domingo, 7 de abril de 2013

Florbela Espanca (Ser Poeta)


Aparecido Raimundo de Souza (Vendedor de Ilusões)

Aparecido é natural do Paraná, radicado no Espírito Santo
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Eutanasio Boa Morte era o que poderia ser chamado, sem sombra de dúvidas, de vendedor nato. Seria capaz de negociar, num abrir e piscar de olhos, a própria mãe, e o fazia, pelo preço de um relógio de pulso, desses bem vagabundos, ou barganhava a irmã  mais nova, pelo equivalente a uma botija de gás vazia. Trocava, permutava, emprestava, doava, liquidava, enfim, o que pintasse, entrava no jogo, e o que adviesse dessas transações, ia direto para os bolsos, como lucro.

Alguns dias atrás, na Praça da Sé, no coração de São Paulo, aos pés das escadarias que dão acesso à Catedral, assisti o sujeito empurrar vários aparelhos de rádio importados (da zona franca de Manaus), em um bando de coitados. Segundo ele, os tais aparelhos foram fabricados nos “States”. “Coisa de primeiro mundo. Tecnologia de ponta”. Bradava, bem alto e, em bom som, para que todos que passassem dessem uma paradinha, ainda que a título de curiosidade.

Para participar das demonstrações, o publico formava uma espécie de ciranda em derredor de sua banquinha improvisada. Os radinhos possuíam vinte e duas faixas de ondas, além das conhecidas ondas curtas, médias e ligeiras. Também transmitia em quarenta e sessenta metros, sem contar que trazia um dispositivo na parte de trás, que permitia mudar as faixas de AM, para FM, e conseqüentemente, de PM, para TVM. Os compradores se mostravam, realmente, entusiasmados e eufóricos. Via-se, pelos rostos alegres, pela atenção que dispensavam, e, pelos olhos arregalados. Alguns, com certeza, se tivessem dinheiro, levariam, pelo menos, uma meia dúzia, para presentearem os amigos mais chegados, familiares e até as namoradas.

De repente, apareceu um infeliz, com aparência de roceiro lá do mato. Passou, reparou, bisbilhotou, foi lá, voltou cá, tornou a ir, e a dar meia volta. Finalmente criou coragem e se aproximou disposto:

—Moço, eu sei que existe rádio com até vinte e uma faixas. Esse seu pelo que entendi, pega uma a mais. Qual é essa faixa?

Eutanásio Boa Morte, sempre de bom humor, e sem perder o controle, ou a esportiva, explicava, com a maior paciência desse mundo:

— Essa faixa é inédita. É a chamada onda de além mar. Aqui o senhor encontrará um botãozinho, como pode ver, amarelo, — me dá aqui o seu dedinho, por favor, pronto, — com ele o senhor conectará o estrangeiro...

— Mas não sei nadinha de inglês.

— Meu amigo, não seja essa a sua preocupação maior. Este produto, graças a um chip ultramoderno, possui um programa que traduz qualquer idioma existente na face da terra ou que o cidadão vier a imaginar, para o português. Se o prezado ligar num programa francês, por exemplo, e o cara estiver falando francês, claro, a tradução virá em seguida, em tempo real.

Eutanásio continuou enumerando as comodidades que o aparelho poderia proporcionar. Parecia, na verdade, um papagaio bêbado, mal conseguindo se equilibrar, a língua solta e sem controle. Falava pelos cotovelos, tinha resposta para todas as perguntas e jamais caia em contradição. De cada dez pessoas que cruzavam a praça, fosse entrando ou saindo da estação do metrô, pelo menos sete, paravam para apreciar as fantásticas funções do tal radinho – “coisa de outro planeta” e, no geral, cinco acabavam metendo as mãos nos bolsos. Detalhe: nenhuma loja na cidade comercializava. Só ele detinha a exclusividade direta do fabricante. Sem mencionar o Certificado de garantia, com validade até a Copa do Mundo de 2050.

Os radinhos do Eutanásio possuíam dezenas de outras funções importantes: além da conversão da pilha para luz, o elemento poderia falar diretamente com o locutor de uma emissora de sua preferência, pedir uma música sem usar o telefone e, em programas esportivos, dar palpites para os jogos de futebol, e ainda, ganhar um prêmio pela participação.

Enquanto estive a observar o Eutanásio, ele vendeu uns trinta aparelhos, senão mais. Para agradar aos clientes, o jovem acondicionava tudo numa caixinha, embrulhava direitinho e, ainda dava, de lambuja, seis pilhas zeradas. Qualquer reclamação bastava botar a boca no trombone que ele, “apreciador das coisas honestas, jamais aplicara golpe em quem quer que fosse”, prontamente substituiria a mercadoria, ou se o cliente quisesse, devolveria o valor correspondente e fim de papo. Seu lema, uma espécie de jargão do tempo em que se pegava mosca com açúcar, chamava a atenção, infundia respeito e passava credibilidade: “cliente satisfeito ou o dinheiro de volta, garantido, tudo justo e perfeito”.

Pelo tempo em que circulei ali pelas imediações da Praça da Sé, nos dias subsequentes, nem sombra do paradeiro do Eutanásio. Topei, contudo, com uma pá de gente ensandecida (os receptores mudos, em sacolas de supermercados), querendo reaver o rico dinheirinho empatado. Sem falar naqueles mais incontrolados, que queriam arrancar o coração da criatura e assar na ponta de um espeto de churrasco.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para Cornos Avariados. SP: Ed. Sucesso, 2011

José Apóstolo Netto (Jeca Tatu e a História dos Debaixo)

O Jeca Tatu, entre outros, faz parte da galeria das personagens mais populares da cultura brasileira. Consagrado por Monteiro Lobato nas páginas de Velha Praga e Urupês, em 1914, o caipira de barba rala e calcanhares rachados do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista caiu, tempos depois, no gosto do povo e hoje serve de referência para dizer das pessoas que denunciam apego pelas coisas da roça.

Muito se falou e ainda se fala do Jeca Tatu. Certamente muito ainda se falará dele. Por ora, falaremos apenas de um dos motivos que levou Monteiro Lobato a se entregar ao estudo do trabalhador rural paulista. A figura do Jeca Tatu em si fica para um próximo artigo.

Um desses motivos foi inclinação intelectual e artística de Lobato para o estudo naturalista dos temas populares em detrimento dos referentes elites. Pendor para o popular que era governado por uma concepção de história e de artista, grosso modo, do tipo “pé-no-chão” e subterrâneo.

É o tipo de imaginação histórica e artística que podemos depreender da fala do autor em vários momentos da sua vida. Observa ele, em 1911:

    “A verdadeira vida dum artista deve ser esta que estou levando – vida de aprendizagem, como a teve o Wilhem Meister de Goethe. Viver todas as vidas – depois pintar a Vida. Uns tempos como pedreiro, outros como carapina, vivendo no meio deles, com o aroma das madeiras morando-nos no nariz, mais os cheiros das telhas e da cal e do reboco, com a unha do polegar da esquerda sempre negra das marteladas em falso. E depois, o mar, uns tempos de mar – e engajado em barco de vela, cantando e apanhando bofetadas tremendas do capitão – um capitão de suiças. E depois, cocheiro de cab em Londres, ou de fiacre em Paris, ou mesmo de tilburi em S. Paulo. Depois, criado, maquinista, guarda -freio da Central, motorneiro da Light, vendedor de frutas no carrinho, e de bilhetes de loteria, e caixeiro, e faroleiro, e camelot, e farol de roleta… Viver as vidas principais ‘vidas coloridas’ e realmente vivas – e só depois então casar. Só assim um homem tornar-se-ia honestamente casavel.” (LOBATO,1959:310-311).

Em carta de 1912, para o seu amigo Rangel, oporá uma história dos bastidores a uma história oficial, deixando clara a sua opção pela primeira:

    “O que na Revolução Francesa me interessa é o que os estupidos historiadores à moda classica não contam. Eu quero fatias de vida da epoca, conservadas aqui e ali em memorias, em panfletos de despeitados. Interessa-me o bas-fond da revolução, o formigueiro dos interesses inconfessaveis, a trama secreta dos bastidores, os fios que movimentavam os polichinelos politicos – os subornos. A historia fala no patriotismo de Danton, na virtude de Robespierre, mas o que me interessa conhecer é o apetite de Danton, a ambição de Robespierre.Os grandes homens aparecem infinitamente mais interessantes, mais ‘homens’, quando despidos das falsas atitudes com que os veste a Historia – esse reposteiro…” (LOBATO,1959:314-315).

Mais do que uma história oficial e dos grandes acontecimentos, Lobato preconizará uma história da “gente miúda”, dos trabalhadores, só possível de ser rastreada através das memórias. Sobre isso, dirá a Rangel, em carta de abril de 1913:

    “Parece que ando na idade de ler memorias. Só nelas temos o que é possível de historia verdadeira, com os bas-fond e as cozinhas e copas da humanidade. A historia dos historiadores coroados pelas academias mostra-nos só a sala de visitas dos povos. É um garni uniforme, incolor, tanto na França como na Turquia e Russia. Mas as memorias são a alcova, as anaguas, as chinelas, o pinico, o quarto dos criados, a sala de jantar, a privada, o quintal – a pele quente e nua, ora macia e lisa ora craquenta de lepra – da humanidade com h minusculo, esse oceano de machos e femeas que come, bebe e ama – e supõe que que faz mais alguma coisa além disso.” (LOBATO,1959:340-341).

Em geral, os protagonistas dessas narrativas históricas e ficcionais seriam, em vez de heróis de guerra, governadores e presidentes, os esquecidos sociais. Numa carta de 1911 a Rangel, enfatiza:

    “O livro que v. planeja sobre bandidos do sertão, capangas, etc., tambem é dos necessarios. O assunto foi tocado pelo velho Bernardo Guimarães e outros – gente de pouco realismo, e de romantismo em dose maior que o quantum satis. O filão está virtualmente virgem.” (LOBATO,1959:316).

É ancorado nessa atitude e convicção de pensar, decididamente, o universo popular, com o intuito de delegar voz aos silenciados da História, que Lobato irá direcionar o seu olhar para o trabalhador rural do Vale do Paraíba. Estes silenciados cujas causas sociais e econômicas da sua dilaceração humana, o escritor conhecia muito bem, como mostra esse trecho do seu prefácio ao livro “Diretrizes para uma Política Rural e Econômica”, de Paulo Pinto de Carvalho:

    “Quem do alto olha para o Brasil vê um complexo sistema de parasitismo em repouso sobre um larguissimo pedestal de escravos andrajoso e roidos de todas as doenças endemicas: o homem rural, o que chamamos o caboclo, o negro da roça, os milhões de seres sem voz que na terra mourejam numa agricultura ainda de indio – queimar e plantar, só, só, só. Sobre a miseria infinita desses desgraçados está acocorada a  nossa ‘civilização’, isto é, o sistema de parasitismo que come, veste-se, mora, e traz a cabeça sob a asa para evitar o conhecimento da realidade.” (LOBATO,1959:54-55).

Referências
CAVALHEIRO, Edgar. Monteiro Lobato. Vida e Obra. 2 ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, 2 vols.
LOBATO, Jose Bento Monteiro. A Barca de Gleyre. v. 1 e 2. São Paulo, Brasiliense, 1959.
______. Prefácios e entrevistas. São Paulo, Brasiliense, 1959.


* JOSÉ APÓSTOLO NETTO é professor universitário, historiador e jornalista. 

Fonte:
Publicado na REA, nº 26, julho de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/026/26cnetto.htm

Isabel Furini (Milagre de Natal)

João recebeu uma ligação da editora. A secretária disse que o senhor Eufrásio, o dono, queria vê-lo nessa mesma tarde.

João sentiu seu ego elevar-se sobre os prédios mais altos da cidade. Arrumou-se. Trocou duas ou três vezes de gravata para ver qual lhe dava um ar de homem respeitável. Agora ele era um escritor. Tinha que cuidar de sua imagem.

O editor o recebeu com um sorriso especial... um sorriso que não tinha fim.

– Pode sentar-se, João – disse o senhor Eufrásio – quero enfatizar que raramente um autor estreante como você recebe uma carta de um autor consagrado como Mistópolos... e com tantos elogios! Eu posso dizer que foi um verdadeiro milagre!

– Obrigado, obrigado – disse João, fingindo humildade.

– Foi um milagre, rapaz, um milagre mesmo... um milagre de Natal!..

– Foi?

– Sim, João, foi um verdadeiro milagre, pois Mistópolos morreu em 2005.

Fonte:
FURINI, Isabel Florinda (org.) Contos por 14 Autores. Curitiba: JM Livraria Jurídica, 2008.

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXV)

Sonetos
(foi mantida a grafia original)


151

De um tão felice engenho, produzido
de outro, que o claro Sol não viu maior,
é trazer cousas altas no sentido,
todas dinas de espanto e de louvor.

Museu foi antiquíssimo escritor,
filósofo e poeta conhecido,
discípulo do Músico amador
que co som teve o Inferno suspendido.

Este pôde abalar o monte mudo,
cantando aquele mal, que eu já passei,
do mancebo de Abido mal sisudo.

Agora contam já (segundo achei),
Passo, e o nosso Boscão, que disse tudo
dos segredos que move o cego Rei.

057

De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança,
sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que é ter contentamento,
se mais há de perder quem mais alcança.

Mas dou vos esta firme segurança
que, posto que me mate meu tormento,
pelas águas do eterno esquecimento
segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
que com qualquer cous' outra se contentem;
antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,
que com esquecimento desmereçam
a glória que em sofrer tal pena sentem.

137

Diana prateada, esclarecia
com a luz que do claro Febo ardente,
por ser de natureza transparente,
em si, como em espelho, reluzia.

Cem mil milhões de graças lhe influía,
quando me apareceu o excelente
raio de vosso aspecto, diferente
em graça e em amor do que soía.

Eu, vendo-me tão cheio de favores,
e tão propínquo a ser de todo vosso,
louvei a hora clara, e a noite escura,

Sois nela destes cor a meus amores;
donde colijo claro que não posso
de dia para vós já ter ventura.

044

Ditoso seja aquele que somente
se queixa de amorosas esquivanças;
pois por elas não perde as esperanças
de poder n'algum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,
não sente mais que a pena das lembranças;
porqu', inda que se tema de mudanças,
menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado
onde enganos, desprezos e isenção
trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
d'erros em que não pode haver perdão,
sem ficar n'alma a mágoa do pecado.

056

Diversos dões reparte o Céu benino,
e quer que cada üa um só possua;
assi, ornou de casto peito a Lüa,
ornamento do assento cristalino.

De graça, a Mãe fermosa do Minino,
que nessa vista tem perdido a sua;
Palas, de discrição, que imite a tua;
do valor, Juno, só de império dino.

Mas junto agora o mesmo Céu derrama
em ti o mais que tinha, e foi o menos,
em respeito do Autor da natureza;

que, a seu pesar, te dão, fermosa Dama,
Diana, honestidade, e graça, Vénus,
Palas o aviso seu, Juno a nobreza.

121
Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
para fazerdes esse áureo crino,
onde fostes buscar esse ouro fino?
de que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz Febeia,
esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino,
se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes
as perlas preciosas orientais
que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal, como quisestes,
vigiai-vos de vós, não vos vejais,
fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

122

Doce contentamento já passado,
em que todo meu bem já consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi, cruel e dura,
aquela que causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhüa criatura,
que não pode nenhum impedimento
fugir do que [lhe] ordena sua estrela.

123

Doce sonho, suave e soberano,
se por mais longo tempo me durara!
Ah! quem de sonho tal nunca acordara,
pois havia de ver tal desengano!

Ah! deleitoso bem! ah! doce engano!
Se por mais largo espaço me enganara!
Se então a vida mísera acabara,
de alegria e prazer morrera ufano.

Ditoso, não estando em mim, pois tive,
dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim, ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
pois sempre nas verdades fui mofino.

006

Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto; mas, porém, não nego
que inda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento
d'alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa, e em vós se banha.

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)
Imagem formatada obtida na internet, sem identificação do autor.

Helena Vasconcelos (Lua Cheia)

Fui feita em noite de lua cheia, está tudo escrito no céu, basta consultar as cartas, não há engano possível. Aconteceu neste mesmo quarto, neste mesmo leito, lua tão grande assim nunca fora vista! Foi assunto de conversas por tudo e por nada, parecia o fim, tanta beleza não podia ser deste mundo. A luz entrava a jorros pela janela aberta, os amantes estavam desatentos, nada viam, não olhavam um para o outro, fechavam as pálpebras com força, cegos, entrelaçados num abraço indissolúvel, a cama desfeita, o chão inundado de claridade; não ouviam, não davam pela lua nem pelos gritos dos animais noturnos não sentiam o vento, que tudo abrasava; demasiado juntos, demasiado expostos, sem o refúgio da escuridão.

Fui feita do sal das lágrimas, do gosto amargo do suor, do agasalho do riso, do desconcerto brutal dos gestos. Eles, nem por um momento se lembraram de mim. O luar, esse, espreitava.

Nasci assim, curiosa do mundo, enrolada como um bicho-de-conta, mal amanhada, sem freio nem mestre. Na minha casa entrava a espuma das vagas e os espelhos devolviam-me o olhar, na superfície mate do sal. Nasci do nada, no meio de nada. Este corpo que é o meu, é apenas isso, um corpo.

Manias, só manias, desde o princípio. Uma completa e devastadora solidão. O desejo de descobrir o que estava mais além, longe do que fica bem dizer que está bem. Uma vontade de pertencer a alguém, sem levar adiante tanto atrevimento. No mesmo lugar, armada em dura, feita de aço, antes quebrar que vergar. A mesma lua, desafiadora de perigos, do perigo maior do amor. (A luz doce quando nada nos separava; o negro da escuridão, quando me vi só.)
*
As vozes chegam-me aos ouvidos, num murmúrio, abafadas pela porta do quarto:

“Por que espera ela? Se isto continua, ainda ficamos sem casamento…!”

Não há esconderijo no silêncio, as palavras jorram de outras bocas, ininterruptamente, incitam-me, empurram-me:

“Vai, vai , que bela estás, ele espera-te, vai...”.

Ordens e mais ordens. Não é possível fugir. Nenhum abrigo. Quero gritar e não posso, da minha garganta não sai qualquer som. (A minha cabeça coroada de flores, o meu corpo envolto num tecido de vento que estremece ao menor movimento, náufragos num mar revolto...) .

Um homem não é desculpa para nada, não serve de álibi. Um homem, seja ele qual for, santo ou guerreiro, demônio ou ermita não é nada, nem princípio nem fim. É apenas o que é, um homem.

Do outro lado da parede, a mesa está vergada com o peso de iguarias, as travessas deixam marcas profundas na toalha imaculada. Os cheiros quentes enfraquecem as pernas e fazem a cabeça andar à volta, os odores frios são cortantes como o vento do norte, as fatias douradas refulgem na luz, há patos inteiros, a pele como laca antiga, bolinhos de cristal, queijos leitosos e macios como luas, terrinas fumegantes com carnes tenras e picantes, peixes rosados de olhos glaucos, cardumes de lagostas agressivas como soldados em batalha.

“Por que não sai ela do quarto?” dizem as vozes, “ de que tem medo, ele ama-a tanto, é tão terno, olhem que belo par!…”
*

Que sabem as vozes das rotas do amor? Como podem falar assim, do que nem eu conheço? De paixão sim, que assim nasci, paixão que não esqueço, paixão perigosa, nefasta, insustentável. De amor se fala agora e nada sei.

O meu noivo irrompe pelo quarto, olhar feroz, mão estendida num gesto imperativo, sem margem para dúvidas. Olho o espaço que já não me quer, o espelho alto onde me revejo uma ultima vez. A luz branca invade tudo, para lá dos vidros o jardim escurece envolto em sombras. Na clareira, desenham-se formas fantásticas, tufos, espirais, estrias, rastos de lua.

Estendo o braço e avanço com o meu vestido de espinhos, o corpo em fogo, o coração a latejar, os teus olhos cegos cravados nos meus. Longe vão as noites em que suspirávamos um pelo o outro neste mesmo leito, entrelaçados, impossível separarmo-nos, a minha mão na tua, a tênue claridade a iluminar o teu perfil ardente.

Devagarinho, fecho a porta atrás de mim.

Fonte:
"Storm-Magazine" março de 2007.

Helena Vasconcelos

Helena Vasconcelos nasceu em Lisboa, Portugal.

Foi para a Índia com quatro anos e, desde então, nunca mais parou de viajar.

Formada pela Faculdade de Letras; em Filologia Germânica pela Universidade Clássica Lisboa e em História de Arte na Escola Arco, Lisboa, tem como ocupações principais escrever, ler e viajar.

É atualmente, e desde o primeiro número, colaboradora permanente da revista ELLE portuguesa.

Colabora com o "Jornal Público" desde a sua fundação – suplemento cultural Y - tendo também trabalhado no jornal "O Independente".

Promove ações de Formação na área de apoio e divulgação à Leitura em Bibliotecas Municipais, orientando Comunidades de Leitores em Bibliotecas e, desde há cinco anos, na Culturgest, em Lisboa.

É promotora e dinamizadora de “Os Clássicos na Gulbenkian”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;

Organizou os ciclos de conferências da Feira do Livro de Lisboa de 2004 e de 2005 (com Paula Moura Pinheiro).

Escreveu sobre Arte em vários jornais, catálogos e revistas da especialidade, dos quais se destacam Neue Kunst in Europa (Alemanha), Juliet (Itália).

Publicou um livro de contos em 1988 “Não Há Horas para Nada” (Ed. Relógio D’Água) que recebeu o Prêmio Revelação do Centro Nacional de Cultura.

Publicou “Mário Eloy. O Pintor do Desassossego”, Ed. Caminho.

Contribuiu com “short stories” para várias revistas portuguesas e estrangeiras.

Criou e dirige a revista on-line "Storm-Magazine. O lugar da cultura" - www.storm-magazine.com.

Fonte:
Projeto Releituras

Lino Mendes (Baú de Memórias: A Páscoa)

Embora nesses tempos (1920/1930) a religiosidade fosse maior entre as nossas gentes, pois para assistir a Missa ou mesmo rezar o terço muitos eram os que vinham dos arredores (do campo). A quadra da PÁSCOA já tinha ultrapassado as fronteiras do religioso, pois a crentes e não crentes se ouvia logo de manhã (domingo) o desejo de uma “Boa Páscoa. ”Como em todo o lado a Quaresma começava à “Quarta-Feira de Cinzas” o que não impedia que nesse mesmo dia se realizasse o “Enterro do Santo Entrudo”que viria a ser proibido de maneira brutal aí por 1950, e terminava no Sábado de Aleluia pelas 10 horas quando os sinos repicavam na torre da Igreja enquanto a garotada, batendo as “ matracas “diziam” Aleluia, Aleluia, Cristo Ressuscitou”.

Mais tarde começaram a dizer “Aleluia, Aleluia, Bacalhau" para a rua. É que de uma maneira geral a população respeitava o jejum não comendo carne no dia de sexta-feira. Nos meios-dias santos,—de quinta feira ao meio-dia a sexta feira à mesma hora –não se trabalhava, não  se mexia em terra, e às 15 horas dessa mesma sexta-feira, em casa ou no trabalho, respeitava-se um minuto de silêncio.

Ainda durante a “Quaresma” e também mais ou menos até aos anos 50, mais concretamente na terceira quarta-feira tinha lugar a “Serração das Velhas”.

     Diga-se, entretanto, que a PÁSCOA tem lugar no 1º domingo depois da Lua Cheia que ocorra no dia ou depois do dia 21 de Março. É uma festa móvel que ocorre 47 dias depois da “Quarta-feira de Cinzas”.

     A “Semana Santa”, durante a qual decorrem as cerimónias relativas às várias fases do processo que leva à crucificação, tem início no domingo anterior (Domingo de Ramos), que simboliza a entrada de Jesus em Jerusalém, e durante o qual são benzidos os “ramos de palmeira”.
   
     PÁSCOA é tempo de festa, que se no aspecto religioso difere de terra para terra, o mesmo acontece no campo do lúdico, mas com a simbologia a não ter fronteiras. O “ovo” (símbolo do nascimento), o “folar”, as “amêndoas”, o pão e o vinho”(que representam a última ceia do Senhor), o “círio” (a grande vela que se acende na aleluia) são entre outros , símbolos que marcam esta quadra.
       
     Curiosamente, e sem que saibamos o por quê, em Montargil não são ramos de palmeira que se benzem mas sim de alecrim e de oliveira que são depois colocados em cruzes de cana, nas hortas e nas cearas. Havia até quem colocasse duas cruzes, uma voltada para a outra.

 Entretanto e décadas atrás (1920/1930) era por aqui tradição que ao domingo de Páscoa os pastores viessem dos campos à vila para comprar as amêndoas. É certo que o dinheiro era pouco, mas as amêndoas (de massa de centeio) eram baratas e vendiam -se ao preço de dois tostões a meia-quarta. Aliás, houve tempo em que nesta “quadra” se andava pela rua “rifando” pacotes de amêndoas---era o “Caçurras”, embora este não saísse da porta da taberna, era o “Rabanita” e era o “Perneta” e se calhar outros que agora não recorda. A cada jogador ( teriam que ser entre 3  a 9 e por um tostão eram dadas três cartas de um baralho de que se retiravam as figuras ganhando aquele que tivesse a carta com mais pintas.

    Outro costume que também desapareceu, era o do “enganchar”. Rapariga com rapaz ou rapariga com rapariga, enganchando dedo mininho com dedo mininho diziam “enganchar, enganchar, para na quaresma fazer rezar”, e quem no domingo de Páscoa se deixasse enganar, isto é, se deixasse fazer rezar primeiro ,---apontava-se e  dizia-se Reza --lá tinha que dar o “folar”, que normalmente era um pacote de amêndoas . Mais tarde e ao enganchar já se dizia, ”enganchar, enganchar, para na Páscoa fazer rezar”.

    Os que ” enganchavam” ficavam “compadres” (Compadres da Páscoa),e  o “folar” constava sempre de amêndoas, mas no caso das raparigas estas ofereciam sempre mais qualquer coisa como por exemplo uma “gravata”, um “lenço” ou um “colarinho”que nesse tempo era desligado da  camisa. Claro que havia sempre retribuição daquele que fazia “rezar”.

     Nalguns pontos do país também é dado o nome de “folar” a um bolo que se faz por esta altura (e não só, creio) mas  foi hábito que por aqui não se enraizou. No entanto, aí pelos anos 1945/50, o Mestre Alfredo, um verdadeiro artista na arte de padeiro, fazia um “folar” da  massa das “arrufadas”, que como se sabe é um  bolo pouco doce. De formato circular, levava ao centro um ovo e cruzando sobre o mesmo duas “asas” como as das cestas e naturalmente da mesma massa. Era então cozido no forno a lenha o que como se sabe lhe dava outro sabor.

      Quanto à gastronomia, a ementa era a canja de galinha ou de peru (este em casas mais endinheiradas), e as ditas aves assadas no forno a lenha (que lhe dava um outro sabor). À quinta e/ou  à sexta feira santa (dias em que não se comia carne) o bem tradicional arroz com castanhas. No que respeita a doces, as afamadas tigeladas, e os doces de amêndoa (os queijinhos e as tortas). Mas também nos falaram no chibo e no borrego assados (mas em fornos a lenha) havendo ainda quem nos fale, para o almoço, da sopa de pé de porco .

    Durante muitos anos, a “Procissão dos Passos” que merecia uma enorme adesão, realizava-se no “Domingo de Ramos” para não coincidir com a que aqui ao lado se realizava em Cabeção. Durante a mesma, que percorria a Rua do Comércio e a Rua da Misericórdia, estava assinalada a “Via Sacra”sendo cada uma das 14 “estações” marcada por um altar, que determinava uma paragem do cortejo, sendo então entoado um cântico alusivo ao acontecimento, com acompanhamento de algum instrumental— Contrabaixo (Chico Lourenço), Trompete (José Arlindo) e Clarinete (Fouchinha) enquanto o maestro Alves do Carmo emprestava a voz. O  Sermão do Encontro”  tinha lugar ou frente à Travessa dos Combatentes com o orador na varanda do Pailó (já numa segunda fase) ou então  frente ao Moura (com o orador na varanda da casa deste). Era um momento emotivo, que sensibilizava mesmo os não crentes..

O “ Baile da Pinha” realizava-se no domingo anterior à Páscoa.

E na segunda-feira (de Páscoa) embora fosse dia de trabalho, era costume  ir-se  em grupos fazer “piqueniques” no campo, pelo que muitos nesse dia tomavam uma “empreitada” para poderem ir para a festa.

Domingo de Páscoa era altura em se realizavam muitos batizados, mas em  tempos mais remotos  era Domingo de Pascoela  a data escolhida , chegando a ser 45 no mesmo dia

Fonte:
O Autor

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 2

CAPÍTULO VIII / É TEMPO

Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. "A vida é uma ópera", dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um Capítulo.

CAPÍTULO IX / A ÓPERA

Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. "O desuso é que me faz mal", acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da terra e do céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniqüidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia. As vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto - vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:

--A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimirás, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimirás. Há coros a numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...

--Mas, meu caro Marcolini...

--Quê...

E depois, de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.

Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Raiael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passa do sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, e acaso para reconciliar-se com o céu,--compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.

--Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés...

--Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.

--Mas, Senhor...

--Nada! nada!

Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.

--Ouvi agora alguns ensaios!

--Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.

Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a além da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Aden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.

Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa acha obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem c mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.

--Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: "Muitos são os chamados, poucos ao escolhidos". Deus recebe eu ouro, Satanás em papel.

--Tem graça...

--Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia. quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver algum, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera...

CAPÍTULO X / ACEITO A TEORIA

Que é demasiada metafísica para um só tenor, não há dúvida; mas a perda da voz explica tudo, e há filósofos que são, em resumo, tenores desempregados.

Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo tecnicismo, depois um trio, depois um quatro... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou.

CAPÍTULO XI / A PROMESSA

Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis anos.

Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes, nem depois de me dar à luz, contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separássemos o mais tarde possível, fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele Padre Cabral, velho amigo do tio Cose, que ia lá jogar às noites.

Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe esperou que os anos viessem vindo. Entretanto ia-me afeiçoando à idéia da Igreja; brincos de criança, livros devotos. imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar quando íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa,--um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós, a hóstia era sempre um doce. No tempo em que brincávamos assim, era muito comum ouvir à minha vizinha: "Hoje há missa?" Eu já sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir hóstia por outro nome Voltava com ela, arranjávamos o altar, engrolávamos o latim e precipitávamos as cerimônias. Dominus, non sum dignus... Isto, que eu devia dizer três vezes, penso que só dizia uma, tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho nem água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do sacrifício.

Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu supunha ser negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, podiam antes o seminário do mundo que o de S. José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertá-la muito.

CAPÍTULO XII / NA VARANDA


Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela boca fora. Não me atrevia a descer à chácara, e passar ao quintal vizinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias:

"Sempre juntos..."

"Em segredinhos..."

"Se eles pegam de namoro..."

Tijolos que pisei e repisei naquela tarde, colunas amareladas que me passastes à direita ou à esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um gozo novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava não sei que bálsamo interior. Às vezes dava por mim, sorrindo, um ar de riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu pecado. E as vozes repetiam-se confusas;

"Em segredinhos..."

"Sempre juntos..."

"Se eles pegam de namoro..."

Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze, ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Pássaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estilo, toda a gente viva do ar era da mesma opinião.

Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que não estabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor - outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis - mas eu retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia. alguma frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus, eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga.

Pois, francamente, só agora entendia a comoção que me davam essas e outras confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como sinais de alguma cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infância. Também adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa, prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é verdade, mas com exclusivismo também.

Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a primeira.

CAPÍTULO XIII / CAPITU

De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:

E no quintal:

--Mamãe!

E outra vez na casa:

--Vem cá!

Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si mesma, quando a cabeça não as rege por meio de idéias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela- abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente o uma corda. Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do outro cor, muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do Doutor João da Costa, tomava o pulso à doente e pedia-lhe que mostrasse a língua. "É surda, coitada!", exclamava Capitu. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do médico.

--Capitu!

--Mamãe!

--Deixa de estar esburacando o muro - vem cá.

A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma cousa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me inquieta:

--Que é que você tem?

--Eu? Nada.

--Nada, não; você tem alguma cousa.

Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.

--Que é que você tem? repetiu.

--Não é nada, balbuciei finalmente.

E emendei logo.

--É uma notícia.

--Notícia de quê?

Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista não sei como...

--Então?

--Você sabe...

Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era.
---------
continua...

Daniel Munduruku (Tirando de Letra com Daniel Munduruku e Outras Gentes)

SESC Ribeirão Preto
Dia 13 DE ABRIL
Sábado, às 10h30.
SOBRE PIOLHOS E OUTROS AFAGOS: BATE-PAPO COM EDUCADORES SOBRE O ATO DE EDUCAR(SE).

Com Daniel Munduruku, escritor indígena com mais de 40 livros publicados. É graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia e é Doutor em Educação pela USP. Pretende retratar a temática a partir da prática educativa que é levada a efeito nas aldeias e comunidades indígenas e que tem como princípio a acolhida, o respeito, o aprendizado do silêncio e o pertencimento. Numa conversa interativa, o professor e escritor Daniel Munduruku irá apresentar vários aspectos das culturas indígenas oferecendo pistas para o trabalho pedagógico em sala de aula.

Público: Professores de Educação Infantil e do Ensino Fundamental.

No Auditório. 200 vagas. Informações e inscrições a partir de 2 de abril pelo email tirandodeletra@ribeirao.sescsp.org.br ou na Central de Atendimento.

Participe do Tirando de Letra – Daniel Munduruku e outras gentes.

Abertura: 10 de maio, às 20h30.

Visitação até 8/9, de terça a sexta, das 13h30 às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h.

Horário especial para visitação de grupos escolares: de terça a sexta, das 9h às 17h30.

Informações e agendamento pelo email tirandodeletra@ribeirao.sescsp.org.br

Especialmente Recomendado para Crianças e Adolescentes

Grátis

Fonte:
SESC

sábado, 6 de abril de 2013

Carolina Ramos (A Vida é uma Ilusão)

Fonte:
RAMOS, Carolina, Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.

Lino Mendes (Baú de Memórias: A Serração da Velha)

(Lino Mendes é de Montargil/ Portugal)

Trata-se de uma tradição muito antiga, datada possivelmente do século XVII e que se festejava  na noite de quarta-feira da terceira semana da “Quaresma”.

Era, como se deduz uma festa pagã, hoje quase desaparecida no nosso país, festejava-se de maneira diferente de terra para terra, tendo como ponto comum, o “testamento”.

Mas, o que simbolizava  a “Serração da Velha”?

Dizem uns que com a mesma se pretende” celebrar o renascimento da Natureza e a expulsão dos demónios do inferno”, enquanto outros referem tratar-se de “um rito de expulsão da morte,” ou mesmo de “ um ritual de passagem mercado pelo desejo simbólico de renovação”.

Terras havia onde as “serradas” eram as velhas que acabavam de ser “avós” ou solteironas que ainda” queriam casar”. Na maioria as pessoas de idade  nem apareciam à janela e quando o faziam era para lhes dar troco, atirando-lhes com um balde água e não poucas vezes urina. Mas também havia quem lhes abrisse a porta, lhes oferecia qualquer coisa, evitando assim a “serração”. Claro que o boneco que simbolizava a velha era queimado no final.

Talvez possamos definir a “Serração da Velha”— nalguns lados também chamada de “ Serra da Velha” e “Serra das Velhas”---“como  o enterro do  Inverno e o início da Primavera”, que marca um interregno lúdico no calendário religioso.

E em Montargil, como era?

Não temos muitos elementos, diremos mesmo que temos poucos. Que me  lembre, não havia “boneca”, recordo-me vagamente, de uma “serração”, feita   há uns cinquenta /sessenta anos. A garotada fazia barulho, com matracas ou batendo em tábuas, ao mesmo tempo que diziam os seguintes versos:

Serre-se a velha “Barrinha”
lá do outro lado da ribeira,
Onde está a comer perna de burro
Pensando que é farinheira.

Mas o Freitas. Mais velho uns anitos, diz-nos que batiam em latas fingindo que iam a serrar, e lembra-se ainda de duas quadras:

Serre-se a Angélica do Zé Mestre
que ela está a roer num pau;
deixou tudo aos Bexigas
não deixou nada aos carapaus.

 Serre-se a velha Maria Luísa,
serre-se e torne-se a serrar,
porque ela tem ossos tão duros,
que nem a serra quer entrar.

Como se pode ver pela segunda quadra, a “serração” incidia algumas vezes em casos da vida real. Mas o que mais uma vez é evidente, certo que desconhecendo os costumes das terras vizinhas, é a enorme diferença em relação a outras terras.

Não há boneca que no final seria queimada, o que aqui acontecia durante a queima dos “compadres”  e das “comadres”; não havia testamento, o que por aqui se verificava no final do “Enterro do Entrudo”. E por falar em testamento, e quando não se fazia o “enterro”, o senhor “António Júlio” também aparecia no Outeiro apregoando as “ deixas” que de maneira satírica” contemplavam algumas figuras da terra.

Fonte:
O Autor

Machado de Assis (O Califa de Platina)

Publicado originalmente em O Cruzeiro 1878

O califa Schacabac era muito estimado de seus súditos, não só pelas virtudes que o adornavam, como pelos talentos que faziam dele um dos varões mais capazes de Platina. Os benefícios de seu califado, aliás curto, eram já grandes. Ele iniciara e fundara a política de conciliação entre as facções do Estado, animava as artes e as letras, protegia a indústria e o comércio. Se havia alguma rebelião, tratava de vencer os rebeldes; em seguida perdoava-lhes. Finalmente, era moço, crente, empreendedor e patriota.

Uma noite, porém, estando a dormir, apareceu-lhe em sonhos um anão amarelo, que, depois de o encarar silenciosamente alguns minutos, proferiu estas palavras singulares:

— Comendador dos crentes, teu califado tem sido um modelo de príncipes; falta-lhe, porém, originalidade; é preciso que faças alguma coisa original. Dou-te um ano e um dia para cumprir este preceito: se o não cumprires, voltarei e irás comigo a um abismo, que há no centro da Tartária, no qual morrerás de fome, sede, desespero e solidão.

O califa acordou sobressaltado, esfregou os olhos e reparou que era apenas um sonho. Contudo, não pôde dormir mais; levantou-se e foi ao terraço contemplar as últimas estrelas e os primeiros raios da aurora. Ao almoço, serviram-lhe peras de Damasco. Tirou uma e quando ia a trincá-la, a pêra saltou-lhe das mãos e saiu de dentro o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmas palavras da noite. Imagina-se o terror com que Schacabac as ouviu. Quis falar, mas o anão desaparecera. O eunuco que lhe servira a pêra estava ainda diante dele, com o prato nas mãos.

— Viste alguma coisa? perguntou o califa, desconfiado e pálido.

— Vi que Vossa Grandeza comeu uma pêra, muito tranqüilo, e, ao que parece, com muito prazer.

O califa respirou; depois recolheu-se ao mais secreto de seus aposentos, onde não falou a ninguém durante três semanas. O eunuco levava-lhe a comida, com exclusão das peras. Não lhe aproveitou a exclusão, porque no fim de três semanas, apetecendo-lhe comer tâmaras, viu sair de dentro de uma o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmíssimas palavras de intimação e ameaça. Schacabac não se pôde ter; mandou chamar o vizir.

— Vizir, disse o califa, logo que este acudiu ao chamado, quero que convoques para esta noite os oficiais do meu conselho, a fim de lhes propor alguma coisa de grande importância e não menor segredo.

O vizir obedeceu prontamente à ordem do califa. Naquela mesma noite, reuniram-se os oficiais, o vizir e o chefe dos eunucos; todos estavam curiosos de saber o motivo da reunião; o vizir, porém, mais curioso ainda que os outros, simulava tranqüilamente achar-se na posse do segredo.

Schacabac mandou vir caramelos, cerejas, e vinhos do Levante; os oficiais do conselho refrescaram as goelas, avivaram o intelecto, sentaram-se comodamente nos sofás e cravaram os olhos no califa, que depois de alguns minutos de reflexão, falou nestes termos:

— Sabeis que tenho feito alguma coisa durante o meu curto califado; contudo, ainda não fiz nada que verdadeiramente se possa dizer original. Foi o que me observou um anão amarelo, que me apareceu há três semanas e ainda hoje de manhã. O anão ameaçou-me com a mais afrontosa das mortes, em um abismo da Tartária, se no fim de um ano e um dia, eu não tiver feito alguma coisa positivamente original. Tenho cogitado dia e noite, e confesso que ainda não achei coisa que merecesse essa qualificação. Por isso vos convoquei; espero de vossas luzes o concurso necessário à minha salvação e à glória da nossa pátria.

O conselho ficou boquiaberto, ao passo que o vizir, a mais e mais espantado, não movia um único músculo do rosto. Cada oficial do conselho fincou a cabeça nas mãos, a ver se descobria uma idéia original. Schacabac interrogava o silêncio de todos, e sobre todos, o do vizir, cujos olhos, fitos no magnífico tapete da Pérsia que forrava o chão da sala, parecia ter perdido a vida própria, tal era a grande concentração dos pensamentos.

Ao cabo de meia hora, um dos oficiais, Muley-Ramadan, encomendando-se a Allah, falou nestes termos:

— Comendador dos crentes, se quereis uma idéia extremamente original, mandai cortar o nariz a todos os vossos súditos, adultos ou menores, e ordenai que a mesma operação seja feita a todos os que nascerem de hoje em diante.

O chefe dos eunucos e diversos oficiais protestaram logo contra semelhante idéia, que lhes pareceu excessivamente original. Schacabac, sem a rejeitar de todo, objetou que o nariz era um órgão interessante e útil ao Estado, porquanto fazia florescer a indústria dos lenços e ministrava anualmente alguns defluxos à medicina.

— Que razão poderia levar-me a privar o meu povo desse natural ornamento? concluiu o califa.

— Saiba Vossa Grandeza, respondeu Muley-Ramadan, que, fundado na predição de um sábio astrólogo de meu conhecimento, tenho por certo que, daqui a um século, há de ser descoberta uma erva fatal ao gênero humano. Essa erva, que se chamará tabaco, será usada de duas formas — em rolo ou em pó. O pó servirá para entupir o nariz dos homens e prejudicar a saúde pública. Desde que os vossos súditos não tenham nariz serão preservados de tão pernicioso costume...

Esta razão foi triunfalmente combatida pelo vizir e todo o conselho, a tal ponto que o califa, aliás inclinado a ela, deixou-a inteiramente de mão. Então o chefe dos eunucos, depois de pedir licença a Schacabac para exprimir um voto, que lhe parecia muito mais original que o primeiro, propôs que dali em diante o pagamento dos impostos passasse a ser voluntário, clandestino e anônimo. Desde que assim for, concluiu ele, estou certo de que o erário regurgitará de sequins; o contribuinte crescerá cem côvados ante a própria consciência; algum haverá que, levado de legítimo excesso, pague duas e três vezes a mesma taxa; e afinado deste modo o sentimento cívico, melhorarão, e muito, os costumes públicos.

A maioria do conselho concordou em que a idéia era prodigiosamente original, mas o califa achou-a prematura, e aventou a conveniência de a estudar e pôr em execução nas proximidades da vinda do Anticristo. Cada um dos oficiais propôs a sua idéia, que foi julgada original, mas não tanto que merecesse ser aceita de preferência a todas. Um propôs a invenção da clarineta, outro a proscrição dos legumes, até que o vizir falou nestes termos:

— Seja-me dado, comendador dos crentes, propor uma idéia que vos salvará dos abismos da Tartária. É esta: mandai trancar as portas de Platina a todas as caravanas que vierem de Brazilina; que nenhum camelo, se ali recebeu mercadoria ou somente bebeu água, que nenhum camelo, digo eu, possa penetrar as portas da nossa cidade.

Espantado com a proposta, o califa ponderou ao vizir:

— Mas que motivo... sim, é preciso que haja um motivo... para...

— Nenhum, tornou o vizir, e nisto consiste a primeira originalidade da minha idéia. Digo a primeira, porque há outra maior. Peço-vos, e ao conselho, que acompanheis atentamente o meu raciocínio...

Todos ficaram atentos.

— Logo que a notícia de semelhante medida chegar a Brazilina, haverá grande reboliço e estupefação. Os mercadores ficarão pesarosos com o ato, porque são os que mais perdem. Nenhuma caravana, nem ainda as que vêm de Meca, quererá mais parar naquela cidade maldita, a qual (permita-me o conselho uma figura de retórica) ficará bloqueada pelo vácuo. Que acontece? Condenados os mercadores a não mercar para cá, serão obrigados a fechar as portas, ao menos aos domingos. Ora, como há em Brazilina uma classe caixeiral, que suspira pelo fechamento das portas aos domingos, para ir fazer suas orações nas mesquitas, acontecerá isto: o fechamento das portas de cá produzirá o fechamento das portas de lá, e Vossa Grandeza terá assim a glória de inaugurar o calembour nas relações internacionais.

Apenas o vizir concluiu este discurso, todo o conselho reconheceu, unânime, que a idéia era a mais profundamente original de quantas tinham sido propostas. Houve abraços, expansões. O chefe dos eunucos disse poeticamente que a idéia do vizir era “. O califa manifestou o seu entusiasmo ao vizir, dando-lhe de presente uma cimitarra, uma bolsa com cinco mil sequins e a patente de coronel da guarda nacional.

No dia seguinte, todos os cádis leram ao povo o decreto que mandava fechar as portas da cidade às caravanas de Brazilina. A notícia excitou a curiosidade pública e causou certa estranheza, mas o vizir tivera o cuidado de espalhar pela boca pequena a anedota do anão amarelo, e a opinião pública aceitou a medida como um sinal visível da proteção de Allah.

Daí em diante, por espaço de alguns meses, um dos recreios da cidade era subir às muralhas a ver chegar as caravanas. Se estas vinham de Damasco, de Jerusalém, do Cairo ou de Bagdá, abriam-se-lhe as portas, e elas entravam sem a mínima objeção; mas se alguma confessava que tocara em Brazilina, o oficial das portas dizia-lhe que passasse de largo. A caravana voltava no meio dos apupos da multidão.

Entretanto o califa indagava todos os dias do vizir se constava que em Brazilina se houvesse procedido ao fechamento das portas aos domingos; ao que o vizir invariavelmemte respondia que não, mas que a medida não tardaria a ser proclamada como conseqüência rigorosa da idéia que havia proposto. Nessa esperança, iam voando as semanas e os meses.

— Vizir, disse um dia Schacabac, quer-me parecer que estamos enganados.

— Descanse Vossa Grandeza, retorquiu friamente o vizir; o fato vai consumar-se; assim o exige a ciência.

Pela sua parte, o povo cansou de apupar as caravanas e começou a notar que a idéia do vizir era simplesmente amoladora. Não vinham da Brazilina as mercadorias do costume, nem o povo mandava para lá as suas cerejas, os seus vinagres e os seus colchões. Ninguém ganhava com o decreto. Começou-se a murmurar contra ele. Um boticário (ainda não havia farmacêutico) arengou ao povo, dizendo que a idéia do vizir era simplesmente vã; que jamais o trocadilho das portas fechadas chegaria a ter a mínima sombra de realidade científica. Os doutores eclesiásticos não acharam no Corão um só versículo que pudesse justificar tais induções e esperanças. Lavrava a descrença e descontentamento; começava a soprar uma aragem de revolução.

O vizir não teve só de lutar contra o povo, mas também contra o califa, cuja boa fé começou a desconfiar do acerto do decreto. Três dias antes de chegar o prazo fatal, o califa intimou o vizir a dar-lhe notícia do resultado que prometera ou a substituí-lo por uma idéia verdadeiramente original.

Nesse apertado lance, o vizir chegou a desconfiar de si, e a persuadir-se que aventara aquela idéia, levado do único desejo de desbancar os outros oficiais. Disso mesmo o advertiu Abracadabro, varão exímio na geomancia, a quem consultou sobre o que lhe cumpria fazer.

Esperar, disse Abracadabro, depois de traçar algumas linhas no chão; esperar até o último dia do prazo fatal marcado ao califa. O que há de acontecer nesse dia, não o pode descortinar a ciência, porque há muita coisa que a ciência ignora. Mas faze isso. No último dia do prazo, à noite, tu e o califa deveis recolher-vos ao mais secreto aposento, onde vos serão servidos três figos de Alexandria. O resto lá saberás; e podes ficar certo de que será coisa boa.

Deu-se pressa o vizir em contar ao califa as palavras de Abracadabro, e, fiados na geomancia, aguardaram o dia último. Veio este, e depois dele a noite. Sós os dois, no mais secreto aposento de Schacabac, mandaram vir três figos de Alexandria. Cada um dos dois tirou o seu e abriu-o; o do califa deu um pulo, subiu ao teto e caiu logo no chão, sob a forma do famoso anão amarelo. Vizir e califa tentaram fugir, correndo às portas; mas o anão os deteve com gesto amigo.

— Não é preciso fugir, disse ele; não venho buscar-te; venho somente declarar, que achei verdadeiramente original a idéia do fechamento das portas. Certo é que não deu de si tudo o que o vizir esperava; mas nem por isso perdeu de originalidade. Allah seja convosco.

Livre da ameaça, o califa mandou logo que todas as portas se abrissem às caravanas de Brazilina. O povo aquietou-se; o comércio votou mensagens de agradecimento. E porque o califa e o vizir eram homens instruídos, práticos e dotados de boas intenções, e apenas tinham cedido ao medo, sentiram-se contentes com repor as coisas no antigo pé, e não se encontravam nunca sem dizer ao outro, esfregando as mãos :

— Aquele anão amarelo!

Fonte: 
www.alecrim.inf.ufsc.br

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXIV)

Sonetos
(foi mantida a grafia original)

071

Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
—Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.

—E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
—Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.

—Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?—Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
—Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.

043

Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
d'um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso
o violento mar, e sossegado
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta,
de vossa vista fujo, por salvar me,
jurando de não mais em outra ver me;

minh'alma que de vós nunca se ausenta,
dá me por preço ver vos, faz tornar me
donde fugi tão perto de perder me.

093

Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sã vontade,
ora de üa amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.

Se despois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparência,
por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,
e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência.

104

Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,
üas cousas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.

052

Dai me üa lei, Senhora, de querer vos,
que a guarde, sô pena de enojar vos;
que a fé que me obriga a tanto amar vos
fará que fique em lei de obedecer vos.

Tudo me defendei, senão só ver vos,
e dentro na minh'alma contemplar vos;
que, se assi não chegar a contentar vos,
ao menos que não chegue [a] aborrecer vos.

E, se essa condição cruel e esquiva,
que me dois lei de vida não consente,
dai ma, Senhora, já, seja de morte.

Se nem essa me dais, é bem que viva,
sem saber como vivo, tristemente,
mas contente porém de minha sorte.

150

À sepultura de D. Fernando de Castro

Debaixo desta pedra está metido,
das sanguinosas armas descansado,
o capitão ilustre, assinalado,
Dom Fernando de Castro esclarecido.

Por todo o Oriente tão temido,
e da enveja da fama tão cantado,
este, pois, só agora sepultado,
está aqui já em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitânia
por este Viriato que criaste,
e chora-o, perdido, eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia;
que, se a Roma co ele aniquilaste,
nem por isso Cartago está contente.

094

Despois que quis Amor que eu só
passasse quanto mal já por muitos repartiu,
entregou me à Fortuna, porque viu
que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse
no tormento que o Céu me permitiu,
o que para ninguém se consentiu,
para mim só mandou que se inventasse.

Eis me aqui vou com vário som gritando,
copioso exemplário para a gente
que destes dous tiranos é sujeita,

desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
que deste tão pequeno está contente!

152

Despois que viu Cibele o corpo humano
do fermoso Átis seu verde pinheiro,
em piedade o vão furar primeiro
convertido, chorou seu grave dano.

E, fazendo a sua dor ilustre engano,
a Júpiter pediu que o verdadeiro
preço da nova palma e do loureiro,
ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso
que, as estrelas, subindo, tocar possa,
vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso
quem se vir coroar da folha vossa,
cantando à vossa sombra verso eterno!

153

De tão divino acento e voz humana,
de tão doces palavras peregrinas,
bem sei que minhas obras não são dinas,
que o rudo engenho meu me desengana.

Mas de vossos escritos corre e mana
licor que vence as águas cabalinas;
e convosco do Tejo as flores finas
farão enveja à cópia mantuana.

E pois, a vós de si não sendo avaras,
as filhas de Mnemósine fermosa
partes dadas vos tem, ao mundo caras,

a minha Musa e a vossa tão famosa,
ambas posso chamar ao mundo raras:
a vossa d'alta, a minha d'envejosa.

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)
Imagem formatada obtida na internet, sem identificação do autor.

Universidade Estadual de Maringá (Semana do Livro inicia dia 10 de abril)

Começa na próxima quarta-feira (10), a Semana Livro da UEM. Quem visitar os estandes poderá encontrar exemplares a partir de R$ 5,00. O evento, que este ano entra na sétima edição, será realizado até sexta-feira, dia 12, no estacionamento ao lado do Restaurante Universitário.

Mais de 140 títulos, todos publicados pela Eduem, a Editora da Universidade, serão colocados à venda. As obras estarão com descontos de R$ 50% ou tabelados com preços de R$ 5,00, R$ 7,00 ou R$ 10,00. Os pagamentos poderão ser feitos com cartão de crédito ou, no caso de  servidores da UEM, através de desconto em folha. O atendimento será feito das 8h30 às 21h30.

Fonte:
UEM

Helena Vasconcelos (A Acidentada Travessia da Senhora Woolf)

"A Viagem", Virginia Woolf
Virginia Woolf escreveu o seu primeiro romance “A Viagem” (“The Voyage Out”) ao longo de seis penosos anos, numa altura em que a sua vida se alterou radicalmente. O pai, Sir Leslie Stephen, morreu em 1904 e os irmãos, Virgínia ( com 22 anos), Vanessa, Adrian e Thoby mudaram-se para o nº 46 de Gordon Square. Aí, às quintas-feiras, Thoby começou a juntar os seus amigos do Trinity College, os “sensacionais” Lytton Strachey, Clive Bell, Saxon Sydney -Turner e Leonard Woolf para discutirem “tudo”, de Filosofia a Religião, de Arte a Culinária. Nasceu assim o famoso "Bloomsbury Group” no seio do qual se defendia a liberdade em todas as suas manifestações e se intelectualizavam os factos da existência. Este breve tempo fulgurante, intenso e formativo acabou com a morte de Thoby, em 1906, e com a proposta de casamento de Clive Bell a Vanessa, no ano seguinte, acontecimentos em rápida sequência que contribuíram para a instabilidade mental de Virgínia, agravada pela eminente publicação de “A Viagem”, algo que fez despoletar um dos seus acessos de loucura mais dramáticos e pronunciados, só comparável ao que a atingiu quando escreveu “Os Anos” (deixado incompleto) e que a levou ao suicídio, em 1941.

“A Viagem” foi um projecto ambicioso desde o início. Virgínia escrevia artigos e ensaios para o Times Literary Supplement e, com este romance, queria encontrar um lugar firme entre os seus pares. Rodeada pelos “ sábios rapazes de Cambridge” e em vivo contraste com Vanessa – artista, feminina, sensual, extrovertida, apaixonada – Virgínia sofria e debatia-se com os seus terrores. O marido, Leonard que regressara de Ceilão (Sri Lanka) em 1911 – ele e Virginia casaram em 1912 – falou de “uma espécie de tortura intensa” que atingiu o seu apogeu nos meses de Janeiro e Fevereiro de 1913, enquanto ela acabava o manuscrito. Em Março de 1913 “ A Viagem” estava terminado, Virgínia deu-o a ler a Leonard e este levou-o a Gerald Duckworth (meio irmão de Virgínia) que possuía uma editora. Em Abril a publicação estava assegurada mas, enquanto esperava, Woolf passava noites insones a repensar a sua arte, questionando-se acerca da dificuldade em usar a linguagem para veicular a intensidade de tudo o que a interessava e preocupava. A 25 de Janeiro de 1915 Virginia fez 33 anos e parece ter-se sentido feliz, mimada por Leonard e pelos amigos. Dois dias depois escreveu no seu célebre diário que estava à espera que toda a gente lhe dissesse que o livro era “brilhante” enquanto, nas suas costas, o iriam condenar como “ ele, aliás, merecia”. A 25 de Março, véspera da tão esperada publicação, o seu estado mental deteriorou-se de tal maneira que teve de ser internada. Mais tarde Leonard levou-a para casa, onde ficou ao cuidado de quatro enfermeiras que a ajudaram a superar lentamente os seus violentos ataques de demência e uma tentativa de suicídio. O livro foi recebido benevolamente pelos críticos e E.M. Forster, por quem Virgínia tinha grande apreço, escreveu no Daily News: “Aqui está, finalmente, um livro que atinge a unidade de “O Monte dos Vendavais” embora o faça por outro caminho”.

Quando Woolf imaginou Rachel Vinrace, a heroína de 24 anos de “A Viagem” na sua travessia iniciática do Atlântico, ao encontro de um despertar emocional e sexual, estava a pensar na sua própria passagem da abandonada casa da infância em Hyde Park Gate – a maior parte da mobília foi vendida ao Harrods – para o ambiente de boemia criativa de Bloomsbury, onde era constantemente desafiada a escrever e a viver de acordo com as suas próprias opções.

No início de “A Viagem” o professor Ridley Ambrose e Helen, sua mulher, atravessam uma Londres labiríntica, desolada e hostil para embarcarem no “Euphrosyne”, um pequeno navio propriedade de Willoughby Vinrace, homem de negócios com ambições políticas, cunhado de Helen e pai de Rachel. O barco deixa a foz do Tamisa em direcção a Lisboa onde embarca o casal Dalloway – Richard, um membro do Parlamento e Clarissa, uma beldade, surgirão mais tarde como principais protagonistas num outro romance de Woolf, de 1925 – que vai fazer companhia aos outros passageiros, alegrando com a sua sofisticação, a enfadonha vida a bordo. Antes de desembarcarem – supõe-se que algures no norte de África - o casal Dalloway deixa marcas: Clarissa passa a representar um ideal de mulher para Rachel que vê nela uma promessa de “glamour” futuro e Richard, num momento de fraqueza libidinosa, beija-a secretamente, “despertando-lhe os sentidos”. O “Euphrosyne” – frágil lugar de passagem – retoma a sua rota, cruzando o Atlântico, e os passageiros são finalmente despejados em Santa Marina, um local totalmente inventado, mistura do Caribe com a costa do Brasil. Onde se instalam numa casa colonial junto a um hotel onde já se encontram hospedados outros súbditos de Sua Majestade.

São conhecidas as personagens que correspondem a figuras próximas de Virgínia como por exemplo a sua irmã Vanessa (transmutada em Helen) e Lytton Strachey na pele de St John (“Muito inteligente e muito feio”). Quando estava a escrever “A Viagem” Virgínia vivia rodeada de amigos do irmão e, como faz notar a sua biógrafa Hermione Lee, “ … essas relações foram-se erotizando. A princípio esses jovens pareciam a Virgínia inatingíveis e, comodamente, assexuados. Mas à medida que todos se tornavam amigos íntimos passaram a ser considerados como possibilidades de escolha (sexual)”. Num curto espaço de tempo Virgínia recebeu seis (possivelmente sete) propostas de casamento mas o que lhe interessava verdadeiramente eram temas como o sufrágio feminino, a religião, a liberdade e a estética que se tornaram a base de uma plataforma vanguardista na qual ela passou a desempenhar um papel dominante e que integrou na sua obra.

Começado numa altura em que ninguém antecipava o horror da Iª Grande Guerra, “A Viagem” foi pensado como uma réplica “modernista” e “feminista” a “Coração das Trevas” de Joseph Conrad, publicado em 1899. Virgínia admirava o escritor polaco, embora tivesse notado que ele não queria mulheres nos seus livros e as substituísse por belos navios “mais femininos do que as mulheres que são, ou montanhas de mármores ou apenas sonhos de um rapaz encantador que contempla o retrato de uma atriz”. Em paralelo com o Congo de Conrad e a aventura de Marlowe – com a sua dura crítica ao imperialismo – Woolf dá conta de outro “continente” expropriado, desconhecido e devastado, o “ser feminino”. Ao colocar Rachel, tal como ela própria, destituída das armas necessárias para levar a cabo a demanda da “verdade” das leis, tanto naturais como sociais, retira-lhe as hipóteses de vencer essa, “…Grande Guerra travada em prol de coisas como pedras, jarros, destroços no fundo do mar, árvores, estrelas, música, contra aqueles que (só) acreditam no que vêm”.

Confrontada com o sistema de oposição de gêneros e com a diferença de classes – “ é maravilhoso sermos ingleses” exclama uma personagem ao ver os navios de guerra britânicos ancorados ao largo – Rachel/ Virgínia percebe que, por muito sábios que sejam esses rapazes tão bem educados nas suas Universidades medievais e que a rodeiam atraídos pela sua juventude, a “moral” revela-se como uma simples máscara do código de opressão que valida a castidade feminina. Tal como a “verdade monstruosa” de Conrad, uma prerrogativa masculina, esse sistema eternizava a ideia de que as mentiras são atribuídas às mulheres, embora os homens mintam, se assim o entenderem, principalmente às mulheres. No final, a abrupta morte de Rachael – vítima desses “tristes trópicos” implacáveis - é a representação da angústia da autora, embora o desenlace seja considerado como inevitável para uma jovem mulher que se recusa a ser sacrificada no altar do casamento, com as suas rígidas leis patriarcais.

“A Viagem” é um romance ao qual têm sido apontadas várias falhas, principalmente quando saiu a edição americana: o livro é demasiado longo, as personagens entediantes, os heróis banais, as conversas arrastam-se, não há tigres na América do Sul, Woolf é preconceituosa em relação aos “nativos” ( e aos judeus, embora tenha casado com um) e não acontece nada de relevante. Como em Jane Austen há bailes e passeios (de burro e de barco), a paisagem é devidamente apreciada, a convivência faz-se baseada em equívocos e as inclinações amorosas levam à frustração. No entanto, se Austen era impiedosamente irênica, Virgínia Woolf é demolidora em relação aos seus concidadãos, caricaturados sem atenuantes na sua pomposidade e na sua incapacidade de perceberem o “novo mundo”, para onde arrastam as suas poeirentas, ignorantes e arrogantes opiniões e definições de vida. Até mesmo Rachel, supostamente a figura principal do romance, é uma personagem indefinida, opaca. O hotel onde todos se juntam é um “não-lugar” , um espaço fora da geografia e do tempo, uma plataforma onde as pessoas se limitam a esperar. Para trás, deixaram o antigo universo vitoriano com as suas múltiplas regras ridículas e atravessaram o oceano até aquele éden luxuriante onde as possibilidades são infinitas. Mas a verdade é que as senhoras garridas, os acadêmicos empedernidos e os jovens educados na perfeição em Oxford e Cambridge não têm qualquer hipótese de vingar, não estão preparados. Têm vagos projetos – Hewet quer escrever um livro sobre o “silêncio” – e não pressentem que estão à beira do caos e no final de uma era. Woolf mostra o seu brilhantismo, o seu lirismo exacerbado, a capacidade encantatória de transformar o que é banal em épico, defendendo a “corrente da consciência” como matéria-prima de ficção, no rasto de Walter Pater, o ensaísta e crítico literário do século XIX que foi em parte responsável pelo Movimento Estético (um dos seus mais fervorosos discípulos foi Oscar Wilde).

Woolf viveu o fim do Império, as grandes transformações da época moderna e duas Guerras e fez do acto de pensar uma prática intensa, o suporte de uma luta para a paz e para a igualdade numa economia global, a favor da defesa dos direitos humanos. Numa entrada do seu Diário escreveu sobre a loucura e a escrita nos seguintes termos: “ O meu cérebro é, para mim, uma máquina incontrolável – sempre a zumbir, a murmurar, a ir-se a baixo, a bramir, a mergulhar e a ser, depois, sepultado em lama. E porquê? Para que serve esta paixão?”
–––––––––––
Nota: Em 1981, a acadêmica americana Louise DeSalvo ( autora de “Virginia Woolf: The Impact of Sexual Abuse on her Life and Work”) publicou uma versão de “A Viagem” intitulada “Melymbrosia” que ela sustenta ter sido a primeira . DeSalvo trabalhou durante sete anos para reconstruir o romance como ela supõe que foi terminado em 1912, antes da grande revisão levada a cabo por Woolf. As alterações teriam surgido porque a autora receava que a primeira versão, mais dura em termos de crítica política e com comentários mais alargados a questões como a homossexualidade e o colonialismo, pudesse desencadear críticas violentas. Os seus amigos aconselharam-na a “amenizar” o conteúdo do texto com receio que este viesse a prejudicar-lhe a carreira.

Nota: Texto publicado no Jornal Público - Suplemento Ípsilon - Agosto, 2011

Fonte:

http://www.storm-magazine.com/