terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Correções

As postagens de ontem tiveram incorreções, com palavras coladas, o que ocasionou leitura errada de frases. Graças a uma das leitoras do blog, que me avisou do ocorrido, corrigi-as e hoje estão postadas novamente, corretamente.

Perdoem não perceber a falha anteriormente.

José Feldman

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Carolina Ramos (Liberdade em Trovas)


No Livro da Eternidade,
o herói a expirar, exangue,
a História da Liberdade
escreve com o próprio sangue!
*

Na vida, quanta maldade
não punida, se repete!
E, em nome da liberdade,
quantos crimes se comete!
*

Dessa cruel liberdade
de ofender, há quem abuse
a esquecer de que a verdade
um dia talvez o acuse!
*

Liberdade de calar
todos têm, mas, cuida, pois,
ser livre é poder falar
e seguir livre depois!
*

Liberdade é o grande anelo!
Na mansão, casebre ou ninho,
é o cobiçado castelo
quer do rico ou pobrezinho!
*

Na vida, a luta não cessa
em prol do sonho e do pão
e a liberdade começa
onde acaba a servidão!
*

Ser livre é também saber
que a liberdade alcançada
faz parte do próprio ser
e não se troca por nada!
*

Liberdade, em termos sãos,
vale mais se, humildemente,
podendo retê-la em mãos,
nós a damos de presente!
*

Não se queixa de ser pobre,
quem, no seu modesto lar,
trabalha e feliz descobre
que é livre para sonhar!
*

Pobre pássaro!... é de crer
que a prisão não mais suporta
- e vale a pena viver
se a liberdade está morta?!
*

A liberdade germina
quando um povo pulsa e anseia,
qual semente pequenina
que rasga o solo e se alteia!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. SP: EditorAção, 2011.
Imagem = http://www.adilsoncosta.com/tag/liberdade/

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 471)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

O ganso jurou vingança
ao notar, estupefato,
que o pato dormiu com a gansa
e ele fez “papel de pato”!
–JOSÉ OUVERNEY/SP–

Uma Trova Potiguar

A ressaca da bebida
é pra ninguém esquecer,
por isso a melhor pedida
é não parar de beber!
–HELIODORO MORAIS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

O viúvo, à falecida,
chorando que dava pena:
- Vai com Deus, minha querida,
que eu fico com Madalena
–ANALICE FEITOZA DE LIMA/SP–

Uma Trova Premiada


2010 - Curitiba/PR
Tema: PIJAMA - M/H


Irmão gêmeo, desligado,
só viu que errou de pijama,
quando acordou, assustado,
com a cunhada na cama.
–ALBA CRISTINA C. NETO/SP–

Estrofe do Dia


O desmantelo no mundo
Tem me causado alvoroço,
É homem falando fino,
É mulher falando grosso,
Tem até velha corcunda
Tirando carne da bunda
Pra colocar no pescoço.
–HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

Um Certo Alzheimer
–FRANCISCO MACEDO/RN–


Chegou sorrateiro, um famoso Alemão,
disfarça, me cerca, me deixa em apuro, ,
com cara de austero, em cima do muro,
e assim, vez em quando, a maior confusão.

Maior compromisso, e se foi reunião,
às vezes, um branco, melhor... Um escuro,
que deixa este vate, nem sempre seguro,
e assim, de repente, a mental confusão.

Por este “alemão”, eu já tenho fobia,
porque quase sempre me tolhe a poesia.
Por este infeliz, eu já pago alto preço!

O lápis na mão, a poesia chegando,
Ai, de repente, um branco nefando...
A ideia tão boa, meu Deus, mas esqueço!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

J. G. de Araújo Jorge (As Três Camas)


Esta estória se deu no canto de uma loja de moveis novos e usados na Rua do Catete. Num canto escuro, ao fundo da loja, bem distante do escritório, onde o gringo e o amigo conversam sobre as contas a cobrar, os juros das letras entregues ao banco e os clientes novos em perspectiva.

Acabavam de armar uma cama ao lado de outra que já estava no local. Por estranho que pareça, uma em imbuia, estilo "chipandale", pobre, a outra, em pau-marfim, rica, estilo moderno.

Os empregados armaram a cama e foram embora. Foi quando no silêncio daquele canto da loja, ouviu-se uma voz fina de imbuia:

- Até que enfim me arranjaram uma companhia! Puxa! Já estava entediada!

E outra voz, clara e forte, de pau-marfim, respondeu:

- Também fico satisfeita de me colocarem aqui. Pelo menos terei com quem conversar um pouco. Estava com medo danado que me botassem junto a uma mesa de sala ou a uma poltrona.

- Ah! Lá isto é verdade. Antes só, que andar misturada com essa gente estranha!

- Você já esta aqui há muito tempo?

- Pois você não viu logo? Repare que já estou toda empoeirada, e estes gringos nem sequer me mandam passar um pano vez em quando. Eles não fazem muita questão de me vender. Pertenço a uma mobília barata, ai uns 200 cruzeiros novos.

- 200 cruzeiros novos só! Olhe que é pouco!

- Olhe que é muito, minha amiga. Fizeram um trabalho porco com a minha madeira, e se você me levantar as tábuas é que verá como tenho as pernas desconjuntadas. E a estrado que me deram! Pinho vagabundo, cheio de furos.

- Pois você merecia outra sorte! Estou estranhando, por que ouvi lá na carpintaria dizerem que a minha mobília seria de 1.500 cruzeiros novos!

- Tem sorte! Olhe, repare aqui, na cabeceira. Esta vendo esta mancha? Pois eles nem pensaram em lixar a envernizar direito! Parece até que sou doente!

- Mas há quanto tempo você esta aqui?

- A falar a verdade não sei, não. Esta vida é tão monótona, os dias tão iguais, que acho que me enganei na canta. Mas pelo menos há seis meses, estou aqui, de pé... com poeira e tudo.

- É..., é muito tempo... E não tem vindo gente ver?

- Ter, tem... Mas o diabo do gringo só leva o pessoal para o outro lado onde há mobílias caras... Olhe que com a sua vinda eu talvez arranje um pretendente... Pelo menos melhorou muito a situação...

- Pois faço votos que realmente eu possa ajudar um pouco...

- Alias, minha amiga, eu nem sei se vou ficar satisfeita de sair daqui... Você sabe, mas destino de pobre é este mesmo. Nascemos para sofrer...

- Ora, não diga isto.

- É verdade. Veja você que destino há de me esperar. Algum operário ou pequeno funcionário me compra aqui a prestação, e eu vou parar numa casinha de subúrbio... vou viver em casa de pobre, servir de cadeira pra costura, de brincadeira pros garotos pularem... E na certa que vou comer pó como o diabo... Ah! porque não nasci eu uma cama em pau marfim!

- Gostaria tanto?

- Natural.

- Pois minha amiga, não vejo muita diferença, não.

- Não vê?

- Afinal que diferença faz eu estar numa casa de rico, não vou servir ao mesmo destino?

- Lá isso é verdade, mas pelo menos você vai pisar em cima de tapete, vai ser espanada todo dia... Talvez vá para um apartamento alto, sinta um pouco de ar, de sol... Ah! que saudades do tempo em que andei no tronco da imbuia no meio da mata, e apanhava sol e chuva . . .

- No fim, minha amiga, tudo vai dar no mesmo. . . E sorte teremos nós é se aqueles que nos comprarem não forem muito pesados... Sabe o que ouvi conversarem na carpintaria?

- Que foi?

- Estavam consertando uma cama usada.

- Sim, e que tem?

- Pois estavam dizendo que a cama quebrara com o peso dos que dormiam nela. E só vendo como o pessoal punha pimenta na história!

- Olhe, você quer saber de uma coisa? Quando penso nisto, eu tenho até vontade de ser uma poltrona.

- Ah! isto também não, seria rebaixar-nos demais! Você já pensou na maneira como os homens se utilizam da poltrona? Em nós pelo menus, eles ficam deitados...

- Sim, mas fazem cada coisa...

- E como é que você Sabe disto?

- Ora, minha amiga... . Eu estou aqui há seis meses... De passagem já ouvi muita conversa também... Pois você não esta contando coisas que ouviu lá na oficina?

- A minha esperança é servir a um casal de recém-casados, assistir a uma lua-de-mel...

- Pois não lhe gabo o gosto. O meu desejo era ser cama de mulher solteira...

- Sonsa! Alias você deve perder as esperanças, porque afinal você foi feita pare casal. . .

- Eu sei. Ninguém pode lutar contra o destino ... Mas era o que eu queria...

- Pois olhe, que deve haver muita cama solteira por ai, capaz de fazer corar uma cama... de pedra!

- Pelo visto você também ouviu mais coisas lá na oficina!

- Ora, se ouvi.

Nisto a converse é interrompida por alguns empregados que trazem duas mesinhas de cabeceira, colocando-as perto das duas camas. Depois se afastam.

A cama de imbuia:

- Ih! Pelo visto vamos ter mais companhia.

A cama de pau marfim:

- É... e esta parece cama usada. Não vê pela aparência das mesinhas. . .

- Silêncio. Lá vem os homens carregando outra cama.

Os empregados chegam trazendo outra cama, uma cama velha, usada. Armam as peças, aparafusando-as nos lugares, e saem.

A cama de imbuia:

- Boa tarde companheira!

A cama de pau marfim:

- Pelo vista ela não gosta de conversa.

A outra cama:

- E não gosto mesmo. Será que nem bem cheguei não posso ficar descansada um minuto...

A mesa de imbuia:

- Coitada ! Esta sofre dos nervos...

A cama de pau marfim:

- É... e esta bem estragada . . . De só uma olhadela pro estrado. . .

A cama que chegou:

- E vocês não viram nada. se olhassem pro colchão é que iam ficar admiradas... Ora vejam só, que duas caminhas virgens tão metidas...

A cama de imbuia:

- Afinal não sabe precisa ficar toda abespinhada . . . Ninguém a ofendeu . . .

A cama que chegou:

- E será que eu ofendi a pudicícia das donzelas, chamando-as de virgens... Ou não são?

- Eu sou, respondeu a cama de imbuia.

- Eu também, não esta vendo logo... Ainda estou cheirando a madeira. . . Nem o homem do verniz me botou a mão...

- Pois, olhe minhas filhas, vocês não sabem a vida que as espera.

A cama de imbuia:

- Pois nós, falávamos há pouco justamente sobre isto. Fazíamos conjecturas. E tão ruim a vida de uma cama!

A cama que chegou:

- Tão ruim?! Vocês vão ver!

A cama de pau marfim:

- Por que você foi vendida novamente pra loja?

- Porque a mulher que me tinha resolveu acabar com o negócio.

- Negócio? perguntou a cama de imbuia.

- Sim, negocio. E quem pagava o pato era eu. Pra dizer a verdade eu era a base de todo o negocio, até que a policia bateu lá!

A cama de pau marfim:

- E que negocio era esse?

A cama que chegou:

- Ora, essa! Será possível que eu precise dizer que negocio era?

A cama de pau-marfim:

- Puxa! que vida interessante você levou.

A cama que chegou:

- Interessante! Eis ai uma caminha com vocação suspeita... Não há de ter bom destino...

A cama de pau marfim:

- Você sem ofender não passa.

A cama que chegou:

- Não seja tola. Você pode morrer de curiosidade por assistir porcarias, mas eu já estou cheia... Felizmente já me livrei daquele colchão imundo que aguentei durante três anos...

A cama de imbuia:

- Mas você só tem três anos de uso? Esta muito bem conservada.

- Três anos?! Três anos estive eu com a tal mulher. Tenho doze anos de uso, minha filha. Já estou derreada, precisando que me troquem as pernas...

- Doze anos! exclamou a cama de Pau marfim.

- Sim, mocinha. Sim, meu anjo, doze anos! Não vá corar essas brancas faces de pau-marfim se lhe contar o que passei. . .

As duas camas:

- Ah' conte! conte!

- Pois minhas filhas, eu fui comprada para uma lua-de-mel... No fim de seis meses voltei pra oficina, para que me apertassem as juntas, os calços. Sabem, estas traves de madeira que aguentam o estrado?

- Pois dois deles se partiram... Tiveram que ser trocados.

- Pesavam tanto assim os recém-casados?

- Não era tanto o peso . . .

A cama de Pau marfim:

- Que coisas você não viu, hein?

- Ver, não vi. Vocês sabem que nos não temos olhos. Mas o que não adivinhei . . . Bem! Pouco tempo depois, fui vendida. Botaram um anuncio num jornal, a eu troquei de dono. . .

- Logo, tão cedo?

- Ele era viajante, teve que mudar de cidade, e preferiu vender os moveis. Iniciava-se assim minha vida airada . . . Fui comprada pelo dono de um hotel... Vocês podem lá imaginar o que é ser cama em quarto de hotel?

A cama de pau marfim:

- Que vida dura!

A cama de imbuia:

- Cala a boca, sua tonta!

A cama que chegou:

- Pois bem que foi uma vida dura a partir dai. Em cima de mim, foi morta uma mulher, e sai até no jornal... Publicaram meu retrato com a mulher em decúbito dorsal, na primeira página...

- Mataram a mulher?

- O sujeito matou. E sabe que corri o risco de ser queimada?

- Como foi isto, perguntaram, a uma voz, as outras duas camas.

- Pois o sujeito pensou em queimar a cama, e deixar o quarto pegando fogo pare apagar a prove do crime.

A cama de pau marfim:

- E por que ele não fez isto?

- Porque com o ruído da lute e os gritos da mulher... mas já era tarde quando chegaram.

A cama de imbuia:

- Puxa! que susto você passou! Ser incendiada como qualquer acha de lenha sem nome nem estilo...

- Sei lá, meu bem. Eu até acho que preferia esse fim.

- E depois...

- E depois continuei na mesma vida... Foram oito anos e pouco, bem contados. Mudaram-me de quarto uma porção de vezes . . . Um dia, um casal dormiu com um filhinho pequeno de um ano e pouco... E o garoto durante a noite... molhou-me até os ossos

A cama de pau marfim:

- Eu queria ver era a cara do colchão numa horas destas!

A cama de imbuia:

- Ora, não zombe da desgraça alheia.

A cama que chegou:

- O que eu sei é que ele pelo menos apanhou um pouco de sol. O gerente mandou botar ele numa janela dos fundos pra secar ...Mas eu tive que secar ali mesmo... Uma outra vez trouxeram para o quarto duas camas pequenas, pares dois garotos... Mas os pais saíram, deixaram os garotos sozinhos, e eles me escolheram para palco de suas travessuras . . . Pularam tanto... tanto... que me arrebentaram as costelas... quero dizer, o estrado...

A cama de imbuia:

- Coitada, e você foi levada pra oficina?

- Vocês não vem estas ripas aqui por baixo? Pois estão aqui desde essa ocasião ...

A cama de pau marfim:

- E quando é que você foi pra casa da tal mulher... a tal que tinha o tal negocio...

A cama velha:

- Pois eu não digo que esta caminha tem umas inclinações suspeitas... Que curiosidade! Vou contar a vocês o melhor da coisa. E que vocês aproveitem minha experiência... Ah! nos três anos que passei lá, perdi-me completamente...

A cama de Pau marfim:

- Ficou mesmo uma cama perdida?

- Perdida, sim, meu anjo, Por que? Faz alguma objeção?

- Não, nada.

- Não pense que você, porque é de pau marfim, com esta madeira toda acetinada, esta livre disto... Pois vou contar-lhes então...

Nesse instante ouvem-se os ruídos de passos. São os empregados que trazem uma caminha pequena de criança, esmaltada, com desenhos infantis na cabeceira; e a colocam junto da cama velha. Chegam, armam a caminha e se retiram.

A cama de imbuia:

- E então?

A cama de Pau marfim:

- E depois... que a que houve com você?

A cama velha:

- Vocês não tem vergonha, não? Então não vêem logo que eu não vou continuar com estas estórias na frente desta criança?!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ronaldo Coelho Teixeira (Surtos & Sustos)


O livro Surtos & Sustos, de Ronaldo Coelho Teixeira, apresenta 50 crônicas produzidas pelo autor entre os anos de 2004 e 2006, e tem o prefácio assinado pelo renomado escritor e médico gaúcho, Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de Letras.

No prefácio, Scliar afirma: “Mas a crônica continua representando um apelo irrecusável, sobretudo para jovens escritores que podem nela viver sua aventura emocional e intelectual. É o caso de Ronaldo Teixeira com seus "Surtos & Sustos" (ótimo título, a propósito). Temos aqui a fórmula clássica do comentário sobre o cotidiano. Mas Ronaldo vai mais longe. As suas crônicas representam uma meditação sobre o modo de vida da classe média brasileira que oscila entre os surtos e sustos.”

Surtos & Sustos reflete o homem dividido entre o mistério de Deus e as ações dos homens num mundo de fatalidades. A obra apresenta uma única unidade temática e grande coerência de objetivos. É nela e por ela que o autor manifesta a sua apocalíptica previsão de um mundo em pânico, é mais que uma invocação, é quase um grito do autor, conduzindo seu discurso crônico a um questionamento trágico na tentativa de desvendar o enigma cultural.

Ronaldo Teixeira faz com que se refleta, com uma literatura pragmática, persuasiva e de transformação, num esforço metalingüístico, sobre o trabalho do escritor, sobre produzir literatura pela criatividade e pela sensibilidade aguçada. De ser valorizado pelo estilo, consagrado pela abordagem temática, e, enfim, culturalmente aplaudido, por habilitar-se a iniciar um longo processo de transformação por meio da reflexão.

A razão humana vacila perante as imensas forças de destruição por ela geradas. Daí resulta a problemática existencial do homem contemporâneo. Em pleno século XXI... é a expressão que marca o início de várias crônicas pertencentes a esta obra em que o autor mostra-se surpreso e até indignado com certas atitudes e posturas assumidas pela sociedade. Dono de um discurso injuntivo e argumentativo, o autor demonstra preocupação com a globalização e a despersonalização do cidadão.

A obra dividida em duas partes, sendo a primeira voltada para os “Surtos”, em que Teixeira, retém e desvela a realidade social, política, econômica e educacional em que estamos inseridos. Suas crônicas revelam a busca incessante da situação do homem em relação ao mundo. A realidade é percebida através de olhos questionadores. O autor apresenta o mundo, sem mistificação, sem eufemismo e sem sentimentalismo. Por vezes, torna-se cético. Critica a sociedade, a mecanização e o tecnicismo: Há tempos cruzam o repulsivo triângulo da mesmice: casa – trabalho – escola. E, como resvalo – pobre resvalo – sobram a TV e o controle remoto com a vazia e inútil ilusão de que o mundo todo está a seus pés. O autor quer nos levar a reflexão sobre a rotina que se instaurou na sociedade, a falta da novidade e das perspectivas do sonho. Envolvidos nessa rotina, somos levados ao esquecimento de nossa identidade e dos objetivos que traçamos para nossas vidas.

Em “As duas faces do medo”, Teixeira viaja entre o passado e o presente, comenta de maneira saudosista dos medos que sentíamos na infância, causados pelas histórias que ouvia antes de dormir: Quem não se lembra daquelas noites de contação de histórias assombradas, em que, mesmo morrendo de medo e arrepiados, ficávamos ali naquela rodinha até o final. E hoje o medo que sentimos é causado pela insegurança, conseqüência da violência que se instaurou na sociedade. De resto, sobra esta trágica e triste constatação: quando crianças, temos medo de gente morta e, quando adultos, temos medo de gente viva.

Nas crônicas “Quando muito é pouco” e “O mundo no gibi” existe a preocupação com o avanço tecnológico e o acúmulo de informações que não trazem o verdadeiro conhecimento para a sociedade, incentiva a leitura e critica o sistema educacional brasileiro.

Teixeira afirma que o amor está dentro de cada indivíduo. É pela ironia que enfrenta a problemática angustiante trazida pelo excesso de novidades em todos os setores da vida humana. Mostra certo saudosismo emocional ao denunciar o desaparecimento da emotividade, do sentimento, substituídos pela modernidade ou “A era dos surtos”, em que a sociedade busca a perfeição da beleza física e torna-se vítima de síndromes, fobias, loucuras e paranóias.

Em algumas crônicas, o autor dialoga com Schopenhauer, Gibran, Nietzsche e Jung ao falar dos tédios e dos desejos que cercam o homem. Do consumismo, da divisão de classes sociais e da felicidade momentânea trazida pela tecnologia.

Na segunda parte da obra "& Sustos", o autor afirma que "A palavra tem sido a chave-guia do homem através dos séculos." Talvez, por isso, é que ele faz das palavras um meio de denúncia das mazelas sociais. Faz uso de um vocabulário despojado de artificialismos e conotações para não torná-las desligadas da realidade.

Os “Sustos” são descrições de uma sociedade angustiada que sabe que o mundo não é o que se quer, mas o que se tem. Daí o presente, o hoje e o aqui, espacial e temporalmente, tornarem-se uma obsessão para o nosso autor. O mesmo mostra grande consciência da realidade brasileira, o seu nacionalismo não é ufanista, ele mostra-se solidário com o homem que, pela necessidade, tem de lutar pelo dia-a-dia: Passar a vida toda trabalhando que quando se chega à velhice não há dinheiro para curtir o lazer merecido e, havendo-o, não sabe mais como fazê-lo. O presente é a convergência do passado e do futuro pré-visto. Sonha com um amanhã em que não haja lugar para desnivelamento social, injustiça , miséria. Debate-se entre a matéria e o espírito e considera-se representante dos desanimados – Votar por obrigação e eleger pessoas para serem nossos representantes nas esferas municipal, estadual e federal e terminarmos reféns de suas vilanias, incompetências, autoritarismos e corrupções. Por fim, já que tudo parece ser estromberância nesse país, deixo aqui a definição desse termo para o amigo leitor, e que significa absurdo, monstruoso, surreal.

Surtos & Sustos reflete o homem dividido entre o mistério de Deus e as ações dos homens num mundo de fatalidades. A obra apresenta uma única unidade temática e grande coerência de objetivos. É nela e por ela que o autor manifesta a sua apocalíptica previsão de um mundo em pânico, é mais que uma invocação, é quase um grito do autor, conduzindo seu discurso crônico a um questionamento trágico na tentativa de desvendar o enigma cultural.

Fontes:
A Noticia (TO), Profa. Maria Wellitania O. Cabral disponível em Passeiweb
http://ronaldo.teixeira.zip.net/arch2010-05-23_2010-05-29.html

Pedro Malasartes (De como Pedro dá Mingau a Certa Velha)


Foi então que Pedro se encontrou com um de seus irmãos, com quem gastou em pândegas muito dinheiro.

Esvaziada a bolsa, seguiram de viagem juntos.

Depois de caminharem muitas léguas varados de fome, chegaram à casa de um casal de velhinhos, gente da lavoura e muito pobre.

Pediram pousada. Mas os velhos disseram que não tinham cômodo nem nada que lhes dar para matarem a fome...

-Só se quiserem dormir na salinha, no monte de palha...

Pedro aceitou logo a oferta.

Os velhos foram para seu quarto e os irmãos ficaram na palha.

Mas de madrugada o Malasartes sentiu um cheirinho bom e ouviu o chiado de uma panela lá na cozinha e perguntou ao irmão:

-Manuel, você não está ouvindo um chiado?... Quem sabe se na cozinha há alguma coisa que se coma?

O outro respondeu:

-É possível. Essa gente da lavoura costuma deixar a panela no fogo durante a noite para comerem de manhã, antes de irem para o trabalho.

Pedro, andando na ponta dos pés, levou o irmão para a cozinha, onde encontraram no fogo uma panela de mingau de fubá fumegando.

Comeram quanto quiseram até fartar-se e, como Pedro era um grande pândego e não podia passar sem fazer das suas, disse que estava com muita pena da velha e que lhe ia também dar um pouco de mingau.

Foram para o quarto e, enquanto o irmão segurava com muito medo a panela o Malasartes ia pondo com a colher o mingau onde supunha que era a boca da velha.

De vez em quando ouviam uns sopros e Pedro dizia baixinho:

-Está quente, avozinha? sopra minha velha!

Depois de irem levar a panela à cozinha os dois irmãos puseram-se ao fresco logo ao amanhecer.

Já estavam longe quando o velho despertou furioso com a mulher, a quem acusava de ter desfeiteado a cama...

-Eu! seu tratante! eu!

-Não se faça de tola, que não foi outra senão você mesma!

Mas então a velha sentiu alguma coisa lá nela mesma. E os dois que nunca tinham brigado agarraram-se às unhadas, saltando fora da cama. E qual não foi o espanto deles, quando viram a cama toda cheia de mingau...

Correram para a cozinha e acharam a panela vazia, foram à sala e já lá não estavam os hóspedes.

Rogaram muitas pragas e juraram não dar mais pousada a ninguém salvante a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 470)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Amai-vos, e as derradeiras
muralhas hão de cair.
Havendo amor, as fronteiras
não têm razão de existir!
–A. A. DE ASSIS/PR–

Uma Trova Potiguar


A brisa mansa e fagueira,
que sopra no meu jardim;
é uma fiel companheira
que beija as flores por mim.
–INÁCIO DE MEDEIROS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Nos caminhos paralelos
ao cansaço da jornada,
Deus me empresta seus chinelos
e eu prossigo a caminhada...
–ADELIR MACHADO/RJ–

Uma Trova Premiada


2011 - Nova Friburgo/RJ
Tema: RECADO - M/E


Partiste... e o que mais me fere,
ao ver nossa história finda,
é o teu recado: “Me espere...”
tentando iludir-me, ainda...
–THEREZA COSTA VAL/MG–

Simplesmente Poesia


M O T E :
Antonio Juraci Siqueira/PA


Tomado por ânsia extrema,
o poeta o peito escalavra
e deita o grão do poema
no fértil chão da palavra.

GLOSA :
DÁGUIMA VERÔNICA/MG

Tomado por ânsia extrema,
o canoeiro atravessa
a ponte do seu dilema;
martírio de uma promessa.

Driblando as forças do vento,
o poeta o peito escalavra
arranca, nesse tormento,
forças para a sua lavra.

Sabe ele montar esquema:
Prepara a terra do amor
e deita o grão do poema
colhendo um jardim em flor.

Troca o mar pela poesia,
a nova terra ele lavra
e encerra sua agonia
no fértil chão da palavra.

Estrofe do Dia

Pode olhar nas plantas que tem no mato
xique xique, mofumbo e catingueira
mororó, baraúna e aroeira
e na jurema do tipo unha de gato,
que o vaqueiro deixou nelas de fato
um pedaço do seu gibão inteiro,
pendurado num galho de pereiro
como prova de amor a profissão;
cada ponta de toco do sertão
tem fiapo da roupa do vaqueiro.
–JÚNIOR ADELINO/PB–

Soneto do Dia

O Beijo
–ANTÔNIO CARLOS TEIXEIRA/DF–


O beijo! Interpretá-lo é fácil incumbência...
É puro... quando toca os pés de uma criança;
Afortunado, pois, pela magnificência
Que envolve em doce paz e bem-aventurança.

Na boca... já demonstra a nítida tendência
Para um novo sentido, em radical mudança.
E da cumplicidade aflora a refulgência
Do incontido prazer, sob o esplendor que alcança.

Na fronte... de respeito inteiro se recobre.
É sublime, afetivo, um gesto meigo e nobre
Que se banha, feliz, do amor na própria luz.

Na face... não é mais que simples cumprimento,
Embora fosse, um dia, em trágico momento,
A senha amarga e vil que delatou Jesus!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (O Ermitão)


Um homem, animado pela mais ardente crença religiosa, deliberou retirar-se a urna gruta solitária para se dedicar inteiramente à salvação da sua alma. Jejuando sempre, orando, ciliciando-se, os seus pensamentos não se desviavam nunca da ideia de Deus. Depois de viver assim durante muitos anos, uma noite lembrou-e de que já tinha merecido um lugar glorioso no Paraíso e podia ser contado entre os santos mais notáveis.

Na noite seguinte o anjo Gabriel apareceu-lhe, e disse-lhe:

– Há no mundo um pobre músico, que anda de porta em porta, tocando viola e cantando, e que mereceu mais do que tu as recompensas eternas.

O ermitão, atônito, ao ouvir estas frases, levantou-se, agarrou no seu bordão, foi em busca do músico e mal o encontrou disse-lhe:

– Irmão, diz-me que boas obras fizeste, e por meio de que orações e penitências te tornaste agradável a Deus.

– Ora, respondeu-lhe o músico, abaixando a cabeça; santo padre, não zombes de mim. Nunca fiz boas obras, e quanto a orações não as sei, pobre de mim, que sou um pecador. O que faço é andar de casa em casa a divertir os outros.

O austero ermitão continuou a insistir:

– Estou certo que, no meio da tua existência vagabunda, praticaste algum acto de virtude.

– Em verdade não poderia citar nem um só.

– Mas então como chegaste a este estado de pobreza? Tens vivido loucamente como os que exercem a tua profissão? Dissipaste frivolamente o teu patrimônio e o produto do teu ofício?

– Não: mas um dia encontrei uma pobre mulher abandonada, cujo marido e filhos tinham sido condenados à escravidão para pagar uma dívida. Essa mulher era nova e bela, e queriam seduzi-la. Recolhi-a em minha casa, protegi-a em todos os perigos, dei-lhe tudo o que possuía para resgatar a sua família, e levei-a à cidade, onde ela devia encontrar-se com seu marido e com seus filhos. Mas quem não teria feito outro tanto?

A estas palavras o ermitão pôs-se a chorar, e exclamou:

– Nos meus setenta anos de solidão nunca pratiquei uma obra tão meritória, e apesar disso chamo-me o homem de Deus, enquanto que tu não passas de um pobre músico ambulante.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) - Pena de Papagaio - IX - Prisioneiros


Na corrida Peninha cruzou com o burro, que também ia fugindo, e pulou-lhe no lombo. Isso fez que os outros ficassem para trás e se perdessem no mato. Sem o Peninha para guiá-los, andaram, andaram às tontas e por fim entraram sem o saber no país dos macacos. Assim que transpuseram as fronteiras desse reino, vários guardas lhes caíram em cima e os enlearam com cipós. Em seguida os levaram à presença de Sua Majestade Simão XIV, que os cortesãos chamavam o Rei Sol, porque quando Simão aparecia todas as caras se iluminavam de sorrisos.

— Majestade — disse um dos guardas — aqui trazemos à Vossa Sublime Presença estes quatro viajantes que estavam atravessando as fronteiras sem passaporte.

— É mentira, senhor rei! — berrou Emília. — Eu tenho passaporte, sim. Olhe aqui — e abrindo a canastrinha, sempre nas costas do Visconde, tirou de dentro o célebre alfinete de pombinha. — Este é o meu passaporte.

O Rei-Sol examinou com a maior atenção aquele objeto para ele desconhecido, pois nunca vira nem alfinete simples, quanto mais de pombinha. Depois disse:

— O passaporte adotado no meu reino é uma banana-ouro, mas como sei que outros povos usam outros passaportes, aceito como válido este que esta senhora apresenta. Podem soltá-la.

Os guardas começaram a desamarrar Emília. Enquanto isso Pedrinho achou jeito de lhe dizer na linguagem do P, que os macacos não entendem:

— Apavipisepe Pepenipinhapa quepe espestapamospos naspas upunhaspas despestapa hoporrenpendapa mapaca-pacapadapa. (Avise Peninha que estamos nas unhas desta horrenda macacada.)

— Simpim — respondeu Emília disfarçadamente, e mal se pilhou livre raspou-se, muito tesinha, sem olhar para trás.

Em seguida Narizinho foi trazida à presença do real come bananas.

— Senhorita — disse ele — embora seja um crime entrar no meu reino sem licença, ouvirei de bom grado as suas explicações. Sou um rei magnânimo, mais amigo de premiar do que de castigar. Diga-me, quais são as suas impressões sobre a minha corte?

A menina correu os olhos em redor e só viu macacos e macacas, cada qual mais peludo e feio. Mas era esperta. Compreendeu que se dissesse a verdade teria de pagar caro. O melhor seria fingir-se encantada e só dizer coisas agradáveis aos ouvidos daquela horrenda bicharia. E respondeu:

— Estou maravilhada, Majestade, com a magnificência desta corte! Conheço muitas, tenho visitado muitos reis, como o Rei de Ouros, o Rei de Copas, o Rei de Espadas e outros. Mas nunca vi soberano mais bonito e nobre do que Vossa Majestade! Nem nunca vi damas da corte mais formosas que as presentes! Tão entusiasmada estou com o vosso reino, que nele ficaria morando a vida inteira, se Vossa Majestade o permitisse e vovó concordasse.

Simão XIV lambeu-se de gosto. Apesar de acostumado a só ouvir elogios, nunca tinha saboreado gabos como aqueles. Achou-os ainda mais gostosos do que a melhor banana-ouro.

— Soltem-na incontinenti — ordenou ele — e dêem a essa encantadora visitante a árvore mais alta para morar e o mais gentil macaco para esposo! Ficará residindo aqui, como é seu ardente desejo. Mandarei emissários contar o caso a sua vovó, que certamente vai ficar radiante quando souber da honra insigne que o Rei-Sol acaba de conceder à sua neta.

Narizinho, que não esperava tanto fez uma careta. Mas conteve-se, resignada, na esperança de que Peninha viesse salvá-la. Foi conduzida dali para o alto da sua árvore, enquanto os guardas traziam à presença do rei o Visconde, sempre de canastrinha às costas.

— E você, senhor viajante de cartola e canastra, qual a sua opinião?

O pobre sábio arriou a canastra, sentou-se em cima e enxugou o suor da testa com as costas da mão.

— O que acho? — disse ele depois de tomar fôlego. — Acho que esta canastrinha é muito pesada para um velho doente como eu.

— Não me refiro a nenhuma canastra, seu palerma! Que acha do meu reino? — berrou Simão carregando sobrolhos.

Sempre atrapalhado e esmagado sob o peso da carga, o Visconde não havia podido prestar atenção a coisa nenhuma e portanto não podia achar coisa nenhuma.

— Vossa Majestade me perdoe — disse ele — mas ainda não vi nada, de tão cansado que estou. Deixe-me primeiro tomar fôlego e dormir um sono. Amanhã darei minha opinião mais sossegado.

O rei não gostou nada de semelhante resposta, mas deixou-a passar. Mandou que dormissem o Visconde e trouxessem o último prisioneiro.

Os guardas trouxeram Pedrinho. O menino estava furioso com o que havia acontecido. Se tivesse ali o bodoque, era a bodocadas que responderia às perguntas do macacão. Mas não tinha. Estava de mãos amarradas. Mesmo assim resolveu dizer o que realmente pensava, porque Pedrinho sempre fora um menino de caráter forte, dos que não mentem em caso nenhum. Assim que o rei lhe repetiu aquela pergunta, o menos que pôde dizer foi o seguinte:

— O que acho deste reino ? Não acho coisa nenhuma. Não é reino nenhum. Não vejo rei nenhum. Vejo um macacão, como todos os outros, trepado num galho que ele supõe ser trono. As damas da corte? Macacas. Simples macacas, como todas as macacas do mundo. Tudo macaco! Isto não passa dum grande macacal como os que há em todas as florestas...

— Fora da minha presença, miserável caluniador! – berrou Simão XIV no auge da cólera. — Levem-no, guardas! Amarrem-no a um tronco para ser devorado pelas formigas antropófagas.

O pobre Pedrinho viu-se arrastado dali como se fosse um cacho de bananas.
––––––––––––––
Continua… Pena de Papagaio – X - Peninha não falha

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Trova 217 - Francisco José Pessoa (CE)

J. G. de Araújo Jorge (As Seis Faces da Mulher)


Uma vez, numa entrevista, quiseram saber qual era, para mim,a mulher ideal. Fisicamente? Não, o jornalista queria saber mais, referia-se ao espírito, a alma, a personalidade. Se a pergunta se cingisse ao físico, eu não resistiria a tentação de roubar alguns versos de Vinícius, da sua "Receita de Mulher". Só alguns, esta claro. Mas acrescentaria outros. Vinícius não se refere, por exemplo, aos cabelos. E para mim, mais que os, olhos, que os lábios, os cabelos são um elemento de importância definitiva. Não emolduram apenas o rosto, os olhos, os lábios, mas toda a mulher. Dão-lhe um toque de graça especial.

Naturalmente tem que ser leves, finos, soltos, para que o vento brinque de poesia com eles. Já perguntei num poema:

"A visão do teu pescoço branco, velado como um templo,
pelo véu de teus cabelos louros, que eu descubro
nos delírios de minha fantasia:
Ah! não será isto poesia?"

E num outro:

"Gosto de encher as mãos com os teus cabelos
como um lavrador a recolher, feliz
as louras messes de uma farta colheita."

Não importa, entretanto, a cor, o tom que apresentem: podem fazer noite, tarde ou manhã, virem carregados de sombra ou de sol.

" Quando em teus cabelos louros
ou negros
mergulho o rosto,
parece
que faz sempre sol-posto
que a noite mansamente nos meus olhos desce!"

Importa é que sejam bastos, esvoaçantes como gazes, como painas, como sonhos. Em matéria de mulher sou contra qualquer racionamento. Subscreveria, em que pese a minha vocação socialista, aquele verso de Vinícius:

". . . E que existe um grande latifúndio dorsal."

Também já confessara:

"Gosto de tuas costas (como um arco, flexível)
que se alargam em duas luas imensas, geminadas."

Mas estas respostas não serviriam a pergunta do entrevistador.
Qual a mulher ideal, para mim?

Lembro-me de que respondi que ideal é sempre a mulher que a gente gosta,
e que nos compreende. Mas pensei depois no assunto, e nasceu o poema. A mulher ideal, única, tem seis faces. Seis faces que a tornam múltipla, e infinita, para a nossa vida, a nossa ternura, o nosso amor. Na realidade, há todas as mulheres, na mulher que a gente ama. Disse isto no poema:

" As Seis Faces... "

Quando te encontro e observo que ficaste mais linda
e soltaste os cabelos para me agradar,
e me entregas os lábios num beijo leve e morno como a aragem,
e tranças os teus dedos em meus dedos, e me olhas
como no dia em que te tirei para dançar pela primeira vez,
é que percebo que continuas
a namorada.

Quando te preocupas com o tempo porque vou sair,
e recomendas detalhes como se me visse criança,
e repreendes a minha falta depois que as visitas se foram,
e endireitas a minha gravata, e escolhes a minha camisa,
e me fazes trocar os sapatos que não combinam;

quando surpreende o meu cansaço, e me enlaças,
e recosta a minha cabeça em teu colo,
e me dás conselhos como se eu pudesse segui-los,
é que descubro que há em ti, para mim, até mesmo
um pouco de mãe.

Quando te consomes muito mais com as minhas preocupações
e advinhas meus pensamentos, me prevines contra falsos amigos,
e te empenhas em partilhar também minha luta;

e economizas, como se com isso poupasses minhas forças,
e, sem querer, com uma palavra, desvendas uma solução
tão próxima e tão evidente, mas que meus olhos não percebiam;
quando à noite , na sombra, sem tocarmos os corpos,
conversamos, esquecidos, como dois amigos numa encruzilhada,
é que compreendo que tu és
a companheira.

Quando chego, e ao abrir a porta, estás à espera
com tua felicidade que me envolve e me aconchega,
e tirar da minha mão a pesada pasta de couro,
e me entregas os lábios (úmidos e trêmulos);

quando te encontro depois, em todos os detalhes cotidianos
e prosaicos, que fazem o melhor da vida:
minha toalha de banho no lugar; meus chinelos no seu canto;
minha roupa limpa sobre a cama; aquela jarra com flores arrumada;
aquela mesa posta, com seus talheres brilhando;
aquele odor de refeição que é o perfume do lar;
quando te vejo, leve e diligente, a circular pela casa
que consideras teu Reino, teu Mundo, teu Universo;
sei que tu és então
a esposa.

Quando à noite, de tarde, ou de manhã, (é um momento imprevisto
e nunca marcado) sinto que precisas de mim, que te faço falta,
como do ar, ou da água, de alimento, ou de vida,
e te encontro ao meu lado sempre irrevelada, e te dispo,
e se desencontraram as mãos e nossos corpos
e subitamente nos jogamos, como banhistas
contra o mar, contra as ondas, o mar desconhecido
as ondas que afogam e arrastam,
e de súbito estamos salvos na areia, como náufragos, és
a amante.

Quando te encontro ao meu lado, deitada numa nuvem
a acompanhar outras nuvens preguiçosas e itinenrantes
no céu do coração;

quando te pões a falar como crianças nas brincadeiras
em diminutivos, em “faz-de-contas” de pura imaginação,
e de ti restou apenas o contato dos nossos corpos, que
permaneceu em nós
entretanto distante, imaterial, a planar
como aquela gaivota na vaga luz da tarde que se esvai;
quando estirados na areia, cansados, mas felizes,
já podemos conversar, eu diria nesta hora que tu és
simplesmente
a irmã.

Quando penso em ti, e te sei tantas, no milagre da multiplicação
do amor,
recolho-me a ti, como pássaro às ramagens, onde encontra
a sombra, o ninho, o balanço, o fruto, - o impulso
para o vôo.

E amo, e trabalho, e sonho, e canto.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Qorpo Santo (Eu sou a Vida; eu não sou a Morte)


Personagens
Lindo
Linda
Rapaz
Manuelinha, filha de Linda

ATO PRIMEIRO

Lindo e Linda

Linda (cantando) —
Se não tiveres cuidado,
Algum Cão danado
Te há de matar;
Te há d'estraçalhar!

Lindo —
Eu sou vida;
Eu não sou morte!
E esta minha sorte;
É esta minha lida!

Linda —
Ind'assim, toma sentido!
Vê que é tudo fingido;
Não creias algum louvor:
Sabei: — Te trará dor!d

Lindo —
Se desrespeitará
A vida minha?
A desse, asinha,
— Ao ar voará!

Linda —
Não te fies, meu Lindinho,
Dos que te fazem carinho,
Crê que te devoram
Os lobos; e não coram!

Lindo —
Sabei, ó Lindinha:
Os que me maltratam
A si se matam:
Tu ouve; Anjinha!?

Linda — Meu Lindo, tu sabes quanto te amo! Quanto te adoro! Sim, meu querido amigo, quem melhor conhece do que tu o amor que neste peito mortal, mas animado por esta alma (pondo a mão na testa) imortal, te consagro!? Ninguém, certamente.
(Pegando-lhe na mão.) Adoças-me pois sempre com tuas palavras; com teus afetos; com teu amor ainda que fingido! Sim, meu querido amigo, bafeja-me sempre com o aroma de tuas palavras; com o perfume de tuas expressões! Sim, meu querido, lembra-te que hei sido baixel, sempre batido das tempestades, que por cinco ou seis vezes quase há soçobrado; mas que por graça Divina ainda viaja nos mares tempestuosos da vida!

Lindo — Ah! Minha adorada prenda, tu que foste a oferenda que me fez o Criador, em dias do mais belo amor, que pedes? Como pedes àquele que tanto te ama; mais que à própria cama?

Linda — Há! Há! Há! Meu queridinho; quanto me deste; quanto me felicitaste com as maviosas expressões desses teus bofes, ou pulmões — envoltórios dos corações!

Lindo — Estimo muito. E eu não sabia que tu tinhas o dom de adivinhar que sempre que vou apalpar, sinto bater neste peito — pancadas de ambos os lados; isto é, do esquerdo e direito. O que por certo convence que neste vácuo estreito abrigo dois grãos corações.

Linda — Há! Há! Há! Eu não digo (à parte) que este figo me foi enviado por cão danado? Quer me fazer crer que tem dois corações. (A ele:) Amiguinho, ainda não sabes de uma cousa. Queres saber? Eu vô-la digo Hem? Não responde!

Lindo — O que é; o que é, então!!?

Linda — Ora o que há de ser! Ê que tu tens dois corações dentro do peito, eu tenho duas cabeças por fora dos largos seios.

Lindo — Tu és o diabo! Ninguém pode contigo! És tripa que nunca se enche, por mais que dentro se lhe bote. És vasilha que não chocalha. És... o que eu não quero dizer, porque não quero que se saiba.

Linda — Pois já que me fazes comparações tão sublimes, eu também vou te fazer uma de que muito te deves agradar. Sabes qual é, não? Pois eu te digo: és o diabo em figura de homem! És... és... (atirando com as mãos e caminhando de um para outro lado) és... és! És! E então, que mais queres!? Quero comparações mais bonitas; mais finas; delicadas; e elevadas; ao contrário, ficaremos — figadais inimigos. Tem entendido, Sr. Sultãozinho? Pois se não tiver entendido, entenda!

Lindo — Bem. Vou fazer-lhe as mais mimosas que à minha imaginação abundante, crescente, e algumas vezes até demente — ocorrem! Lá vai uma: A Sra. é pêra que não se come!

Linda — Essa não presta!

Lindo — (batendo na testa) É preciso arrancar desta cabeça, ainda que seja com — algum gancho de ferro – uma comparação que satisfaça a esta mulher; ao contrário é capaz de...

Linda — E não se demore muito com as suas reflexões! Quero a comédia.

Lindo — Qual comédia, nem comédia! O que me comprometi a fazer-lhe foi comparação bonita; e não comédia. Espere, portanto. (Torna a bater na cabeça, mais no crânio. À parte:) Já que da testa não sai, vejamos se tiro do crânio! Ah! Sim; agora aparece uma; e que bela; que interessante; que agradável; que bonita; que delicada; que mimosa — é a comparação que vou fazer da Sra. D. Linda! Mesmo tão linda como ela! Tão formosa, como a flor mais mimosa! Tão rica, como a jorrosa bica! Tão fina, como a ignota si na! Tão... tão... tão... Quer mais? Quer melhor? Não lhe dou; não lhe faço; não quero! (A correr em roda dela:) Não lhe dou; não lhe faço; não lhe dou; não lhe faço; não quero; não posso; já disse. (Repete duas vezes esta última negativa.)

Linda — Este menino é o diabinho em figura humana! Dança, salta, pula, brinca... Faz o diabo! Sim, se não é o diabo em pessoa, há ocasiões em que parece o demônio; enfim, o que terá ele naquela cabeça!? (Lindo medita em pé e com uma mão encostada no rosto.) Pensa horas inteiras, e nada diz! Fala como o mais falador, e nada expressa! Come como um cavador, e nada obra! Enfim, é o ente mais extraordinário que meus olhos têm visto, que minhas mãos têm apalpado, que meu coração tem amado!

Lindo — Senhora: vou me embora (Voltando-se rapidamente para ela, com aspecto muito triste, e salpicado de indignação:) Vou; vou, sim! Não a quero mais ver; não sou mais seu!

Linda — (com sentimento) Cruel! Tirano! Suíço! Lagarto! Bicho feio! Mau! Onde queres ir? Por que não te casas, inda que seja com uma negra quitandeira?

Lindo — Também eu direi; Cruel! Ingrata! Má! Feia! Por que não te ligas ainda que seja a um preto cangueiro?

(Entra um rapaz todo paramentado, bengala, óculos, etc.)

O Rapaz — (para um, e depois para a outra) Vivam, madamas; mais que todos!

Lindo — (pondo-lhe as mãos, e empurrando) O que quer pois aqui!? Não sabe que esta mulher é minha esposa!?

O Rapaz — Dispense, eu não sabia! (Voltando-se para Linda:) Mas Sra., parece-me...

Linda — O que mais?! Não ouviu já ele dizer que sou mulher dele!? O que mais quer agora? Agora fique solteiro, e vá casar com uma enxada! Não quer acreditar que não há direito; que ninguém faz caso de papéis borrados; que isso são letras mortas; que o que serve, o que vale, o que dá direito – é a aquisição da mulher!?
Que quem se pega com uma, essa tem, e tudo o que lhe pertence! Sofra agora no isolamento, e na obscuridade! Seja solitário! Viva para Deus! Ou meta-se num convento, se quiser companhia. Não vá mais à reunião de outros homens.

O Rapaz (muito admirado) Esta mulher está doida! Casou comigo o ano passado, foram padrinhos Trico e Trica; e agora fala esta linguagem! Está; está! Não tem dúvida!

Lindo — Já lhe disse (muito formalizado) que fiz esta conquista! Agora o que quer?! Conquistei — é minha! Foi meu gosto: portanto, safe-se, senão o mato com este estoque!

(Pega em uma bengala e arranca um palmo de ferro.)

Linda — Não precisa tanto, Lindo! Deixai-o cá comigo... Eu basto para nos deixar tranqüilos!

O Rapaz — O Sr. tem estoque, pois eu tenho punhal e revólver! (Mete a mão na algibeira da calça, puxa e aponta um revólver.) Agora, de duas uma: ou Linda é minha, e triunfa o Direito, a Natureza, a Religião ou é tua, e vence a barbaria, a natureza em seu estado brutal, e a irreligião!

Linda — (para o rapaz) Mas eu o não quero mais; já o mandei para o leilão três vezes! Já o vendi em particular quinze! Já o aluguei oito! E já o libertei, seguramente por dez vezes! Não quero nem vê-lo, quanto mais tê-lo!

(O rapaz, gaguejando, querendo falar, e sem poder.)

Linda — Até a voz de sabiá, lhe tiraram! Até o canto de gaturama, lhe roubaram! E ainda quer se meter comigo!

O Rapaz — (fazendo trinta mil caretas para falar, e sem poder; ultimamente, desprende as seguintes palavras:) Ah! Mulher! Mulher! Diabo! Diabo! (Atira-se a ela, o revólver cai no chão; passa a derramar lágrimas, com os braços nos ombros dela, por espaço de cinco minutos.)

Lindo (querendo levantar o revólver, que estava perto do pé do rapaz; este dá-lhe um coice na cara.) — Safa! Pensei que a mulher já o tinha matado com o abraço, metendo-lhe nas entranhas todo o veneno da mais venenosa cascavel; e ele ainda dá ares de vida, e de força, pregando-me na cara a estampa de seus finos pés! — um morto que vive! Bem dizia certo médico que era capaz de conservar vivo um cavalo depois de morto, por espaço de oito meses, sempre a andar; e creio que até a rinchar!
— Demo! (Atirando com a bengala.) Não quero mais armas!

O Rapaz e Linda — (desprendem-se dos braços um do outro; desce então uma espécie de véu, de nuvens, sobre os dois. Lindo quer abrigar-se também, e não pode: chora; lamenta; pragueja. Levanta-se rapidamente a nuvem, torna a descer sobre os três; mas separando aquele. Ouve-se de repente uma grande trovoada; vêem-se relâmpagos; todos tremem, querem fugir, não podem. Gritam:) Punição Divina! (E caem prostrados de joelhos.)

SEGUNDO ATO

Cena Primeira

(Uma jovem vestida de negro com uma menina por diante. Atravessa um cavalheiro.)

A Jovem — (para este) Senhor! Senhor! Por quem sois, dizei-me onde está o meu marido, ou meu esposo, o meu amigo! (O cavalheiro embuçado numa capa desembuçando-se) Esquecestes que ainda ontem aqui o assassinastes com os horrores de tuas crueldades!?

Ele — Mulher! tu me conheces! Sabes quem sou, ou não sabes? (À parte:) Pérfida, cruel, ingrata! Vê seu marido diante de si, e apresenta-se a ele vestida de negro, luto que botou por sua morte.

Ela — (afastando-o com as mãos, como querendo fugir) Quem sois vós, ingrato, que assim me falais!?

Ele — Ainda perguntas. (Sacudindo a cabeça.) Ainda respondes. Quem sou eu? Desconheces o Lindo, teu afetuoso consorte, e ainda perguntas?!

Ela — Tirano! Foge de minha presença! Desprezaste os meus conselhos, não quiseste ouvir-me, e queixas-te. Bárbaro! Cruel! Eu não te disse que te não fiasses de pessoa Alguma! Por que te fiaste!?

Ele — E tu, Maga Circe: para que me iludiste! Para que me disseste que eras solteira, quando é certo eras casada com o mais belo rapaz!?

Ela — Eu... eu... não disse: mas você... não ignorava; bem sabia que eu era mulher de seu primo! Ignorava? Penso que não! Para que me botou fora! Para que me procurou?

Ele — Não sei onde estou, não sei onde me acho, não sei o que faça. Esta mulher (atirando-se, como para agarrá-la) é o demo em pessoa; é o ente mais admirável que eu tenho conhecido! É capaz de tudo! Já não digo de revolucionar uma província, de pôr em armas e mesmo de destruir um Império! Mas de revolucionar o mundo, de fazer, de converter os grãos em terras e as terras em águas; de, se tal tentasse, fazer do globo que habitamos — peteca!

Ela — É muito exagerado. Que atrevido conceito de mim forma! Que audácia! Nem ao menos quer ver que fala diante de uma filha de nove a dez anos!

Ele — Que fazeis por estas paragens, onde não vos é mais dado vir, porque já vos não pertencem?!

Ela — (com ar satírico e mordaz) Procuro-vos, cruel.

Ele — Sim: procuras-me para de novo cravar-me o punhal da traição! És bem má...és muito má!

A Menina — Papai! (Aproximando-se dele.) Que tem? Está doente? Me conte: — o que lhe aconteceu? O que foi? Diga, papai) diga, diga! Eu o curo, se estiver doente. E se não estiver, a Mamãe há de curar!

Ele — (tomando a menina nos braços; abraçando-a e beijando-a) Minha querida filha! Quanto adoçam a minha existência tuas ternas e maravilhosas palavras! Quanto transformam os furores de meu coração, as doçuras de tuas meigas expressões. [Para ambas:] Quanto apraz-me ver-vos! [Para a menina:] Ah! Sim! Tu és o fruto de um amor.. . Sim, és! Tua mãe, sem que eu soubesse, depois casou; procurou juntar-se a mim... iludia-me! Mas, querida filha, sinto uma dor neste peito.
(Desprendendo-se da filha.)
Este coração parece traspassado de dor. Esta alma, repassada de amargura. Este corpo, um composto de martírios! Céus... (Arrancando os cabelos) eu tremo! Vacilo!...

Ela — Célebre coisa! Quem havia de supor que este pobre homem havia de ficar no mais deplorável estado! Seu juízo é nenhum! Sua vista... não tem; é cego! Seus ouvidos, não têm tímpanos; já não são outra coisa mais que dois formidáveis buracos! Que hei de eu fazer dele!?

(Entra o Rapaz armado, vestido de militar, e com a mão no punho da espada)

O Rapaz — Hoje decidiremos (à parte) quem é o marido desta mulher, embora esta filha fosse fabricada pelo meu rival. (Desembainha a espada e pergunta para o rival:) A quem pertence esta mulher? A ti que a roubaste... que lhe deste esta filha? Ou a mim que depois com ela liguei-me pelo sangue; pelas Leis civis e eclesiásticas, ou de Deus e dos homens!? Fala! Responde! Ao contrário, varo-te com esta espada! Lindo — Ela quis; e como a vontade é livre, não podeis ter sobre ela mais direito algum!

O Rapaz — Em tal caso... e se ela amanhã disser que não quer? E se o mesmo fizer no dia seguinte para com outro? Onde está a ordem, a estabilidade em tudo que pode convir às famílias e aos Estados!? Onde iríamos parar com tais doutrinas!? O que seria de nós? De todos!?

Lindo — Não sei. O que sei é que as vontades são livres; e que por isso cada qual faz o que quer!

O Rapaz — Pois como as vontades são livres e cada qual faz o que quer; como não há leis, ordem, moral, religião!... Eu também farei o que quero! E porque esta mulher não me pode pertencer enquanto tu existires — varo-te com esta espada!
(Atravessando-o com a espada; há aparência de sangue.)
Jorra o teu sangue em borbotões. Exausto o corpo, exausta a vida! E com ela todas as tuas futuras pretensões e ambições! Morre (gritando e arrancando a espada), cruel! e a tua morte será um novo exemplo — para os Governos; e para todos os que ignoram que as espadas se cingem; que as bandas se atam; que os galões se pregam; não para calcar, mas para defender a honra, o brio, a dignidade, e o interesse das Famílias! A honra, o brio, a dignidade, a integridade Nacional!

(Lindo cai sobre um cotovelo; a mulher cobre-se com um véu e fica como se estivesse morta; a menina olha admirada para tão triste espetáculo.)

O Rapaz (voltando-se para a mãe e a filha) De hoje em diante, Senhora, quer queiras, quer não, serás minha mulher, consorte, esposa! Tu, minha querida menina, continuarás a ser a mimosa dos meus olhos, a flor que aromatiza; a santa que me diviniza! Eis como Deus ajuda a quem trabalha! Depois de milhares de trabalhos, incômodos, perdas e perigos! Depois de centenas de furtos; roubos; e as mais negras atrocidades! Depois de uma infinidade de insultos; penas; crueldades; o que não pude vencer, ou fazer triunfar com a pena, razões, discursos, acabo de fazê-lo com a espada!

(Estende esta; e assim deve terminar o Segundo Ato; e mesmo findar a comédia, que mais parece — Tragédia.)
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Já se vê pois que a mulher era casada, foi antes deflorada, depois roubada ao marido pelo deflorador, etc.; que passado algum tempo encontrou-se e juntou-se a este; que o marido sentou praça como oficial; e finalmente que para reaver sua legítima mulher, foi-lhe mister dar a morte física ao seu primeiro amigo, ou roubador. São portanto as figuras que nela entram:
Lindo, roubador.
Linda, mulher roubada.
Rapaz ou Japegão, legítimo marido.
Manuelinha, filha.

Fonte:
Virtualbooks

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 469)

Uma Trova de Ademar


Uma Trova Nacional

Jamais omita o passado
dos que lutaram com fé;
na construção de um legado
que mantem todos de pé!
–NILTON MANOEL/SP–

Uma Trova Potiguar


Uma pessoa egoísta
quer para si todo o bem.
O que chama de conquista
foi o que roubou de alguém.
–HELIODORO MORAIS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Voltas a mim, convencido
de que entre nós tudo é calma,
depois de haveres partido
e destroçado minha alma...
–NYDIA IAGGI MARTINS/RJ

Uma Trova Premiada


2011 - Nova Friburgo/RJ
Tema: RECADO - 3º Lugar


Em meu olhar recatado,
teu olhar viu, mas não leu,
a ternura de um recado
que o meu amor escreveu.
–MARINA BRUNA/SP–

Simplesmente Poesia

Verbo Encarnado
–WALTER DE OLIVEIRA/PB–


O Verbo mais conjugado
Não é verbo nem sujeito:
Falo do Verbo Encarnado
No tempo mais que perfeito.

Assim foi no seu passado,
Verbo puro sem defeito,
O mais nobre predicado,
No mais sagrado conceito.

E o Verbo se fez homem.
Espero que todos tomem
Sua vida como exemplo

E habitou entre nós
Eu e Ele, tu e vós
E todos nós como templo.

Estrofe do Dia

Nosso saber é pequeno
Pra caminharmos sozinhos,
Pra nos mostrar o veneno
Das serpentes nos caminhos.
Vamos a Deus, numa prece,
Buscar forças que carece
O nosso saber insano,
E Ele há de nos dar a luz
Nas pegadas de Jesus
Que tem saber soberano.
–RAIMUNDO SALLES/BA–

Soneto do Dia

Cova
–ANTONIO ROBERTO FERNANDES/RJ–


Cova é palavra que naturalmente
lembra morte, mistério e nos encanta,
pois cova tanto é o lar de uma serpente
como na iria foi o altar da santa.

na cova o lavrador deita a semente
pra que ela morra e gere nova planta,
sempre uma cova espera por a gente
e quem se deita lá, não se levanta.

mas na lavoura da felicidade
somos a terra, o fruto e a semente
mistério da humaníssima trindade.

pois se louco de amor seu corpo enlaço,
penetro em sua cova e de repente,
deliro, morro, e me sepulto... e nasço.

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A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá) Parte 4


SETE HORAS DE BATISMO

-Dias após, os jesuítas deram asilo a um chefe indígena chamado Tataurana, fugido das garras do próprio Raposo. O sertanista foi lá e exigiu o escravo de volta: ou devolviam Tataurana ou a missão seria invadida. Padre Mola endureceu, recusando entregar o nativo.

-O pé de briga que faltava...

-Era o dia 28 de janeiro de 1629. Os bandeirantes, com seus mamelucos, cercaram Santo Antônio. Dentro da aldeia generalizou-se o pânico. Com os índios reunidos na praça, os jesuítas celebraram várias missas, uma após outra. Aumentava a cada momento o nervosismo. Padre Mola mandou então que passassem à sua frente todos os que não haviam sido batizados, mesmo os que não tivessem completado o catecismo. Durante sete horas seguidas, abençoou crianças e adultos. No final já estava quase sem voz, e tão cansado que outros precisavam levantar seu braço para a bênção.

-Imagino o horror que se instalou ali.

-Justamente naquele dia, chegara a Santo Antônio um amigo do padre Mola, chamado Bartolomeu. Morador em Ciudad Real, onde nascera, filho de espanhóis fundadores daquela povoação, Bartolomeu Torales, 32 anos, exercia cargo de autoridade. Ao contrário, porém, da maioria dos castelhanos, mantinha bom relacionamento com os índios e com os religiosos e era muito respeitado pela sua generosidade. Ao ver na fila para o batismo um indiozinho que chorava muito, aproximou-se e soube que os pais do menino haviam sido capturados pelos paulistas horas antes, quando retornavam à missão. Bartolomeu simpatizou-se com o garoto e se ofereceu para ser o padrinho dele. Mais ainda: iria adotá-lo como filho. O indiozinho, de 7 anos, disse chamar-se Catu, que significa “bom”.

-Até que enfim vou conhecer o nosso Catu!

-Que no batismo recebeu o nome de Francisco Torales, meu mais antigo avô, como lhe falei no início desta nossa conversa.

-Agora estou começando a entender.

O GRANDE MASSACRE

-No dia seguinte, 29 de janeiro de 1629, logo ao amanhecer, os paulistas tomaram de assalto a redução. Lá dentro, 4 mil índios tentando desesperadamente se defender. Os invasores entraram atirando, incendiando casas, chutando porcos e galinhas, pisoteando mulheres e crianças; nem a igreja respeitaram. Em poucos instantes a aldeia inteira estava em chamas. Padre Mola, rouco e em lágrimas, procurava controlar o caos: “Homens de São Paulo, vocês estão violando uma reserva de Deus!”, dizia ele em tom dramático. Insensível, Raposo ordenava a seu bando que prosseguisse o massacre. “Raposo Tavares, você será amaldiçoado por isso. Deus condenará sua alma às penas eternas pelo que você está fazendo a essas crianças de Jesus!”, insistia o sacerdote. “Jesuíta, saia da minha frente”, rosnava o bandido, levantando a espada.

-Quanta estupidez!

-Morreram ali cerca de 500 índios. Outros tantos conseguiram fugir. No final, os paulistas levaram uns 1.500 para serem vendidos em leilões de escravos. Deixaram para trás apenas as mulheres e as crianças. Os prisioneiros, atrelados uns aos outros, foram postos a caminho de São Paulo sob os açoites dos mamelucos. Muitos morreram durante a viagem, não suportando a fadiga, os castigos e a fome. Quando nem o chicote podia obrigá-los a seguir em frente, eram simplesmente abandonados sem a mínima compaixão. Chegaram vivos uns 1.200, logo vendidos aos fazendeiros do planalto e do litoral.

-Barbaridade!

Dois jesuítas, os padres Mansilha e Maceta, seguiram de perto os índios aprisionados: iam distribuindo a unção aos moribundos encontrados no caminho. Chegando a São Paulo, foram queixar-se às autoridades, que entretanto não lhes deram atenção. Os padres continuaram até o Rio de de Janeiro, onde o governador geral os recebeu com aparente boa vontade, mandando um comissário acompanhá-los a São Paulo para impor justiça. O comissário foi recebido pelos paulistas com uma saraivada de insultos e posto a correr debaixo de tiros. Acabaram prendendo os próprios jesuítas. Libertados um mês depois, Manilha e Maceta, desconsolados, retornaram ao Guairá.

-O governo de Assunção também nada fez?

-Nesse meio tempo, outro missionário, o padre Tanho, foi a Assunção pedir ajuda ao governador, na época D. Luís de Céspedes y Xeria, que aliás era casado com uma sobrinha de Martin de Sá, governador do Rio de Janeiro. D. Luís limitou-se a comentar friamente: “Os senhores levantam grande alarido por pequenas coisas e se tornam odiados onde quer que apareçam”.

-Matar e escravizar indígenas eram ”pequenas coisas”...

-Segundo as más línguas, esse tal Luís de Céspedes teria um “acordo” com os paulistas: fecharia os olhos à invasão das reduções do Guairá e receberia em troca boa parte dos escravos capturados. Os índios seriam postos a seu serviço num engenho que ele tinha no Rio de Janeiro.

-Corrupção é coisa antiga...

–––––––––––-
continua…

O e-book completo pode ser feito o download no blog do Assis http://aadeassis.blogspot.com

Fonte:
A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá). e-book. 2011.

Oswald de Andrade (Um Homem Sem Profissão: Sob as ordens de mamãe)


No início de 1954, Oswald de Andrade publicou o primeiro volume de sua memórias, Um homem sem profissão: Sob as ordens de mamãe. O livro conta seus primeiros passos até o início da carreira jornalística, nos anos 10. Não teve repercussão alguma, o que desgostou o escritor.

Na obra, Oswald de Andrade constrói uma personagem acerca de si mesmo unindo pessoa e personagem. Segundo Antônio Cândido, no “prefácio inútil” do livro, nada separa Oswald de seus personagens, tornando-o o principal e operando a fusão poética do real e do fantástico, onde as pessoas tornam-se personagens, imperceptivelmente, e, quando menos esperamos, o real se compõe segundo as tintas da fantasia.

O autor tenta reconstruir o passado como relato, mas com uma visão crítica, adaptando uma persona (máscara em italiano) à sua história. Ele cria uma personagem revolucionária acima do que realmente foi, poetizando e dando ares retumbantes como justificativa de não pegar o bonde da história.

A máscara semântica funde pessoa a personagem na construção e um sujeito revolucionário que desde menino lê Vitor Hugo e se emociona a ouvir a palavra “liberdade” nos hinos da escola.

Esse clarão presidiu até hoje a toda minha vida. Como poucos, eu conheci as lutas e as tempestades. Como poucos, eu amei a palavra Liberdade e por ela briguei.

Assim ele constrói a lógica da personagem, apoiando-se no todo da obra pra criar essa ótica particular e vice-versa. A dimensão de suas escolhas sempre opta pelo viés que confronta uma reflexão sobre o passado, uma autocrítica que insiste na dinâmica do homem livre com seu lugar como sujeito na e da história.

O autor usa um clichê poético para metaforizar a força da primeira revolução daquele “menino” vindo da aristocracia do café e filho de vereador, que se intitula revolucionário, anarquistas e libertário, que odeia dançar, mas que no Largo São Francisco ensaiava passos de maxixe no meio da pretada no coreto.

Evidentemente definia-se assim minha intensa adesão ao povo, seus ideais e costumes.

O eixo do texto memorialístico, neste caso, se organiza a partir do sujeito, como uma espécie de fusão de mitos que pressupõe a fantasia da grandiosidade, de Narciso ou Ompahalos, si mesmo é o centro do mundo, em que o cerne estrutural é provido de tênue carga semântica.

Ou seja, toda revolução é uma aurora se visto a máscara do revolucionário.

Trecho da obra

Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam a morna cidade provinciana, iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na descida da ladeira de Santo Antônio, frente à nossa casa o bonde descer sozinho equilibrado pelo breque do condutor. E o par de burros seguindo depois.

Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos. Como seriam os novos bondes que andavam magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso esse negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde. Precisava pular. (...)

O projeto aprovado, começaram logo os trabalhos da execução. E anunciaram que numa manhã apareceria o primeiro bonde elétrico. Indicaram-me a atual Avenida de São João como o local por onde transitaria o veículo espantoso.

Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era. Caso é que funcionava. Para isso, as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes. (...)

Um amigo de casa informava: - o bonde pode andar até a velocidade de nove pontos. Mas, aí é uma disparada dos diabos. Ninguém aguenta. É capaz de saltar dos trilhos. E matar todo o mundo...

A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam ir até a temeridade de entrar no bonde, andar de bonde elétrico!

Naquele dia de estréia ninguém pagava passagem, era de graça. A afluência tornou-se, portanto, enorme.

No centro agitado, eu desci a ladeira de São João que não era ainda a Avenida de hoje. Fiquei na esquina da rua Líbero Badaró, olhando para o largo de São Bento, de onde devia sair a maravilha mecânica.

A tarde caía. Todos reclamavam. Por que não vem?

Anunciava-se que a primeira linha construída era a da Barra Funda. É pra casa do prefeito! - O bonde deixava o Largo de São Bento, entrava na Rua Libero Badaró, subia a Rua São João, entrava na Rua do Seminário.

Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá vinha o bicho! O veículo amarelo e grande ocupou os trilhos do centro da via pública. Um homem de farda azul e boné o conduzia, tendo ao lado um fiscal. Uma alavanca de ferro prendia-o ao fio esticado, no alto. Uma campainha forte tilintava abrindo as alas convergentes do povo. Desceu devagar. Gritavam:

- Cuidado! Vem a nove pontos!

Um italiano dialetal exclamava para o filho que puxava pelo braço:

- Lá vem o bonde! Toma cuidado!

O carro lerdo aproximou-se, fez a curva. Estava apinhado de pessoas, sentadas, de pé. Uma mulher exclamou:

- Eta gente corajosa! Andá nessa geringonça!

Passou. Parou adiante, perto do local onde se abre hoje a Avenida Anhangabaú. Houve tumulto. Acidente?

Não andava mais, gente acorria de todos os lados. Muitos saltavam.

- Rebentaram a trave do lado! Não é nada!

Tiravam a trave quebrada, o veículo encheu-se de novo, continuou mais devagar ainda, precavido.

E ficou pelo ar, ante o povo boquiaberto que rumava para as casas, a atmosfera dos grandes acontecimentos. Nas ruas, os acendedores de lampião passavam com suas varas ao ombro acendendo os acetilenos da iluminação pública.


Fonte:
Passeiweb