domingo, 30 de dezembro de 2012

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão IV)

Numa terra de ruas estreitas e becos sinuosos, duas praças de São Luís – a João Lisboa (velho Largo do Carmo) e a Deodoro (antigo Largo do Quartel) – mais que quaisquer outros espaços públicos da cidade ganharam uma extraordinária importância histórica.

Por uma série de fatores, cresceu e se desenvolveu em torno delas a atividade artística da capital, do século XIX até os dias de hoje. As duas viraram pontos de referência para a compreensão do espírito de São Luís. A João Lisboa é tida como o coração da cidade, que se celebrizou com um notável lastro de história, desde remotos relatos como os de Claude d‘Abbeville e Ribeiro do Amaral. Esta praça também ficou famosa por ter sido, durante muito tempo, o largo antigo onde grupos de pessoas se reuniam todas as tardes para comentar a vida da cidade. Era lá também que os intelectuais costumavam se encontrar à noite para discutir arte, literatura e política.

O escritor Domingos Vieira Filho (1924-1981) recorda com nostalgia, no livro Breve História das Ruas de São Luís, que a Praça João Lisboa, “povoada de sombra espessa, dadivosa, fresca, aprazível, com bancos terminando os encostos laterais em cabeças de carneiros modeladas em cimento e gesso, era o coração, a alma, o centro nervoso da cidade, onde funcionava um poderoso mecanismo de censura social, cadinho maravilhoso e infalível.”

A História conta que foi no Largo do Carmo que se travou, em 1643, o memorável combate entre os holandeses invasores comandados por Anderson e a tropa do português Antônio Teixeira de Melo. O Convento do Carmo, que pertencia à Ordem dos Carmelitas e depois passou para o controle da Ordem dos Capuchinhos, serviu de abrigo para portugueses durante a expulsão dos holandeses.

Com escadaria em pedra de cantaria, o Convento do Carmo data de 1627 e foi construído graças à doação de terras feita por Alexandre de Moura aos frades carmelitas, que chegaram em São Luís em 1615.

No pavimento térreo do Convento do Carmo, funcionou o Liceu Maranhense, criado em 1838, no governo do presidente Vicente Tomás Pires de Figueiredo Camargo, cujo primeiro diretor foi Francisco Sotero dos Reis (1800-1871). Juntamente com a Igreja do Carmo, o Convento é considerado um dos mais perfeitos conjuntos arquitetônicos da época colonial em São Luís. Administrado desde 1894 pelos padres capuchinhos e – vale lembrar – este Convento também foi a primeira sede da Biblioteca Pública Benedito Leite, inaugurada no início de maio de 1831.

No interior do Convento, encontram-se sepultados vários bispos e padres que ali serviram e atualmente avulta, em frente à Igreja do Carmo, o busto do Frei Carlos Roveda de S. Martino Olearo (1852-1931), fundador da Missão Capuchinha no Norte e Nordeste do Brasil.

O Largo do Carmo dá acesso ao Beco da Pacotilha - ou Beco do Quebra-Bunda – por ter sido instalado lá, por algum tempo, o grande jornal A Pacotilha, de Vitor Lobato, em um prédio de azulejos verdes que ainda existe até hoje e era propriedade do Barão de Coroatá. Além do prédio da velha Pacotilha, lá havia uma coluna de mármore que dominava a praça, quase em frente ao Convento do Carmo: era alta, elegante, de base retangular, subindo para o capitel em feixes espiralados. Esta coluna de mármore era o Pelourinho de São Luís, erguido para o castigo público dos negros cativos.

Segundo César Marques (1826-1900), o famoso dicionarista da História do Maranhão, este pelourinho – célebre instrumento utilizado pelos feitores para castigar pretos que se rebelavam – foi inaugurado no dia 30 de setembro de 1815, quando dois escravos foram surrados, mesmo depois de já terem sido vergalhados na cela da Cadeia Pública, porque ainda traziam no dorso e nos braços as marcas de lapadas recentes.

De acordo com César Marques, os escravos eram amarrados à coluna, de bunda de fora, para serem açoitados, (daí o nome Beco do Quebra-Bunda), configurando uma cena pungente em pleno Largo do Carmo, defronte da Rua da Paz, no Centro Histórico de São Luís. Lá avultava a espiral de mármore do pelourinho, que fora destruído vandalicamente pelo povo, por ocasião da Proclamação da República, em novembro de 1889.

O escritor Dunshee de Abranches (1867-1941), cronista da velha cidade, com as ruas em ladeira, os mirantes de azulejos, os telhados escuros, as grades de ferro das sacadas, os lampiões nas esquinas, recorda, no seu prestimoso livro de memórias, de imagens marcantes como a de negros presos ao pelourinho, de mãos e pés atados.

No livro Panteon Maranhense, Antônio Henriques Leal (1828-1885) revela que Odorico Mendes (1799-1864), ao escrever o seu primeiro soneto, inspirou-se no supliciamento de um negro no pelourinho do Largo do Carmo. A sensibilidade do menino de 13 anos foi profundamente ferida pelo espetáculo deprimente e seu estro vibrou num soneto que Leal considera formidável:
Despido em praça pública, amarrado,
Jaz o mísero escravo delinqüente:
Negro gigante de ânimo inclemente
Na mão tem o azorrague levantado.

A rir em torno, um bando encarniçado
Ao verdugo promete um bom presente,
Se com braço mais duro ao padecente
Rasgando for o corpo ensangüentado.

Homens, não vos assiste a menor pena
Dos sentidos seus ais, d´angústia sua?
Rides, perversos, desta horrível cena! ...

A sua obrigação, oh gente crua,
Faz o reto juiz quando condena;
Tu, deplorando o réu, cumpres a tua.


Foi através da Resolução nº 14, de 28 de julho de 1901, que o histórico Largo do Carmo passou a ser denominado Praça João Lisboa, em homenagem à memória do grande mestre do jornalismo do Maranhão. O escritor Domingos Vieira Filho conta que, no antigo largo, João Francisco Lisboa (1812-1863) residiu por muitos anos. “Da janela de seu sobrado viu desfilar muitas vezes a vida da cidade. Há de se ter inspirado no velho logradouro para recompor com ânimo isento e exatidão documental lances heróicos da história maranhense aí vividos em mais de uma ocasião.”

O escritor Viriato Correia (1884-1967) foi quem fez, como deputado estadual, o projeto de lei mandando erigir uma estátua ao ilustre maranhense que, além de jornalista, foi crítico, historiador, orador e político. A Lei estadual nº 582, de 24 de abril de 1911, autorizou o governo a abrir os créditos necessários ao levantamento da estátua, inaugurada solenemente no dia 1º de janeiro de 1918, com discursos proferidos pelo professor Ribeiro do Amaral, pelo intendente Clodomir Cardoso, pelos acadêmicos Alfredo de Assis e Domingos Barbosa e pelo cônsul Fran Paxeco.

João Lisboa, maranhense nascido em Pirapemas, no dia 22 de março de 1812, é o patrono da Cadeira nº 18 da Academia Brasileira de Letras. Autodidata, foi caixeiro, jornalista, deputado provincial (1848) e historiador. Representa, ao lado de Varnhagen e de Joaquim Caetano da Silva, o tripé da reforma da historiografia brasileira.

Todos os estudos biográficos sobre João Lisboa, cognominado o Timon Maranhense, se baseiam nos dados publicados por seu contemporâneo e amigo íntimo Antônio Henriques Leal na Notícia acerca da vida e obras de João Francisco Lisboa, que precede as suas Obras (quatro volumes) impressas no Maranhão em 1864-1865. A biografia de João Lisboa, ampliada, foi reproduzida no tomo 4º do Pantheon Maranhense, editado em 1857 pela Imprensa Nacional de Lisboa.

Em 1977 saiu o livro João Francisco Lisboa Jornalista e historiador, de Maria de Lourdes Menaço Janotti, e em 1986 o primeiro volume da nova fase da Coleção Afrânio Peixoto, da Academia Brasileira de Letras, João Francisco Lisboa O Timon Maranhense, de Arnaldo Niskier, duas obras de pesquisa em torno da figura e dos escritos do publicista maranhense, que faleceu em Lisboa, Portugal, aos 51 anos de idade, no dia 26 de abril de 1863.

Um ano depois de sua morte, seu amigo Antônio Henriques Leal editou suas Obras Completas (São Luís, 1864-1865, 4 volumes) nelas incluindo a Vida do Padre Antônio Vieira, obra póstuma. Como escreveu Capistrano de Abreu, João Francisco Lisboa foi um dos mais vigorosos espíritos do Brasil e com razão o Maranhão se orgulha de ser sua pátria.
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Continua…

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
Edição 118. 20 de janeiro de 2006

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