sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Nemésio Prata (Poetas de Quartel)

Casernas deviam ter
poetas de prontidão,
em serviço; pra trazer
aos quartéis sua missão!

Se, Poeta ou Trovador,
Literato ou Repentista,
Menestrel ou Cordelista,
Seja lá o que Você for,
Cante sempre com Amor!
Na paixão do teu cordel
Ao amor, darás quartel.
O fogo do teu repente
Alegra a vida da gente,
Do Soldado ao Coronel!

Falar no quartel inteiro,
Seguindo a tal hierarquia,
Pra não virar anarquia,
Vou chamar, como primeiro,
Nosso CABO CORNETEIRO.
Bom de toques e de verso,
No direto, e no reverso;
Cada nota sua, aponta,
Ser um Trovador, que conta,
As belezas do universo!

Literato e Repentista,
Encontramos o Sargento.
De poetas, é um rebento,
Fez-se grande Cordelista
Que vive dando entrevista!
Tecedor de belas trovas,
Sempre canta as boas novas,
Com beleza sem igual.
É trovador genial;
Disto já deu boas provas!

Nas fileiras do quartel,
O Cadete, já Tenente,
Anda com desejo ardente
De mostrar ser Menestrel,
Soltando versos ao léu!
No rutilo da palavra,
Os versos de boa lavra,
Adoçam seu coração;
E numa bela oração,
O sublime amor deslavra!

Passando tropa em revista,
Coberto de galardão,
O garboso Capitão
Mostra, também, ser artista,
Renomado Repentista.
A cantar, com todo ardor,
Seus versos, com destemor;
Na bandeira, desfraldada,
Fez, pra sua namorada,
Sublimes trovas de amor!

Nem menor e nem maior,
Bem no meio das “patentes”,
Trazendo seus bons repentes,
Encontramos, pra melhor,
Nosso brioso Major!
Neto de bom cordelista,
No conjunto é vocalista!
Canta sempre uma canção
Que marcou seu coração!
Viva o nosso Repentista!

Como todo militar,
Ele fica no comando,
Não sempre, de vez em quando,
No lugar do titular,
Se este não vem trabalhar!
É, o sub do Quartel,
Um “finório” Menestrel,
Que canta, com galhardia,
Os seus versos, todo dia:
O Tenente-Coronel!

Também grande Trovador,
Ele canta sempre o Amor!
Repentista renomado,
Prefere de ser chamado,
Simplesmente: Cantador!
É o nosso Coronel,
Comandante do Quartel!
No fogo do seu repente,
Incendeia toda gente;
Tem paixão pelo cordel!

Até mesmo o General,
Comandante da Brigada,
Ante a sua "namorada"
E companheira fanal,
Declara-lhe amor total.
Fazendo, tal Trovador,
Lindas poesias de amor,
No peito, marca a batida
Do coração, que na vida,
Pulsa forte, sedutor!

Quanto ao pequeno Recruta,
O “menor” na hierarquia,
Nos versos, é “autarquia”;
Mostrando ser um Batuta,
No Quartel, onde labuta!
Assim o Soldado Dimas,
Vai tecendo as obras primas,
Que até mesmo o “MARECHAL”
Das Patentes, “maioral”,
Não resiste às suas rimas!

Fontes:
Nemésio Prata - CE
Imagem = http://www.eb1-sta-vitoria.rcts.pt/aventura/historia.htm

Carlos Drummond de Andrade (Rola Mundo)

Vi moças gritando
numa tempestade.
O que elas diziam
o vento largava,
logo devolvia.
Pávido escutava,
não compreendia.
Talvez avisassem:
mocidade é morta.
Mas a chuva, mas o choro,
mas a cascata caindo,
tudo me atormentava
sob a escureza do dia,
e vendo,
eu pobre de mim não via.

Vi moças dançando
num baile de ar.
Vi os corpos brandos
tornarem-se violentos
e o vento os tangia.
Eu corria ao vento,
era só umidade,
era só passagem
e gosto de sal.
A brisa na boca
me entristecia
como poucos idílios
jamais o lograram;
e passando,
por dentro me desfazia.

Vi o sapo saltando
uma altura de morro;
consigo levava
o que mais me valia.
Era algo hediondo
e meigo: veludo,
na mole algidez
parecia roubar
para devolver-me
já tarde e corrupta,
de tão babujada,
uma velha medalha
em que dorme teu eco.

Vi outros enigmas
à feição de flores
abertas no vácuo.
Vi saias errantes
demandando corpos
que em gás se perdiam,
e assim desprovidas
mais esvoaçavam,
tornando-se roxo,
azul de longa espera,
negro de mar negro.
Ainda se dispersam.
Em calma, longo tempo,
nenhum tempo, não me lembra.

Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão,
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada
uma pomba cega.

Como pois interpretar
o que os heróis não contam?
Como vencer o oceano
se é livre a navegação
mas proibido fazer barcos?
Fazer muros, fazer versos,
cunhar moedas de chuva,
inspecionar os faróis
para evitar que se acendam,
e devolver os cadáveres
ao mar, se acaso protestam,
eu vi: já não quero ver.

E vi minha vida toda
contrair-se num inseto.
Seu complicado instrumento
de vôo e de hibernação,
sua cólera zumbidora,
seu frágil bater de élitros,
seu brilho de pôr de tarde
e suas imundas patas...
Joguei tudo no bueiro.
Fragmentos de borracha
e
cheiro de rolha queimada:
eis quanto me liga ao mundo.
Outras riquezas ocultas,
adeus, se despedaçaram.

Depois de tantas visões
já não vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os óculos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visões, interceptadas,
e tudo mais abolido.
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rolam os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo. In Nova Reunião, vol.1.

Alvaro de Campos (Poemas Sem Fronteiras)

SÍMBOLOS?
 Símbolos? Estou farto de símbolos...
 Mas dizem-me que tudo é símbolo.
 Todos me dizem nada.
 Quais símbolos? Sonhos. -
 Que o sol seja um símbolo, está bem...
 Que a lua seja um símbolo, está bem...
 Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
 E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
 Para o azul do céu?
 Mas quem repara na lua senão para achar
 Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
 Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
 Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
 Por uma diminuição instintiva,
 Porque o mar também é terra...
 Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
 Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
 Mas neste poente precoce e azulando-se
 O sol entre farrapos finos de nuvens,
 Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
 E o que fica da luz do dia
 Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
 Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
 Símbolos? Não quero símbolos...
 Queria - pobre figura de miséria e desamparo! -
 Que o namorado voltasse para a costureira.

SOU EU

 Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
 Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
 Arredores irregulares da minha emoção sincera,
 Sou eu aqui em mim, sou eu.

 Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
 Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
 Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

 E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
 Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
 De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
 Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

 E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
 Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
 De haver melhor em mim do que eu.

 Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
 Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
 De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
 De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
 De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

 Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
 Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
 De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
 A impressão de pão com manteiga e brinquedos
 De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
 De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
 Num ver chover com som lá fora
 E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

 Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
 O emissário sem carta nem credenciais,
 O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
 A quem tinem as campainhas da cabeça
 Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

 Sou eu mesmo, a charada sincopada
 Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

 Sou eu mesmo, que remédio! …

DOMINGO IREI

 Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros
 Contente da minha anonimidade.
 Domingo serei feliz — eles, eles...
 Domingo...
 Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
 Nenhum domingo. —
 Nunca domingo. —
 Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
 Assim passa a vida,
 Sutil para quem sente,
 Mais ou menos para quem pensa:
 Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
 Não no nosso domingo,
 Não no meu domingo,
 Não no domingo...
 Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo...

 - O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona d'água,
 Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva.
 E a vasta humilhação de existir um amor taciturno -
 Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,
 Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria -

 Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma
 A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim.

 Meus versos são a minha impotência.
 O que não consigo, escrevo-o;
 E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia.

 A costureira estúpida violada por sedução,
 O marçano rato preso sempre pelo rabo,
 O comerciante próspero escravo da sua prosperidade
 - Não distingo, não louvo, não (...) -
 São todos bichos humanos , estupidamente sofrentes.

 Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,
 Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,
 E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim.

 Meu coração esquife, meu coração (...), meu coração cadafalso -
 Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.

 Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,
 Bebedeira da servilidade altruísta,
 Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo…

COMEÇA A HAVER MEIA-NOITE

 Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
 Por toda a parte das coisas sobrepostas,
 Os andares vários de acumulação da vida...
 Calaram o piano no terceiro andar...
 Não oiço já passos no segundo andar...
 No rés-do-chão o rádio está em silêncio...

 Vai tudo dormir...

 Fico sozinho com o universo inteiro.
 Não quero ir à janela:
 Se eu olhar, que de estrelas!
 Que grandes silêncios maiores há no alto!
 Que céu anticitadino! -
 Antes, recluso,
 Num desejo de não ser recluso,
 Escuto ansiosamente os ruídos da rua...
 Um automóvel - demasiado rápido! -
 Os duplos passos em conversa falam-me...
 O som de um portão que se fecha brusco dói-me...

 Vai tudo dormir...

 Só eu velo, sonolentamente escutando,
 Esperando
 Qualquer coisa antes que durma
 Qualquer coisa.

CONTUDO

 Contudo, contudo,
 Também houve gládios e flâmulas de cores
 Na Primavera do que sonhei de mim.
 Também a esperança
 Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
 Também tive quem também me sorrisse.
 Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
 Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
 Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

 Caí pela escada abaixo subitamente,
 E até o som de cair era a gargalhada da queda.
 Cada degrau era a testemunha importuna e dura
 Do ridículo que fiz de mim.

 Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
 Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
 Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
 Sou imparcial como a neve.
 Nunca preferi o pobre ao rico,
 Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

 Vi sempre o mundo independentemente de mim.
 Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
 Mas isso era outro mundo.
 Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
 Acima de tudo o mundo externo!
 Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

TRAPO

 O dia deu em chuvoso.
 A manhã, contudo, esteve bastante azul.
 O dia deu em chuvoso.
 Desde manhã eu estava um pouco triste.

 Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
 Não sei: já ao acordar estava triste.
 O dia deu em chuvoso.
 Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
 Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
 Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
 Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
 Dêem-me o céu azul e o sol visível.
 Névoas, chuvas, escuros - isso tenho eu em mim.

 Hoje quero só sossego.
 Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
 Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
 Não exageremos!
 Tenho efetivamente sono, sem explicação.
 O dia deu em chuvoso.

 Carinhos? Afetos? São memórias...
 É preciso ser-se criança para os ter...
 Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
 O dia deu em chuvoso.

 Boca bonita da filha do caseiro,
 Polpa de fruta de um coração por comer...
 Quando foi isso? Não sei...
 No azul da manhã...

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesia Completa de Álvaro de Campos. SP: Companhia das Letras, 2007.

Vereador José Antônio Marques Almeida (Discurso em Homenagem à Carolina Ramos)

A trovadora, poetisa e contista Carolina Ramos recebeu a Medalha de Honra ao Mérito Brás Cubas da Câmara Municipal de Santos, na Sala Princesa Isabel, em homenagem proposta pelo vereador José Antonio Marques Almeida, Jama.

A santista Carolina Ramos começou sua carreira nas artes literárias em 1961. Já conquistou quase 900 prêmios no Brasil e no exterior. Levou o nome de Santos para vários cantos culturais: para Portugal, quando recebeu o Prêmio de Poesia da Academia de Música e Belas-Artes de Setúbal, em 1965; ou para Barreira, também em Portugal, ao conquistar o primeiro lugar no Concurso de Contos da Casa de Cultura da Quimigal, em 1989.

Carolina Ramos foi presidente, por três gestões, do Instituto Histórico e Geográfico de Santos e também da União Brasileira de Trovadores (Seão Santos), integrou as diretorias da Academia Santista de Letras; da Academia Feminina de Ciências, Letras e Artes de Santos;   do Grupo Encontro de Poetas de Santos; da Academia Anapolina de Letras, da Casa Juvenal Galeno, de Fortaleza; da Academia Petropolitana de Letras; do Ateneu Angrense de Letras; da Academia Pindamonhangabense de Letras; da Academia Paulistana de História; da Ordem Nacional dos Bandeirantes e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

Livros
Carolina Ramos publicou vários livros, entre eles: Sempre (Poesias), Cantigas Feitas de Sonho (Trovas), Espanha (Poema Épico), Trovas que Cantam por Mim (Trovas), Interlúdio (Contos), Um Amigo Especial (Conto).

Confira na íntegra o discurso Vereador José Antônio Marques Almeida:

“Poesia, sempre Poesia”. “O poeta é a mãe das artes...alô poetas: poesia! poesia poesia poesia poesia!”. “Os poemas são pássaros que chegam...não se sabe de onde e pousam...no livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam vôo...como de um alçapão. Eles não têm pouso...nem porto...alimentam-se um instante em cada par de mãos...e partem”. “Em meio a um cristal de ecos. O poeta vai pela rua...Seus olhos verdes de éter...Abrem cavernas na lua.” “Possuis a graça como inspiração...Amas, divides, dás, vives contente, E a bondade que espalhas, não se sente, Tão natural é a tua compaixão”.

Para início desta nossa homenagem à uma trovadora, contista, poetisa, santista ilustre trouxemos algumas boas companhias. Torquato Neto. Mário Quintana. Vinícius de Moraes. Martins Fontes.

Como escrever para quem tem o dom da palavra? Como emocionar quem fala ao coração dos homens? Como encantar quem vive do encanto?

O seu processo literário pode ser motivado por apenas uma palavra, ou impulsionado por uma emoção, ou até mesmo pelo simples desejo de conversar consigo mesma. Nas palavras da nossa própria poetisa: “Lavar a alma, dividir com o papel uma dor, uma alegria, ou mesmo um simples sonho”. E todos somos “presenteados” com esse processo humano da nossa poetisa, que também foi professora e é artista plástica.

“Jamais chore o abandono
Da primavera que finda,
Pode haver frutos no outono
Que tu não provaste ainda”.


“Nas poesias, trovas e contos, minha própria alma é que passeia pelas linhas e entrelinhas”!, nos ensina a trovadora. E nos ensina mais: a viver, mesmo que derramando algumas lágrimas, sem abandonar os sonhos. Com um coração gigante a nossa homenageada de hoje vai além dos nossos mares.

Conquista outras terras, outros corações. Fica fácil entender porque ela mereceu tantos títulos, homenagens e prêmios no Brasil, Portugal e Angola, como o Prêmio Rui Ribeiro Couto, da União Brasileira de Escritores de São Paulo. Prêmios que conquistaram os corações de cariocas, mineiros, paranaenses, gaúchos, cearenses, pernambucanos, matogrossenses e muitos mais. São mais de 900 prêmios literários recebidos!

”A grande, a maior vitória
Que até hoje consegui,
Foi remover da memória
As batalhas que perdi”.


A vitória da escritora santista é vitória da nossa Cidade também. Ganhamos muitos presentes, compartilhamos momentos de pura emoção dessa mulher que tem a literatura como sua companheira, como uma janela sempre aberta para o passado e para o futuro. Uma literatura que lhe deu amigos, a maioria mais do que amigos, mas irmãos sinceros. Se por acaso, nesse caminho, alguma coisa não valeu à pena foi transformada, temos certeza, pelas próprias mãos da nossa escritora em belos poemas, trovas e contos.

Emoções sem conta são os dias da trovadora, contista, poeta, santista ilustre! Ela nos diz que a literatura deu-lhe ternura à vida. Ela está sendo modesta. A sua literatura nos trouxe, mais do que ternura às nossas vidas, nos trouxe amor e nos ajudou e ajuda a viver.

São tantos os títulos recebidos, ou melhor, merecidos. Foi a primeira mulher a conquistar o Título e Troféu de Magnífico Trovador no Brasil. E os prêmios não cessaram. Em 2004, Notável Trovador, em Pouso Alegre, Minas Gerais. Seus serviços prestados à Cultural foram exemplarmente premiados, com a Medalha do Sesquicentenário da Prefeitura de Santos; a Medalha dos Andradas do Instituto Histórico e Geográfico de Santos; a Medalha de Sócio Honorário da Casa “Lampião de Gás” de São Paulo. Prêmio Ribeiro Couto da Secretaria de Cultura de Santos e União Brasileira de Escritores de São Paulo. Recebeu os Diplomas da Academia Paulistana de História, da Ordem Nacional dos Bandeirantes de São Paulo, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.                                                       

”Segredos de amor...Tolice!
Ninguém consegue esconder
Aquilo que o olhar já disse
Antes de a boca dizer!”


Assim como o segredo de amor se desfaz com o olhar, o segredo de tanto amor partilhado se desfaz pelas próprias palavras da nossa trovadora, poetisa, contista e ilustre santista. Ela nos diz: “Nas poesias, trovas e contos, minha própria alma é que passeia pelas linhas e entrelinhas”.

Obrigado, Carolina Ramos por tanto amor e emoção partilhados. Obrigado, por sermos irmãos de tantos caminhos. Obrigado, pelo Sempre, Cantigas Feitas de Sonho,  Trovas que Cantam por Mim, Um Amigo Especial e tantos outros livros de poesias, trovas e contas que você nos deu ao longo de tantos anos. Obrigado, por ter feito a sua alma passear por tantas linhas e entrelinhas.

Esteja certa, nossa poetisa Carolina Ramos, os maiores ganhadores desta vida literária SOMOS NÓS!

Antes de lhe passar às mãos a  Medalha de Honra ao Mérito Brás Cubas, a comenda que esta Casa lhe outorga, como mais alto reconhecimento que esta Terra pode conceder a um filho que honra e engrandece o nome e a tradição da Cidade, permita-me, Carolina Ramos, terminar essa homenagem  citando um companheiro seu que faz uma declaração de amor à palavra... “Sim Senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam ... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derreto-as ... Amo tanto as palavras ... As inesperadas ... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem ... Vocábulos amados ... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho ... Persigo algumas palavras ... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema ...

Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas ... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as... Tudo está na palavra ... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava...
” Pablo Neruda.


Fonte:
http://www.camarasantos.sp.gov.br/noticia.asp?codigo=1134&COD_MENU=102

Fábula (O Leão e os 4 Touros)


Quatro Touros bons amigos tinham por hábito andar sempre juntos. Saíam juntos, pastavam juntos, divertiam-se juntos.

 O Leão, que morava nas proximidades, dava tratos à cabeça a ver se descobria a maneira de os fazer andar separados, cada um para seu lado, porque aquela união forte dos quatro impedia-o de atacar qualquer deles.

 - Se eu conseguisse apanhar um a jeito, de cada vez – dizia ele com os seus pêlos – tinha comida para uns poucos de dias sem me ralar nada. Mas assim… Com os quatro ao mesmo tempo é que eu não posso; davam conta de mim. Mas quem é que separa esses sócios, e de que maneira?!

 O Leão tanto pensou, tanto espremeu os miolos, até que um dia se lembrou de um meio que lhe pareceu ótimo para dividir os quatro amigos. Foi ter com a Raposa e disse-lhe:

 - Já sabe, comadre, que os nossos quatro vizinhos Touros se desentenderam?

 - Sim? —indagou a Raposa, toda interessada.

 - É verdade. Começaram ontem a discutir por causa do sítio onde iriam hoje almoçar e às duas por três puseram-se a questionar e acabaram por se insultar uns aos outros. O mais velho, então, diz tão mal dos companheiros!

 A Raposa correu a contar o sucedido ao Leopardo e ao Urso, estes passaram a outros e dentro de pouco tempo toda a floresta dizia de boca em boca o que o Leão e a Raposa iam contando acerca dos vizinhos Touros.

 Poucas horas depois isto chegava aos ouvidos dos Touros e os quatro amigos puseram-se a pedir satisfações uns aos outros. «Disseram-me que tu disseste… – Não disse nada… – Ah! isso é que disseste…»

 Então é que os quatro amigos se desarmonizaram. Ralharam, gritaram, ofenderam-se uns aos outros e acabaram por ir cada qual para seu sítio, separados pela primeira vez na vida.

 Ora isto e o que o Leão queria era precisamente o mesmo… Atacou o primeiro que encontrou só e papou-o, ao segundo fez o mesmo, ao terceiro outro tanto e o quarto foi pelo mesmo caminho.

 E os quatro amigos Touros, que tão felizes e tão fortes tinham sido enquanto viveram unidos, acabaram assim, miseravelmente, logo que acreditaram em intrigas e se isolaram uns dos outros.

 «A união faz a força».

 E aqui acaba a história.

Fonte:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/historias/

Ascenso Ferreira (Poemas Avulsos)

O GÊNIO DA RAÇA

 Eu vi o gênio da raça!!!
 (Aposto como vocês estão pensando que eu vou
 falar de Rui Barbosa).
 Qual!
 O Gênio da Raça que eu vi
 foi aquela mulatinha chocolate
 fazendo o passo de siricongado
 na terça-feira de carnaval!

MINHA ESCOLA

 A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
 E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
 Complicado como as Matemáticas;
 Inacessível como Os Luzíadas de Camões!

 À sua porta eu estava sempre hesitante...
 De um lado a vida... - A minha adorável vida de criança:
 Pinhões...Papagaios...Carreiras ao sol...
 Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
 Saltos de ingazeira pra dentro do rio...
 Jogo de castanhas...
 - O meu engenho de barro de fazer mel!

 De outro lado, aquela tortura:
 "As armas e os barões assinalados!"
 - Quantas orações?
 - Qual é o maior rio da China?
 - A 2+2 AB = quanto?
 - Que é curvilíneo, convexo?
 - Menino, venha dar sua lição de retórica!
 - "Eu começo, atenienses, invocando
 a proteção dos deuses do Olimpo
 para os destinos da Grécia!"
 - Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
 - Agora, a de francês:
 - Quand le christianisme avait apparu sur la terre...
 - Basta
 - Hoje temos sabatina...
 - O argumento é o bolo!
 - Qual é a distância da Terra ao Sol?
 - !??
 - Não sabe? Passe a mão à palmatória!
 - Bem, amanhã quero isso de cor...

 Felizmente à boca da noite,
 eu tinha uma velha que me contava histórias...
 Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
 E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.

TREM DE ALAGOAS
 
O sino bate,
 o condutor apita o apito,
 Solta o trem de ferro um grito,
 põe-se logo a caminhar…
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...
Mergulham mocambos,
 nos mangues molhados,
 moleques, mulatos,
 vêm vê-lo passar.
 Adeus !
 - Adeus !
Mangueiras, coqueiros,
 cajueiros em flor,
 cajueiros com frutos
 já bons de chupar...
 - Adeus morena do cabelo cacheado !
Mangabas maduras,
 mamões amarelos,
 mamões amarelos,
 que amostram molengos
 as mamas macias
 pra a gente mamar
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...
Na boca da mata
 ha furnas incríveis
 que em coisas terríveis
 nos fazem pensar:
 - Ali dorme o Pai-da-Mata
 - Ali é a casa das caiporas
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...
Meu Deus ! Já deixamos
 a praia tão longe…
 No entanto avistamos
 bem perto outro mar...
Danou-se ! Se move,
 se arqueia, faz onda...
 Que nada ! É um partido
 já bom de cortar...
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...
Cana caiana,
 cana rôxa,
 cana fita,
 cada qual a mais bonita,
 todas boas de chupar...
 - Adeus morena do cabelo cacheado !
 - Ali dorme o Pai-da-Matta !
 - Ali é a casa das caiporas
 - Vou danado pra Catende,
 vou danado pra Catende
 vou danado pra Catende
 com vontade de chegar...

A MULA DE PADRE

Um dia no engenho,
Já tarde da noite
Que estava tão preta
Como carvão...
A gente falava de assombração:

— O avô de Zé Pinga-Fogo
Amanheceu morto na mata
Com o peito varado
Pela canela do Pé-de-Espeto!
— O cachorro de Brabo Manso
Levou, sexta-feira passada,
Uma surra das caiporas!
— A Mula de Padre quis beber o sangue
Da mulher de Chico Lolão...

Na noite preta como carvão
A gente falava de assombração!
Lá em baixo a almanjarra,
A rara almanjarra,
Gemia e rangia
Oue o Engenho Alegria
É bom moedor...

Eh Andorinha!
Eh Moça-Branca!
Eh Beija-Flor. . .

Pela bagaceira
Os bois ruminavam
E as éguas pastavam
Esperando a vez
De entrar no rojão...
Foi quando se deu
A coisa esquisita:
Mordendo, rinchando,
As pôpas e aos pulos
Se pondo de pé
Com artes do cão,
Surgiu uma besta sem ser dali não...

— Atallia a bicha, Baraúna!
— Sustenta o laço, Maracanã!
E a besta agarrada
Entrou na almanjarra,
Tocou-se-lhe a peia
Até de manhã ...

E depois que ela foi solta
Entupiu no oco do mundo!
Num abrir e fechar d'olhos
A maldita se encantou...

De tardinha.
Gente vinda
Da cidade
Trouxe a nova
De que a ama
De seu padre
Serrador
Amanhecera tão surrada
Que causa compaixão!

.....................................
Na noite tão preta como carvão
A gente falava de assombração.

CARNAVAL DO RECIFE

Meteram uma peixeira no bucho de Colombina
que a pobre, coitada, a canela esticou!
Deram um rabo-de-arraia em Arlequim,
um clister de sebo quente em Pierrô!

E somente ficaram os máscaras da terra:
Parafusos, Mateus e Papangus...
e as Bestas-Feras impertinentes,
os Cabeções e as Burras-Calus...
realizando, contentes, o carnaval do Recife,
o carnaval mulato do Recife,
o carnaval melhor do mundo!

- Mulata danada, lá vem Quitandeira,
lá vem Quitandeira que tá de matá!

- Olha o passso do siricongado!
- Olha o passo da siriema!
- Olha o passo do jaburu!
E a Nação-de-Cambinda-Velha!
E a Nação-de-Cambinda Nova!
E a Nação-de-Leão-Coroado!

- Danou-se, mulata, que o queima é danado!
- Eu quero virá arcanfô!
Que imensa poesia nos blocos cantando:
"Todo mundo emprega
grande catatau,
pra ver se me pega
o teu olho mal!"
- Viva o Bloco das Flores! Os Batutas!
 Apois-fum!
(Como é brasileira a verve desse nome: Apois-fum!)
E o Clube do Pão Duro!
(É mesmo duro de roer o pão do pobre!)

- Lá vem o homem dos três cabaços na vara!
"Quem tirar a polícia prende!"

- Eh, garajuba!
Carnavá, meu carnavá,
tua alegria me consome...
Chegô o tempo das muié largá os home!
Chegô o tempo das muié largá os home!
Chegou lá nada...

Chegou foi o tempo delas pegarem os homens,
porque chegou o carnaval do Recife,
o carnaval mulato do Recife,
o carnaval melhor do mundo!

- Pega o pirão, esmorecido!

"OROPA, FRANÇA E BAHIA"

Num sobradão arruinado,
Tristonho, mal-assombrado,

Que dava fundos prá terra.
( "para ver marujos,
Ttituliluliu!
ao desembarcar").

...Morava Manuel Furtado,
português apatacado,
com Maria de Alencar!

Maria, era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar...

A vida de Manuel,
que louco alguém o dizia,
era vigiar das janelas
toda noite e todo o dia,
as naus que ao longe passavam,
de "Oropa, França e Bahia"!

— Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
— Estás idiota , Maria.
Essas naus foram vintena
Que eu herdei da minha tia!
Por todo o ouro do mundo
eu jamais a trocaria!

Dou-te tudo que quiseres:
Dou-te xale de Tonquim!
Dou-te uma saia bordada!
Dou-te leques de marfim!
Queijos da Serra Estrela,
perfumes de benjoim...

Nada.
A mulata só queria
que seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a mais pichititinha,
prá ela ir ver essas terras
"De Oropa, França e Bahia"...

— Ó Maria, hoje nós temos
vinhos da quinta do Aguirre,
uma queijadas de Sintra,
só prá tu te distraire
desse pensamento ruim...
— Seu Manuel, isso é besteira!
Eu prefiro macaxeira
com galinha de oxinxim!

"Ó lua que alumias
esse mundo de meu Deus,
alumia a mim também
que ando fora dos meus..."
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.

"Eu sou mulata dengosa,
linda, faceira, mimosa,
qual outras brancas não são"...
Cantava forte Maria,
pisando fubá de milho,
lentamente no pilão...

Uma noite de luar,
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul...
— Ah! Seu Manuel, isso chega...
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.

— "Onde vais mulhé?"
— Vou me daná no carrosé!
— Tu não vais, mulhé,
— mulhé, você não vai lá..."

Maria atirou-se n'água,
Seu Manuel seguiu atrás...
— Quero a mais pichititinha!
— Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido da minha tia !
Vêm dos confins do mundo...
De "Oropa, França e Bahia"!

Nadavam de mar em fora...
(Manuel atrás de Maria!)
Passou-se uma hora, outra hora,
e as naus nenhum atingia...
Faz-se um silêncio nas águas,
cadê Manuel e Maria?!

De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia...
Seu Manuel era um "Boi Morto",
Maria, uma "Cotovia"!

E as naus de Manuel Furtado,
herança de sua tia?

— continuam mar em fora,
navegando noite e dia...
Caminham para "Pasárgada",
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que, ante a minha choradeira,
me deu a menor que havia!

— As eternas naus do Sonho,
de "Oropa, França e Bahia"...

MARACATU

Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...

- Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?

As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queijares e dentes
De maracajás...

- Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?

A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...

- Luanda, Luanda, onde estou?
Luanda, Luanda, onde estou?

FILOSOFIA

Hora de comer - comer!
 Hora de dormir - dormir!
Hora de vadiar - vadiar!

Hora de trabalhar?
- Pernas pro ar que ninguém é de ferro!

Manoel Vicente da S Neto (Minha Poltrona Favorita)

Um dia, eu acho que foram vários, talvez anos, bem não me lembro exatamente quando eu escutei, parecia-me que alguém estava a gritar, mas achava que era fantasia de minha cabeça, o grito parecia um sonho desses que nós temos de manhã e tende-se logo a esquecê-lo, você tenta lembrar, mas não lembra, e fica sensação do sonho, bem o tempo foi passando e aquele grito continuava como algo longínquo, como um eco a reverberar, difícil de entender, inaudível, mas o grito não era normal, era com certeza de alguém desesperado e isso me afligia um tormento sem fim que estava ficando insuportável naqueles dias, não me deixava dormir, o grito que eu escutava era inaudível, um sussurro gritado, como um grito abafado pelos travesseiros, aquele grito estava inundando minha cabeça, estava me deixando louco, cada vez mais alto e ao mesmo tempo inaudível, o grito continha um choro bem baixo, um choro perturbador de angústia ou de medo que apertava meu peito.

 No final de semana resolvi sair, beber com meus amigos para me distrair, talvez o fato de morar só e viver uma vida reclusa estava me afetando, no bar aquele papo de sempre futebol, mulher, carro, mulher, futebol...

 Mas entre um gole e outro os gritos estavam lá, o grito desta vez estava bem alto, o grito eu escutei o grito claramente que dizia:

 - ajude-me, por favor.

 Um pavor percorreu todo meu corpo, um suor frio desceu de minha fronte e deixei o copo cair no chão, e ele quebrou-se em vários pedaços ainda com o reflexo do meu medo e falei:

 - vocês ouviram esse grito?

 Meus amigos olharam para mim espantados e começaram a rir e disseram:

 - acho que você bebeu demais!Vamos, nós te levamos para casa.

 Mas eu não estava bêbado, eu sei quando estou bêbado, mesmo assim fui para casa contrariado, um grito desses como ninguém ouviu?Será que dei para escutar vozes agora?

 Chegando em casa sento-me na minha poltrona favorita e a mais cara também, pois um homem que se preze tem uma poltrona macia e confortável para assistir seu futiba e seus programas favoritos ou mesmo para ler um bom livro depois de oito horas de trabalho, demorei doze meses para paga-la, mas valeu cada centavo,enfim sento-me na minha poltrona, respiro fundo e acendo um cigarro e escuto o silêncio como eu nunca o tinha escutado antes, mas o silêncio durou apenas alguns segundos, de repente eu escuto o grito estou com a sensação de que alguém estar esmagando meu peito, um sussurrar ensurdecedor de gritos abafados como se alguém estivesse morrendo, torturado e pedindo para ajudar-lhe.ligo a tevê rapidamente na tentativa de me distrair, em vão entre um comercial e outro os gritos estão lá.

 O tempo está passando muito devagar são duas e trinta e cinco da manhã, desligo a tevê, vou a cozinha tomar um gole de café para manter-me acordado, eu não posso dormir, não agora!

 Minha visão está ficando turva, será que bebi demais mesmo?

 Minha cabeça eu não agüento mais, aquele grito inundando minha cabeça, não me deixa pensar aquele grito, aquele choro, sinto-me desfalecer, não consigo manter meus olhos abertos, quanto mais eu tentava não escutar os gritos, eles ficavam cada vez mais altos, acho que vou vomitar sinto-me desfalecer...

 Sinto alguém atrás de mim e os gritos estourando alto-falantes, estou apavorado, não consigo abrir meus olhos, meus deus tem alguém aqui!

 Os gritos estão mudos somente o choro eu escuto, e as lágrimas estão caindo sobre mim lágrimas mornas e amargas como sangue, não mais pingavam, mas jorravam sobre mim ensopando-me de sangue ou lágrimas.

 Tinha que ver quem gritava, chorava e sofria a quem eu ignorei por tantos anos, não sei como, mas ele estava ali bem atrás de mim, tremendo de medo tentei abrir os olhos e consigo um arrepio percorreu todo meu corpo, e vi uma luz fúnebre que iluminava toda a sala, como se apenas uma vela a iluminasse, a luz tremia, o resto era sombras e escuridão.

 Quase desmaiando, virei-me de vez para ver quem chorava aquele choro familiar, mas não consegui me lembrar aonde eu escutara, ao olhar para a figura atrás de mim um grito de horror eu dei ao ver-me morto, sentado na minha poltrona favorita.

Fonte:
Garganta da Serpente

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 661)


Uma Trova de Ademar

Uma lição foi tirada
do tribunal da paixão;
perdoar, não pesa nada,
pesado é pedir perdão!...
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional


Toda vestida de branco,
guardo o coração ferido
no rosto, um sorriso franco
no peito um pranto escondido...
–Clevane Pessoa/MG–

Uma Trova Potiguar


Orgulho é doença triste
que nos condena a estar sós,
sem nos deixar ver que existe
um ser maior do que nós.
–Wellington Freitas/RN–

Uma Trova Premiada


2008  -  Rosa Cruz-Londrina/PR
Tema  -  FRATERNIDADE  -  M/H


Fraternidade é o condão
que, sem esforço e dinheiro,
pode unir, num coração,
os povos do mundo inteiro.
–Almira Guaracy Rebêlo/MG–

...E Suas Trovas Ficaram


O brilho da lua cheia
cai suave nos caminhos,
dando a impressão que receia
acordar os passarinhos.
–Aurolina de Castro/AM–

U m a P o e s i a


A minha poesia é com verso rimado,
tem métrica e som, tem rima a vontade,
assim deve ser o cordel de verdade,
escrito, falado e também declamado;
não pode, nem deve ser desrespeitado,
ninguém tem direito de modificar
a forma primeira da gente rimar;
quem faz diferente, entrará nessa lista:
Poeta não é, nem também cordelista,
nem canta galope na beira do mar!
–Ademar Macedo/RN–

Soneto do Dia

D E U S
–Bernardo Trancoso/SP–


Quisera o mundo fosse um instrumento,
Por mim usado para conquistá-la.
Que eu pudesse prever a sua fala,
A fim de aliviar meu sofrimento.

Pudera eu controlar, também, o vento,
A luz, o seu olhar, tudo que cala
Na força e na grandeza, para amá-la
E, assim, provar que tenho sentimento.

A dor que sua ausência tem trazido,
Você não quer notar nos olhos meus.
Carrego um coração, que está partido.

Quem dera, antecipando aquele adeus,
Talvez nem a tivesse conhecido.
Muito prazer, mas não me chamo Deus.

Abilio Terra Junior (O Mundo de Maíra)

Sim, perdera o sono, não havia dúvida. O cachorro do vizinho latia, talvez porque percebera que ele havia acendido a luz do quarto! Essa não!

 Passou a mão na lapiseira e em uma folha de papel em branco, colocou os óculos.

 Lembrou-se, então, da mestria com que Maria Luiza Ramos analisava "Maíra", de Darcy Ribeiro, em seu livro "Interfaces", que estava lendo. Dois universos distintos, o indígena e o urbano/branco, os conflitos de Alma e de Isaías, a mulher branca que se lança de corpo e alma à vida entre os índios, sem volta, e o índio aculturado que perdeu o rumo, sente o chamado das origens, mas perdera a sua alma no contato com o mundo do racionalismo e do dogma.

 Não seria esse um conflito dele também, e, em última instância, inerente à psique de todo o seu povo? A luta íntima entre o cotidiano mágico, místico e ritualístico, que lhe chamava das profundezas do passado, e a dura realidade, cartesiana, em parte, opressora e polarizada, em outra, que se apresentava ante seus olhos, mente e sentidos.

 Não estava ele lutando todo o tempo nesse multifário mundo sinistro e desordenado, com sua alma decomposta em duas, ou em três faces distintas, que, angustiadas, gritavam, na pungente busca de se expressar?

 O mundo ancestral mítico fora rompido violenta e tragicamente, dando lugar a um novo sistema de valores, patriarcal, apoiado em rotinas econômicas, com um poder centralizado, e uma religião severa e seca, regida por dogmas estreitos, que ensinavam o medo e a subserviência.

 Daí a sua timidez peculiar ante os desafios do destino e a sua frágil relação com o poder, fosse ele hierárquico - profissional, familiar, exógeno, religioso... e não era o mesmo que percebia em muitos dos seus conterrâneos?

 E aquela sua busca dionisíaca, poética, barroca, do substrato vital, como uma correnteza sensorial que percorria o seu sangue e batia sincopada em suas têmporas.

 Os passarinhos cantavam e o novo dia prometia, como sempre, boas novas. Ele respirava fundo e ainda escrevia.

 Tentaria dormir agora. Repousaria o seu corpo e a sua alma em um sono sereno. Sonharia com as antigas eras, voando em forma de pássaro pelos céus lendários, tentando vislumbrar o deus Maíra, amigo da humanidade.

Fonte:
Garganta da Serpente

Mia Couto (Poemas Recolhidos)

É VITALÍCIO

 É vitalício: comer a Vida
 deitando-a entontecida
 sobre o linho do idioma.

Nesse leito transverso
 dispo-a com um só verso.

Até chegar ao fim da voz.

Até ser um corpo sem foz.

IDENTIDADE

 Preciso ser um outro
 para ser eu mesmo

 Sou grão de rocha
 Sou o vento que a desgasta

 Sou pólen sem insecto

 Sou areia sustentando
 o sexo das árvores

 Existo onde me desconheço
 aguardando pelo meu passado
 ansiando a esperança do futuro

 No mundo que combato morro
 no mundo por que luto nasço

A ADIADA ENCHENTE

 Velho, não.
 Entartecido, talvez.
 Antigo, sim.

 Me tornei antigo
 porque  a vida,
 tantas vezes, se demorou
 E eu a esperei
 como um rio aguarda a cheia.

PARA TI

 Foi para ti
 que desfolhei a chuva
 para ti soltei o perfume da terra
 toquei no nada
 e para ti foi tudo
 Para ti criei todas as palavras
 e todas me faltaram
 no minuto em que talhei
 o sabor do sempre
 Para ti dei voz
 às minhas mãos
 abri os gomos do tempo
 assaltei o mundo
 e pensei que tudo estava em nós
 nesse doce engano
 de tudo sermos donos
 sem nada termos
 simplesmente porque era de noite
 e não dormíamos
 eu descia em teu peito
 para me procurar
 e antes que a escuridão
 nos cingisse a cintura
 ficávamos nos olhos
 vivendo de um só
 amando de uma só vida

DESTINO

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

Affonso Romano de Sant'Anna (Belafonte e Mister Ibidem)

Olhem que estorinha mais comovente narrada por Harry Belafonte num documentário sobre sua vida feita em Cuba quando ele lá esteve.

 Quando garoto, no Harlem, não tinha uma vida diferente dos outros garotos pobres. Sua mãe trabalhava heroicamente e ele mesmo livrava algum levando daqui para ali listas com resultados do jogo. Isto lhe dava uma sensação ambígua. Ao mesmo tempo em que se sentia útil ganhando algum dinheiro, também tinha um secreto prazer em transgredir a lei. Sentia-se, como os negros, ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade.

 Sua vida passou por uma mudança súbita quando entrou para o Exército. Chegou às suas mãos um livro escrito por um famoso lutador de boxe negro. Ficou imediatamente seduzido pelas palavras do autor e pelas suas idéias. Pela primeira vez teve noção de que os negros também podiam ter certa dignidade diante da vida. Ia lendo e se maravilhando. O autor contava suas experiências pessoais para sobreviver na sociedade controlada pelos brancos, mas, ao mesmo tempo, despertava uma consciência de luta. Aquilo tudo era novo para Belafonte. Falar dessas coisas ainda não era permitido, como nos anos 60, abertamente.

 Lendo o livro, deu-se conta de algo curioso. No meio das frases, às vezes aparecia um número. Um número em cima de certas palavras. Achava aquilo estranho, mas não tinha coragem de perguntar ao seus colegas de armas sobre o significado de tais números. Ia lendo, e, de repente, surgia aquele número lá em cima.

 É claro que acabou descobrindo que havia uma relação entre esses números e uma série de observações que vinham no pé da página. Às vezes era algum comentário, outras vezes apenas a indicação de um livro.

 Então ele pensou: se esse homem que é tão importante está citando esses livros e esses autores, é sinal que esses autores e livros também são importantes.

 Não teve dúvidas. Anotou todos aqueles autores de livros e resolveu também lê-los. Foi assim fazendo a sua bibliotecazinha particular.

 Belafonte, no entanto, notou uma outra coisa intrigante nas leituras que fazia. Entre os muitos autores citados pelo seu ídolo, havia um tal de Ibidem.

 Pensou: esse Ibidem deve ser realmente importante, pois aparece em quase todas as páginas. E se ele é o mais citado, é esse o autor que devo ler com mais cuidado e carinho.

 Quando regressou da guerra, resolveu então comprar todos os livros que encontrasse desse senhor Ibidem. Além do mais, pela legislação amaericana, os que foram para a guerra (e especialmente os negros) teriam acesso à universidade sem nenhuma exigência. Era uma forma de o sistema pagar seus remorsos e gratificar seus defensores.

 O que fez, então, o nosso Belafonte?

 Não teve dúvidas. Numa das primeiras manhãs em Nova York começou a percorrer as livrarias procurando livros do seu autor favorito: o senhor Ibidem.

 Entrava nas lojas meio sem jeito, começava a fuçar daqui e dali e nada. Passava das estantes de história para as estantes de psicologia e depois para as de filosofia e artes e nada.

 Procurava, procurava e não dava com nenhum livro assinado pelo tal Mr. Ibidem.

 Vencendo o natural constrangimento do negro na sociedade dos brancos, ousou perguntar a uma velhinha, que trabalhava numa dessas livrarias, se ela tinha livros de um escritor chamado Ibidem. Ela lhe disse que tal escritor não existia. Ele, furioso, chamou-a de racista, acusou-a de sonegar-lhe informação porque era preto. Brigou e saiu.

 Contando isto aos amigos, eles caíram na sua pele e lhe explicaram que ibidem não era autor, era uma informação nas notas dos livros significando: do mesmo autor, da mesma obra. Arrependido, voltou correndo à livraria para se desculpar com a velhinha. E ela não estava mais lá. Abandonara o emprego. Seguramente por minha causa, concluiu Belafonte, cheio de remorsos.

Fonte:

Fábulas (A Raposa sem Rabo)

 A prima Raposa andava à caça. Era noite fechada e nenhum de nós veria um palmo adiante do nariz. Mas a prima Raposa sabia ver de noite e, por isso aproveitava essa hora para fazer as suas caçadas; de dia cuidava dos arranjos caseiros, do asseio da sua linda pele e sobretudo do seu lindo rabo. Tinha o maior orgulho nele, e, na verdade, a prima Raposa passava por ter uma das caudas mais bonitas da família e da vizinhança.

 A caminho da capoeira próxima, a prima Raposa atravessou um quintal e outro e outro, e sem saber como, foi cair numa ratoeira de que ela nunca suspeitara e ficou presa pelo rabo.

 — Isto só a mim me aconteceria! — começou ela a lamentar-se —. Mais me valia não ter rabo! Se aqui me deixo ficar é morte certa…

 Mas, por mais que fizesse, nem o rabo se desprendia da ratoeira, nem esta vinha atrás do rabo. Porém, tanto puxou, na ânsia de se ver livre, que o ferro da ratoeira cortou-lhe o rabo e ela pôde fugir, sim, mas sem rabo: teve de lá deixá-lo.

 Chegou a casa tristíssima, por se ver privada da coisa mais bela que possuía no seu corpo e ao ver as primas e os primos todos com o seu formoso complemento, ficou ainda mais triste e começou a sentir inveja. Todos tinham cauda — uma cauda tão linda! — menos ela! E além disso passou a ser objecto de admiração: nunca tinham visto uma raposa sem rabo!

 Mas então que foi isso?! — perguntavam eles —. Como foi que ficou sem cauda, prima?

 Como foi que fiquei sem cauda, não! Porque é que a tirei! — emendou ela, resolvendo mentir, para não contar o que lhe acontecera.

 Tirou-a?! — perguntaram todos espantados.

 É a última moda — explicou ela —. É o que se usa agora entre as raposas distintas, da melhor sociedade. E vocês devem fazer o mesmo. Isso de rabo é uma moda antiga, que já só se vê entre os velhos…

 Os primos e as primas mais jovens, zelosos da sua elegância, começaram a mirar-se com desgosto, convencidos de que a prima Raposa tinha razão. Mas uma parenta velha, que sabia perfeitamente como as coisas se tinham passado, falou no meio de todos à raposa der-rabada:

 — Minha querida amiga, acredito na sua moda e nas conveniências dela, mas digo-lhe já que nós não cortaremos os nossos rabos. Se um dia nos encontrarmos na mesma situação em que a priminha se viu, então deitaremos fora o rabo, mas antes disso, não! Que os infelizes como você queiram que os outros os acompanhem, compreende-se, mas que os outros se disponham a seguir a mesma sorte de um infeliz, é que não! Quando o mal por cá tocar, veremos… Fique lá sem o seu rabo, que nós tomaremos conta dos nossos, de forma a que continuem bem inteirinhos…

 É claro que a prima Raposa teve de calar-se e nunca mais quis convencer a família e os amigos de que o ideal era as raposas não usarem rabo.

 E aqui termina a história da raposa que ficou sem rabo

Fonte:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/historias/

Trovadorismo (Parte 2)

Gêneros:

 - lírico (cantigas de amigo e cantigas de amor): o amor é a temática constante

 - satírico (cantigas de escárnio e de mal dizer): crítica social.

CANTIGAS DE AMIGO

As Cantigas de Amigo têm origem galego-lusitana e autóctone, isto é, originam-se da tradição popular e do folclore da própria Península Ibérica. Cronologicamente, são anteriores às cantigas de amor, mas inicialmente não eram escritas. Só com a chegada das cantigas provençais e o desenvolvimento da arte poética é que se registraram em textos.

 Retratam o cotidiano, a vida rural e o ambiente urbano das aldeias medievais. A mulher que encontramos aqui é real, concreta. É uma camponesa, uma mulher do povo, que fala de seus problemas amorosos.

 Apesar de ser compostas e cantadas por homens, o sujeito-lírico das Cantigas de Amigo é sempre feminino. O trovador enfoca o ponto de vista feminino, colocando-se no lugar da mulher que sofre pelo amado distante, por ciúmes, pelo amor não correspondido.

 A temática é o amor pelo "amigo" (namorado, amante, marido) e a "coita" (sofrimento amoroso, geralmente causado pela ausência do amado). O amor é infeliz, mas também natural e espontâneo. Ademais, trata-se de um amor concreto, realizável. O tom pode ser de frustração, mas o "amigo" é real.

 Há uma forte presença do campo, da natureza e de pessoas do ambiente familiar.

 As situações de diálogo são bastante freqüentes, principalmente em tom de confissão. É comum enfocar as confissões da mulher a sua mãe e suas amigas, e até mesmo em conversas com a natureza, em confissões aos pássaros, fontes, riachos, flores. Todavia, cabe ressaltar que a mulher nunca fala diretamente com seu interlocutor (o "amigo").

 A linguagem é mais simples do que as das cantigas de amor, tendo em vista seu caráter popularesco, visto que não se ambientam em palácios, abordando pequenos quadros sentimentais.

 Possuem estrutura de cantigas de refrão e paralelísticas. É comum a repetição do mesmo verso (= refrão) ao final de todas as estrofes, o que mantém o ritmo cadenciado e reforça uma mesma idéia, valorizando-a. Daí sua musicalidade, que vai de encontro à tradição oral ibérica.

Há vários tipos de cantigas, conforme a maneira como o assunto é tratado ou o cenário onde se dá o encontro amoroso:

 - albas ou alvas (ao amanhecer);
 - bailias ou bailadas (convite à dança);
 - marinas, marinhas ou barcarolas (temas relacionados a mar, rios, barcos);
 - pastorelas (temas campesinos);
 - plang (canto de lamentação).
 - de romaria (peregrinações a santuários);
 - serranilhas (nas montanhas);

Veja exemplos de Cantigas de Amigo

 Bailemos nós já todas três, ai amigas,
 so aquestas avelaneiras frolidas,
 e quen fôr velida, como nós, velidas,
 se amig'amar, so aquestas avelaneiras frolidas
 Verrá bailar.
 Bailemos nós já todas três, ai irmanas,
 so aqueste ramo destas avelanas,
 e quem bem parecer, como nós parecemos,
 se amig'amar,
 so aqueste ramo destas avelanas,
 verrá bailar.
 Por Deus, ai amigas, mentr'al non fazemos
 so aqueste ramo frolido bailemos,
 e quen bem parecer, como nós parecemos,
 so aqueste ramo so lo que bailemos
 se amig'amar,
 verrá bailar.
(Aires Nunes)

Ondas do mar de Vigo,
 se vistes meu amigo?
 E ai Deus, se verra cedo!

 Ondas do mar levado,
 se vistes meu amado?
 E ai Deus, se verra cedo!

 Se vistes meu amigo,
 o por que eu sospiro?
 E ai Deus, se verra cedo!

 Se vistes meu amado,
 por que ei gram coidado?
 E ai Deus, se verra cedo!
(Martim Codax - CV 884, CBN 1227)

- Ai flores, ai flores do verde pino,
 se sabedes novass do meu amigo!
 Ai Deus, e u é?

 Ai flores, ai flores do verde ramo,
 se sabedes novas do meu amado!
 Ai Deus, e u é?

 Se sabedes novas do meu amigo,
 aquel que lmentiu do que pôs comigo!
 Ai Deus, e u é?

 Se sabedes novas do meu amado,
 aquel que mentiu do que mi á jurado!
 Ai Deus, e u é?

 - Vós me preguntades polo voss'amado,
 e eu bem vos digo que é san'e vivo.
 Ai Deus, e u é?

 Vós me preguntades polo voss'amado,
 e eu bem vos digo que é viv'e sano.
 Ai Deus, e u é?

 E eu bem vos digo que é san'e vivo
 e seera vosc'ant'o prazo saído.
 Ai Deus, e u é?

 E eu bem vos digo que é viv'e sano
 e seera vosc'ant'o prazo passado.
 Ai Deus, e u é?
(D. Dinis)

Pois nossas madres van a San Simon
 de Val de Prados candeas queimar,
 nós, as meninhas, punhemos de andar
 con nossas madres, e elas enton
 queimen candeas por nós e por si
 e nós, meninhas, bailaremos i.

 Nossos amigos todos lá irán
 por nos veer, e andaremos nós
 bailando ante eles, fremosas en cós,
 e nossas madres, pois que alá van,
 queimen candeas por nós e por si
 e nós, meninhas, bailaremos i.

 Nossos amigos irán por cousir
 como bailamos, e podem veer
 bailar moças de bon parecer,
 e nossas madres pois lá queren ir,
 queimen candeas por nós e por si
 e nós, meninhas, bailaremos i.
(Pero de Viviãez, CV 336, CBN 698)


CANTIGAS DE AMOR

As Cantigas de Amor têm origem provençal, com os poetas do sul da França, e foram levadas a Portugal através de eventos religiosos e contatos entre as cortes. Todavia, as cantigas de amor em Portugal são mais sinceras e mais autênticas na expressão dos sentimentos do que as que lhes deram origem.

 O sujeito-lírico das Cantigas de Amor é sempre masculino: o trovador faz a corte a uma dama (interlocutor), dentro das convenções do amor cortês traduzidas na "vassalagem amorosa" - reflexo da estrutura social da época - e na idealização da mulher.

 A temática continua sendo a "coita" agregada à distância absurda entre o homem e a mulher objeto de seu amor: é a coita amorosa do trovador perante uma mulher inatingível. O amor é impossível, irrealizável, idealizado, fantasiado. O sofrimento amoroso é, na maioria das vezes, causado por um amor proibido ou não-correspondido.

 A mulher amada está em posição de superioridade, até por sua condição social, sendo tratada como "mia senhor". Seu nome jamais é revelado, por mesura ou para não comprometê-la (devido às diferenças de posição social ou pelo fato de ser casada). O trovador coloca-se humildemente a seu serviço, como seu vassalo, rogando para que ela aceite sua dedicação e submissão, refletindo a relação social de servidão da época.

 A mulher inacessível é exaltada e sacralizada, refletindo um erotismo disfarçado, deturpado, sublimado pela opressão religiosa e pela sociedade machista, sem a possibilidade de uma sensualidade explícita.

 Há uma contemplação platônica e a aparência física da mulher amada é tratada como extensão das qualidades morais.

 A linguagem é refinada e bem mais trabalhada do que a das cantigas de amigo, tendo em vista seu ambiente cortesão, retratando a vida da nobreza nos palácios.

 Possuem estrutura de cantigas de refrão ou de maestria (mais complexas).

Veja exemplos de Cantigas de Amor

 Hun tal home sei eu, bem talhada
 Que por vós tem a sa morte chegada;
 Vides quen é e seed'en nanbrada;
 Eu, mia dona.

 Hun tal home sei eu que preto sente
 De si morte chegada certamente;
 Vêdes quem é e venha-vos en mente;
 Eu, mia dona.
 Hun tal home sei eu, aquest'oide:
 Que por vós morr' e vo-lo en partide,
 Vêdes quem é e non xe vos obride;
 Eu, mia dona.
(El-rei D. Dinis)

Quer'eu em maneira de proençal
 fazer agora un cantar d'amor,
 e querrei muit'i loar mia senhor
 a que prez nen fremusura non fal,
 nen bondade; e mais vos direi en:
 tanto a fez Deus comprida de ben
 que mais que todas las do mundo val.

 Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
 quando a faz, que a fez sabedor
 de todo ben e de mui gran valor,
 e con todo est'é mui comunal
 ali u deve; er deu-lhi bon sen,
 e des i non lhi fez pouco de ben,
 quando non quis que lh'outra foss'igual.

 Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
 mais pôs i prez e beldad'e loor
 e falar mui ben, e riir melhor
 que outra molher; des i é leal
 muit', e por esto non sei oj'eu quen
 possa compridamente no seu ben
 falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.
(El-Rei D. Dinis, CV 123, CBN 485)

 Proençaes soen mui ben trobar
 e dizen eles que é con amor;
 mais os que troban no tempo da frol
 e non en outro, sei eu ben que non
 an tan gran coita no seu coraçon
 qual m'eu por mha senhor vejo levar.

 Pero que troban e saben loar
 sas senhores o mais e o melhor
 que eles poden, soõ sabedor
 que os que troban quand'a frol sazon
 á, e non ante, se Deus mi perdon,
 non an tal coita qual eu ei sen par.

 Ca os que troban e que s'alegrar
 van eno tempo que ten a color
 a frol consigu', e, tanto que se for
 aquel tempo, logu'en trobar razon
 non an, non viven [en] qual perdiçon
 oj'eu vivo, que pois m'á-de matar.
(El-Rei D. Dinis, CV 127, CBN 489)


Continua…

Fonte:
Garganta da Serpente

Mia Couto (Os Negros Olhos de Vivalma)

Há mulheres que procuram um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba se unindo a alguém que lhes tira o mundo.

Este foi o destino de Vivalma, mulher entre as mulheres, cheia de desgraça, nem o Senhor punha oração nela. Mulher gorda, exibia os seios em cacho, carnes de muito volume e herança. Tanta redondeza, aliás, suprimia a curva. Vivalma era esposa do latoeiro Xidakwa, homem zangadiço e com nervo florindo na pele.

A volumosa senhora saía de manhã para o serviço de sentar no bazar, em banca rente ao chão. Eram tão poucas e abreviadas as coisas que vendia que ela nunca fazia as contas. A vida é um por enquanto no que há-de vir. Vivalma se deixava no assento, mais vagarosa que orvalho. Até a mão dela poupava esforços, num mesmo gesto de ida e volta: para lá, enxotava mosca; para cá, chamava cliente. Seus braços eram tão curtos que nem era capaz de arregaçar as mangas.

Pois Vivalma se dava a conhecer pelo modo como zarolhava, olho deitado abaixo. Razão de que o marido lhe batia, por dádiva daquela palha. Nem carecia de motivo:  o murro era a língua dele, vingança de lhe fugirem desejos de sua vista. Todos se admiravam: Xidakwa até que parecia tranquilinho, sonholento, incapaz de violência. Mas os hematombos no rosto da mulher, o sangue pisado lhe enchendo a quotidiana pálpebra dela, eram provas indesmentíveis. Todos punham a devida pena na vendecora. Tão batidinha, coitada. E ainda por cima, sempre no mesmo olho. As colegas lhe sugeriam:

-  Você podia pedir a ele para variar-se: cada vez num lado, cada vez no outro- .

Ela sorria, parecia isenta de pensamento. A gordura era sua única resposta. Ela sabia: mais se engorda, menos se sofre. Com o volume a dor vai ficando mais e mais distante, perdida lá nas curvas das entranhas. As vendedeiras lhe puxavam o brio:

-  Mas você Vivalma, nem viva nem alma?-

Quem fala consente? E a mulher gorda suspirava:

-  Deus me reze, minhas amigas- .

Ela é que sabia. Xidakwa, seu marido, enganava era nas aparências. Ele era um mosca-viva, esgazelado, tratando-lhe a berro e fogo. Outros já lhe tinham chamado as atenções. Mas o latoeiro varria os reparos, explicando:

-  A vida é dura de mais para aceitar carícia: cabedal se cose é com dedal- .
As colegas do bazar insistiam:

-  Ora, Vivalminha, lhe deixe de vez, esse homem não vale uma vida. Você é como o nariz: toda a vida no meio, sem nunca fazer escolha- .

Em silêncio, Vivalma amealhava suas razões. Não que houvesse segredo: para ela, aquela era a ordem do mundo, estavam-se cumprindo destinos. Nem ela nem ele teriam tempo para uma outra ocasião. O mundo dele era de outra razão, um confim. Ele lhe queria à razão de pontapés? Que fosse. Ela não tinha querer nem ser. E quem não tem vontade, não tem lamento.

E era sem lamento que ela regressava a casa, tardes a fio, sempre última das vendedoras. Demorava os vinte  e quatro ponteiros no caminho. Perto de casa colhia uma flor mas, ao entrar no portão, a deitava no chão. No pátio se acumulavam pétalas brancas, secreto e perfumado lençol da noiva que nunca houve.

Até que, um dia, o olho negro de Vivalma se apresentou piorado, em feio e ampliado derrame. As vendeiras transbordaram-se. Não, aquilo era de mais! E se conluiaram para desafiar o marido violento. Sem que Vivalma suspeitasse, umas delas lá foram a casa de Xidakwa. Enquanto pisavam aquele mar de flores desfeitas souberam o espantável: que o dito marido, Xidakwa, há tempo que se fora, amanteado com outra. As vizinhas diziam e comprovavam. Os tais derrames que Vivalma exibia no rosto eram por ela mesma fabricados, sem infligência de mais ninguém.

As vendedores regressaram ao bazar, caladas, sob uma bategazinha de Verão. A chuva caía tristonha como um luto, cada gota uma mulher em Outono, chuviuvinha. Ingrata é a morte que não agradece a ninguém. Vivalma teatrava, para que ninguém suspeitasse de seu abandono? Pois as amigas se compustararam em igual disfarce. Na Natureza ninguém se perde, tudo inventa outra forma.

Sucedeu, por astúcia do acaso, o seguinte percalço: a nova mulher de Xidakwa ouviu dizer que Vivalma continuava a revalidar suas equimoças, olho da cor do chão. Se assim era, quem mais poderia ser o batedor senão o dito latoeiro? E a moça, mais nascida que a gorda vendedeira, contraverteu caminho e foi agasalhar outra felicidade.

O homem, desconcertado, voltou a casa para afinar contas com Vivalma. Se admirou de ver o pátio varrido, limpo das habituais florinhas. Os vizinhos se surpreenderam, depois, a ouvir os gritos dele, batendo em sua original esposa.

Manhãzinha seguinte, viram Vivalma sair de casa, canteirando pelo jardim, a encher as mãos de petalazinhas  brancas. Haveria quê nessas flores: alegria de quem se ilude vencer? Ou eram pequeninas raivas, desapercebidas como lágrimas em seu rosto molhado? Só ela, a matinal vendedeira, sabe do valor dessas minusculinhas naturezas em seus dedos decepadas. Dizem, finalmente, que sob o véu de seus enegrecidos olhos havia, nessa manhã, uns fiapos de satisfação. Poderá ela, alguma vez, ser sabida? Se, como diz nenhuma canção, a água corre com saudade do que nunca teve: o total, imenso mar.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

IV Festival Aberto de Poesia Falada de São Fidélis (Finalistas)

Plásticos e Megabytes –
Geraldo Evangelista

A Praça –
Irene Trindade da Silva

Órfãos Mais Natos –
José Moreira Sobrinho

Revela-se –
José Carlos Melo Rison

Lua Nova –
Pedro Emílio de Almeida

Sintoma –
Maria Lucia Fernandes Rocha

Vidas Vazias –
Patrícia de Fátima Leonardo Vieira

Canção do Observante –
Jailton Rosa Serra

Poema Para Embalar Joana –
Pedro Emílio de Almeida

Iniciação –
Pedro Emílio de Almeida

Outras Cidades do País

À Brasileira –
Renata de Aragão Lopes – Juiz de Fora-MG

Soneto de Amor Partido –
Rodrigo Ornelas França – Salvador-BA

Vida Seca –
Luiz Antonio Barreto Pinto – Bom Jardim-RJ

A Pessoa –
Paulo Franco – Ribeirão Pires-SP

A Louca –
Geraldo Aguiar Ribeiro – Campos dos Goytacazes-RJ

Primeira Página –
Eder Rodrigues – Pouso Alegre-MG

Aquele Velho Navio –
Eder Rodrigues – Pouso Alegre-MG

Obra de Fé Sem Luto –
Eder Rodrigues – Pouso Alegre-MG

Fazenda –
Edelson Rodrigues Nascimento – Brasília-DF

Ecce Homo –
Benedito José de Almeida Falcão – Bauru-SP

Pacto de (IN) Fidelidade –
José Benedito de Almeida Falcão – Bauru-SP

Canção Para Ninar Meu Filho –
José Benedito de Almeida Falcão – Bauru-SP

A Arte de Tecer Poentes –
Luiz Alfredo Santos – Belo Horizonte-MG

Cecogramas –
Luiz Alfredo Santos – Belo Horizonte-MG

Construção –
Luiz Otávio Oliani – Rio de Janeiro-RJ

Poesia Contemporânea –
Lucas Jerzy Portela – Salvador-BA

A Vera Condenação do Eden –
Lucas Jerzy Portela – Salvador-BA

A Máscara no Espelho –
Paulo Franco – Ribeirão Pires-SP

Os Ventos –
Paulo Franco – Ribeirão Pires-SP

Rebelião das Palavras –
Shenaider Pereira Caixeta – Catalão-Goiás

Comissão de Seleção

Roberto Félix – Prof. De Literatura e História - Representante da Secretaria Municipal de Educação de São Fidélis
Lígia Sueth Assunção – Representante do Conselho Municipal de Cultura de São Fidélis
Ana Regina Soares Ribeiro – Profª. De Língua Portuguesa e Literatura
Lucia Helena – membro do Conselho Municipal de Educação de São Fidélis - representando a sociedade civil
Artur Gomes – poeta, ator, produtor cultural, vídeo maker


Fonte:
http://concursos-literarios.blogspot.com 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Carlos Drummond de Andrade (Anúncio da Rosa)

Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.

Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,
sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas histórias, todas catárticas, todas patéticas.

Vêde o caule,
traço indeciso.

Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.

Vinde, vinde,
olhai o cálice.

Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso,.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercância estelar e sofrer vossa irrisão.

Rosa na roda,
rosa na máquina,
apenas rósea.

Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.

Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Nova Reunião. vol.1.

Vicência Jaguaribe (A Casa do Topo da Colina)

Sempre que ela saía, passava em frente à casa de Laura. E, como a casa ficava em uma curva, o motorista da limusine diminuía a velocidade. E a madame estranha, dona daquele carrão comprido que lembrava à menina um enorme cachorro linguiça, ficava bem visível.

Ela morava na casa grande e bonita, mas sinistra, construída em uma colina. Laurinha não sabia nada sobre aquela mulher. Fazia pouco tempo que sua família se mudara para aquele bairro, por isso não conhecia quase ninguém. Mas estava se coçando, com a curiosidade à flor da pele. Ah! Já sabia o que fazer: ia falar com Carlos, um colega de escola, seu amigo, com quem ela gostava de conversar. Se Carlos não soubesse alguma coisa, ninguém mais saberia. Ele conhecia todo mundo, afinal, nascera e se criara naquele bairro. Era a ele que ela ia especular — assim a vovó falava, lembrou-se — sobre a estranha madame.

Naquela sexta-feira, a aula terminou mais cedo e ela chamou o Carlos:

— Carlos, vamos sentar na praça que eu quero lhe perguntar umas coisas.

Sentaram-se no banco de madeira, velho, mas inteiro.

— Carlos, você conhece a dona da casa grande da colina?

— Conheço, mas nunca me aproximei dela. Os adultos dizem que é uma mulher muito perigosa. Mas falam baixinho, para ela não saber. Se souber que alguém faz comentários sobre a vida dela, ê, ê, o tempo fica feio.

— Mas o que é que ela faz de tão terrível?

— Vou lhe contar o que ouvi durante os dez anos da minha vida. Dizem que ela vem de uma família muito antiga. Tão antiga que está ameaçada de extinção, como os animais pré-históricos. Resta uma única herdeira: ela. Aquela mansão do alto da colina foi construída por seus avós há mais de um século, quando saíram da fria Europa do Norte e vieram para a América — vieram fazer a América, como se diz —, fugindo dos credores.

— Isso quer dizer que a família estava devendo muito dinheiro, e as pessoas a quem eles deviam começaram a cobrar?

— Isso mesmo, Laurinha.

— Então, ela é americana por causa de uma negociata da família que deu errado? — Perguntou a menina rindo.

— É. Mas que jeito engraçado você tem de falar! O que significa negociata?

— Ora, Carlos, eu conheço essa palavra porque meu pai é advogado e defende muita gente que entra em negociata. É um negócio suspeito, em que há trapaça, roubalheira.

— Ah! Entendi. Mas continuando: a família não chegou à nova terra desendinheirada, não. Os negócios na Europa foram à bancarrota, mas os donos continuaram endinheirados, como quase sempre acontece.

— Agora sou eu que pergunto: o que é bancarrota?

— Ah! Essa palavra eu ouvi de uma cliente do meu pai, que é contador. Achei o som dela tão engraçada, que fui ao dicionário: significa quebra, falência.

— Certo. Mas, voltando à madame. Como é mesmo o nome dela? E ela não tem marido, nem filho, nem irmão, ninguém? E quantos anos ela tem?

— Calma, vamos por parte. O nome dela é Malvina Cruela. Mas ninguém sabe exatamente a sua idade. Alguns dizem que tem pra lá de cem anos.

— Mas ela parece tão jovem!

— Aí é que está. Muitos acreditam que ela é uma bruxa e toma um elixir da longa vida que ela mesma criou. E, como já lhe disse antes, é a última representante da família. Depois dela, ninguém.

— Mas ela é rica? Em que ela trabalha?

— Parece que é muito rica, riquíssima. Mas não trabalha.

— E o que faz na vida?

— Ela faz uma coisa muito ruim, que é até proibido por lei: rouba e cria animais que tenham o couro apropriado para fazer roupa. Parece também que exporta madeira nobre.

— O que também é proibido.

— É. E ela já foi presa por causa disso.

— Carlos, você tem coragem de ir comigo espiar a casa dela?

O menino tomou o maior susto da vida dele. Nunca pensara em fazer uma coisa daquelas. Será que a Laurinha era corajosa assim?

— Não será perigoso?

— Que nada! A gente tem cuidado. Que tal amanhã, que é sábado?

— Tá fechado. Passo na sua casa às oito horas. Mas o que vamos dizer para sua mãe? Vamos mentir?

— Não, a gente diz que você vai me mostrar a colina, que eu ainda não conheço.

No dia seguinte, mais preciso do que os relógios de Cabo Canaveral, exatamente às oito horas, estava Carlos no portão da menina. Sem perda de tempo, dirigiram-se à colina, mas, em vez de passear ou apreciar a bela paisagem que se perdia por falta de quem a admirasse, foram fuçar a casa da Malvina Cruela. Ela ainda não havia acordado, mas os empregados já estavam na labuta. Os dois aproveitaram a saída de uma criada que deixara a porta aberta e, de repente, viram-se dentro daquela casa imensa, sem saber o que fazer nem para onde ir?

— E agora, Carlos, o que é que a gente faz, para onde a gente vai? — Tremia a voz da Laurinha.
— Eu não sei, não. Não foi você que quis vir! Pois agora diga o que fazer.

Ninguém falasse assim com aquela menina. Ouvir alguém duvidar de seus conhecimentos e de sua coragem era o mesmo que engolir um pouco do espinafre do marinheiro Popeye. Ela criava coragem e adquiria força. Nunca lhe dissessem que ela não sabia fazer alguma coisa.

— Vamos, vamos procurar os cachorros. — Era a fala da Laurinha, bastante aborrecida. — Se estamos aqui, vamos fazer alguma coisa útil.

— Mas como vamos encontrar esses cães?

— Abrindo os olhos e aguçando o faro, ora. — E a Laurinha saiu com uma cara de dar medo, tendo o Carlos atrás dela.

Andando com muito cuidado para não fazer barulho atravessaram uma grande sala e entraram em um comprido corredor meio penumbroso. Até agora tinha sido fácil. Os serviçais encontravam-se na cozinha ou no quintal da mansão, esperando que a patroa acordasse. Au, au, au... au, au... Os dois pequenos audaciosos ouviram os latidos e seguiram na direção deles, que pareciam vir de um lugar distante. Mas não, eles vinham do interior da casa... do...

— Do subsolo. — Disseram os dois um para o outro, bem baixinho.

À frente deles havia um porão, cuja porta não estava trancada. Desceram uma primeira escada, uma segunda e uma terceira. Aí viram um quadro muito triste: vários dálmatas, muitos dálmatas, incontáveis dálmatas dentro de jaulas recebendo raios de sol artificial. Aliás, tudo ali, como os meninos iriam constatar, era artificial: o sol, a lua, as estrelas, a comida, a água... Algumas máquinas dispostas no imenso calabouço produziam a ilusão do sol e da lua; água e comida em forma de cápsulas e imitavam até o som de outros animais para acalmar os cães.

— Será que não vai aparecer ninguém por aqui? — Perguntou Laurinha mais para si mesmo do que para o Carlos.

— É melhor a gente sair daqui. Vamos. — Disse Carlos com um medo evidente.

— Não. Vamos tentar soltar os cães.

Mal a Laurinha terminou de falar, ouviu-se um clique e apareceu uma grande tela na parede e, na tela, a figura de Malvina Cruela. Uma voz grave, que fazia estremecer, preencheu o aposento.

— Ah! Então são vocês os invasores da minha casa, detectados pelo radar, hein. Que vieram fazer aqui? — Perguntou a malvada, mas não deu aos meninos tempo de dizer nada. — Seja o que for que vieram fazer, não interessa. São meus prisioneiros. Lembram-se da história de João e Maria? Vocês vão ser bem alimentados e, quando estiverem bem gordinhos vão ter serventia... Ah, ah, ah, ah, ah...

Horrorizados, os meninos escutaram a batida de uma porta e o barulho de uma chave na fechadura. Carlos quis chorar, mas Laura deu-lhe força:

— Não vamos ficar muito tempo aqui. Nossos pais vão nos resgatar.

Há dois dias os pais das crianças e alguns policiais as procuravam. A única pista: eles haviam subido a colina para passear.

—Só podem ter entrado na casa da Cruela, concluíram os soldados. E a bruxa os aprisionou. Vamos esperar que anoiteça e escalar o muro de pedra da mansão.

— Mas a casa tem alarme e radar. — Avisaram os pais do Carlos.

— Sim, mas o radar só detecta alguém ou alguma coisa a partir de determinada altura. E o alarme é fácil desativar. Temos um aparelho eletrônico que faz isso com a maior facilidade.

Assim que anoiteceu, os soldados e os pais subiram a colina e conseguiram entrar na casa por uma janela dos fundos. Com as armas destravadas, alcançaram a sala de jantar, onde se refastelava a Cruela com uma bela e suculenta lagosta ao molho, e à cozinha, onde se encontravam reunidos todos os empregados, esperando um chamado da patroa. Os serviçais foram obrigados a dizer onde estavam os meninos. Enquanto os soldados e os pais resgatavam as crianças, deixaram a bruxa amarrada a uma cadeira. Minutos depois, quando voltaram à sala, ouviram o barulho de um helicóptero. Procuraram a Cruela, mas não a encontraram. Ora, o campo ficou livre. Ela, então, assoviou o assovio combinado com o piloto do helicóptero, que não estava com os empregados, mas escondido. Ele entrou e d esamarrou a patroa. Correram os dois para o heliporto disfarçado, e a máquina voadora, pilotada com perícia, e com as luzes momentaneamente apagadas, confundiu-se com a escuridão.

Malvina Cruela deu uma gargalhada e disse para o piloto:

— Vamos tirar umas longas férias no Caribe. Aqui os meus advogados resolverão tudo. Quando voltarmos, a tempestade já terá passado e começarei tudo de novo.

Enquanto o helicóptero transportava a bruxa para as férias antecipadas, as crianças foram levadas, cada uma para sua casa. Os cães ainda ficariam presos por uma noite. No dia seguinte bem cedo, a carrocinha iria apanhá-los. E começaria a luta por adoção. Como eram muitos animais, despachariam alguns para outros estados.

Carlos e Laura iriam ajudar no resgate, e cada um ganharia um dálmata bebê.

Fonte:
A Autora