quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Ronaldo Monte (O Homem que Lê)

 W.J. Solha
Vamos falar de Solha. Tudo bem, mas de qual Solha? Porque temos o Solha romancista, o poeta, o ensaísta, o cronista. Temos também o Solha ator de teatro e cinema, o letrista, o pintor... Mas tem um determinado Solha que é maior do que todos esses outros: o Solha leitor.

Um outro Solha, o conversador, me contou que, há muito tempo, uma luz acesa, numa constância sem igual, assombrava aquela gente da cidade de Pombal. Debaixo dessa lâmpada estava o bancário W. J. Solha que varava as noites devorando todos os livros que lhe caíam nas mãos. Ele estava encantado com a qualidade cultural das pessoas da pequena cidade paraibana que lhe emprestavam os clássicos nacionais e estrangeiros.

Até que um dia, por conta do acúmulo de noites insones, o leitor voraz desmaiou a caminho do expediente no Banco do Brasil. Até hoje Solha lê. E lê muito. E porque muito lê, muito escreve. E escreve também sobre o que lê. Um dia desses, eu estava no quiosque dos Correios do Bairro dos Estados, postando uns exemplares do Baú do anão, meu último livro de contos. Como acontece de vez em quando, lá estava Solha com um monte de exemplares do seu último livro (não sei se ainda é o último) para enviar a alguns privilegiados. Aproveitamos para trocar figurinhas.

Dei a ele o meu Baú e ganhei um exemplar da sua coletânea Sobre 50 livros (brasileiros/contemporâneos) que eu gostaria de ter assinado. Deixei o livro na cabeceira para ir mordendo aos poucos. São comentários, alguns tendendo para o ensaio, sobre obras das mais diversas categorias. Livros de poemas, contos, romances e memórias, recebem o olhar calejado de Solha, mostrando o que o leitor comum não vê. O mais importante deste livro é que Solha não se deteve a resenhar ou comentar apenas autores consagrados que viessem corroborar o seu refinamento de leitor. Tem gente que somente uns poucos leitores paraibanos conhecem. Claro que não concordo com algumas escolhas, mas isto não tem a menor importância. Mesmo porque sou autor de um dos livros comentados, o romance Memória do fogo. E para mim é um grande privilégio ter roubado algumas horas de sono deste leitor inveterado.
 
Fonte:
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com.br/2013/02/o-homem-que-le-ronaldo-monte.html#more

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 7

XIII

AO MAR


Já tinha desfilado a procissão e ficara a rua deserta, que ainda lã estava no mesmo lugar Aires de Lucena quedo como uma estátua.

Seus espíritos se tinham afundado em um pensamento que os submergiam como em um abismo. Lembrara-se que também fizera um voto e ainda não o havia cumprido, dentro do ano que estava quase devolvido.

Horrorizava-o a idéia do castigo, que talvez já estava iminente. Tremia não por sua pessoa, mas por Maria da Glória, que a Virgem Santíssima ia levar, como São Miguel secara a mão que antes havia sarado.

Quando o corsário deu acordo de si e viu onde se achava, correu à praia, saltou na primeira canoa de pescador, e remou direito para a escuna, cujo garboso perfil se desenhava no horizonte iluminado pelos arrebóis da tarde.

- Prepara para largar! Leva âncora!... gritou ele apenas pisou no tombadilho.

Acudiu a maruja à manobra com a presteza do costume e aquele fervor que sentia sempre que o comandante a conduzia ao combate.

No dia seguinte ao amanhecer tinha a escuna desaparecido do porto, sem que houvesse noticia dela, ou do destino que levara.

Quando em casa de Duarte de Morais soube-se da nova, perderam-se todos em conjeturas acerca dessa partida súbita, que nada explicava; pois não havia indícios de andarem pichelingues na costa, e nem se falava de qualquer expedição contra aventureiros que porventura se tivessem estabelecido em terras da colônia.

Maria da Glória não quis acreditar na partida de Aires, e tomou por gracejo a notícia.

Afinal rendeu-se à evidência, mas convencida de que ausentara-se o corsário por alguns dias, senão horas, no ímpeto de combater algum pirata, e não tardaria voltar.

Sucederam-se porém os dias, sem que houvesse novas da escuna e de seu comandante. A esperança foi murchando no coração da menina, como a flor crestada pelo frio, e afinal desfolhou-se.

Apagara-se-lhe o sorriso dos lábios, e o brilho dos lindos olhos empanou-se com o soro das lágrimas choradas em segredo.

Assim foi se finando de saudades pelo ingrato que a tinha desamparado levando-lhe o coração.

Desde muito quê a gentil menina estremecia o cavalheiro; e daí nascera o soçobro que sentia em sua presença. Quando a cruel enfermidade assaltou-a, e que ela prostrada no leito, teve consciência de seu estado, o primeiro pensamento foi pedir a Nossa Senhora da Glória que não a deixasse morrer, sem dizer adeus àquele por quem somente quisera viver.

Não só ouvira seu rogo a Virgem Santíssima, como a restituíra à vida e ternura do querido de sua alma. Este era o segredo da novena que se tinha feito logo depois do seu restabelecimento.

A aflição de Aires durante a moléstia da menina, os desvelos que mostrava por ela, ajudando Úrsula na administração dos remédios e nos incessantes cuidados que exigia a convalescença, mas principalmente a ingênua expansão d'alma, que em crises como aquela, se desprende das misérias da terra, e paira em uma esfera superior: tudo isso rompera o enleio que havia entre os dous corações, e estabelecera uma doce correspondência e intimidade entre eles.

Nesse enlevo de querer e ser querida, vivera Maria da Glória todo o tempo depois da moléstia. Qual não foi pois o seu desencanto quando Aires se partiu sem ao menos dizer-lhe adeus, é quem sabe se para não mais voltar.

Cada dia que volveu foi para ela o suplício de uma esperança a renascer a cada instante para morrer logo após no mais cruel desengano.

Cerca de um ano era passado, em São Sebastião não havia novas da escuna Maria da Glória.

Para muita gente passava como certa a perda do navio com toda a tripulação: e em casa de Duarte de Morais já se trazia luto pelo amigo e protetor da família.

Maria da Glória porém tinha no coração um pressentimento de que Aires ainda vivia, embora longe dela, e tão longe que nunca mais o pudesse ver neste mundo.

Na crença do povo miúdo o navio do corsário andava no oceano encantado por algum gênio do mar; mas havia de aparecer quando quebrasse o encanto: o que tinha de suceder pela intrepidez e arrojo do destemido Lucena.

Essa versão popular ganhou mais força com os contos da maruja de um navio da carreira das Índias, que fazia escala em São Sebastião, vindo de Goa.

Referiam os marinheiros que um dia, sol claro, passara perto deles um navio aparelhado em escuna, cuja tripulação compunha-se toda de homens vestidos de compridas esclavinas brancas e marcadas com uma cruz negra no peito.

Como lhes observassem que talvez seriam penitentes, que iam de passagem, afirmavam seu dito, assegurando que os viram executar a manobra mandada pelo comandante; também vestido da mesma maneira.

Acrescentavam os marinheiros que muitos dias depois, em uma noite escura é de calmaria, tinham avistado ao largo o mesmo navio a boiar sem governo; mas todo resplandecente das luminárias dos círios acesos em capelas, e à volta, de uma imagem.

A tripulação, vestida de esclavina, rezava o terço; e as ondas banzeiras gemendo na proa, acompanhavam o canto religioso, que se derramava pela imensidade dos mares.

Para o povo, eram estas as provas evidentes de estar o navio encantado; e se misturava assim o paganismo com a devoção cristã, tinha aprendido este disparate com bom mestre, o grande Camões.

XIV

A VOLTA


Um ano, de dia a dia, andou Aires no mar.

Desde que se partira do Rio de Janeiro, não pusera o pé em terra, nem a avistara senão o tempo necessário para enviar um batel em busca das provisões necessárias.

Na tarde da saída, deixara-se Aires ficar na popa do navio até que de todo sumiu-se a costa; e então derrubara a cabeça aos peitos e quedara-se até que a lua assomou no horizonte.

Era meia-noite.

Ergueu-se e vestindo uma esclavina, chamou a maruja, a quem dirigiu estas palavras:

- Amigos, vosso capitão tem de cumprir um voto e fazer uma penitência. O voto é não tornar a São Sebastião antes de um ano. A penitência é passar esse ano todo no mar sem pisar em terra, assim vestido, e em jejum rigoroso, mas combatendo sempre os inimigos da fé. Vós não tendes voto a cumprir nem pecado a remir, sois livres, tomai o batel, recebei o abraço de vosso capitão, e deixai que se cumpra a sua sina.

A maruja abaixou a cabeça e ouviu-se um som rouco; era o pranto a romper dos peitos duros e calosos da gente do mar:

- Não há de ser assim! clamaram todos. Juramos acompanhar o nosso capitão na vida e na morte; não o podemos desamparar, nem ele despedir-nos para negar à gente a sua parte nos trabalhos e perigos. Sua sina é a de todos nós, e a deste navio onde havemos de acabar, quando o Senhor for servido.

Abraçou-os o corsário; e ficou decidido que toda a tripulação acompanharia seu comandante no voto e na penitência.

No dia seguinte cortaram os marujos o pano de umas velas rotas que tiraram no porão e arranjaram esclavinas para vestirem, fazendo as cruzes com dous pedaços de corda atravessadas.

Ao pôr do sol cantavam o terço ajoelhados à imagem de Nossa Senhora da Glória, ao qual levantou-se um nicho com altar, junto do mastro grande, a fim de acudirem mais prontos à manobra do navio.

Ao entrar de cada quarto, também rezavam a ladainha, à imitação das horas canônicas dos conventos.

Se porém sucedia aparecer alguma vela no horizonte e o vigia da gávea assinalava um pichelingue, de momento despiam as esclavinas, empunhavam as machadinhas, e saltavam à abordagem.

Destroçado o inimigo, tornavam à penitência e prosseguiam tranqüilamente na reza começada.

Quando completou um ano, que tinha a escuna deixado o porto de São Sebastião, à meia-noite, Aires de Lucena aproou para terra, e soprando fresca a brisa de leste, ao romper d'alva começou a desenhar-se no horizonte a costa do Rio de Janeiro.

Por tarde, a escuna corria ao longo da praia de Copacabana, e com as primeiras sombras da noite largava o ferro em uma abra deserta que ficava próxima da Praia Vermelha.

Saltou Aires em terra, deixando o comando a Bruno, com recomendação de entrar barra dentro ao romper do dia; e a pé seguiu para a cidade pelo caminho da praia, pois ainda se não tinha aberto na mata-virgem da Carioca a picada que mais tarde devia ser a rua aristocrática do Catete.

Ia sobressaltado o corsário com o que podia ter acontecido durante o ano de sua ausência.

Sabia ele o que o esperava ao chegar? Tornaria a ver Maria da Glória, ou lhe teria sido arrebatada, apesar da penitência que fizera?

As vezes parecia-lhe que ia encontrar a mesma cena da vez passada, e achar a moça de novo prostrada no leito da dor, mas desta para não mais erguer-se; porque a Senhora da Glória para o punir não ouviria mais a sua prece.

Eram oito horas quando Aires de Lucena chegou à casa de Duarte de Morais.

A luz interior filtrava pelas frestas das rótulas; e ouvia-se rumor de vozes, que falavam dentro. Era ali a casa de jantar, e Aires espiando viu à mesa toda a família reunida, Duarte de Morais, Úrsula e Maria da Glória, os quais estavam no fim da ceia.

Passado o soçobro de rever a menina, Aires foi à porta e bateu. Duarte e a mulher se entreolharam surpresos daquele bater fora de horas; Maria da Glória porém levou a mão ao seio, e disse com um modo brando e sereno:

- É ele, o Senhor Aires, que está de volta!

Que lembrança de menina! exclamou Úrsula.

- Não queres acabar de crer, filha, que meu pobre Aires há muito que está com Deus! observou Duarte melancólico.

- Abra o pai! respondeu Maria da Glória mansamente.

Deu ele volta à chave, e Aires de Lucena apertou nos braços ao amigo atônito de o ver depois de por tanto tempo o haver por morto.

Grande foi a alegria de Duarte de Morais e a festa de Úrsula com a volta de Aires.

Maria da Glória porém, se alguma cousa sentiu, não deu a perceber; falou com o cavalheiro sem mostra de surpresa, nem de contentamento, como se ele a tivesse deixado na véspera.

Este acolhimento indiferente confrangeu o coração de Aires, que ainda mais se afligia notando a palidez da moça, a qual parecia estar-se definhando como a rosa, a quem a larva devora o seio.
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continua

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Nemésio Prata (Ao Poeta do Amanhecer!)

Bem cedo, ao quebrar da barra,
a nuvem tangida ao léu
fez lembrar-me de um alguém
que hoje só trova no céu:
nosso poeta potiguar,
dos Macedos, o Ademar,
nosso grande menestrel!

O Poeta do Amanhecer,
agora faz poesia
no meio dos querubins
levando muita alegria
através dos versos seus
ao coração do seu Deus;
como ele bem o queria!

Curta em paz grande poeta
sua nova moradia,
faça trovas e poemas
como aqui você fazia,
mas nos mande, via sonhos,
pois os dias são tristonhos
sem a sua poesia!

Fontes:
O Autor
(Fortaleza/CE)
Foto de Ademar Macedo sobre foto de Marcos Estrella, Amanhecer no Rio, no jornal O Globo.

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 1

Estas notas são dedicadas aos meus patrícios que desejarem ver o nosso céu povoado pelos Pássaros do Progresso

Nova York, 15 de Maio de 1918.

Meu caro Sr. Santos-Dumont

O Aero Club da América envia-nos uma mensagem de congratulações pela inauguração do primeiro Serviço Postal Aéreo neste País. Confiamos em que a Linha Postal Aérea inaugurada entre Nova York, Filadélfia e Washington, que vos leva esta mensagem, será um primeiro passo para uma rede de linhas postais aéreas que cobrirá o mundo e será fator predominante na obra de reconstrução que se seguirá à guerra, quando os exércitos aliados houverem alcançado a vitória gloriosa e final pela causa da liberdade universal.

Ao rápido desenvolvimento da navegação aérea no continente seguir-se-ão, em breve, extensos vôos sobre os mares, e teremos grandes aeroplanos cruzando o Atlântico, os quais facilitarão não só o estabelecimento da linha postal aérea transatlântica, como a entrega de aeroplanos dos Estados Unidos aos nossos aliados.

O Aero Club da América, que tem propugnado pelo desenvolvimento da aeronáutica desde os vossos primeiros ensaios, ativado e auxiliado por todos os meios a criação do serviço postal aéreo desde 1911, sente-se altamente compensado com o estabelecimento desse novo serviço através dos ares.

Alan R. Hawlei (Presidente)


Esta carta veio encher de legítima alegria o meu coração que, há já quatro anos, sofre com as notícias da mortandade terrível causada, na Europa, pela aeronáutica. Nós, os fundadores da locomoção aérea no fim do século passado, tínhamos sonhado um futuroso caminho de glória pacífica para esta filha dos nossos desvelos. Lembro-me perfeitamente que naquele fim de século e nos primeiros anos do atual, no Aero Club de França que foi, pode-se dizer "O ninho da aeronáutica" e que era o ponto de reunião de todos os inventores que se ocupavam desta ciência, pouco se falou em guerra; prevíamos que os aeronautas poderiam, talvez, no futuro, servir de esclarecedores para os Estados Maiores dos exércitos, nunca, porém, nos veio à idéia que eles pudessem desempenhar funções destruidoras nos combates. Bastante conheci todos esses sonhadores, centenas dos quais deram a vida pela nossa idéia, para poder agora afirmar que jamais nos passou pela mente, pudessem, no futuro, os nossos sucessores, ser "Mandados" a atacar cidades indefesas, cheias de crianças, mulheres e velhos e, o que é mais, atacar hospitais onde a abnegação e o humanitarismo dos rivais reúne, sob o mesmo teto e o mesmo carinho, os feridos e os moribundos dos dois campos. Pois bem, isso se repete há quatro longos anos, e quem o "manda fazer"? — O Kaiser!

Façamos, pois, votos pela vitória dos aliados; triunfem as idéias do Presidente Wilson e se extinga na terra o militarismo prussiano. Assim como com a Polônia atual a sociedade suprimiu os cidadãos armados, suprima as matanças da guerra o desejado Exército das Nações.

Confiante nesse futuro, reconfortou-me a mensagem do presidente do Aero Club da América, em que ouvi falar, de novo, da aeronáutica para fins pacíficos, realização de minhas íntimas ambições, sonho daqueles inventores que só viram no aeroplano um colaborador da felicidade dos homens.
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Creio, deveria ser chamada "época heróica da aeronáutica" a que compreende os fins do século passado e os primeiros anos do atual. Nela brilham os mais audaciosos arrojos dos inventores, que quase se esqueciam da vida, por muito se lembrarem de seu sonho.

Enchem-nos, hoje, do mais justo entusiasmo os atos de bravura dos aviadores do "front", como nos encherá de orgulho a notícia da travessia do Atlântico, que prevejo próxima.

Essa coragem, porém, que os consagra como heróis, creio, não é maior que a dos inventores, primeiros pássaros humanos, que, após heróica pertinácia em estudos de laboratório, se arrojaram a experimentar máquinas frágeis, primitivas, perigosas. Foram centenas as vítimas dessa audácia nobre, que lutaram com mil dificuldades, sempre recebidos como "malucos", e que não conseguiram ver o triunfo dos seus sonhos, mas para cuja realização colaboraram com o seu sacrifício, com a sua vida.

Não fosse a audácia, digna de todas as nossas homenagens, dos Capitães Ferber, Lilienthal, Pilcher, Barão de Bradsky, Augusto Severo, Sachet, Charles, Morin, Delagrange, irmãos Nieuport, Chavez e tantos outros — verdadeiros mártires da ciência — e hoje não assistiríamos, talvez, a esse progresso maravilhoso da aeronáutica, conseguido, todo inteiro, à custa dessas vidas, de cujo sacrifício ficava sempre uma lição.

Penso, a maior parte dos meus leitores serão jovens nascidos depois dessa época, que já se vai tanto ensombreando na memória: suplico-lhes, pois, não se esquecerem destes nomes. A eles cabe, em grande parte, o mérito do que hoje se faz nos ares...

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A princípio tinha-se que lutar não só contra os elementos, mas também contra os preconceitos: a direção dos balões e, mais tarde, o vôo mecânico eram problemas "insolúveis".

Eu também tive a honra de trabalhar um pouco, ao lado destes bravos, porém o Todo Poderoso não quis que o meu nome figurasse junto aos deles. As primeiras lições que recebi de aeronáutica foram-me dadas pelo nosso grande visionário: Júlio Verne. De 1888, mais ou menos, a 1891, quando parti pela primeira vez para a Europa, li, com grande interesse, todos os livros desse grande vidente da locomoção aérea e submarina. Algumas vezes, no verdor dos meus anos, acreditei na possibilidade de realização do que contava o fértil e genial romancista; momentos após, porém, despertava-se, em mim, o espírito prático, que via o peso absurdo do motor a vapor, o mais poderoso e leve que eu tinha visto. Naquele tempo, só conhecia o existente em nossa fazenda, que era de um aspecto e peso fantásticos; assim o eram, também, os tratores que meu pai mandara vir da Inglaterra: puxavam duas carroças de café, mas pesavam muitas toneladas... Senti um bafejo de esperança quando meu pai me anunciou que ia construir um caminho de ferro para ligar a fazenda à estação da Companhia Mogiana; pensei que nestas locomotivas, que deviam ser pequenas, iria encontrar base para a minha máquina com que realizar as ficções de Júlio Verne. Tal não se deu; elas eram de aspecto ainda mais pesado. Fiquei, então, certo de que Júlio Verne era um grande romancista.
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Estava em Paris quando, na véspera de partir para o Brasil, fui, com meu pai, visitar uma exposição de máquinas no desaparecido "Palácio da Indústria". Qual não foi o meu espanto quando vi, pela primeira vez, um motor à petróleo, da força de um cavalo, muito compacto, e leve, em comparação aos que eu conhecia, e... funcionando! Parei diante dele como que pregado pelo destino. Estava completamente fascinado. Meu pai, distraído, continuou a andar até que, depois de alguns passos, dando pela minha falta, voltou, perguntou-me o que havia. Contei-lhe a minha admiração de ver funcionar aquele motor, e ele me respondeu: "por hoje basta". Aproveitando-me dessas palavras, pedi-lhe licença para fazer meus estudos em Paris. Continuamos o passeio, e meu pai, como distraído, não me respondeu.

Nessa mesma noite, no jantar de despedida, reunida a família, entre nós, dois primos de meu pai, franceses e seus antigos companheiros de escola, pediu-lhes ele que me protegessem, pois pretendia fazer-me voltar a Paris para acabar meus estudos. Nessa mesma noite corri vários livreiros; comprei todos os livros que encontrei sobre balões e viagens aéreas.
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Diante do motor a petróleo, tinha sentido a possibilidade de tornar reais as fantasias de Júlio Verne.

Ao motor a petróleo dei, mais tarde, todo inteiro, o meu êxito.

Tive a felicidade de ser o primeiro a emprega-lo nos ares.

Os meus antecessores nunca o usaram. Giffard adaptou o motor a vapor; Tissandier levou consigo um motor elétrico. A experiência demonstrou, mais tarde, que tinham seguido caminho errado.
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Uma manhã, em São Paulo, com grande surpresa minha, convidou-me meu pai a ir à cidade e, dirigindo-se a um cartório de tabelião, mandou lavrar escritura de minha emancipação. Tinha eu dezoito anos. De volta à casa, chamou-me ao escritório e disse-me: "Já lhe dei hoje a liberdade; aqui está mais este capital", e entregou-me títulos no valor de muitas centenas de contos. "Tenho ainda alguns anos de vida; quero ver como você se conduz: vai para Paris, o lugar mais perigoso para um rapaz. Vamos ver se você se faz um homem; prefiro que não se faça doutor; em Paris, com o auxílio de nossos primos, você procurará um especialista em física, química, mecânica, eletricidade, etc., estude essas matérias e não se esqueça que o futuro do mundo está na mecânica. Você não precisa pensar em ganhar a vida; eu lhe deixarei o necessário para viver..."
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Chegado a Paris, e com o auxílio dos primos, fui procurar um professor. Não poderia ter sido mais feliz; descobrimos o Sr. Garcia, respeitável preceptor, de origem espanhola, que sabia tudo. Com ele estudei por muitos anos.

Nos livros que comigo levara para o Brasil, li nomes de várias pessoas que faziam ascensões em balão, por ocasião de festas públicas. Eram as únicas que, então, se ocupavam da aeronáutica.

Sem nada dizer ao meu professor, nem aos meus primos, procurei no Anuário Bottin os nomes desses senhores, desejosos de fazer uma ascensão. Alguns já não se ocupavam mais do assunto, outros me apavoraram com os perigos de subir e com o exagero dos preços. Um, porém, houve que, após me informar de todos os meios, pediu-me mais de mil francos para levar-me consigo, devendo eu pagar, ainda, todos os estragos que fossem causados pelo balão na sua volta à terra.

Era ameaçadora a condição, pois esse senhor já uma vez tinha derrubado a chaminé de uma usina, outra vez, descera sobre a casa de um camponês e, incendiando-se o gás do balão, em contato com a chaminé, pusera fogo à casa...

Vieram-me à memória os conselhos de meu pai e os seus graves exemplos de sobriedade e economia. Ia eu gastar em algumas horas quase que a renda de um mês inteiro e, muito provavelmente, a renda de todo o ano!

Desanimei de fazer uma ascensão. Era muito complicado...
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Durante vários anos, estudei e viajei.

Segui com interesse, nos jornais ilustrados, a expedição de André ao Pólo Norte; em 1897, estava eu no Rio de Janeiro quando me chegou às mãos um livro em que se descrevia com todos os seus pormenores, o balão dessa expedição.

Continuava eu a trabalhar em segredo, sem coragem de pôr em prática as minhas idéias; tinha pouca vontade de arruinar-me. Esse livro, entretanto, do construtor Lachambre, esclareceu-me melhor e decidiu inabalavelmente minha resolução.

Parti para Paris...
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* *
— Quero subir em balão. Quanto me pedem por isso?

— Temos justamente um pequeno balão no qual o levaremos por 250 frs.

— Há muito perigo?

— Nenhum.

— Em quanto ficarão os estragos da descida?

— Isso depende do aeronauta; meu sobrinho, aqui presente, M. Machuron, que o acompanhará, tem subido dúzias de vezes e nunca fez estrago algum. Em todo caso, haja o que houver, o Sr. não pagará nada mais que os duzentos e cinqüenta francos e dois bilhetes de caminho de ferro para a volta.

— Para amanhã de manhã o balão!...

Tinha chegado a vez...
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* *
Fiquei estupefato diante do panorama de Paris visto de grande altura; nos arredores, campos cobertos de neve... Era inverno.

Durante toda a viagem acompanhei as manobras do piloto; compreendia perfeitamente a razão de tudo quanto ele fazia.

Pareceu-me que nasci mesmo para a aeronáutica. Tudo se me apresentava muito simples e muito fácil; não senti vertigem, nem medo.

E tinha subido...
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* *
De volta, em caminho de ferro, pois descêramos longe, transmiti ao piloto o meu desejo de construir, para mim, um pequeno balão.

Tive como resposta que a fábrica a que ele pertencia, tinha, havia pouco, recebido amostras de seda do Japão de grande beleza e peso insignificante.

No dia seguinte estava eu no atelier dos construtores.

Apresentaram-me projetos, mostraram-me sedas... Propuseram-me fazer construir um balão de 250 metros cúbicos...

Tomei a palavra: — O Sr. disse-me ontem que o peso dessa seda, depois de envernizada, é de tantas gramas; o gás hidrogênio puro eleva tal peso; desejo uma barquinha minúscula e, pelo que vi ontem, um saco de lastro me será bastante para passar algumas horas no ar; eu peso 50 quilos; conclusão: — quero um balão de cem metros cúbicos.

Grande espanto!

Creio mesmo que pensaram que eu era doido.

Alguns meses depois, o "Brasil", com grande espanto de todos os entendidos, atravessava Paris, lindo na sua transparência, como uma grande bola de sabão.

As suas dimensões eram: diâmetro 6 metros, volume 113 metros cúbicos, a seda empregada (113 metros quadrados) pesava 3"500, envernizada e pronta, 14 quilos. A rede envolvente e cordas de suspensão pesavam 1.800 gramas. A barquinha, 6 quilos. O guide-rompe (corda de compensação), comprido de 6 metros, pesava 8 quilos, uma ancorazinha, 3 quilos.

Os meus cálculos tinham sido exatos: parti com mais de um saco de lastro.

Este minúsculo "Brasil" despertou grande curiosidade. Era tão pequeno que diziam que eu viajava com ele dentro da minha mala!

Nele e em outros, fiz, em vários meses, amiudadas viagens, em que ia penetrando na intimidade do segredo das manobras aéreas.
––––––-
Continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Olivaldo Junior (Para o Amor que me Mata)

Não direi o quanto estou cansado e desterrado de mim.
Olivaldo


Faço, para o amor que me mata,
este modo de meter medo
em quem não tem medo de nada.

Nada, caro amor que me mata,
supera este mito que mora
tão fora da meta, tão na estrada,
que está mesmo na aurora,
o resto de estrelas, na alvorada.

Tudo, caro amor que promete,
separa este moço que muda
sem nada mudar e sem confete,
que este amor não me muda,
poeta de estrondos, tipo NET.

Fonte:
O Autor

António Ramos Rosa (A Palavra Poesia)

A Palavra "Poesia" não é para mim uma palavra densa, plena, isto é, uma palavra de significação inteiramente positiva. Há nela um vazio, uma névoa e uma tenuidade que se sobrepõe ao seu significado e o torna vago e quase imperceptível. Posso comparar esta impressão à sensação que sinto quando, à distância, olho os prédios altos e percepciono não a densidade dos seus moradores  mas o vazio infinito que anula todo o pretensiosismo da vida humana. A palavra "poesia" parece-me afogada irremediavelmente  num vazio que dilui a sua significação e a torna longínqua e apagada, quase desprovida de sentido.

Mas não será essa diluição semântica, observou Mário, o que a torna extremamente poética, uma vez que, assim, é mais aberta e susceptível de nos transmitir o que há de inexprimível na poesia? Sim talvez tenhas razão, admiti, mas essa palavra confrange-me não sei porquê. Sinto uma espécie de pudor ou vergonha, como se a poesia fosse uma matéria interdita e, de algum modo, inadmissível.

Se é assim, objectou Mário, o que há de vago nessa palavra anula  a pretensão ou imposição de um sentido dominante. Assim, o que há nela de impreciso vela o seu conteúdo e deixa– o indefinido. Por isso, essa palavra parece-me que não deveria suscitar nenhuma relutância porque ela própria é uma palavra pudica, porque é vaga e desprovida de um sentido positivo e determinado.

Olha, Mário, esta questão parece-me destituída de sentido, como se estivéssemos a discutir o sexo dos anjos. Porque não aceitar  simplesmente que o nome de poesia é um nome que nos transmite o seu conteúdo sem suscitar qualquer problema? E já agora, para contrabalançar a tendência teorizante dos nossos diálogos, proponho-te que falemos de assuntos mais circunstanciais e mais ligados à realidade imediata e particular. Estou a referir-me à minha experiência de poeta e não tanto no seu processo específico como no que respeita às suas determinantes externas e a algumas circunstâncias ou episódios da minha biografia enquanto poeta.

Mário disse-me então: estou perfeitamente de acordo contigo. E, se me permites, colocar-te-ei algumas questões relativas à  tua biografia de poeta. Em primeiro lugar, quero perguntar-te: como se processou em ti o início da prática da escrita poética? Foi um processo fácil e espontâneo ou uma elaboração difícil e dolorosa?

Respondi-lhe: tenho uma certa dificuldade em explicar-te o que me levou à prática da poesia. O que sei de uma forma clara é que comecei a escrever porque amava os poetas que lia e com os quais me identificava ao ponto de os querer imitar. Este processo de identificação e de imitação determinou não só os primeiros poemas que escrevi mas também todos ou quase todos os poemas que até agora escrevi. Não tenho qualquer receio em afirmar que a originalidade dos meus poemas, sobre a qual, aliás, não tenho dúvidas, não é resultante apenas da singularidade do sujeito que sou mas também da confluência de inúmeras leituras que me estimularam e foram sempre decisivas na minha formação poética.

Naturalmente, os meus primeiros poemas não possuiam nível poético e só mais tarde, depois dos vinte e cinco anos, logrei escrever poemas de uma certa qualidade, como, por exemplo, "O Boi da Paciência", que escrevi de um jacto, no primeiro andar do café  Chave de Ouro. Esse poema nasceu, inesperadamente, com uma violência e uma espontaneidade que me surpreenderam, e foi então  que o poeta que sou deu o seu primeiro passo.

Esse poema, como, aliás, outros que escrevi posteriormente, não poderia surgir se eu não tivesse lido deslumbradamente a obra poética de Carlos Drummond de Andrade, que foi um dos primeiros poetas a influenciar-me juntamente com Paul Eluard. Seria uma questão impertinente pretender saber o que seria especificamente meu e o que seria a contribuição do autor de "A Rosa do Povo". Esse poema foi o resultado imediato de uma dolorosa experiência  humana que veio a encontrar a sua formulação graças à influência  libertadora desse grande poeta brasileiro.

Supor que a influência e a originalidade constituem uma dicotomia  é um erro solipsista e uma perfeita idiotice. As influências são,  já por si, resultantes de uma receptividade pessoal em relação a tal ou tal obra e não indiscriminadamente a qualquer autor. Ninguém poderia escrever um poema sem ter lido outro poeta. Supor o contrário é admitir que o poeta é um ser isolado no mundo e, por conseguinte, sem o conhecimento do mundo literário ou, no caso dos poetas populares, sem a existência de uma tradição oral.

Mas se é assim, perguntou-me Mário, por que é que os escritores  têm tanto receio das influências e de serem acusados de as sofrerem?

Penso, respondi, que esse receio se deve a uma falsa noção de originalidade que não tem em conta a sua relação com a confluência das obras que todo o escritor lê, a que não pode deixar de ser sensível e em relação às quais é sempre devedor. No que me diz respeito, esse receio não existe. Considero-me um poeta extremamente influenciável e até um pouco plagiador. Sobre alguns pequenos plágios que cometi em alguns dos meus livros, falar-te-ei daqui a pouco. Aliás, digo-te já que, sendo autor de alguns milhares de versos, me posso permitir cometer um ou outro plágio ou, empregando outra palavra, talvez mais justa, uma ou outra incorporação, como o faziam os clássicos e, como por exemplo, Camões logo no primeiro verso de "Os Lusíadas".

Na verdade, sou extremamente receptivo em relação aos poetas que amo e admiro e os meus livros de poemas não seriam o que são, sobretudo alguns deles, se eu não tivesse lido determinados poetas que exerceram sobre mim uma atracção e um fascínio irresistíveis, tão irresistíveis como o desejo de os imitar e de integrar o que de novo eles traziam na minha escrita poética.

Verifico, porém, que esta fascinação que exercem certos poetas sobre mim e o decorrente desejo de os imitar não se traduz objectivamente numa obra destituída de originalidade e de cunho pessoal. Entre a obra que imitei ou tentei imitar e a obra que escrevi subsiste uma diferença essencial e é essa diferença que me leva a pensar que o meu livro possui a autonomia e a originalidade que considero imprescindíveis numa obra literária e que, de modo algum, foram prejudicadas pela influência que sobre ela exerceu outra obra. Pelo contrário, a influência pode ser decisiva para a descoberta da voz original do poeta que procura o seu caminho ou que, tendo-o encontrado, aspira a novos rumos para que a identidade se renove e se intensifique. Estive todo este tempo a ouvir-te sem te interromper, disse-me Mário, porque quis ouvir a tua argumentação até ao fim, tão interessado estava nela. Estou de acordo contigo, embora tenha ficado um pouco surpreendido.

Fonte:
in "Jornal de Letras", 25/08/1992

Monteiro Lobato (O Físico)

Conto de Natal
 
Prólogo

No princípio era o pântano, com valas de agrião e rãs coaxantes. Hoje é o parque do Anhangabaú, todo ele relvado, com ruas de asfalto, pérgola grata a namoricos noturnos, e Eva de Brecheret, a estátua dum adolescente nu que corre – e mais coisas. Autos voam pela vida central, e cruzam-se pedestres em todas as direções. Lindo parque, civilizadíssimo.

 Atravessando-o certa tarde, vi formar-se ali um bolo de gente, rumo ao qual vinha vindo um polícia apressado.

 Fogocitose, pensei. A rua é a artéria; os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado, o gatuno são os micróbios maléficos, perturbadores do ritmo circulatório. O soldado de polícia é o glóbulo branco – o fogócito de metchenikoff. Está de ordinário parado no seu posto, circunvagando olhares atentos. Mal se congestiona o tráfego pela ação anti-social de desordeiro, o fagócito move-se, caminha, corre, cai afunda sobre o mau elemento e arrasta-o para o xadrez.

 Foi assim naquele dia.

 Dia sujo, azedo. Céu dúbio, de decalcomania vista pelo avesso. Ar arrepiado.

 Alguém pertubara a paz do jardim, e em redor desse rebelde logo se juntou um grupo de glóbulos vermelhos, vulgo passantes. E lá vinha agora o fagócito fardado restabelecer a harmonia universal.

 O caso girava em torno de uma criança maltrapilha, que tinha a tiracolo uma caixa tosca de engraxate, visivelmente feita pelas suas próprias mãos. Muito sarapantado, com lágrimas a brilharem nos olhos cheios de pavor, o pequeno murmurava coisas de ninguém atendidas. Sustinha-o pela gola um fiscal da Câmara.

 - Então seu cachorrinho, sem licença, heim? – exclamava, entre colérico e vitorioso, o mastim municipal, focinho muito nosso conhecido. – É um que não é um mas sim legião, e sabe ser tigre ou cordeiro conforme o naipe do contraventor.

 A miserável criança evidentemente não entendia, não sabia que coisa era aquela de licença, tão importante, reclamada assim a empuxões brutais. Foi quando entrou em cena a polícia.

 Este glóbulo branco era preto. Tinha beiço de sobejar e nariz invasor de meia cara, aberto em duas ventas acesas, relembrativas das cavernas de Trofônio. Aproximou-se e rompeu o magote com um napoleônico – “Espalha!”.

 Humildes elas se abriram àquele Sèsamo, e a Autoridade, avançando, interpelou o fisco:

 - Que encrenca é esta, chefe?

 - Pois este cachorrinho não é que está exercendo ilegalmente a profissão de engraxate? Encontrei-o banzando por aqui com estes troços, a fisgar com os olhos os pés dos transeuntes e a dizer “engraxa, freguês”. Eu vi a coisa de longe. Vim pé ante pé, disfarçando e, de repente, nhoc! “Mostre a licença”, gritei. “que licença?”, perguntou ele, com arzinho de inocência.

 “Ah, você diz que licença, cachorro? Está me debochando, ladrão? Espera que te ensino o que é licença, trapo!” e agarrei-o. não quer pagar a multa. Vou levá-lo ao depósito, autuar a infração para proceder de acordo com as posturas – concluiu um soberbo entono o cariado canino de Maxila fiscal.

 - É isso mesmo. Casca-lhe!

 E chiando por entre os dentes uma cusparada de esguicho, deu a sua sacudidela suplementar no menino. Depois voltou-se para os basbaques de ordenou com império de soba africano:

 - Circula, paisanada! É “purivido” ajuntamentos demais de um.

Os glóbulos vermelhos dispersaram-se em silêncio. O buldogue lá seguiu com o pequeno nas unhas. E o Pau-de-fumo, em atitude de Bonaparte em face das pirâmides, ficou, de dedo no nariz e boca entreaberta, a gozar a prontidão com que, num ápice, sua energia resolvera o tumor maligno formado na artéria sob a sua fiscalização.

 O Brás


 Também lá, no princípio, era o charco – terra negra, fofa, turfa tressuante, sem outra vegetação além dessas plantinhas miseráveis que sugam o lodo como minhocas. Aquém da várzea, na terra firme e alta, são Paulo crescia. Erguiam-se casas nos cabeços, e esgueiravam-se ladeiras encostas abaixo: a boa morte, o Carmo, o piques; e ruas, imperador, direita, são bento. Poetas cantavam-lhe as graças nascentes:

 Ó Liberdade, ó Ponte Grande, ó Glória...

 Deram-lhe um dia o viaduto do chá, esse arrojo... os paulistanos pagavam sessenta réis para, ao atravessá-lo, conhecerem a vertigem dos abismos. E em casa narravam a aventura às esposas e mães, pálidas de espanto. Que arrojo de homem, o Jules Martin que construíra aquilo!

 Enquanto São Paulo crescia o Brás coaxava. Enluravam-se naquele brejal legiões de sapos e rãs. A noite, do escuro da terra um coral subia de coaxos, pan-pans de ferreiro, latidos de miumbias, glus-glus de untanhas; e, por cima, no escuro do ar, vagalumes ziguezagueantes riscavam fósforos às tontas.

 E assim foi até o dia da avalanche italiana.

 Quando lá no oeste a terra roxa se revelou mina de ouro das que pagam duzentos por um, a Itália vazou para cá a espuma da sua transbordante taça de vida. E são Paulo, não bastando ao abrigo da nova gente, assistiu, Antonio, ao surto do Brás.

 Drenos sangraram em todos os rumos o brejal turfoso; a água escorreu; os evaporidos sapos sumiram-se aos pulos para as baixadas do Tietê; rã comestível não ficou uma para memória da raça; e, breve, em substituição aos guembês, ressurtiu a cogumelagem de centenas e centenas de casinhas típicas – porta, duas janelas e platibanda.

 Numerosas ruas, alinhadas na terra cor de ardósia, que já o sol ressequira e o vento erguia em nuvens de pó negro, margearam-se com febril rapidez desses prediozinhos térreos, iguais uns aos outros, como saídos do mesmo molde, pífios, mas únicos possíveis então. Casotas porvisórias, desbravadoras da lama e vencedoras do pó, à força de preço módico.

 E o Brás cresceu, espraiou-se de todos os lados, comeu todo o barro preto da Mooca, bateu estacas no Marco da Meia Légua, lançou-se rumo á penha, pôs de pé igrejas, macadamizou ruas, inçou-se de fábricas, viu surgirem avenidas e vida própria, e cinemas, e o Colombo, e o namoro, e o corso pelo carnaval. E lá está hoje enorme, feito a cidade do Brás, separado de São Paulo pelo faixão vermelho da várzea aterrada – Pest da Buda à beira do Tamanduateí plantada.

 São duas cidades vizinhas, distintas de costumes e de almas já bem diversas. Ir ao Brás é uma viagem. O Brás não é ali, como o Ipiranga; é lá do outro lado, embora mais perto que o Ipiranga. Diz-se – vou ao Brás, como quem diz – vou à Itália. Uma agregada como um bom bócio recente e autônomo a uma urbs antiga, filha do país; uma Itália função da terra negra, italiana por sete décimos e algo nuevo pelos restantes.

 O Brás trabalha de dia e à noite gesta. Aos domingos fandanga ao som do bandolim. Nos dias de festa nacional (destes tem predileção pelo 21 de Abril : vagamente o Brás desconfia que o barbeiro da inconfidência, porque barbeiro, havia de ser um patrício), nos dias feriados o Brás vem a São Paulo.

 Entope os bondes no travessio da várzea e cá ensardinha-se nos autos: o pai, a mãe, a sogra, o genro e a filha casada no banco de trás; o tio, a cunhada, o sobrinho e o pepino escoteiro no da frente; filhos miúdos por entremeio; filhos mais taludos ao lado do motorista; filhos engatinhantes debaixo dos bancos; filhos em estado fatal no ventre bojudo das matronas. Vergado de molas, o carro geme sob a carga e arrasta-se a meia velocidade, exibindo a Paulicéia aos olhos arregalados daquele exuberante cacho humano.

 Finda a corrida, o auto debulha-se do enxame no triângulo e o bando toma de assalto as confeitarias para um regabofe de spumones, gasosas, croquetes. E tão a sério toma a tarefa, que ali pelas nove horas não restam iscas de empada nos armários térmicos, nem vestígios de sorvete no fundo das galadeiras.

O Brás devora tudo, ruidosa, alegremente e, com massagens ajeitadoras do abdome, sai impando bem-aventurança estomacal. Caroços de azeitonas, palitos de camarões, guardanapos de papel, pratos de papelão seguem nas munhecas da petizada como lembrança da festa e consolo ao bersalherzinho que lá ficou de castigo em casa, berrando com goela de Caruso.

 Em seguida, toca para o cinema! O Brás abarrota os desessão corrida. O Brás chora nos lances lacrimogêneos da Bertini, e ri nas comédias a gás hilariante da L-Ko mais do que autorizam os mil e cem de entrada. E repete a sessão, piscando o olho: é o jeito de dobrar a festa em extensão e obtê-la a meio preço – 550 réis, uma pechincha.

 As mulheres do Brás, ricas de ovário, são vigorosíssimas de útero. Desovam quase filho e meio por ano, sem interrupções, até que se acabe a corda ou rebente alguma peça essencial da gestatória.

 É de vê-las na rua. Bojudas de seis meses, trazem um pepininho à mão e um choramingas à mama. À tarde o Brás inteiro chia de criançalha a chutar bolas de pano, a jogar pião, ou a piorra, ou o tento de telha, ou o tabefe, com palavreados mistos de português e dialetos de Itália . mulheres escarrancadas às portas, com as mãos ocupadas em manobras de agulha de osso, espigaitam para os maridos os sucessos do dia, que eles ouvem filosoficamente, cachimbando calados ou confiando a bigodeira à Humberto primo.

 De manhã esfervilha o Brás de gente estremunhada a caminho das fábricas. A mesma gente reflui à tarde aos magotes – homens e mulheres, de cesta no braço, ou garrafs de café vazias penduradas no dedo; meninas, rapazes, raparigotas de pouco seio, galantes, tagarelas, com o namorente.

 Desce a noite, e nos desvão de rua, nos becos, nas sombras, o amor lateja. Ciciam vozes cautelosas das janelas para os passeios; pares em conversa disfarçada nos portões emudecem quando passa alguém ou tosse lá dentro o pai.

 Durante o escuro das fitas, nos cinemas, há contatos longos, febricilantes; e quando nos intervalos irrompe a luz, não sabem os namorados o que se passou na tela – mas estão de olhos langues, em quebreira de amor.

 É o latejar da messe futura. Todo aquele eretismo por música, com cicios de pensamentos de cartão postal, estará morto no ano seguinte – legalizado pela igreja e pelo juiz, transfeita a sua poesia em choro de crianças e nas trabalhadeiras sem fim da casa humilde.

 Tal menina rosada, leve de andar, toda requebros e dengues, que passa na rua vestida com graça e atrai os olhares gulosos dos homens, não a reconhecereis dois anos depois na lambona filhenta que deblantera com verdureiro a propósito do feixe de cenouras em que há uma menor que as outras.

 Filho da lama negra, o Brás é como ela um sedimento de aluvião. É são Paulo, mas não é a Paulicéia. Ligados pela expansão urbana, separa-os uma barreira. O velho caso do fidalgo e do peão enriquecido.

 Pedrinho, sem ser consultado, nasce

 Viram-se ele e ela. Namoraram-se. Casaram.

 Casados, proliferaram.

 Eram dois. O amor transformou-se em três. Depois em quatro, em cinco, em seis...

Chamava-se Pedrinho o filho mais velho.

A vida


 De pé, na porta, a mãe espera o menino que foi à padaria. Entra o pequeno com as mãos abandonado.

 - Diz que subiu; custa agora oitocentos.

 A mulher, com uma criança ao peito, franze a testa, desconsolada.

 - Meus Deus! Onde iremos parar? Ontem era a lenha: hoje é o pão... tudo sobe. Roupa, pela hora da morte. José ganhando sempre a mesma coisa. Que será de nós, Deus do céu!

 E voltando-se para o filho:

 - Vá a outra padaria, quem sabe lá... se for a mesma coisa, traga só um pedaço.

 Pedrinho sai. Nove anos. Franzino, doentio, sempre mal alimentado e vestido com os restos das roupas do pai.

 Trabalha este no moinho de trigo, ganhando jornal insuficiente para manutenção da família. Se não fosse a bravura da mulher, que lavava para fora, não se sabe como poderiam substituir. Todas as tentativas feitas com intuito de melhorarem de vida com indústrias caseiras esbarram no óbice tremendo do fisco. A fera condenava-os à fome. Assim escravizados, José perdeu aos poucos a coragem, o gosto de viver, a alegria. Vegetava, recorrendo ao álcool para alívio de uma situação sem remédio.

 Bendito sejas, amável veneno, refúgio derradeiro do miserável, gole inebriante de morte que faz esquecer a vida e lhe resume o curso! Bendito sejas!

 Apesar da moça, 27 anos apenas, mariana aparentava o dobro. A labuta permanente, os partos sucessivos, a chiadeira da filharada, a canseira sem fim, o serviço emendado com o serviço, sem folga outra além da que o sono força, fizeram da bonita moça que fora a escanzelada besta de carga que era.

 Seus dez anos de casada... Que eternidade de canseiras!...

 Rumor à porta. Entra o marido. A mulher, ninando a pequena de peito, recebe-o com a má nova.

 - O pão subiu, sabe?

 Sem murmurar palavra o homem senta-se apoiando nas mãos a cabeça. Está cansado.

A mulher prossegue:

 - Oitocentos réis o quilo agora. Ontem foi a lenha; hoje é o pão... e lá? Sempre aumentaram o jornal?

 O marido esboçou um gesto de desalento e permaneceu mudo, com o olhar vago. A vida era um jogo de engrenagens de aço entre cujos dentes se sentia esmagar. Inútil. Destino, sorte.

 Na cama, à noite, confabulavam. A mesma conversa de sempre. José acabava gruninho rugidos surdos de revolta. Falava em revolução, saque. A esposa consolava-o, de esperança posta nos filhos.

 - Pedrinho tem nove anos. Logo estará em ponto de ajudar-nos. Um pouco mais de paciência e a vida melhora.

 Aconteceu que nessa noite Pedrinho ouviu a conversa e a referência à sua futura ação. Entrou a sonhar. Que fariam dele? Na fábrica, como o pai? Se lhe dessem a escolher, iria a engraxador. Tinha um tio no ofício, e em casa do tio era menor a miséria. Pingavam níqueis.

 Sonho vai, sonho vem, brota na cabeça do menino uma idéia, que cresceu, tomou vulto extraordinário e fê-lo perder o sono.. começar já, amanhã, por que não? Faria mesmo a caixa; escovas e graxa, com o tio arranjaria. Tudo às ocultas, para surpresa dos pais! Iria postar-se num ponto por onde passasse muita gente.

Diria como os outros “engraxa, freguês!” e níqueis haviam de juntar-se no seu bolso. Voltaria para casa recheado, bem tarde, com ar de quem as fez... E mal mãe começasse a ralhar, ele taparia a boca despejando na mesa um monte de dinheiro.

O espanto dela, a cara admirada do pai, o regalo da criançada com a perspectiva da ração em dobro! E a mãe a apontá-lo aos vizinhos: “Estão vendo que coisa? Ganhou, só ontem, primeiro dia, dois mil réis!” e a notícia a correr... e murmúrios na rua quando o vissem passar: “É aquele!”

 Pedrinho não dormiu essa noite. De manhãzinha já estava a dispor a madeira dum caixote velho sob forma da caixa de engraxate ao molde clássico. Lá a fez. Os preços, bateu com o salto de uma velha botina. As tábuas serrou pacientemente com um facão dentado. Saiu coisa tosca e mal-ajambrada, de fazer rir a qualquer carapina, e pequena demais – sobre ela só caberia um pé de criança igual ao seu. Mas Pedrinho não notou nada disso, e nunca trabalho nenhum de carpintaria lhe pareceu mais perfeito.

 Conclusa a caixa, pô-la a tiracolo e esgueirou-se para a rua, às escondidas. Foi à casa do tio e lá obteve duas velhas escovas fora de uso, já sem pêlos, mas que à sua exaltada imaginação se afiguraram ótimas. Graxa, conseguiu alguma raspando o fundo de quanta lata velha encontrou no quintal.

 Aquele momento marcou em sua vida um apogeu de felicidade vitoriosa. Era como um sonho – e sonhando saiu para a rua. Em caminho viu o dinheiro crescer-lhe nas mãos, aos montes. Dava à família parte e o resto encafuava.

Quando enchesse o canto da arca onde tinha suas roupas, montaria um “corredor”, pondo a jornal outros colegas. Aumentaria as rendas! Enriqueceria! Compraria bicicletas, automóvel, doces todas as tardes na confeitaria, livros de figuras, uma casa, um palácio, outro palácio para os pais. Depois...

 Chegou ao parque. Tão bonito aquilo – a relva tão verde, tosadinha... havia de ser bom o ponto. Parou perto de um banco de pedra e. sempre as futuras grandezas, pôs-se a murmurar para cada passante, fisgando-lhe os pés: “Engraxa, freguês!”

 Os fregueses passavam sem lhe dar atenção. “É assim mesmo”, refletia consigo o menino, “no começo custa. Depois se afreguesam.”

 Súbito, viu um homem de boné caminhando para seu lado. Olhou-lhe para as botinas. Sujas. Viria engraxar, com certeza – e o coração bateu-lhe apressado, no tumulto delicioso da estréia. Encarou o homem já a cinco passos e sorriu com infinita ternura nos olhos, num agradecimento antecipado em que havia tesouros de gratidão.

 Mas em vez de lhe espichar o pá, o homem rosnou aquela terrível interpelação inicial:

 - Então, cachorrinho, que é da licença?

 Epílogo? Não! Primeiro Ato...

 Horas depois o fiscal aparecia em casa de Pedrinho com o pequeno pelo braço. Bateu. O pai estava, mas quem abriu foi a mãe. O homem nesses momentos não aparecia, para evitar explosões. Ficou a ouvir do quarto o bate-boca.

 O fiscal exigia o pagamento da multa. A mulher debateu-se, arrepelou-se. Por fim, rompeu em choro.

 - Não venha com lamúrias – rosnou o buldogue. – conheço o truque dessa agüinha nos olhos, não me embaça, não. Ou bate aqui os vinte mil réis, ou penhoro toda essa cacaria.

Exercer ilegalmente a profissão! Ora, dá-se! E olha cá madama, considere-se feliz de serem só vinte. Eu é de dó de vocês, uns miseráveis; se não aplicava o máximo. Mas se resiste dobro a dose!

 A mulher limpou as lágrimas. Seus olhos endureceram, com uma chispa má de ódio represado a faiscar. O fisco, percebendo-o, mojetou:

 - Isso. É assim que as quero – tesinhas, ah, ah.

Mariana nada mais disse. Foi à arca, reuniu o dinheiro existente – dezoito mil réis ratinhados havia meses, aos vinténs, para o caso dalguma doença, e entregou-os ao fisco.

 - É o que há – murmurou com tremura voz.

 O homem pegou o dinheiro e gostosamente o afundou no bolso, dizendo:

 - Sou generoso, perdôo o resto. Adeuzinho, amor!

E foi à venda próxima beber dezoito mil réis de cerveja!

 Enquanto isso, no fundo do quintal, o pai batia furiosamente no menino.

Fonte:
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/monteiro-lobato/monteiro-lobato-o-fisico.php

Camilo Pessanha (Sonetos)

CAMINHO I
 Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
 Sinto um vago receio prematuro.
 Vou a medo na aresta do futuro,
 Embebido em saudades do presente...

 Saudades desta dor que em vão procuro
 Do peito afugentar bem rudemente,
 Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
 Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

 Porque a dor, esta falta d'harmonia,
 Toda a luz desgrenhada que alumia
 As almas doidamente, o céu d'agora,

 Sem ela o coração é quase nada:
 Um sol onde expirasse a madrugada,
 Porque é só madrugada quando chora.

CAMINHO II

 Encontraste-me um dia no caminho
 Em procura de quê, nem eu o sei.
 - Bom dia, companheiro, te saudei,
 Que a jornada é maior indo sozinho

 É longe, é muito longe, há muito espinho!
 Paraste a repousar, eu descansei...
 Na venda em que poisaste, onde poisei,
 Bebemos cada um do mesmo vinho.

 É no monte escabroso, solitário.
 Corta os pés como a rocha dum calvário,
 E queima como a areia!... Foi no entanto

 Que choramos a dor de cada um...
 E o vinho em que choraste era comum:
 Tivemos que beber do mesmo pranto.

CAMINHO III
 Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
 Enrijou a coragem fatigada...
 Eis os nossos bordões da caminhada,
 Vai já rompendo o sol: vamos embora.

 Este vinho, mais virgem do que a aurora,
 Tão virgem não o temos na jornada...
 Enchamos as cabaças: pela estrada,
 Daqui inda este néctar avigora!...

 Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
 Eu quero arrostar só todo o caminho,
 Eu posso resistir à grande calma!...

 Deixai-me chorar mais e beber mais,
 Perseguir doidamente os meus ideais,
 E ter fé e sonhar - encher a alma.

ESTÁTUA

 Cansei-me de tentar o teu segredo:
 No teu olhar sem cor, - frio escalpelo,
 O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
 Como a onda na crista dum rochedo.

 Segredo dessa alma e meu degredo
 E minha obsessão! Para bebê-lo
 Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
 Por noites de pavor, cheio de medo.

 E o meu ósculo ardente, alucinado,
 Esfriou sobre o mármore correto
 Desse entreaberto lábio gelado...

 Desse lábio de mármore, discreto,
 Severo como um túmulo fechado,
 Sereno como um pélago quieto.

FONÓGRAFO
 Vai declamando um cômico defunto.
 Uma platéia ri, perdidamente,
 Do bom jarreta... E há um odor no ambiente.
 A cripta e a pó, - do anacrônico assunto.

 Muda o registo, eis uma barcarola:
 Lírios, lírios, águas do rio, a lua...
 Ante o Seu corpo o sonho meu flutua
 Sobre um paul, - extática corola.

 Muda outra vez: gorjeios, estribilhos
 Dum clarim de oiro - o cheiro de junquilhos,
 Vívido e agro! - tocando a alvorada...

 Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
 Quebrou-se agora orvalhada e velada.
 Primavera. Manhã. Que eflúvio de violetas!

SONETO I

 Desce em folhedos tenros a colina:
 - Em glaucos, frouxos tons adormecidos,
 Que saram, frescos, meus olhos ardidos,
 Nos quais a chama do furor declina...

 Oh vem, de branco, - do imo da folhagem!
 Os ramos, leve, a tua mão aparte.
 Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,
 Refletir virgem a serena imagem.

 De silva doida uma haste esquiva.
 Quão delicada te osculou num dedo
 Com um aljôfar cor de rosa viva!...

 Ligeira a saia... Doce brisa impele-a...
 Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo!
 Alma de silfo, carne de camélia…

SONETO II
 Esbelta surge! Vem das águas, nua,
 Timonando uma concha alvinitente!
 Os rins flexíveis e o seio fremente...
 Morre-me a boca por beijar a tua.

 Sem vil pudor! Do que há que ter vergonha?
 Eis-me formoso, moço e casto, forte.
 Tão branco o peito! - para o expor à Morte...
 Mas que ora - a infame! - não se te anteponha.

 A hidra torpe!... Que a estrangulo! Esmago-a
 De encontro à rocha onde a cabeça te há de,
 Com os cabelos escorrendo água,

 Ir inclinar-se, desmaiar de amor,
 Sob o fervor da minha virgindade
 E o meu pulso de jovem gladiador.

SONETO III

 Floriram por engano as rosas bravas
 No inverno: veio o vento desfolhá-las...
 Em que cismas, meu bem? Porque me calas
 As vozes com que há pouco me enganavas?

 Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
 Onde vamos, alheio o pensamento,
 De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
 Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

 E sobre nós cai nupcial a neve,
 Surda, em triunfo, pétalas, de leve
 Juncando o chão, na acrópole de gelos...

 Em redor do teu vulto é como um véu!
 Quem as esparze - quanta flor! - do céu,
 Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/biografia.php?a=56
Imagem = Libreria Fogola Pisa, obtida no facebook

Camilo Pessanha (1867 – 1926)

Camilo de Almeida Pessanha (Coimbra, 7 de setembro de 1867 — Macau, 1º de Março de 1926) foi um poeta português, expoente máximo do Simbolismo.

Tirou o curso de Direito em Coimbra. Em 1894, transferiu-se para Macau, onde, durante três anos, foi professor de Filosofia Elementar no Liceu de Macau, deixando de leccionar por ter sido nomeado em 1900 conservador do registro predial em Macau e depois juiz de comarca.

Entre 1894 e 1915 voltou a Portugal algumas vezes, para tratamento de saúde, tendo, numa delas sido apresentado a Fernando Pessoa que era, como Mário de Sá-Carneiro, grande apreciador da sua poesia.

Os seus poemas foram publicados, pela primeira, em 1899 - não devido aos esforços de Camilo Pessanha, mas dos amigos. Foram eles que os fizeram chegar às revistas literárias. Foi assim que se tornou uma referência para a geração de Orpheu, que tinha como figuras de proa Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.

Publicou poemas em várias revistas e jornais, mas seu único livro Clepsidra (1920), foi publicado sem a sua participação (pois se encontrava em Macau) por Ana de Castro Osório, a partir de autógrafos e recortes de jornais. Graças a essa iniciativa, os versos de Pessanha se salvaram do esquecimento.

Um dos seus melhores amigos era Alberto Osório de Castro, irmão da escritora e feminista Ana de Castro Osório.

Pessanha apaixonou-se perdidamente por ela. Um amor não correspondido que durou a vida inteira.

Posteriormente, o filho de Ana de Castro Osório, João de Castro Osório, ampliou a Clepsidra original, acrescentando-lhe poemas que foram encontrados. Essas edições saíram em 1945, 1954 e 1969. Apesar da pequena dimensão da sua obra, é considerado um dos poetas mais importantes da língua portuguesa.

Camilo Pessanha morreu no 1º de Março de 1926 em Macau.
 
Características estéticas

Além das características simbolistas que sua obra assume, já bem conhecidas, Camilo Pessanha antecipa alguns princípios de tendências modernistas.

Camilo Pessanha buscou em Charles Baudelaire, proto-simbolista francês, o termo “Clepsidra”, que elegeu como título do seu único livro de poemas, praticando uma poética da sugestão como proposta por Mallarmé, evitando nomear um objeto direta e imediatamente.

Apaixonado pela cultura chinesa, fez vários estudos e traduziu poetas chineses. A sua obra influenciou escritores como Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro.

Por outro lado, segundo o pesquisador da Universidade do Porto Luís Adriano Carlos, o seu chamado "metaforismo" entraria no mesmo rol estético do imagismo, do inteseccionismo e do surrealismo, buscando as relações analógicas entre significante e significado por intermédio da clivagem dinâmica dos dois planos.

Junto de sua fragmentação sintática, que segundo a pesquisadora da Universidade do Minho Maria do Carmo Pinheiro Mendes substitui um mundo ordenado segundo leis universalmente reconhecidas por um mundo fundado sobre a ambiguidade, a transitoriedade e a fragmentação, podemos encontrar na obra de Camilo Pessanha, de acordo com os dois autores citados, duas características que costumam ser mais relacionadas à poesia moderna que ao Simbolismo mais convencional.

A sua poesia era melancólica e pessimista, como podemos depreender num excerto de “Castelo de Óbidos”: “O meu coração desce, / Um balão apagado? / Melhor fora que ardesse, / Nas Trevas incendiado.” Em muitas das suas obras, mostrava uma tristeza absoluta e viscosa, de que era impossível fugir, como uma doença.

Obras

Manuscritos

Poesia


Caderno Poético de Camilo Pessanha. (A.H.M.)
 Ó Meu Coração Torna para Trás. s.d., s.l.. (B.N.L.)
 Viola Chinesa . s.d., s.l. (poema dedicado a Wenceslau de Moraes). (B.N.L.)
 Desejos. 8 Novembro 1889. (B.M.P.)
 San Gabriel. Macau, 7 Maio 1898. (B.N.L.)
 Rosas de Inverno. Macau, 1901. (B.N.L.)
 Passou o Outono Já, Já Torna o Frio… Lisboa, 20 Janeiro 1916. (B.M.P.)

Processos judiciais

Camilo Pessanha Advogado Oficioso (Processo Crime). Macau, 1894. (A.T.)
 Camilo Pessanha Queixoso (Processo Crime). Macau, 1911. (A.T.)
 Camilo Pessanha Juiz Substituto (Processo Civil). Macau, 1917. (A.T.)
 Camilo Pessanha Conservador do Registo Predial. Macau, 1919. (A.T.)

Impressos

Poesia

Livros


Clepsydra. Lisboa, Lusitânia Ed. Ana de Castro Osório, 1920, 1a edição (Há edição fac-símile publicada pela Ecopy em 2009)
 Clepsidra. Lisboa, Atica, Ed. João de Castro Osório, 1945, 1956 (reimp.)
 Clepsidra e Outros Poemas, Ed. João de Castro Osório, Lisboa, Atica 1969
 Caderno Poético de Camilo Pessanha, Macau, Edição dos Serviços de Educação e Cultura da Biblioteca Nacional de Macau, 1985.
 Clepsydra - Poemas de Camilo Pessanha, São Paulo, Editora da UNICAMP, 1992.

Textos dispersos em publicações periódicas

"San Gabriel". Jornal Único, Macau, 7 Maio 1897.
 "Rosas de Inverno". O Porvir, Hong-Kong, 21 Dezembro 1901
 "Branco e Vermelho". Ideia Nova, Macau, (13) 18 Março 1929 (número integralmente dedicado a Camilo Pessanha).
 "O "Caderno" de Camilo Pessanha" (apresentação de Danilo Barreiros). Persona, Porto, (10) Julho 1984.

Ensaios e Traduções

Livros


Kuok Man Kan To Shu – Leituras Chinesas (livro escolar, em colaboração com José Vicente Jorge). Macau, Editora da Tipografia Mercantil de N. T. Fernandes e Filhos, 1915.
 Catálogo da Colecção de Arte Chinesa Oferecida ao Museu Nacional. Macau, Imprensa Nacional, 1916 (exemplar, com dedicatória, oferecido a José Vicente Jorge).
 Homenagem aos Aviadores que Completaram o 1o Raid Aéreo Lisboa-Macau. Macau, 1924.
 Oito Elegias Chinesas. Lisboa, Edições Descobrimento, 1931 (separata).
 China, Estudos e Traduções, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1944.
 Camões nas Paragens Orientais (em colaboração com Wenceslau de Moraes). Porto, Tipografia Mendonça, , 1951., (inclui o ensaio "Macau e a Gruta de Camões").
 Testamento de Camilo Pessanha, Lisboa, Bertrand Editora, 1961.
 Cartas a Alberto Osório de Castro, João Baptista de Castro e Ana de Castro Osório (organização de Maria José Lancastre). Lisboa, Imprensa Nacional, 1984.
 Contos, Crónicas, Cartas Escolhidas e Textos de Temática Chinesa, Lisboa, Publicações Europa-América, 1988.
 Camilo Pessanha – Prosador e Tradutor, organização, prefácio e notas de Daniel Pires; IPOR / ICM, 1992

Textos dispersos

"Estética Chinesa". A Verdade, Macau, (85) 2 Junho 1910.
 Prefácio a Esboço Crítico da Civilização Chinesa de J. António Filipe de Morais Palha. Macau, Tipografia Mercantil de N. T. Fernandes e Filhos, 1912.
 "Violoncelos". Centauro, Lisboa, (1) Outubro 1916.
 "Macau". O Mundo Português, Lisboa, (17) Maio 1935.
 "Uma Conferência de Camilo Pessanha". Persona, Porto, (11/ 12) Dezembro 1985.
 "Legenda Budista". A Academia, Macau, (3) 1 Dezembro 1920.
 "Vozes do Outono" in Anuário de Macau para 1927. Macau, coordenação do Governo da Província.
 "Chon–Kôc–Chao" in China País de Angústia de Ruy Sant'Elmo, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1938.

Fontes:
pt.wikipedia.org
www.rtp.pt

Victor Hugo (Os Miseráveis)

Os Miseráveis, do escritor francês Victor Hugo, foi escrito em 1862 e é uma narração de caráter social em que o misticismo, a fantasia e a denúncia das injustiças formam uma trama complexa, onde descreve vividamente, ao tempo de condenação, a injustiça social da França do século XIX.

Os Miseráveis é uma obra grandiosa no estilo narrativo e descritivo de Hugo, que esbanja a elegância, a riqueza e o fausto do barroco. Mas o romântico autor transcende os floreios da linguagem recheando essa estrutura estilística de um conteúdo rico e psicologicamente profundo: os movimentos dramáticos da alma humana sacudida por um turbilhão de anseios, sentimentos e emoções. É também grandioso pelos personagens intensos e extremados, figuras humanas que como Jean Vayean e o próprio policial Javert, perseverante, obstinado e frio, vivem sob a égide inabalável de princípios e ideais, a ponto de serem quase que sufocados pelas conseqüências emocionais de seus próprios atos. Os personagens são dotados de uma humanidade que resvala, por vezes para o belo mas também para o bizarro. Os cenários são descritos com riqueza de detalhes que podemos visualizá-los e imaginar que estamos nas cidadelas da França do século XIX ou vivendo a Batalha de Waterloo.

O romance conta a triste história de um homem (Jean Valjean), que, por ver os irmãos passarem fome, rouba um pedaço de pão e é condenado a 5 anos de prisão. Devido às tentativas de fuga e mau comportamento na cadeia, acaba sofrendo outras condenações, pagando 19 anos de reclusão. O livro é uma denúncia contra as injustiças do poder judiciário que vem se repetindo em todas as épocas. Para o autor, o mundo é o terreno onde se defrontam os mitos, o bem e o mal, a bondade e a crueldade.

Jean Valjean - é um homem que vive uma situação de miserabilidade no mesmo período em que Napoleão III (Imperador da França, de 1852 a 1871) aumentara seus gastos com a política externa francesa em busca de glória política. A vida miserável leva-o ao crime, mas se reabilita socialmente quando consegue uma ajuda caridosa. Em certo sentido, Jean é a própria mancha social que os projetos urbanos de Haussmann (Prefeito em Sena, de 1853 a 1870) pretendiam jogar para a periferia, mas que insistia em invadir o centro em horários inoportunos, emergindo literalmente de dentro de si (metáfora dos esgotos de Paris).

Na descrição que Victor Hugo faz da vida do personagem Jean Valjean, podemos observar que há o cuidado de evidenciar as circunstâncias que o levaram ao crime e, portanto, mais do que uma questão de gosto ou preferência pessoal por uma vida irregular, tratava-se de uma situação social que deveria ser encarada francamente pela sociedade em geral e pelas autoridades políticas em particular:

Jean Valjean, de humilde origem camponesa, ficara órfão de pai e mãe ainda pequeno e foi recolhido por uma irmã mais velha, casada e com sete filhos. Enviuvando a irmã, passou a arrimo da família, e assim consumiu a mocidade em trabalhos rudes e mal remunerados (...). Num inverno especialmente rigoroso, perdeu o emprego, e a fome bateu à porta da miserável família. Desesperado, recorreu ao crime: quebrou a vitrina de uma padaria para roubar um pão. (...) Levado aos tribunais por crime de roubo e arrombamento, foi condenado a cinco anos de galés. (...) Mesmo na sua ignorância, tinha consciência de que o castigo que lhe fora imposto era duro demais para a natureza de sua falta e que o pão que roubara para matar a fome de uma família inteira não podia justificar os longos anos de prisão a que tinha sido condenado.

Nota: O clássico Os miseráveis foi chamado de "um dos maiores best-sellers de todos os tempos". Nas 24 horas seguintes à publicação da primeira edição de Paris (1862), as 7 mil cópias foram todas vendidas. O livro foi publicado simultaneamente em Bruxelas, Budapeste, Leipzig (na Alemanha), Madri, Rio de Janeiro, Rotterdam e Varsóvia. Depois, a obra foi traduzida para quase todas as línguas do mundo. No século XX, Os miseráveis se tornou filme e musical da Broadway.

Enredo

No início do século XIX, na França, Jean Valjean rouba um pedaço de pão para os sobrinhos famintos e é injustamente condenado a prisão e a marginalidade. Após cumprir 19 anos de prisão com trabalhos forçados, Jean Valjean é acolhido por um gentil bispo, que lhe dá comida e abrigo. Mas havia tanto rancor na sua alma que no meio da noite ele rouba a prataria e agride seu benfeitor, mas quando Valjean é preso pela polícia com toda aquela prata ele é levado até o bispo, que confirma a história de lhe ter dado a prataria e ainda pergunta por qual motivo ele esqueceu os castiçais, que devem valer pelo menos dois mil francos.

Este gesto extremamente nobre do religioso devolve a fé que aquele homem amargurado tinha perdido.

Após nove anos, com o nome de senhor Madeleine, ele se torna prefeito e principal empresário em uma pequena cidade, mas sua paz acaba quando Javert, um guarda da prisão que segue a lei inflexivelmente, tem praticamente certeza de que o prefeito é o ex-prisioneiro que nunca se apresentou para cumprir as exigências do livramento condicional. A penalidade para esta falta é prisão perpétua, mas ele não consegue provar que o prefeito e Jean Valjean são a mesma pessoa. Neste meio tempo uma das empregadas de Valjean (que tem uma filha que é cuidada por terceiros) é despedida, se vê obrigada a se prostituir e é presa. Seu ex-patrão descobre o que acontecera, usa sua autoridade para libertá-la e a acolhe em sua casa, pois ela está muito doente. Sentindo que ela pode morrer ele promete cuidar da filha, Cosette, mas antes de pegar a criança sente-se obrigado a revelar sua identidade para evitar que um prisioneiro, que acreditavam ser ele, não fosse preso no seu lugar. Deste momento em diante Javert volta a persegui-lo, a mãe da menina morre mas sua filha é resgatada por Valjean, que foge com a menina enquanto é perseguido através dos anos pelo implacável Javert.

O tempo passa e a menina Cosette se apaixona profundamente por Marius, um jovem e carismático revolucionário.

Em plena revolução de 1832, a busca incansável de Jean Valjean pela redenção alcança seu clímax quando ele escolhe sacrificar sua liberdade para salvar o grande amor de Cosette, até que um dia o confronto dos dois inimigos é inevitável, e só então, através da grandeza de seu ato, Jean Valjean se sente verdadeiramente livre da perseguição impiedosa do policial Javert. Valjean teve de lutar muito para mostrar que era um homem de bem e conseguir viver em paz.

Fragmentos do livro

Jean Valjean foi conduzido diante dos tribunais daquele tempo por "roubo e arrombamento durante uma noite numa casa habitada".

Jean Valjean foi declarado culpado. Os termos do código eram categóricos. Nossa civilização tem momentos terríveis: são os momentos em que uma sentença anuncia um naufrágio. Que minuto fúnebre este em que a sociedade se afasta e relega ao mais completo abandono um ser que raciocina!

Começou por julgar a si mesmo. Reconheceu não ser um inocente injustamente punido. Concordou que havia cometido uma ação desesperada e reprovável, que, talvez, se tivesse pedido, não lhe haveriam de recusar o que roubara, que, em último caso deveria confiar na caridade ou no próprio trabalho, que afinal, não era razão suficiente afirmar-se que não pode esperar quando se tem fome.

Era necessário, portanto, ter paciência... porque afinal era absurdo ele, infeliz e mesquinho como era, querer pegar toda uma sociedade pelo pescoço, e ter pensado que é pelo roubo que se foge à miséria, pois é impossível sair-se da miséria pela porta que leva à infâmia. Enfim, ele estava errado.

Depois deve ter perguntado a si mesmo:

Nessa história toda, o erro era só dele? Era igualmente grave o fato de ele, operário, não ter trabalho e não ter pão. Depois de a falta ter sido cometida e confessada, por acaso o castigo não foi por demais feroz e excessivo? Onde haveria mais abuso: da parte da lei, na pena, ou da parte do culpado, no crime? Não haveria excesso de peso em um dos pratos da balança, justamente naquele em que está a expiação? Por que o exagero da pena não apagava completamente o crime, quase que invertendo a situação, substituindo a falta do delinqüente pela da Justiça, fazendo do culpado a vítima, do devedor credor, pondo definitivamente o direito justamente do lado de quem cometeu o furto?

Pode a sociedade humana ter o direito de sacrificar seus membros, ora por sua incompreensível imprevidência, acorrentando indefinidamente um homem entre essa falta e esse excesso, falta de trabalho e excesso de castigo? Não era, talvez, exagero a sociedade tratar desse modo precisamente os seus membros mais mal dotados na repartição dos bens de fortuna, e, conseqüentemente, os mais dignos de atenção?

É próprio das sentenças em que domina a impiedade, isto é, a brutalidade, transformar pouco a pouco, por uma espécie de estúpida transfiguração, um homem em animal, às vezes até em animal feroz. As sucessivas e obstinadas tentativas de evasão, bastariam para provar o estranho trabalho feito pela lei sobre a alma humana. Jean Valjean renovou as fugas, tão inúteis e loucas, toda vez que se apresentou ocasião propícia, sem pensar um pouquinho nas conseqüências, nem nas vãs experiências já feitas. Escapava impiedosamente, como o lobo que encontra a jaula aberta. O instinto lhe dizia: "Salve-se". A razão lhe teria dito: "Fique"! Mas, diante de tentação tão violenta, o raciocínio desaparecia, ficando somente o instinto. Era o animal que agia. Quando era novamente preso, os novos castigos que lhe infligiam só serviam para torná-lo mais sobressaltado.

A história é sempre a mesma. Essas pobres criaturas, carecendo de apoio, de guia, de abrigo, ficam ao léu, quem sabe até, indo cada uma para seu lado, mergulhando na fria bruma que absorve tantos destinos solitários, mornas trevas onde, na sombria marcha do gênero humano desaparecem sucessivamente tantas cabeças desafortunadas.

Fonte:
www.passeiweb.com

José de Alencar (O Ermitão da Glória) Parte 6

XI

NOVENA

A primeira vez que Maria da Glória saiu da câmara para a varanda, foi uma festa em casa de Duarte de Morais.

Ninguém se cabia de contente com o regozijo de ver a menina outra vez restituída às alegrias da família.

De todos o que mostrava menos era Aires de Lucena, pois por instantes sua feição velava-se com uma nuvem melancólica; mas sabiam os outros que dentro d'alma ninguém maior, nem tamanho júbilo sentira, como ele; e sua tristeza naquele momento era a lembrança do que sofrera vendo a moça a expirar.

Aí estava entre outras pessoas da privança da casa, Antônio de Caminha que se houvera galhardamente na perseguição dos franceses, embora não lograsse capturar a presa a que dera caça.

Não escondia o moço o regozijo que sentia com o restabelecimento daquela a quem já tinha chorado, como perdida para sempre.

Nesse dia revelou Maria da Glória aos pais um segredo que escondia.

- É. tempo de saberem o pai e a mãe que fiz um voto a Nossa Senhora da Glória, e peço sua licença para o cumprir.

- Tu a tens! disse Úrsula.

- Fala; dize o que prometeste! acrescentou Duarte de Morais.

- Uma novena.

- O voto foi para te pôr boa? perguntou a mãe.

Corou a moça e confusa esquivou-se á resposta. Acudiu então Aires que até ali ouvira calado:

- Não se precisa saber o motivo; basta que o voto se fez, para se dever cumprir. Tomo sobre mim o que for preciso para a novena, e não consinto que ninguém mais se encarregue disso; estais ouvindo, Duarte de Morais?

Cuidou Aires desde logo nos aprestos da devoção, e para que se fizesse com o maior aparato, resolveu que a novena seria em uma capela do mosteiro, para a qual se transportaria de seu nicho da escuna a imagem de Nossa Senhora da Glória.

Diversas vezes foi ele com Maria da Glória e Úrsula a uma loja de capelista para se proverem de alfaias com que adornassem a sagrada imagem. O melhor ourives de São Sebastião incumbiu-se de fazer um novo resplendor cravejado de brilhantes, enquanto a menina com suas amigas recamava de alcachofras de ouro um rico manto de brocado verde.

Nestes preparativos consumiam-se os dias, e tão ocupado andava Aires com eles, que não pensava em outra cousa, nem já se lembrava do voto que fizera; passava as horas junto de Maria da Glória, entretendo-se com ela dos adereços da festa, satisfazendo-lhe as mínimas fantasias; essa doce tarefa o absorvia por modo que não lhe sobravam nem pensamentos para mais.

Afinal chegou o dia da novena, que celebrou-se com uma pompa ainda não vista na cidade de São Sebastião. Foi grande a concorrência de devotos que vieram de São Vicente e Itanhaem para assistir à festa.

A todos encantou a formosura de Maria da Glória, que tinha um vestido de riço azul com recamos de prata, e um colar de turquesas com arrecadas de safiras.

Mas suas jóias, de maior preço, as que mais a adornavam, eram as graças de seu meigo semblante que resplandecia com uma auréola celeste.

- Jesus!... exclamou uma velha beata. Podia-se tirar dali, e pô-la no altar que a gente havia de adorá-la como a própria imagem da Senhora da Glória.

Razão, pois, tinha Aires de Lucena, que toda a festa a esteve adorando, sem carecer de altar, e tão absorto, que de todo esqueceu o lugar onde se achava, e o fim que ali o trouxera.

Só quando, terminada a festa, ele saía com a família de Duarte de Morais, acudiu-lhe que não rezara na igreja, nem rendera graças à. Senhora da Glória por cuja milagrosa intercessão escapara a menina da cruel enfermidade.

Era tarde porém; e se passou-lhe pela mente a idéia de tornar à igreja para reparar seu esquecimento, o sorriso de Maria da Glória arrebatou-lhe de novo o espírito naquele enlevo, em que o tivera preso.

Depois da doença da menina dissipara-se o enleio que ela sentia na presença de Aires de Lucena. Agora com a chegada do corsário, em vez de acanhar~e, ao contrário expandia-se a flor de sua graça, e desabrochava em risos, embora roseados pelo pudor.

Uma tarde que passeavam os dous pela ribeira, em companhia de Duarte de Morais e Úrsula, Maria da Glória, vendo embalar-se airosamente sobre as ondas a escuna, soltou um suspiro e vo1tando-se para Lucena, disse-lhe:

- Agora tão cedo não vai ao mar!

- Por quê?

- Deve descansar.

- Somente por isso? perguntou Aires desconsolado.

- E também pelas saudades que deixa aos que lhe querem, e pelos cuidados que nos leva. O pai que diz? Não é assim?

- Certo, filha, que o nosso Aires de Lucena ia tem feito muito pela pátria e pela religião, para dar-nos também aos amigos alguma parte da sua existência.

- Toda vo-la darei doravante; ainda que tenha eu também saudades do mar, das noitadas de bordo, e daquele voar nas asas da borrasca, em que o homem acha-se face a face com a cólera do. céu. Mas, pois. assim o querem, seja feita a vossa vontade.

Estas últimas palavras proferiu-as Aires olhando para a menina.

- Não se pese disso, tornou-lhe ela; que em lhe apertando as saudades, embarcaremos todos na escuna, e iremos correr terras, onde nos levar a graça de Deus e de minha Madrinha.

XII

O MILAGRE

Correram meses, que Aires passou na doce intimidade da família de Duarte de Morais, e no enlevo de sua admiração por Maria da Glória.

Já não era o homem que fora; os prazeres em que outrora se engolfava, de presente os aborrecia, e tinha vergonha da vida dissipada que levara até ali.

Ninguém mais o via por tavolagens e folias, como nos tempos em que parecia sôfrego de consumir a existência.

Agora, se não estava em casa de Duarte de Morais, perto de Maria da Glória, andava pelas ruas a cismar.

Ardia o cavalheiro por abrir seu coração àquela que já era dele senhora, e muitas vezes fora com o propósito de falar-lhe do seu afeto.

Mas na presença da menina o desamparava a resolução que trazia; e sua voz afeita ao comando, e habituada a dominar o rumor da procela e o estrondo dos combates, balbuciava tímida e submissa uma breve saudação.

Era o receio de que a menina voltasse à esquivança de antes, e viesse a tratá-lo com a mesma reserva e acanhamento que tanto o magoava então.

Não se apagara de todo n'alma do corsário a suspeita de ser o afeto de Antônio de Caminha bem acolhido, se não já retribuído, por Maria da Glória.

É certo que a menina tratava agora o primo com afastamento e enleio, que mais se manifestava quando este a enchia de atenções e finezas.

Ora, Aires que se julgava aborrecido por merecer um tratamento semelhante, agora que todas as efusões da gentil menina eram para ele, desconfiava desse acanhamento, que podia encobrir um tímido afeto.

Assim é sempre o coração do homem, a revolver-se no constante ser e não ser em que se escoa a vida humana.

De sair ao mar, era cousa em que Aires já não tocava aos marujos da escuna, que mais ou menos andavam ao corrente do que havia. Se alguém lhes falava de fazerem-se ao largo, respondiam a rir, que o comandante encalhara n'água doce.

Muito tempo já era passado depois de sua última viagem, quando Aires de Lucena, querendo acabar com a incerteza em que vivia, animou-se a dizer à filha adotiva de Duarte de Morais, uma noite ao despedir-se dela:

- Maria da Glória, tenho um segredo para contar-lhe.

O lábio que proferiu estas palavras era trêmulo, e o olhar do cavalheiro retirou-se confuso do semblante da menina.

- Que. segredo é, Senhor Aires? respondeu Maria da Glória também perturba da.

- Amanhã lho direi.

- Olhe lá!

- Prometo.

No dia seguinte por tarde encaminhou-se o corsário para a casa de Duarte de Morais; ia resolvido a declarar-se com Maria da Glória e confessar-lhe o muito que a queria para sua esposa'. e companheira.

Levava o pensamento agitado e o coração inquieto como quem vai decidir de sua sorte. Às vezes apressava o passo, na sofreguidão de chegar; outras o retardava com receio do momento.

À Rua da Misericórdia encontrou-se com um ajuntamento, que o fez parar. No meio da gente via-se um homem idoso, com os cabelos já grisalhos da cabeça e da barba tão longos, que lhe desciam aos peitos e caiam sobre as espáduas.

Caminhava ele, ou antes se arrastava de joelhos, e levava em bandeja de metal um objeto, que tinha figura de mão cortada acima do punho.

Pensou Aires que era esta a cena, muito comum naqueles tempos, do cumprimento solene de uma promessa; e seguiu a procissão com olhar indiferente.

Ao aproximar-se porém o penitente, conheceu com horror que não era um ex-voto de cera, ou milagre, como o chamava o vulgo, o objeto posto em cima da salva; mas a própria mão cortada do braço direito do devoto, que às vezes levantava para o céu o coto mal cicatrizado ainda.

Inquiriu dos que o cercavam a explicação do estranho caso; e não faltou quem lha desse com particularidades que hoje fariam rir.

Tivera o penitente, que era mercador, um panarício na mão direita; e sobreveio-lhe grande inflamação de que resultou a gangrena. No risco de perder a mão, e talvez a vida, valeu-se o homem de São Miguel dos Santos, advogado contra os cancros e tumores,. e prometeu-lhe dar para sua festa o peso em prata do membro enfermo.

Exalçou o Santo a promessa, pois sem mais auxílio de mezinhas, veio o homem a ficar inteiramente são, e no perfeito uso da mão, quando no juízo do físico pelo menos devia ficar aleijado.

Restituído à saúde, o mercador que era muito agarrado ao dinheiro, espantou-se com o peso que lhe haviam tomado do braço enfermo; e achando salgada a quantia, resolveu de esperar pela decisão de certo negócio, de cujos lucros tencionava tirar o preciso para cumprir a promessa.

Um ano decorreu porém sem que o tal negócio se concluísse, e ao cabo desse tempo começou a mão do homem a mirrar, a mirrar, até que ficou de todo seca e rija, como se fora de pedra.

Conhecendo então o mercador que estava sendo castigado por não haver cumprido a promessa, levou sem mais detença a prata que devia ao Santo; mas este já não a quis receber, pois ao amanhecer do outro dia achou atirada à porta da igreja a oferenda que ficara sobre o altar.

O mesmo foi da segunda e terceira vez, até que o mercador vendo que era sem remissão a sua culpa e devia expiá-la, decepou a mão já seca e vinha trazê-la, não só como símbolo do milagre, mas como lembrança do castigo.

Eis o que referiram a Aires de Lucena.
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continua...

Silvinha Meirelles (Se Assim É, Assim Será?)

Tudo era bem normal lá em Santantônio da Lamparina.

As crianças iam para a escola enquanto os pais trabalhavam. Todos riam, se divertiam e às vezes ficavam bem tristes também. Tomavam banho, soltavam pum e tinham coceira no pé; como toda gente em qualquer parte.

Só tinha um detalhe, mínimo, insignificante, que deixava tudo com cara de esquisito e diferente: lá, o dia era escuro como a noite, e quando era noite era noite também.

Os moradores estavam acostumados. Viviam à sombra da Lua, estudavam à luz de abajur, sabiam brincadeiras de escuro: gato-mia; cabra-cega, detetive...

Os mais velhos diziam que lá sempre foi assim e que, se é assim, assim será até o fim; sentiam-se cansados de imaginar como seria viver num lugar claro e diferente. Os mais jovens sonhavam e diziam que conhecer o Sol era o maior desejo que tinham no mundo, no universo.

Um desejo infinito.

Por que ninguém pensava em se mudar dali? Porque lá havia o mais lindo luar e o mais delicioso banho de mar e um povo com um sonho em comum. Às vezes, coisas assim são suficientes para nos fazer ficar.

Num dia noite, chegou um, chegaram dois e mais três ou cinco equilibristas. Era uma família de artistas! Enquanto uns tocavam, os outros faziam lances incríveis, coisa de especialista!

Há muito tempo o vilarejo não recebia visita tão animada. Os equilibristas estavam acostumados a se apresentar até o Sol raiar e estranharam: já se sentiam cansados e nada de o dia clarear.

- O Sol não vai aparecer?

E foi assim que souberam que em Santantônio da Lamparina o dia era tão escuro como a noite e que já estavam acordados fazia dois dias e meio.

- Daí o nome da cidade?

- Daí o nome.

- Mas por que é assim?

- Diz meu avô que o avô dele dizia que o seu tataravô ensinou que é assim porque sempre foi assim e assim será até o fim!

Os artistas acharam aquela explicação meio fraquinha, de quem já cansou de procurar solução. Avisaram que por cinco dias escuros e quatro noites noites treinariam um novo número exclusivo e então voltariam para o espetáculo de despedida!

Voltaram.

Voltaram com o número mais arriscado e sensacional de equilíbrio, coragem e precisão já visto em toda a história da humanidade!

Precisaram de muita concentração. Foram subindo, um sobre o outro e sobre o outro e sobre o outro e o outro sobre ainda... Até que o menino equilibrista mais levinho e muito craque, com o braço bem esticado, atingiu o céu.

Com a ponta do dedo fez um picote. Um pequeno rasgo no céu, por onde passou um facho de luz.

Era mínimo, mas suficiente para iluminar de alegria e expectativa cada santantonio-lamparinense. Podiam saber como era o Sol, a luz e o calor que vinham do céu.

Devagar o rasgo foi aumentando, sozinho; como furo de meia velha, que vai crescendo até virar um rombo...

E um dia, Santantônio da Lamparina amanheceu toda e completamente iluminada! Os moradores, que nem tinham venezianas e cortinas, acordaram sobressaltados com tanta luz.

Festejaram até o Sol raiar outra vez.

Até hoje, não se cansam de ver o Sol nascer e depois o Sol se pôr e de novo o Sol nascer e mais uma vez o Sol se pôr. Acham graça, agradecidos.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos