segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 777)




Uma Trova de Ademar  

Se não puder dar um bolo,
dê um pedaço de pão...
A caridade é um tijolo 
da casa da salvação!
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Minha rosa cor-de-rosa, 
com porte de manequim, 
desfila, linda e garbosa, 
nas ruas do meu jardim! 
–Yedda Maia Patrício/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Eu sinto a força da vida 
e a mão divina de Deus, 
em cada manhã florida, 
na aurora... dos versos meus! 
–Mara Melinni/RN– 

Uma Trova Premiada  

2012   -   Cantagalo/RJ 
Tema   -   ESPAÇO   -   9º Lugar 

Homem...! É afoito seu passo
e um paradoxo o consome:
- Rompe limites no Espaço,
enquanto a Terra... tem fome! 
–Pedro Mello/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Esta saudade é o castigo
que aflige todo o meu ser:
- não posso viver contigo
sem ti não posso viver.
–Coriolano Coelho/SP– 

U m a P o e s i a  

Ninguém sabe o fim da vida, 
mas se ela tem o seu preço, 
é bom que no seu roteiro 
nós saibamos o endereço 
da justiça e da esperança, 
pois teremos recomeço! 
–Elisabeth Souza Cruz/RJ– 

Soneto do Dia  

GERÂNIOS NA JANELA
–Thereza Costa Val/MG–

Gerânios na janela dão beleza
ao simples quarto branco, meu recanto,
e ofertam-me um cenário de nobreza
quando, à manhã, desperto e me levanto.

Eu vejo o sol beijar, com gentileza,
as flores cultivadas neste canto,
que tiram do meu quarto a singeleza
e em rósea cor exibem grande encanto.

Imagem que me alegra e me extasia
- o vaso de gerânios na janela - 
me embala em um instante de poesia.

Meus versos vão surgindo na emoção
que sinto, ao ver o quadro de aquarela...
e tenho, de um soneto, a inspiração!

domingo, 6 de janeiro de 2013

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 13


Caio de Mello Franco
(Montevidéu/Uruguai, 3 maio 1896 Registrado no Consulado Brasileiro -
Paris/ França, 18 setembro 1955)

" O EVANGELHO DA VELHICE "

Quando a velhice te bater à porta
queres ouvir nosso Evangelho? Escuta,
abre de manso e, trêmula perscruta
aquela face que a tristeza corta.

Olha-a de frente. E uma alegria morta
verás em cada sulco que a labuta
deixou fundo ficar na insana luta
que não nos confortou, nem nos conforta.

Enxugarás o pranto resignado
e ficarás pungentemente orando,
de mãos postas, a olhar para o Passado...

E assim, velhinha e triste e eu triste a velho,
viveremos tremendo, mas rezando
a saudade sem fim, deste Evangelho.

" O FAUNO "

No meu plinto de pedra, o olhar vazio,
a alma vazia, no jardim deserto,
sonho encolhido de tristeza e frio,
ouvindo a fonte que murmura perto.

As vezes penso: este meu fado incerto
mudou-se em gloria, fez-se amor! - Sorrio...
Depois, o tempo passa . . . E eis-me desperto
do meu longo e profundo desvario . . .

E súbito, em minha'alma primitiva
antes tranqüila e agora turva, a chama
de um desejo fugaz, crepita, viva...

Em meu corpo de pedra anseio e arquejo. . .
Sinto que em torno a natureza me ama
e atiro ao vento o meu primeiro beijo.
============

Carlos Augusto Ferreira 
(Porto Alegre/RS, 4 outubro 1844 – Campinas/SP, 12 fevereiro 1913)

" IDÍLIO "

Vamos, amor, por esses campos fora,
asas abrindo à doce luz da vida,
ouvir a terna, a meiga, a apetecida
canção que entoa a terra à deusa Aurora.

Vamos, que é tempo. A natureza inflora
montes, vales, vergéis, e embevecida
treme de amor a rosa. Ouves, querida,
a ave que canta? a viração que chora?

Vês? Que alegre amnhã, Todo o arvoredo
tão fresco e bom! O alegre passaredo
enche a selva de mágico rumor...

Pois cantemos também, vamos risonhos
haurir a vida em turbilhões de sonhos,
asas abrindo ao quente sol do amor! . . .
===================

Carlos Drummond de Andrade
(Itabira/MG, 31 outubro 1902 – Rio de Janeiro/RJ, 17 agosto 1987)

" ENTRE O SER E AS COISAS "

Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e a rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.

As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que a de natureza corrosiva.

N’água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas a mais nuas.

E nem os elementos encantados
sabem do amor que o punge e que e, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.

" FRAGA E SOMBRA FRAGA E SOMBRA "

A sombra azul da tarde nos confrange.
Baixa, severa, a luz crepuscular.
Um sino toca, e não saber quem tange
é como se este som nascesse do ar.

Música breve, noite longa. O alfanje
que sono e sonho ceifa devagar
mal se desenha, fino ante a falange
das nuvens esquecidas de passar.

Os dois apenas, entre céu e terra,
sentimos o espetáculo do mundo,
feito de mar ausente a abstrata serra.

E calcamos em nós, sob o profundo
instinto de existir, outra mais pura   
vontade de anular a criatura.

Fonte:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Clevane Pessoa (Indo e Vindo)


Odyla Pinto de Paiva (Natal) Medalha de Ouro no II Concurso Oliveira Caruso


É alegre e triste, pobre e rico.
É cheio de surpresas e também de tristezas.
Às vezes falta alguém.
Às vezes tem gente demais…
E o que é Natal?

São múltiplas faces estilhaçadas que nos mostram fragmentos de recordações queridas, mas também fiapos de memórias que gostaríamos de esquecer.

Mesmo com a noite transcorrendo cheia de alegrias, em algum momento, uma lembrança se insinua sorrateiramente e acabamos sendo vencidos, por alguns segundos, pela nostalgia.

Nostalgia de algo ou de alguém.

De algo que foi tão bom e não mais se repetiu ou de alguém que passou e não mais voltou porque não queria ou, na pior das hipóteses, não mais podia.

Natal é o doce e o amargo de toda vida.

É mágico e cruel, mas também é sonho e fantasia.

É o riso da criança e a lágrima do idoso.

É a mesa farta e a fome que corrói aquele que não tem o que comer.

É a fé de que a vida se renova e que tudo tem princípio, meio e fim para depois recomeçar o mesmo ciclo que permite, a todos, a reparação e a construção de uma nova vida cheia de expectativas e desejos.

Natal?

É a esperança de felicidade.

Fonte:
Comendador Oliveira Caruso.
http://reinodosconcursos.com/?page_id=220

Comemoração das 10.015 Postagens - Aproximando da Marca de 1 milhão de visitas

O Blog completou em dezembro do ano passado 5 anos de existência.

Chegamos a marca de 10.000 postagens. Mais exatamente, descontando os alertas, avisos, erratas e agradecimentos (que totalizam 30), são 10.015 textos, que abrangem trovas, haicais, contos, analise de obras, poesias, poetrix, noticias,cronicas, artigos, concursos, resultados de concursos, folclore, etc.

Até as 20hs de hoje, o blog já contava com 801.391 visitas, sendo os países que mais visitaram em ordem classificatória por numero de visitas:

1) Brasil 
2) Estados UNidos
3) Portugal
4) Russia
5) Alemanha

162 seguidores

445 assinantes que recebem as postagens em seu e-mail.

No mes de dezembro do ano passado, houve 18.704 visitas.

412 comentários.

Fica aqui o meu agradecimento por estarem me acompanhando, incentivando e colaborando.

Nilto Maciel (Valéria Eik e os Atalhos da Narrativa)


Muitos são os contistas e poetas que mantinham engavetados (ou, melhor dizendo, arquivados em computador) seus escritos e, estimulados por leitores de sites e blogs (também escritores em potencial), resolveram publicar o primeiro livro. Alguns não vêm de muitas leituras, de muitos exercícios de escrita, ou leram e leem, apressadamente, tudo o que lhes aparece diante dos olhos, desde piadinhas e os chamados “contos eróticos” até clássicos da literatura universal. Leituras açodadas, sem anotações, sem consulta a dicionários, etc. A maioria desses novos escritores segue uma linha, um roteiro, uma estrada larga e longa, certos de que lhes espera a fama, a glória. Não conhecem as veredas, os atalhos, as pedras no meio do caminho, os córregos escondidos na mata. Muito menos os subterrâneos e os céus. Vão em procissão ou atrás do trio elétrico. Todos juntos, unidos, de mãos dadas. Seguem o padre, o pastor, o caminhão do som. Cantam o mesmo refrão. Estão na folia de reis ou na folia do carnaval. São foliões.

                  Poucos desses contistas e poetas novos vêm da leitura dos contos de fadas, dos poetas românticos, parnasianos e simbolistas, dos romancistas russos e franceses do século XIX, dos rabiscos na adolescência, dos primeiros versos na juventude, dos arremedos de contos e romances ao tempo da escola e da faculdade. Poucos se vão fazendo escritores. Sabem que não nascemos feitos, prontos. Muito menos que esse “estar pronto” (ou quase pronto) não se dá num passe de mágica. Assim parece ser Valéria Eik.

                  Suas narrativas apresentadas neste volume de estreia são de linguagem simples, coloquial, de roupagem comum. Obedecem a estética da história linear, sem volteios, sem malabarismos, sem lacunas. “A grande paixão” é ambientada no campo. Embora não haja referência a nomes de lugares, sabe o leitor que o drama se passa no Sul do país: o frio, o gelo, a geada. Apenas duas pessoas: José e Maria, um casal de velhos. E um drama: a geada, a morte do cafezal, e, por consequência, a morte do homem. “Fogos fátuos” segue a mesma linha, com um quê de romantismo: as perdas, a solidão, a morte. Nele o tempo é dilatado ou se reparte em várias unidades.

                   Há ainda os chamados contos de costumes, como “Se é semente, vai germinar”, em que o tema da violência doméstica é ressaltado. 

 Outras obras se abeiram da crônica ou do poema em prosa. Em “Travessia” o protagonista é um velho cão a atravessar uma rua. Narrativa urbana: avenidas, trânsito de carros, pressa. “Estrelas mortas” é poético em sua trama esgarçada. “Por breves instantes” igualmente se assemelha a poema. “Memórias” mostra o conflito interior da protagonista Ana, a debater-se com as lembranças de uma caçada de gato a passarinho, numa noite remota, talvez da infância. “O nascimento de mais um cronópio” é também diferente, isto é, foge aos modelos do conto tradicional, da história com enredo. Homenagem a Cortázar, numa peça ficcional parabólica, metafórica, de seres fictícios etéreos.

                   Há ainda aqueles constituídos de uma só fala, como se vê em “Afasta de mim este cálice” e “Almas”. Apenas uma lamentação, um monólogo, sem enredo, sem trama.

 Valéria Eik demonstra nítida preocupação com os problemas sociais e, assim, se esmera na elaboração da chamada narrativa de costumes, tão cara aos realistas. “Funeral de primeira” é um retrato dessas cenas domésticas ou de família, como a morte e o enterro do velho patriarca avarento. Em “O fruto indigesto” o tema é o da gravidez indesejada, seguida de aborto. “Prosperidade” narra costumes do interior, das pequenas cidades, com seus personagens típicos: o padre (a hipocrisia), o político, etc. Em “Quebrando a rotina”, outra história de personagem, se revela a avareza de Gastão (nome famoso de programa cômico da televisão) e o sofrimento de Elisa, sua mulher. “Um menino chamado Jesus” trás à tona a questão do machismo. Vida dura de carroceiro, no campo. Diversos segmentos temporais e episódios em cadeia. “Uma versão da verdade” tem por assunto o estupro seguido de morte. A estrutura da narrativa lembra os moldes dos românticos, de um lado, e dos realistas/naturalistas, de outro.

 A solidão, a velhice e a morte são, pois, assuntos caros a Valéria. Em “Sentença irrevogável” a morte é tratada de maneira natural. Assim como a fragilidade humana, a finidade: o paletó elegante do morto, o caixão, o fim. Pode ser lido também como história de horror: ser enterrado vivo. “Aconchego”, constituído de diversas unidades de tempo, conta a vida de um velho. Não apenas a vida, mas a solidão da velhice. O abandono em vida pelos filhos e pela mulher. Essa tendência para dilatar o tempo da ação se mostra ainda em outras peças, como em “Moleca”, desenvolvida em tempo histórico longo. A moleca Antônia, desde menina até a morte, na velhice, e seu marido Justo. Diversos dramas menores, em cadeia, como num romance. Essa semelhança com a estrutura do gênero literário preferido de Balzac aparece ainda em “O pó da terra”.

                   Mas nem só de solidão e morte vivem as pessoas fictícias de Valéria Eik. O amor está presente em muitas de suas narrativas. O singelo “Entardecer” nos remete à vida de pescador. “Notícias” apresenta cena doméstica: mulher sozinha, um carteiro que se anuncia, uma carta, as lembranças de um amor perdido. Trama ingênua, em que o conflito interno se instala de repente. Ao leitor cabe completar o drama: Quem seria o outro? Que história teriam vivido ele e a mulher solitária? Em “O circo” o amor é dos tempos de criança. Um circo se assenta numa cidadezinha. Uma menina se apaixona pelo galã. Como se espera, vem a decepção da garota, ao ver o circo ir embora. E, finalmente, “Por amor”, a melhor peça do volume, pela densidade, pela aspereza do narrador, pela beleza que emana da própria narração. Conto urbano, social – pungente e cruel, como a vida. 

                  Valéria Eik certamente não espera fama e glória. Resta-lhe seguir pelos múltiplos caminhos da literatura, livrando-se da comodidade da reta e buscando os atalhos, que são inúmeros. 

                        Fortaleza, abril de 2007.

Fontes:
http://www.niltomaciel.net.br/node/1222
Foto: Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 776)




Uma Trova de Ademar  

Perdi minha mocidade, 
toda hombridade que eu tinha... 
Vivi sua identidade 
em vez de viver a minha! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Nutro respeito por quem, 
faminto, em árdua jornada, 
reparte o nada que tem 
com quem já não tem mais nada. 
–Élbea Priscila de Souza/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Como quem faz uma prece, 
braços erguidos se abrindo, 
a borboleta parece 
um anjo da paz dormindo! 
–Prof. Garcia/RN– 

Uma Trova Premiada  

2007   -   Nova Friburgo/RJ 
Tema   -   MENSAGEM   -   4º Lugar 

Deixei a minha alma exposta 
na mensagem comovente... 
Veio a carta, sem resposta, 
devolvida “Ao remetente”... 
–Thereza Costa Val/MG– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Jamais alimentaria
tanto amor entre nós dois,
se eu pensasse que viria
tanta saudade depois ...
–Leopoldina Dias Saraiva/RJ– 

U m a P o e s i a  

Sou de Deus um instrumento 
que, com temas mais dispersos 
me faço a cada momento 
um fabricante de versos; 
me tornei um menestrel, 
não tenho nenhum anel, 
mas sou tudo o que eu queria... 
Meu currículo é comum, 
não tenho curso nenhum 
mas sou formado em poesia! 
–Ademar Macedo/RN– 

Soneto do Dia  

NÓS 
–Guilherme de Almeida/SP– 

Quando as folhas caírem nos caminhos,
ao sentimentalismo do sol poente,
nós dois iremos vagarosamente,
de braços dados, como dois velhinhos...

E que dirá de nós toda essa gente,
quando passarmos mudos e juntinhos?
---" Como se amaram esses coitadinhos!
Como ela vai, como ele vai contente!"

E por onde eu passar e tu passares,
hão de seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se as flores nos barrancos...

E por nós, na tristeza do sol posto,
hão de falar as rugas do meu rosto...
Hão de falar os teus cabelos brancos...

Ivan Pessoa (Era Uma Vez Uma Cidade Bibliofóbica)


 Era uma vez uma cidade que não lia. Não que a leitura não fosse lá seu hábito, afinal os espaços reservados para tais descobertas eram poucos e, ainda que fossem poucos, agravavam-se as reformas, os trincos e o pior das doenças populares: a desfaçatez contagiosa dos políticos. Quem passasse pelos portais dessa cidade, sabiamente diria: está doente! Mas quem por lá residisse, contagiado pela cegueira letárgica dos políticos de lá, despreocupadamente diria: “bobagem, cidade como esta, jamais encontrarás”. O pior doente, como o cego, é aquele que não quer ver.

 Os egípcios tinham tanto apreço por bibliotecas que as chamavam farmácias da alma. Por Deus, será por isso que aquela cidade encontra-se momentaneamente adoecida, sem o direito legítimo de convalescença? O traço mais característico das civilizações é certamente o hábito da conservação da memória, o que franqueia às gerações subsequentes um referencial.

 O que efetiva o ser humano é a memória de seus ancestrais que lhe inculca uma maneira de ser com consequente compreensão de si e de seus semelhantes. Em um só tempo a memória faz o homem se descobrir por meio da consciência de si mesmo e descobrir a presença constante dos outros. Tal capacidade é tanto pessoal, quanto interpessoal. Como afirmara o biólogo francês Jean Rostand, para quem a civilização do homem, diferentemente da civilização das formigas e das traças não reside propriamente no homem, mas antes em suas bibliotecas, museus e códigos. A partir daí se pode pensar que, de fato, a cultura, juntamente com a memória, são os únicos elementos que nos põem a distância dos demais insetos da natureza. O bicho homem difere das formigas e das traças, por que registra os ensinamentos de seus pais e por inscrevê-los, posterga sua sobrevida para um tempo não muito determinado, para um porvir. A expectativa de um futuro insondável, de impérios e heróis que ainda virão, de pessoas e cidades que porventura possam acontecer, é justamente o elemento humano por excelência. Para que esta expectativa se faça sustentável através dos séculos, a memória precisa ser preservada e sua preservação fica a cargo das bibliotecas.

 Ao contrário de seus contemporâneos, Aristóteles teria sido o primeiro bibliófilo da história, e sob este princípio edificaria tanto a biblioteca de seu Liceu, quanto a civilização ocidental. Com efeito, Ptolomeu II Filadelfo, que adquiriria este irrepreensível acervo, no afã de lhe conservar, construiria o maior monumento da antiguidade: a biblioteca de Alexandria.

 Segundo Ptolomeu II a biblioteca serviria para reunir os livros de todos os povos da Terra, permitindo-lhes tanto, na época, quanto nos séculos vindouros, a compreensão do mundo antigo e sua especificidade. Como me compreender em um tempo e espaço determinado se sou incapaz de dimensionar a tradição pela qual sou uma consequência temporã? A lição dos livros é esta: conservar a tradição, para que as gerações futuras possam encetar o encontro consigo mesmas e com seus semelhantes. Uma geração que não lê é no mínimo uma geração perdida, certamente porque fica alijada da compreensão de si mesma e de seu povo. O que daí se depreende é: a história de um povo é a consequência daqueles que lhe conservarão. Inimaginável e igualmente bárbaro é pensar um adolescente que desconhece um luminar de sua terra, à maneira da criança que desconhece os pais. Troçar dos luminares e desconhecer os pais atesta um estado de grave incoerência, sobretudo se se pensar que tais condições são princípios elementares para as gerações vindouras.

 Que educação um pai iletrado dará para um filho que, tão carente quanto ele, está à mercê das circunstâncias? Que mundo está em construção, se o presente não sabe remeter-se ao passado? Aquela civilização do homem, pela qual Jean Rostand sobrepunha à civilização das formigas e traças, é decerto a exaltação do passado com seus feitos imemoriais. O que é a civilização grega senão a ira incontida de Aquiles e Agamenon na eterna releitura da Ilíada? Na Eneida de Virgílio, o anfitrião Enéas antevê a criação do império romano como desdobramento heróico do povo troiano e se jacta disso. Ainda hoje a remissão dos romanos a este fato, lhes põe como herdeiros de um povo intrépido. Como pensar, por exemplo, a questão judaica sem a leitura bíblica? É tal que o poeta alemão Heinrich Heine afirmaria categoricamente que a bíblia é a pátria dos judeus, tamanha é sua importância, enquanto documento identificador de uma tradição. À maneira de Heine, o filósofo Adorno diria algo igualmente relevante por considerar que para quem não tem pátria, o livro, bem como a escrita tornam-se necessariamente a sua morada. Ora, enquanto morada, o livro é o único artifício capaz de conservar a voz ancestral daqueles que cá não estarão, como se por testamento, protelasse e assegurasse a especificidade dos conselhos, orientações e discursos que precisam se fazer ouvir em um tempo a posteriori. Não sou eu quem digo, mas é George Santayana quem assim o faz: “Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo .”

 Em um passado não muito diferente dos dias atuais, em que pese a violência e a barbárie pululando ostensivamente, o imperador Júlio César convocaria os serviços intelectuais de Públio Varrão, poeta romano, para organizar as bibliotecas públicas de então. Varrão o faria. Ironicamente, a história registraria uma condenação digna de reparação por parte de César que, se pondo a perseguir Pompeu, incendiaria a cidade de Alexandria e sua suntuosa biblioteca. O mesmo homem que ordena a construção de bibliotecas públicas incendeia criminosamente uma parte do maior legado da antiguidade. O certo é que a história humana apressa qualquer insinuação de decisiva hostilidade, afinal, como pensara Schiller em suas Cartas sobre a educação estética do homem: “Então de onde vem que ainda continuemos sendo bárbaros?” Pensemos bem: se com a convivência com os livros, os homens ainda são naturalmente hostis, de modo que um quê de civilização supõe um quê de barbárie, imagine a ausência de doutos ensinamentos, a intervenção de bons parágrafos? Quando Schiller bradava tais queixas, quanto ao bárbaro alemão civilizado, tais queixumes se faziam em face de um país com 80% de analfabetos, analfabetos que leriam o mundo determinando futuramente sua escritura. Aqueles trocentos analfabetos alemães forjariam os maiores monumentos da cultura europeia dos anos seguintes, ao contrário dos nossos, que duas vezes bárbaros, na educação e nos costumes, incapazes são de passar a vista nem que seja na orelha dos livros. Se um povo como o alemão concedeu ao Ocidente um celeiro de grandes intelectuais, artistas e pensadores, ainda que fosse um povo bárbaro, o que pensar daquela cidade, em específico, que tem uma tradição olvidada em função da desfaçatez contagiosa de seus políticos? Sem o usufruto da quiromancia, aquela arte de ler as mãos, sem qualquer futurologia, o certo é que os indícios não estão nada a favor, porquanto aquela cidade, carente de toda sorte de antídoto, há algum tempo fechou as portas de sua mais importante farmácia da alma, alegando uma reforma por tempo indeterminado. E quanto às obras, por tempo indeterminado o que serão? Já sei, servirão de abrigo às sociedades e aos impérios daquelas traças tão letradas, visto que se alimentam de livros e entre livros forjam suas civilizações. Como toda civilização tem um apelo eminentemente bárbaro, até os insetos nos remedam. Ou seria o contrário?

Fonte:
Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante. Ano X. Ed. 240. 29 de outubro de 2011.
Imagem ; http://osonetista.blogspot.com

Eça de Queiros (O Mandarim) Parte 6


Estranhos bairros! Mas nada me divertia como ver a cada instante, a uma porta de jardim, dois mandarins pançudos que para entrar se trocavam indefinidamente salamalés, cortesias, recusas, risinhos agudos de etiqueta, todo um cerimonial dogmático – que lhes fazia oscilar de um modo picaresco, sobre as costas, as longas penas de pavão. Depois, se erguia os olhos para o ar, lá via sempre pairar enormes papagaios de papel, ora em forma de dragões, ora de cetáceos, ora de aves fabulosas – enchendo o espaço de uma inverosímil legião de monstros transparentes e ondeantes...

– Sá-Tó, basta de Cidade Tártara! Vamos ver os bairros chineses...

E lá fomos penetrando na Cidade Chinesa, pela porta monstruosa de Tchin-Men. Aqui habita a burguesia, o mercador, a populaça. As ruas alinham-se como uma pauta; e no solo vetusto e lamacento, feito da imundície de gerações recalcada desde séculos, ainda aqui e além jaz alguma das lajes de mármore cor-de-rosa que outrora o calçavam, no tempo da grandeza dos Ming.

Dos dois lados são – ora terrenos vagos onde uivam manadas de cães famintos, ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas tabuletas esguias e sarapintadas, balouçando-se de uma haste de ferro. À distância erguem-se os arcos triunfais feitos de barrotes cor de púrpura, ligados no alto por um telhado oblongo de telhas azuis envernizadas, que rebrilham como esmaltes. Uma multidão rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem cessar; a poeira envolve tudo de uma névoa amarelada; um fedor acre exala-se dos enxurros negros; e a cada momento uma longa caravana de camelos fende lentamente a turba, conduzida por mongóis sombrios vestidos de pele de carneiro.

Fomos até às entradas das pontes sobre os canais, onde saltimbancos seminus, com máscaras simulando demónios pavorosos, fazem destrezas de um picaresco bárbaro e subtil; e muito tempo estive a admirar os astrólogos de longas túnicas, com dragões de papel colados às costas, vendendo ruidosamente horóscopos e consultas de astros. Oh cidade fabulosa e singular!

De repente ergue-se uma gritaria! Corremos: era um bando de presos, que um soldado, de grandes óculos, ia impelindo com o guarda-sol, amarrados uns aos outros pelo rabicho! Foi aí, nessa avenida, que eu vi o estrepitoso cortejo de um funeral de mandarim, todo ornado de auriflamas e de bandeirnhas; grupos de sujeitos fúnebres vinham queimando papéis em fogareiros portáteis; mulheres esfarrapadas uivavam de dor espojando-se sobre tapetes; depois erguiam-se, galhofavam, e um cooly vestido de luto branco servia-lhes logo chá, de um grande bule em forma de ave. 

Ao passar junto ao Templo do Céu, vejo apinhada num largo uma legião de mendigos; tinham por vestuário um tijolo preso à cinta num cordel; as mulheres, com os cabelos entremeados de velhas flores de papel, roíam ossos tranquilamente; e cadáveres de crianças apodreciam ao lado, sob o voo dos moscardos. Adiante topámos com uma jaula de traves, onde um condenado estendia, através das grades, as mãos descarnadas, à esmola... Depois Sá-Tó mostrou-me respeitosamente uma praça estreita: aí, sobre pilares de pedra, pousavam pequenas gaiolas contendo cabeças de decapitados: e gota a gota ia pingando delas um sangue espesso e negro...

– Uf! – exclamei, fatigado e aturdido. – Sá-Tó, agora quero o repouso, o silêncio, e um charuto caro...

Ele curvou-se: e, por uma escadaria de granito, levou-me às altas muralhas da cidade, formando uma esplanada que quatro carros de guerra a par podem percorrer durante léguas.

E enquanto Sá-Tó, sentado num vão de ameia, bocejava, num desafogo de cicerone enfastiado, eu fumando contemplei muito tempo aos meus pés a vasta Pequim...

É como uma formidável cidade da Bíblia, Babel ou Nínive, que o profeta Jonas levou três dias a atravessar. O grandioso muro quadrado limita os quatro pontos do horizonte, com as suas portas de torres monumentais, que o ar azulado, àquela distância, faz parecer transparentes. E na imensidão do seu recinto aglomeram-se confusamente verduras de bosques, lagos artificiais, canais cintilantes como aço, pontes de mármore, terrenos alastrados de ruínas, telhados envernizados reluzindo ao sol; por toda a parte são pagodes heráldicos, brancos terraços de templos, arcos triunfais, milhares de quiosques saindo de entre as folhagens dos jardins; depois espaços que parecem um montão de porcelanas, outros que se assemelham a monturos de lama; e sempre a intervalos regulares o olhar encontra algum dos bastiões, de um aspecto heróico e fabuloso...

A multidão, junto a essas edificações grandiosas, é apenas como grãos de areia negra que um vento brando vai trazendo e levando...

Aqui está o vasto palácio imperial, entre arvoredos misteriosos, com os seus telhados de um amarelo de oiro vivo! Como eu desejaria penetrar-lhe os segredos, e ver desenrolar-se pelas galerias sobrepostas, a magnificência bárbara dessas dinastias seculares!

Além ergue-se a torre do Templo do Céu, semelhando três guarda-sóis sobrepostos: depois a grande Coluna dos Princípios, hierática e seca como o génio mesmo da raça: e adiante branquejam numa meia-tinta sobrenatural os terraços de jaspe do Santuário da Purificação... 

Então interrogo Sá-Tó: e o seu dedo respeitoso vai-me mostrando o Templo dos Antepassados, o Palácio da Soberana Concórdia, o Pavilhão das Flores das Letras, o Quiosque dos Historiadores, fazendo brilhar, entre os bosques sagrados que os cercam, os seus telhados lustrosos de faianças azuis, verdes, escarlates e cor de limão. Eu devorava, de olho ávido, esses monumentos da Antiguidade asiática, numa curiosidade de conhecer as impenetráveis classes que os habitam, o princípio das instituições, a significação dos cultos, o espírito das suas letras, a gramática, o dogma, a estranha vida interior de um cérebro de letrado chinês... Mas esse mundo é inviolável como um santuário...

Sentei-me na muralha, e os meus olhos perderam-se pela planície arenosa que se estira para além das portas até aos contrafortes dos montes mongólicos; aí incessantemente redemoinham ondas infindáveis de poeira; a toda a hora negrejam filas vagarosas de caravanas... Então invadiu-me a alma uma melancolia, que o silêncio daquelas alturas, envolvendo Pequim, tornava de um vago mais desolado: era como uma saudade de mim mesmo, um longo pesar de me sentir ali isolado, absorvido naquele mundo duro e bárbaro: lembrei-me, com os olhos humedecidos, da minha aldeia do Minho, do seu adro assombreado de carvalheiras, a venda com um ramo de louro à porta, o alpendre do ferrador, e os ribeiros tão frescos quando verdejam os linhos...

Aquela era a época em que as pombas emigram de Pequim para o Sul. Eu via-as reunirem-se em bandos por cima de mim, partindo dos bosques dos templos e dos pavilhões imperiais; cada uma traz, para a livrar dos milhafres, um leve tubo de bambu que o ar faz silvar; e aquelas nuvens brancas passavam como impelidas de uma aragem mole, deixando no silêncio um lento e melancólico suspiro, uma ondulação eólica, que se perdia nos ares pálidos...

Voltei para casa, pesado e pensativo.

Ao jantar, Camilloff, desdobrando o seu guardanapo, pediu-me com bonomia as minhas impressões de Pequim.

– Pequim faz-me sentir bem, general, os versos de um poeta nosso:

Sôbolos rios que vão

Por Babilónia me achei ...

– Pequim é um monstro! – disse Camilloff oscilando reflectidamente a calva. – E agora considere que a esta capital, à classe tártara e conquistadora que a possui, obedecem trezentos milhões de homens, uma raça subtil, laboriosa, sofredora, prolífica, invasora... Estudam as nossas ciências... Um cálice de Médoc, Teodoro!... Têm uma marinha formidável! O exército, que outrora julgava destroçar o estrangeiro com dragões de papelão donde saíam bichas de fogo, tem agora táctica prussiana e espingarda de agulha! Grave! 

– E todavia, general, no meu país, quando, a propósito de Macau, se fala do Império Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha, e dizem negligentemente: «Mandamos lá cinquenta homens, e varremos a China...»

A esta sandice – fez-se um silêncio. E o general, depois de tossir formidavelmente, murmurou, com condescendência:

– Portugal é um belo pais...

Eu exclamei com secura e firmeza:

– É uma choldra, general.

A generala, colocando delicadamente à borda do prato uma asa de frango, e limpando o dedinho, disse:

– É o país da canção de Mignon. É tá que floresce a laranjeira...

O gordo Meriskoff, doutor alemão pela Universidade de Bona, chanceler da Legação, homem de poesia e de comentário, observou com respeito:

– Generala, o doce país de Mignon é a Itália: "Conheces tu a terra privilegiada onde a laranjeira dá flor?" O divino Goethe referia-se à Itália, Italia mater... A Itália será o eterno amor da humanidade sensível!

– Eu prefiro a França! – suspirou a esposa do primeiro-secretário, uma bonecazinha sardenta, de cabelo arruivascado.

– Ah! a França!... – murmurou um adido, revirando um bugalho de olho terníssimo.

O gordo Meriskoff ajeitou os óculos de oiro:

– A França tem um mal, que é a Questão Social...

– Oh! a Questão Social! – rosnou sombriamente Camilloff.

– Ah! a Questão Social! ... – considerou ponderosamente o adido.

E discreteando com tanta sapiência, chegámos por fim ao café.

Au descer ao jardim, a generala, apoiando-se sentimentalmente ao meu braço, murmurou-me junto à face:

– Ai, quem me dera viver nesses países apaixonados, onde verdejam os laranjais!..

– É lá que se ama, generala – segredei-lhe eu, levando-a docemente para a escuridão dos sicômoros...

V

Foi necessário todo um longo Verão para descobrir a província onde residira o defunto Ti Chin-Fu!

Que episódio administrativo tão pitoresco, tão chinês! O serviçal Camilloff, que passava o dia inteiro a percorrer os yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de conhecer a morada de um velho mandarim não encobria uma conspiração contra a segurança do Império; e depois foi-lhe ainda preciso jurar que não havia nesta curiosidade um atentado contra os ritos sagrados! Então, satisfeito, o príncipe Tong permitiu que se fizesse o inquérito imperial: centenares de escribas empalideceram noite e dia, de pincel na mão, desenhando relatórios sobre papel de arroz; misteriosas conferências sussurraram incessantemente por todas as repartições da cidade Imperial, desde o Tribunal Astronómico até ao Palácio da Bondade Preferida; e uma população de coolies transportava da Legação russa para os quiosques da Cidade Interdita, e daí para o Pátio dos Arquivos, padiolas estalando ao peso de maços de documentos vetustos... 

Quando Camilloff perguntava pelo resultado, vinha-lhe a resposta satisfatória que se estavam consultando os Livros Santos de Lao-Tsé, ou que se iam explorar velhos textos do tempo de Nor Ha-Chu. E para calmar a impaciência bélica do russo, o príncipe Tung remetia, com estes recados subtis algum substancial presente de confeitos recheados, ou de gomos de bambu em calda de açúcar...

Ora enquanto o general trabalhava com fervor para encontrar a família Ti Chin-Fu – eu ia tecendo horas de seda e oiro (assim diz um poeta japonês) aos pés pequeninos da generala...

Havia um quiosque no jardim sob os sicômoros, que se denominava, à maneira chinesa, do Repouso Discreto: – ao lado um arroio fresco ia cantando docemente sob uma pontezinha rústica pintada de cor-de-rosa. As paredes eram apenas um cadeado de bambu fino forrado de seda cor de ganga: o sol, passando através delas, fazia uma luz sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divã de seda branca, de uma poesia de nuvem matutina, atraente como um leito nupcial. Aos cantos, em ricas jarras transparentes da época Yeng, erguiam-se, na sua gentileza aristocrática, lírios escarlates do Japão. Todo o soalho estava recoberto de esteiras finas de Nanquim; e junto à janela rendilhada, sobre um airoso pedestal de sândalo, pousava aberto ao alto um leque formado de lâminas de cristal separadas, que a aragem entrando fazia vibrar, numa modulação melancólica e terna.

As manhãs do fim de Agosto em Pequim são muito suaves; já erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora o conselheiro Meriskoff, os oficiais da Legação, estavam sempre na Chancelaria fazendo a mala para São Petersburgo.

Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na ponta das babouches de cetim as ruazinhas areadas do jardim, ia entreabrir a porta do Repouso Discreto:

– Mimi?

E a voz da generala respondia, suave como um beijo:

– All right...

Como ela era linda vestida de dama chinesa! Nos seus cabelos levantados alvejavam flores de pessegueiro; e as sobrancelhas pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nanquim. A camisinha de gaze, bordada a soutache de filigrana de oiro, colava-se aos seus seios pequeninos e direitos: vastas, fofas calças de foulard cor de rosa de ninfa, que lhe davam uma graça de serralho, recaíam sobre o tornozelo fino, coberto de meia de seda amarela: – e apenas três dedos da minha mão cabiam na sua chinelinha...

Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novgorod; e fora educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabelo empoado, e parecia a grossa litografia cossaca de uma dama galante de Versalhes...
–––––––––––

Continua…

Fonte:
http://leituradiaria.com 

Clássicos do Cancioneiro Popular (A Vida de Pedro Cem)


Impressa em Recife, junho de 1932
–––––––

 Vou narrar agora um fato
 Que há cinco séculos se deu,
 De um grande capitalista
 Do continente europeu,
 Fortuna que como aquela,
 Ainda não apareceu.

 Pedro Cem, era o mais rico,
 Que nasceu em Portugal,
 Sua fama enchia o mundo
 Seu nome anda em geral,
 Não casou-se com rainha
 Por não ter sangue real.

 Em prédios, dinheiro e bens
 Era o mais rico que havia,
 Nunca deveu a ninguém
 Todo mundo lhe devia,
 Balanço em sua fortuna
 Querendo dar não podia.

 Em cada rua ele tinha
 Cem casas para alugar,
 Tinha cem botes no porto
 E cem navios no mar,
 Cem lanchas e cem barcaças,
 Tudo isto a navegar.

 Tinha cem fábricas de vinho
 E cem alfaiatarias,
 Cem depósitos de fazendas
 Cem moinhos e cem padarias
 E tinha dentro do mar,
 Cem currais de pescarias.

 Em cada país do mundo
 Possuía cem sobrados,
 Em cada banco ele tinha
 Cem contos depositados,
 Ocupava mensalmente
 Dezesseis mil empregados.

 Diz a história aonde eu li
 O todo desse passado,
 Que Pedro Cem nunca deu
 Uma esmola a um desgraçado.
 Não olhava para um pobre,
 Nem falava com criado.

 Uma noite teve um sonho
 Um rapaz o avisava
 Que aquele orgulho dele
 Era quem o castigava
 Aquela grande fortuna
 Assim como veio voltava.

 Ele acordou agitado
 Pelo sonho que tinha tido,
 Que rapaz seria aquele?
 Que lhe tinha aparecido
 Depois pensou, ora! Sonho,
 É devaneio do sentido.

 Um dia, no meio da praça
 Ele a uma moça encontrou,
 Essa vinha quase nua,
 Aos seus pés se ajoelhou
 Dizendo: senhor? Olhai!
 O estado em que estou.

 Ele torceu para um lado
 E disse: minha senhora?
 Olhe a sua posição!...
 E veja o que fez agora
 Reconheça o seu lugar,
 Levante-se e vá embora

 Oh! Senhor! Por esse sol
 Que de tão alto flutua,
 Lembrai-vos que tenho fome
 Estou aqui quase nua,
 Sou obrigada a passar,
 Nesse estado em plena rua.
 Ele repleto de orgulho
 Nem deu ouvido, saiu,
 A pobre ergueu-se chorando
 Chegou adiante caiu,
 Vinha passando uma dama
 Que com o manto a cobriu.

 Era a marquesa de Évora
 Uma alma lapidada,
 Tirando o seu rico manto
 Cobriu essa desgraçada,
 Ali conheceu que a pobre
 Foi pela fome postrada.

 Levante-se minha filha
 E pegou-lhe pela mão,
 Dizendo a criada a ela:
 Vá ali comprar um pão
 Que a essa pobre infeliz,
 Falta alimentação.

 Entregando-lhe uma bolsa
 Com quarenta e dois mil réis,
 Apenas tirou dali
 Um diploma e uns papéis
 Não consentindo que a moça
 Se ajoelhasse aos seus pés.

 E com aquela quantia
 Ela comprou um tear,
 Tinha mais duas irmãs
 Foram as três trabalhar
 Dali em diante mais nunca,
 Faltou-lhe com que passar.

 Vamos agora tratar
 Pedro Cem como ficou,
 E o nervoso que sentiu
 Uma noite que sonhou
 Que um homem lhe apareceu
 E disse olhe bem quem eu sou,

 Que tens feito do dinheiro 
 Que tomaste emprestado?
 Meu senhor mandou saber
 Em que o tens empregado?
 E por qual razão cumpriu
 As ordens que ele tem dado?

 Ele perguntou no sonho
 Mas que dinheiro eu tomei,
 Até aos próprios monarcas
 Dinheiro muito emprestei,
 O vulto zombando dele
 Disse: quem tu és eu sei.

 Que capital tinhas tu
 Quando chegaste ao mundo?
 Chegaste nu e descalço
 Como o bicho mais imundo
 Hoje queres ser tão nobre,
 Sendo um simples vagabundo.

 E metendo a mão no bolso
 Tirou dele uma mochila,
 Dizendo é esta a fortuna
 Que tu hás de possuí-la,
 Farás dela profissão,
 Pedindo de vila em vila.

 Pedro Cem sonhando disse:
 Ave agoureira te some
 Tua presença me perturba
 Tua frase me consome
 De qual mundo tu vieste?
 Diz-me por favor teu nome.

 Meu nome, disse-lhe o vulto
 És indigno de saber,
 Meu grande superior
 Proibiu-me de dizer.
 Apenas faço o serviço,
 Que ele me manda fazer.

 Despertando Pedro Cem
 Daquilo contrariado
 Ter dois sonhos quase iguais
 Ficou impressionado,
 Resolveu contrafazer,
 E ficar reconcentrado.

 Pensou em tirar por ano
 Daquela grande riqueza
 Sessenta contos de réis
 E dar de esmola à pobreza
 Depois refletindo, disse:
 Não me dá maior fraqueza

 Porque ainda mesmo Deus
 Querendo me castigar,
 Não afundará num dia
 Meus cem navios no mar,
 As cem fazendas de gado,
 Custarão a se acabar.

 As cem fábricas de tecidos
 Que tenho funcionando,
 Os parreirais de uvas
 Que estão todos safrejando,
 Cem botes que tenho no porto
 Todo dia trabalhando.

 Cem armazéns de fazendas
 As cem alfaiatarias,
 As cem fundições de ferro
 Cem currais de pescarias
 As cem casas alugadas,
 Cem moinhos, cem padarias.

 E as centenas de contos
 Nos bancos depositados,
 E tudo isso em poder
 De homens acreditados
 Ainda Deus querendo isso
 Seus planos eram errados

 Pedro Cem naquela hora
 Estava impressionado,
 Quando aproximou-se dele
 O seu primeiro criado,
 E disse: aí tem um homem,
 Diz vos trazer um recado.

 Mande que entre a pessoa
 Ele ao criado ordenou:
 Era um marinheiro velho
 Chegando ali o saudou,
 Que novas traz, meu amigo?
 Pedro Cem lhe perguntou.

 Disse o velho marinheiro:
 Venho-vos participar,
 Que dez navios dos vossos
 Ontem afundaram no mar
 Morreram as tripulações
 Só eu me pude salvar.

 Que navios foram esses?
 Perguntou-lhe Pedro Cem,
 Respondeu o marinheiro:
 Foi Tejo e Jerusalém
 E Douro e Penafiel
 Os outros eu não sei bem.

 Aquela inda estava ali
 Outro portador bateu
 O empregado das vacas
 Contou o que sucedeu;
 Incendiaram os cercados
 E todo o gado morreu.

 Pedro Cem nada dizia
 Ficando silencioso,
 Apenas disse: na terra
 Não há homem venturoso
 Quem se julgar mais feliz
 É pior que cão leproso.

 Chegou outro portador
 O empregado da vinha,
 Disse o depósito estourou
 Vazou o vinho que tinha
 Pedro Cem disse: meu Deus!...
 Que sorte triste esta minha.

 Saiu aquele entrou outro
 Era um cônsul norueguês,
 Disse nos mares do norte
 Andava um pirata inglês,
 Noventa navios vossos
 Tomou ele de uma vez.

 Meu Deus!... Meu Deus!... que fiz eu
 Exclamava Pedro Cem
 Não há homem nesse mundo
 que possa dizer vou bem,
 quando menos ele espera
 A negra desgraça vem.

 Dos cem navios que tinha
 Alguns foram afundados,
 E outros pelos piratas
 Nos mares foram tomados
 Acrescentou a pessoa:
 Vinham todos carregados.

 Ali mesmo veio o mestre
 Da barca Flor do Mundo
 Esse fitou Pedro Cem
 Com um silêncio profundo
 Depois disse: senhor marquês?!
 Dez barcaças foram ao fundo

 Quatros vinham carregadas
 Com bacalhau e azeite,
 Duas vinham da Suécia
 Com queijo, manteiga e leite,
 De todas as mercadorias
 Não tem uma que se aproveite.

 Quatro das dez que afundaram
 Traziam pérola e metal,
 Só da ilha da Madeira
 Vinham um milhão de coral
 Topázio, rubi, brilhante,
 Ouro, esmeralda e cristal.

 Pedro Cem baixou a vista
 Nada pôde refletir
 Exclamou que faço eu?
 Devo deixar de existir,
 Mas matando-me não vejo,
 Isso até onde pode ir.

 Chegou o moço do campo
 Tremendo e muito assustado
 E disse: senhor marquês
 Venho aqui horrorizado,
 Deu murrinha nas ovelhas
 E mal triste em todo gado.

 Naquele momento entrou
 Um rapaz auxiliar,
 Esse puxando um papel
 Disse: venho procurar,
 Tudo quanto se perdeu
 Na barca Ares do Mar.

 Pedro Cem perguntou quanto
 Tirou o moço uns papéis.
 Que se lia entre brilhantes
 Pulseiras, colares, anéis,
 Um milhão e quatrocentos
 E vinte contos de réis.

 Entrou outro auxiliar
 Disse eu quero pagamento,
 Por tudo que se perdeu
 No navio Chave do Vento
 Que vinha da América do Norte
 Com grande carregamento

 Chegou um tabelião
 Dá licença senhor Marquês?
 Venho lhe participar
 Que o grande banco francês,
 Dois alemães, três suíços
 Quebraram todos de vez

 Lá se foi minha fortuna
 Exclama Pedro Cem,
 Ontem fui milionário
 Hoje não tenho um vintém
 Só mesmo na campa fria,
 Eu hoje estaria bem.

 Dando balanço nos bens
 Quis até desesperar.
 Tudo quanto possuía
 Não dava para pagar
 Nem pela décima parte
 Os prejuízos do mar.

 Exclamava: oh! Pedro Cem
 Que será de ti agora!
 No pouco que me restava
 A justiça fez penhora,
 Pedro Cem de agora em diante
 Vai errar de mundo afora.

 Carpir esta sorte dura
 que a desventura me deu,
 Talvez muitas vezes vendo
 Aquilo que já foi meu,
 Em lugar que não se saiba
 Quem neste mundo fui eu.

 Ali no terraço mesmo
 Forrando o chão se deitou,
 As onze e meia da noite
 O sonho conciliou
 No sono sonhando viu
 O rapaz que lhe falou.

 Aquele perguntou, Pedro
 Como te foste de empresa,
 Já estás conhecendo agora
 Quanto é grande a natureza?
 Conheceste que teu orgulho
 Foi quem te fez a surpresa?

 Metendo a mão na algibeira
 Dali um quadro tirou.
 Onde havia dois retratos
 Que a Pedro Cem os mostrou
 Conheces esses retratos
 O rapaz lhe perguntou.

 Via-se naquele quadro
 Uma dama bem vestida
 Pedro Cem disse por sonho:
 Essa é minha conhecida
 A outra uma moça pobre
 Com fome no chão caída.

 Perguntava-lhe o rapaz:
 Quem é esta conhecida
 É a marquesa de Évora
 E esta que está caída?
 Essa? É uma miserável,
 Dessa classe desvalida.

 O rapaz puxa outro quadro
 Verde cor de esperança,
 Onde via-se uma monarca
 Suspendendo uma balança
 Estava pesando nela
 Caridade e esperança.

 Mostrou-lhe mais quatros quadros
 Que Pedro Cem conheceu,
 Tinha a Marquesa de Évora
 Quando a bolsa a pobre deu
 Que estirou a mão dizendo:
 Toma este dinheiro que é teu.

 No quadro via-se um anjo
 Assim nos diz a história,
 Com uma flor onde se lia:
 jardim da eterna glória,
 Presenteado por Deus,
 Esta palma de vitória.

 Quem planta flores tem flores
 Quem planta espinho tem espinho
 Deus mostra ao espírito fraco
 O que nega ao mesquinho,
 A virtude é um negócio
 A boa ação um pergaminho.

 Depois que ele acordou
 Triste impressionado
 Interrogava si próprio
 Porque sou tão desgraçado
 Achou na cama a mochila,
 Com que tinha sonhado.

 Será esta a tal mochila
 Que o fantasma me mostrou;
 É esta que o homem em sonho
 Em desespero exclamou:
 Na noite em que a cruel sina,
 Por sonho me visitou.

 De tudo restava apenas
 A casa de moradia,
 Essa mesma embargaram
 Antes de findar-se o dia
 Então disse Pedro Cem
 Cumpriu-se a profecia.

 Lançando a mão na mochila
 Saiu no mundo a vagar
 Implorando a caridade
 Sem alguém nada lhe dar
 Por uma cinco ou seis vezes
 Tentou se suicidar.

 Ele dizia nas portas:
 Uma esmola a Pedro Cem
 Que já foi capitalista
 Ontem tem, hoje não tem
 A quem já neguei esmola
 Hoje a mim nega também.

 Foi ele cair com fome
 Em casa daquela moça,
 Quando foi a porta dele
 Com fome, frio e sem força,
 Que ele não quis olhá-la
 A marquesa deu-lhe a bolsa.

 A criada o viu cair
 Exclamou: minha senhora!...
 Ande ver um miserável,
 Que caiu de fome agora,
 Onde? Perguntou a moça
 Ana disse: Ali fora.

 A moça disse à criada:
 Que trouxesse leite e pão
 Aproximando-se dele
 Disse: o que tens meu irmão
 Bateste em todas as portas
 Não encontraste cristão.

 Senhora! Se vós soubesseis
 Quem é esse desgraçado
 Não me abririas a porta
 Nem me davas esse bocado
 Respondeu ela: conheço
 Mas eu esqueço o passado.

 Me recordo que a marquesa
 Fez minha felicidade,
 Viu-me caída com fome
 Teve de mim piedade,
 Deu-me com que comprar pão
 E esta propriedade.

 Pedro Cem se levantou
 Disse obrigado e saiu
 Andando duzentos passos
 Tombou por terra, caiu
 E umas frases tocantes,
 Em alta voz proferiu:

 "Vai unir-se à terra fria
 O que não soube viver
 Soube ganhar a fortuna
 Mas não na soube perder
 Se tenho estudado a vida
 Tinha aprendido a morrer.

 Foi como a corrente d’água
 Que pela serra desceu,
 Chegou o verão a secou
 Ela desapareceu,
 Ficando só os escombros
 Por onde a água correu.

 Eu tive tanta fortuna
 Não socorria ninguém,
 A todos que me pediram
 Eu nunca dei um vintém,
 Hoje preciso pedir,
 Não há quem me dê também.

 Não desespero, pois sei
 Que grandes crimes hoje espio,
 Nasci em berços dourados
 Dormi em colchão macio
 Hoje morro como os brutos
 Neste chão sujo e frio.

 Foram as últimas palavras
 Que ali pronunciou,
 Margarida, aquela moça
 Que a marquesa embrulhou
 Botou-lhe a vela na mão,
 Ele ali mesmo expirou.

 A justiça examinando
 Os bolsos de Pedro Cem,
 Encontrou uma mochila
 E dentro dela um vintém
 E um letreiro que dizia:
 Ontem teve e hoje não tem.

Fonte:
Cascudo, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de Janeiro, Ediouro, sd. Disponível em Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário