domingo, 16 de dezembro de 2012

Mário de Carvalho (Carolina)


Foi mantida a grafia original

Pareceu-me um fulano complicado, miudinho de carácter, basto obsessivo, explorador de pequenas vantagens até à náusea. No caso, ele era senhor duma embarcação e eu não conseguia transporte para a Ilha de Grimush. Não o larguei toda a manhã. Desconversava, dava evasivas, trejeitos, silêncios, voltava-me as costas para se ocupar em tarefas pífias, de linha e rede. Fazia-se caro e importantíssimo. Apetecia-me bater-lhe. Ser ele proprietário duma draga disforme, ferrugenta, empastada de limos e sujidade não lhe dava o direito de me tratar de alto. Se eu o esmurrasse talvez ele descesse a ser mais equitativo no trato, mas isso não me garantia o transporte.

Na véspera eu desesperava, desenganado de arranjar barco que me levasse. O velho ferry boat estava encostado há que meses, os pescadores que procurei, no cais, nas tabernas, riam-se de mim. «Para Grimush? Ora bem...!» Tinham medo de se fazer ao mar. Finalmente, um veio atrás de mim, não sei se condoído do meu desalento se disposto a desfrutá-lo melhor. Ao dobrar duma esquina que fedia a molusco apodrecido, segredou-me: «Procure o Guedes, o patrão da draga! A draga passa...»

Nunca na vida tinha eu posto os pés numa draga. Vistas de longe pareciam-me sempre um amontoado de sucata, ineptas para o movimento, aparentadas aos velhos guindastes abandonados nos molhes, que apodrecem sobre calhas oxidadas. Mas parecia não ter alternativa. As esfinges revoltaram-se no Museu de Grimush, competia-me apaziguá-las e não era coisa que se resolvesse pelo telefone. Aí estava eu, humilhado, a suplicar ao da draga e ele a trocar-me as voltas. «Ná, não me calha! »

Foi já muito pela noite, ao balcão dum bar equívoco, enfeitado com redes de linho, teias de aranha e bolas de vidro coloridas, que o tal Guedes, exploradas todas as possibilidades de me enfadar e desiludir, concedeu:

«Acha que aguenta a viagem?»

«Mestre, estou por tudo, desde que me leve a Grimush.»

Madrugada, antes do sol, lá estava eu, na gordurosa plataforma, guardada por um tipo esquivo de brinco de latão em forma de oito numa orelha. Da cabina, o patrão não se dignou cumprimentar-me. Retirada a prancha, a draga foi deslizando, vagarosa, com um ruído atroador. Acomodei-me num recosto de chapas menos encardidas e adormeci, indiferente aos salpicos de mar.

O mestre acordou-me, já longe de terra:

«Não convém dormir agora. Olhe!»

Apontava-me uma direcção. O tisnado tripulante tropeçou entre nós, a soluçar, num lanço desandado, e escondeu-se sob um cabrestante. O Guedes sorriu e encolheu os ombros. Lá longe, um rochedo escuro, tortuoso e esguio, lançava-se do mar, até grande altura. Gaivotas planavam em círculo branco, circunscrevendo o afiado píncaro.

Perto, quase à altura do rochedo, emergia das águas o corpo de uma mulher gorda, que segurava uma canastra à cabeça com ambas as grossas mãos, cada qual capaz de envolver a draga em que viajávamos. Tinha feições ao mesmo tempo serenas e grosseiras e o cabelo negro apanhado atrás, num rolo. Rumávamos a cerca de três milhas de distância. Ainda assim, notávamos o arfar lento, da respiração tranquila, logo acima do ponto em que o mar em flor rebentava, ao rés da cintura dela.

«É a Carolina! », disse o mestre.

A draga ia palmilhando, lenta, num penoso entrechocalho de ferros e rodopio de espumas. A mulher, lá ao longe, respirava, suave, mas não se movia do mesmo lugar, nem parecia prestar-nos qualquer atenção. O patrão Guedes dava-lhe agora para conversar. Falava baixinho e não desfitava o enorme busto que assombrava as ondas.

Tinha acontecido meses atrás, talvez por Janeiro, ou Fevereiro, não se lembrava bem. Um pescador dera a notícia, à noite. Arribara com o motor avariado, vinha de olhos arremelgados e só à custa de muita aguardente pelas goelas abaixo conseguira falar. Ainda assim, ficou-lhe a voz para sempre entaramelada. Quase abalroara a mulher que lhe surgira pela vante, dominando as alturas da noite, olhando-o muito séria e fixa, lá de cima. Ninguém acreditou até ao dia seguinte, quando todos puderam distinguir aquela figura imóvel, mas viva, a respiração a condensar-se, em nuvens espairadas, no frio da manhã. Não houve quem ousasse aproximar-se. Mas todos os motores avariaram e aos barcos sem motor apodreceram-lhes as tábuas. Os homens ficaram transidos de medo. E todos os dias perguntavam ao mestre Guedes se a mulher ainda lá estava. O motor da draga, teco-teco, sempre na mesma, rabugento, desafinado, mas sem novidade. No porto, tinham chamado à aparição Carolina, em lembrança duma embarcação com o mesmo nome que naufragara num baixio e ficara anos a sobressair do mar, de proa a pique.

Carolina tinha poupado o patrão Guedes, mestre da draga. Volta e meia, ele fazia aquele percurso só para a ver. Certas vezes, em torno dela, ao arrepio das ondas, firmava-se, fluida, uma tonalidade rubra ao rés do mar, como se vogassem à tona colónias e colónias de algas vermelhas. Nessas alturas, o grasnido das aves era mais baixo e lamentoso. Depois, passava. E ao dizer-me isto, enrolava um cigarro, compenetrado.

«Estará ela apaixonada por si?», sugeri, meio a brincar. «Acho que é mais estima», respondeu-me muito a sério. «Mas, repare...»

Daí a poucas braças teríamos passado o rochedo e perdido de vista a mulher. Foi então que ela pestanejou longamente e os lábios polpudos se franziram num sorriso fugaz. «Viu? Viu?» O mestre agitava-se de contente. O ajudante esgueirou-se do esconderijo e daí a poucas horas aportávamos a Grimush.

Através do diálogo, convenci rapidamente as esfinges do museu ao acatamento da lei. Regressei satisfeito à draga que me esperava no cais deserto e logo abalámos. Mas quando tomámos vista do rochedo, Carolina já lá não estava. E não foram as circum-navegações ansiosas da draga em volta do rochedo que a fizeram reaparecer. Triste, triste, vi eu o mestre. Afundou a cabeça nos braços e assim ficou. Não mais me dirigiu palavra. Senti-me culpado, sem ter porquê.

Quando acostámos, o cais estava coberto de gente que se apinhava pelo molhe e pelos contentores e se pendurava das gruas. Silêncio total da multidão imóvel. Fizeram alas para que eu passasse. De costas voltadas para mim.

Não regressarei a Grimush.

Fonte:
Mário de Carvalho. Contos Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.

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