os sintomas, pois, indicam que o organismo político, em que esteve o país, começa a fazer crise. Deste caos de opiniões, de idéias, de teorias, de convicções mortas e de opiniões que se vão criando, há de necessariamente sair um elemento novo, uma combinação de princípios que deve formar um grande partido.

Quais devem ser as tendências e as bases fundamentais dessa nova política? Quais serão as idéias, as reformas e os melhoramentos que constituirão o seu programa de governo?

É difícil, é quase impossível dize-lo; mas parece-me que a conciliação, que o ministério não conseguiu realizar nos homens, se há de operar nesta confusão de idéias extremas que deve formar o novo partido.

Há certos fatos necessários, que não dependem da vontade humana, e que entretanto podem ser dirigidos e modificados por ela.

Na época atual, o aparecimento de um partido filho das antigas facções políticas que dividiram o país, é uma necessidade, é uma conseqüência fatal do estado de coisas.

Cumpria, pois, que os homens eminentes que podem de alguma maneira imprimir a sua vontade nos acontecimentos tomassem a iniciativa, e, criando os elementos desse novo partido, lhe dessem uma influência benéfica e salutar.

Há no nosso país, há no seio da representação nacional, há nas altas posições administrativas homens que deviam incumbir-se dessa missão e levantar a bandeira, em torno da qual se agrupariam imediatamente todos os espíritos que hoje vacilam, todas as aspirações que agora vão nascendo.

Iniciado na tribuna, sustentado pela imprensa, acolhido pela opinião geral, esse novo pensamento, essa nova profissão de fé ficaria conhecida pelo país inteiro

A política não seria mais uma simples luta de interesses individuais, uma oposição de certos homens. A influência e o prestígio dos grandes nomes tornar-se-ia então um verdadeiro pronunciamento de idéias e princípios.

Todos esperam com ansiedade a discussão do parlamento; todos aguardam o momento decisivo de uma demonstração clara e expressa.

Se nem um desses homens de quem há pouco falamos tomar a iniciativa, então, perdida a fé que inspiram os nomes conhecidos no país, não haverá remédio senão caminhar sem eles.

Os homens novos, que não têm comprometimentos nem precedentes, trabalharão como simples soldados. Algum dia acharão um chefe; e, se não acharem, criá-lo-ão.

Os melhores generais foram soldados.

Já era tempo.

Vem de novo, minha boa pena de folhetinista, vamos conversar sobre bailes e teatros, sobre essas coisas agradáveis que não custam a escrever, e que brincam e sorriem sobre o papel, despertando tanta recordação mimosa.

Lembra-te do Cassino?

O lindo baile já não é aquela brilhante reunião de outros tempos, onde se viam agrupadas como flores de uma grinalda todas as moças bonitas desta terra.

Tudo passa; algumas daquelas flores, levadas pelas brisas do mar, lá se foram perfumar outros salões; muitas brilham aos raios de outro sol, e poucas ainda aí vão talvez ultimamente para sentirem as reminiscências de tempos passados.

É verdade que lá de vez em quando nesta grinalda já quase murcha desabrocha uma nova flor, que faz esquecer um momento todo o passado. 

Nessa última noite era uma flor do Brasil que, depois de ter brilhado entre as pálidas anêmonas de Portugal, entre os alvos lírios da França, entre os suaves miosótis da Alemanha, veio de novo aquecer-se aos raios do sol da pátria, e perfumar as belas noites de nossa terra.

Se vísseis como ela se balouçava docemente sobre a haste delicada, e se reclinava com tanta graça como para deixar cair as pérolas de orvalho e fragrância que destilavam do seu seio delicado!

No meio de um baile tudo é fascinação e magia.

Tocava a valsa, e a flor se transformava em sílfide, em lutin, em fada ligeira que deslizava docemente, roçando apenas a terra com a ponta de um pezinho mimoso, calçado com o mais feiticeiro dos sapatinhos de cetim branco.

Um bonito pé é o verdadeiro condão de um a bela mulher.

Nem me falem em mão, em olhos, em cabelos, à vista de um lindo pezinho que brinca sob a orla de um elegante vestido, que coqueteia voluptuosamente, ora escondendo-se, ora mostrando-se a furto.

Se eu me quisesse entender sobre a superioridade de um pé, ia longe; não haveria papel que me bastasse.

Apareceu também no Cassino uma bela roseira, coberta de flores, em torno da qual os colibris adejavam a ver se colhiam um sorriso ou uma palavra meiga e terna.

Mas a roseira só tinha espinhos para os que se chegavam a ela: os estames delicados guardavam o pólen dourado do seu seio para lança-lo talvez às brisas das margens do Reno ou do Mondego.

Depois do Cassino, o fato mais notável da crônica dos salões foi o benefício da Raquel Agostini com a representação da ópera Semíramis.

A Casaloni caricaturou outra vez o papel de Arsace. O elegante e ardente guerreiro da Babilônia desapareceu naquele porte sem nobreza, naqueles gestos sem expressão, naquela frieza de caráter,

Por outro lado, a beneficiada teria feito um verdadeiro benefício ao público se tivesse cortado do seu programa uma célebre ária do Roberto do Diabo e uma polca de invenção moderna que foi dançada pelo corpo de baile.

O Ginásio Dramático continua em progresso. A concorrência nestas últimas récitas tem sido numerosa; e o salão começa a ser freqüentado pelas melhores famílias e por muita gente da sociedade.

Por isso já esperava eu. Coloquei aquela pequena empresa sob a proteção das minhas amáveis leitoras; embora o meu valimento seja nenhum,eu sabia que, por amor da arte, elas não o deixariam de olhar com bons olhos para esse seu protegido.

Ce que femme veut, Dieu le veut. Se as minhas belas leitoras quiserem, em pouco tempo o Ginásio será um excelente teatro, e poderá criar artistas novos e dar-nos bem horas de agradável passatempo.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

Nenhum comentário: