terça-feira, 7 de maio de 2013

José Lins do Rego (Fogo Morto)

José Lins do Rego é um dos escritores mais importantes do chamado Neo-Realismo Regionalista Nordestino, que integra a segunda fase do Modernismo brasileiro, ao lado de nomes como Graciliano Ramos, na prosa, e Drummond, na poesia.

O romance modernista dos anos 30 recebeu muitas sugestões da sociologia de Gilberto Freire, um dos organizadores do Congresso Regionalista do Recife, que, em 1926, apresentou um amplo projeto de estudo e compreensão da sociedade local. O livro mais importante de Gilberto Freire é Casa Grande e Senzala (1933).

Fogo Morto (1943) é a obra-prima de José Lins do Rego. Como romance de feição realista, esse livro procura penetrar a superfície das coisas e revelar o processo de mudanças sociais por que passa o Nordeste brasileiro, num largo período que vai desde o Segundo Reinado, incluindo a Revolução Praieira e a Abolição, até as primeiras décadas do século XX.

O tema central de Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. O romance conta a história de um poderoso engenho, o Santa Fé, desde sua fundação até o declínio, quando se transforma em "fogo morto", expressão com que, no Nordeste, designam-se os engenhos inativos. Retomando o espírito de observação realista, o autor produz um minucioso levantamento da vida social e psicológica dos engenhos da Paraíba. Em virtude do apego ao cotidiano da região, Fogo Morto apresenta não apenas valor estético, mas também interesse documental.

Fogo Morto não se esgota na classificação de romance regionalista, embora essa seja uma noção correta. Há outros componentes importantes na obra, a partir dos quais se pode enquadrá-la numa tipologia consagrada. Talvez o mais ilustre antecedente de Fogo Morto na literatura brasileira seja O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Em que sentido? No sentido de tomar uma personagem coletiva como objeto de análise. Assim como Aluísio investiga o nascimento, vida e morte de um cortiço do Rio de Janeiro, José Lins penetra no surgimento, plenitude e declínio do Engenho Santa Fé, localizado na zona da mata da Paraíba. Com efeito, o engenho parece possuir vida própria, embora suas células sejam as pessoas que o formam. Como análise quer dizer decomposição, o autor decompõe as pessoas como forma de expor a constituição do todo. Por essa perspectiva, Fogo Morto tanto pode ser entendido como um romance social quanto psicológico. Em rigor, uma categoria não existe sem a outra. O livro é forte em ambas as dimensões.

Embora Fogo Morto apresente uma estória muito movimentada, não se trata de um romance de ação: pretende atrair pela problematização social e existencial, e não pela surpresa dos acontecimentos. O estilo da obra é modernista, pois baseia-se na linguagem cotidiana, revestindo-se de oralidade espontânea, isto é, o autor procura escrever como se fala. Resulta daí a impressão de vivacidade e dinamismo. Possui força dramática e senso do real. Poucas vezes um autor obteve tanto êxito na manipulação da frase curta e elementar, com palavras extraídas do uso diário. Seu ritmo sintático e narrativo é nervoso, quase frenético, imitando o vaivém das pessoas pelas estradas do engenho. Pertence ao Regionalismo Nordestino, porque aborda a paisagem específica dessa região, mas as questões abordadas transcendem os limites regionais, o que é comum nas obras bem realizadas.

Em Fogo Morto, o autor soube transformar em ficção a vida real dos engenhos nordestinos. Trata-se de uma sociedade decadente, marcada pelo ressentimento, pelo desajuste e pela revolta. Domina em tudo uma atmosfera de ruína social e depauperamento psicológico, embora persistam aqui e ali sinais de uma felicidade antiga, restrita aos habitantes da casa-grande. Sem pertencer propriamente ao famoso Ciclo da Cana-de-Açúcar, Fogo Morto é uma retomada mais densa da matéria dos romances que o compõem: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934), e Usina (1936). Neste último romance, José Lins retrata a decadência dos engenhos por força do processo industrial das usinas, que suplantam a produção artesanal. Todavia, em Fogo Morto, ainda não há sinais de industrialização na produção de açúcar. Quanto a José Amaro, sim, sua decadência decorre em parte do processo de industrialização das selas, que já ocorre nos centros urbanos.

A fábula do livro não apresenta rigorosa unidade, isto é, não conta apenas uma estória, mas diversas, porque o propósito do romance é investigar e revelar o variado tecido social de um engenho típico da Paraíba. Assim, o livro divide-se em três partes: "O Mestre José Amaro", "O Engenho de Seu Lula" e "Capitão Vitorino Carneiro da Cunha".

Na primeira parte domina a figura do seleiro Zé Amaro, morador revoltado do Engenho Santa Fé, que enfrenta enorme problema de inadaptação com o mundo. Na verdade, está praticamente se despedindo da vida. Em aguda crise existencial, pressente a morte nos mínimos detalhes. Permanece sentado na tenda de trabalho em frente de casa, à beira da estrada, por onde passam os diversos moradores do engenho.

A segunda parte de Fogo Morto traça os antecedentes da situação de José Amaro, que é semelhante à de seu compadre Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, cujo destino também se confunde com a vida do engenho. Nesta parte, há um longo flashback ou retrospectiva da formação do latifúndio, em que se evocam as lutas do fundador, Capitão Tomás Cabral, para o estabelecimento daquela unidade econômica.

A terceira parte concentra-se nas aventuras do Capitão Vitorino, cujas ações se pautam pelo desejo de justiça. Nesse particular, irmana-se a José Amaro. Mas é radicalmente contra a alternativa oferecida pelo cangaço. É também contra o governo, mas não admite a subversão da lei. Em rigor, é um aventureiro do sonho. Estabelece o elo entre ricos e pobres, fracos e fortes. Para ele, o homem mais valente do mundo é ele mesmo. Não obstante, empregava a valentia apenas no auxílio do próximo. Trata-se de uma paródia muito convincente de Dom Quixote. Por isso, sua figura resulta numa mescla de momentos sublimes com momentos ridículos. Apesar dos percalços, surras e prisões, é a única personagem gloriosa no romance.

Personagens que não sofrem alteração são consideradas sem profundidade psicológica. Por isso são chamadas planas, das quais os tipos são uma variação. José Passarinho é personagem plana, pois mantém sempre o mesmo estatuto, do princípio ao fim do romance. Por outro lado, trata-se de personagem secundária, cuja função é apoiar a existência das demais. Assim são o pintor Laurentino, o aguardenteiro Alípio, o negro Floripes e outros coadjuvantes.

Tipo é a personagem que se confunde com o estereótipo, no qual se condensam características genéricas de uma certa categoria de pessoas. Capitão Antônio Silvino é um tipo revestido de significação alegórica. Funciona como uma espécie de emblema, representando a força da subversão, o poder de uma justiça ilegal porém legítima. Tira dos ricos para dar aos pobres. O Tenente Maurício é semelhante ao cangaceiro, pois também representa uma instituição, a força legal do governo, manchada de mando ilegítimo.

As personagens que sofrem mudança substancial possuem mais densidade psicológica, sendo por isso chamadas de esféricas. As três personagens principais de Fogo Morto são esféricas, pois toda a trama do romance decorre das transformações de seu estado psicossocial. Quanto mais ambígua a personagem, mais rico o seu significado. Num certo sentido, essas três personagens podem ser consideradas loucas, embora em diferentes graus e com sintomas diversos.

A eficiência das situações e personagens de Fogo Morto decorre também do fato de o autor escrever em tom memorialístico, como se fizesse uma crônica sobre o que vivenciou em sua experiência com a realidade do povo da Paraíba, sua terra natal. Sendo um neo-realista, só poderia escrever sobre fatos observados empiricamente.

Fogo Morto é uma obra caracterizada pela captação da vida interior das personagens. Nela, a paisagem externa é importante, mas as vivências interiores recebem mais atenção do artista. Há muita ruminação psicológica no livro. Tal investigação do universo mental processa-se sobretudo através do discurso indireto livre, pelo qual se chega a densos monólogos interiores, que se confundem com o fluxo de consciência.

Fonte:
www.seruniversitario.com.br

A Estética De Uma Redação

No nosso primeiro contato com a redação, podemos achar que é muito fácil mas, na realidade, surge algo que torna importante o nosso ato de escrever que se mantém na forma de passar a mensagem ao nosso leitor e a estética do trabalho redacional, que mostra o quanto estamos interessados em que nosso pensamento seja bem compreensível com lógica e clareza.

Surge então a busca por um trabalho mais limpo e com estética para a estrutura. Observando os exemplos de redações da dica passada, podemos notar que a estética não é tão ordenada, por isso a sequência lógica se perde no meio do caminho e fica sem sentido no que diz respeito ao desenvolvimento de seus argumentos centrais e finais para uma conclusão mais segura e estruturada.

Lembre-se sempre que, ao formar um Plano de Trabalho para escrever sua redação, você deve visualizar também a sua ESTÉTICA:
 
= Nunca comece uma redação com períodos longos. Basta fazer uma frase-núcleo que será a sua idéia geral a ser desenvolvida nos parágrafos que se seguirão;

= Nunca coloque uma expressão que desconheça, pois o erro de ortografia e acentuação é o que mais tira pontos em uma redação;

= Nunca coloque hífen onde não é necessário como em penta-campeão ou separação de sílabas erroneamente como ca-rro (isto só acontece em espanhol e estamos escrevendo na língua portuguesa);

= Nunca use gírias na redação pois a dissertação é a explicação racional do que vai ser desenvolvido e uma gíria pode cortar totalmente a sequência do que vai ser desenvolvido além de ofender a norma culta da Língua Portuguesa;

= Nunca esqueça dos pingos nos "is" pois bolinha não vale;

= Nunca coloque vírgulas onde não são necessárias (o que tem de erro de pontuação !);

= Nunca entregue uma redação sem verificar a separação silabica das palavras;

= Nunca comece a escrever sem estruturar o que vai passar para o papel;

= Tenha calma na hora de dissertar e sempre volte à frase-núcleo para orientar seus argumentos;

= Verifique sempre a ESTÉTICA: Parágrafo, acentuação, vocabulário, separação silábica e principalmente a PONTUAÇÃO que é a maior dificuldade de quem escreve e a maioria acha que é tão fácil pontuar !

= Respeite as margens do papel e procure sempre fazer uma letra constante sem diminuir a letra no final da redação para ganhar mais espaço ou aumentar para preencher espaço;

= A letra tem que ser visível e compreensível para quem lê;

= Prepare sempre um esquema lógico em cima da estrutura intrínseca e extrínseca;

= Não inicie nem termine uma redação com expressões do tipo: "... Eu acho... Parece ser... Acredito mesmo... Quem sabe..." mostra dúvidas em seus argumentos anteriores;

= Cuidado com "superlativos criativos" do tipo: "... mesmamente... apenasmente." . E de "neologismos incultos" do tipo: "...imexível... inconstitucionalizável...".

Se você prestou atenção nas redações da dica anterior, percebeu que elas estavam seguindo a estrutura redacional intrínseca (interior) quanto a INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO E CONCLUSÃO, mas não obedeciam a parte extrínseca (exterior) que é a apresentação da Redação, ou melhor, a aparência da escrita mostrando um conteúdo limpo e claro.

O que notamos é que nas redações faltaram parágrafos e respeito às margens (estética do trabalho) e a DISSERTAÇÃO do estudante que colocou várias idéias na introdução sem definir uma geral e tornou odesenvolvimento confuso, pois faltou dissertar sobre as tais conveniências comerciais do ovo de páscoa da introdução e centrou muito na História da Figura do Cordeiro sem explicar o que a ver a malhação de Judas e o Domingo de Páscoa. A conclusão começa a ficar em apuros e o fechamento das idéias da introdução e do desenvolvimento terminam prejudicadas. Nosso desafio é escrever esta dissertação usando todas as dicas para uma redação boa.

Como disse meu colega, o Professor Rogério: "A melhor dica para Redação: é Pensar. Penso logo escrevo" O segredo é simples: EU ESCRITOR TAMBÉM SOU LEITOR . ( Tudo que estou escrevendo vem do que penso e preciso montar um bom plano para entender o que escrevo e deixar minha leitura mais compreensível para os demais leitores )

A LÓGICA ESTRUTURAL: FRASE-NÚCLEO

Observe o texto dissertativo e analise a sua parte lógica na introdução, desenvolvimento e conclusão:

A PÁSCOA CRISTÃ

A Páscoa é uma festa cristã. Nela celebramos a Libertação dos Hebreus por Móises e Javé (Jeová -verbo hebraico para Ser) como também a Ressurreição de Cristo.

A Bíblia relata no Velho Testamento a saída do povo hebreu perseguido pelo Faraó e libertos pelo Senhor na passagem do Mar Vermelho, mas no Novo Testamento a Ressurreição abre uma idéia de salvação, de vida nova, de libertação do corpo pela vida eterna após a morte e eleva o sonho de um mundo novo: A Nova Jerusalem. Por estes eventos comemoramos a Páscoa.

Em todo mundo cristão comemora-se a Páscoa como a festividade mais significativa de libertação e ressurreição por dois momentos bíblicos que marcam a mesma esperança de encontrar a Nova Jerusalém.
Nota-se claramente que além da estética exterior e da simples idéia de seguir a estrutura interna, o escritor prezou pela lógica de sua redação e não só pelo segmento da introdução, desenvolvimento e conclusão mas nota-se uma definição muito clara de uma idéia geral (central) na introdução que fortaleceu o encadeamento das idéias e protegeu o sentido argumentativo do contexto e fechou a conclusão trazendo ao leitor a visão do que o tema pediu a Páscoa Cristã e que foi mencionada no núcleo frasal: "... A Páscoa é uma festa cristã...".

Veja o esquema lógico montado em cima da estrutura redacional: TEMA: A Páscoa Cristã; Núcleo ou Tópico-frasal: A Páscoa é uma festa cristã (idéia geral) Desenvolvimento (idéias encadeadas ou periféricas que sustentam a idéia central)

Saída do povo hebreu (EXODUS)

Ressurreição de Cristo (PROMESSA DE DEUS)

Promessa de Vida Eterna (NOVA JERUSALEM) Conclusão (Conversão das idéias proclamadas na redação)

"... todo mundo cristão..." "... festividade significativa..."(puxa a idéia central da introdução)

"...dois momentos bíblicos..." "... Nova Jerusalem..." (puxa o argumento do desenvolvimento)
O que ocorreu na dissertação anterior a esta foi a confusão de idéias e isto complicou a estrutura então podemos dizer que dentro da introdução surge a primeira idéia a ser construída na redação e a conclusão termina a montagem de nosso pensamento escrito. E como fica o desenvolvimento ? Isto vamos mostrar em suas formas de ordenações que é o mais simples de se fazer dentro de um tópico frasal bem estruturado e vamos mostrar todas as formas de ordenações do desenvolvimento. Não percam!

Montamos em nossa tela mental o que vamos fazer no papel:

TEMA: Os brasis do Brasil Frase-núcleo: O Brasil por suas variadas diversidades possui vários brasis que se moldam no território nacional e determinam algo que vai além de suas fronteiras regionais.

Desenvolvimento:

A divisão territorial;
A formação regional;
Os diferentes brasis.

Conclusão:

Cada região territorial é um Brasil diferente não só por sua divisão fronteiriça mas por sua diversidade cultural, geográfica e muito mais política fortalecendo o Brasil como Nação e Governo.

Temos um Brasil que se forma de diversas maneiras em cada região e possui uma forma diferente de observar o País como meio de sobrevivência de um povo ou de fortalecimento político das massas emergentes em suas áreas de atuações territoriais, regionais, culturais e políticas.

Quase preparamos a redação só na esquematização da lógica inicial da introdução.

Fonte:
http://www.seruniversitario.com.br

O Moderno Romance Brasileiro (Vertentes)

Libreria Fogola Pisa
Toda a ficção da literatura brasileira pós-Alencar segue uma das duas vertentes, que nascem com a narrativa do autor de Senhora e que correm paralelamente. Essas vertentes paralelas são a corrente regionalista e a corrente psicológica.

O homem e sua relação com o meio é a matéria-prima do regionalismo que, por sua vez, tem aqui um conceito nada redutivo. Entendemos como regionalista tanto a literatura que tem como temática o meio rural, campesino, quanto a que tem como temática as grandes capitais e as zonas suburbanas, sendo, por isso, nossa ficção, em sua maioria, regionalista: Aluísio de Azevedo, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Herberto Sales, João Ubaldo Ribeiro, Antônio Torres.

Na outra margem, a corrente psicológica se ocupa de analisar o comportamento do homem diante dele mesmo e em face aos outros: Machado de Assis, Raul Pompéia, Adelino Magalhães, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, Lígia Fagundes Teles, Rubem Fonseca.

Toda a ficção nacional é de motivação, de temática, de ambiente, de linguagem brasileira, preocupando-se e ocupando-se nossos ficcionistas com o gênero humano. No romance e no conto brasileiros, em suas duas vertentes, há momentos em que se entrelaçam, se justapõem as duas vertentes ficcionistas, como, por exemplo, na obra de Graciliano Ramos. O Modernismo não fugiu à regra, continuando na incorporação da matéria-prima local, que é o Brasil.

A ficção brasileira tem fisionomia e comunicação verbal próprias: o povo, a paisagem, os costumes, os tipos e patologias sociais, os problemas, tudo e todos integrantes de um mundo brasileiro, mas não por isso menos universal.

Nesta exploração de motivos regionais, ao olhar para si e suas circunstâncias, no tratar da sua gente e dos seus costumes, ao mostrar sua terra e sua cultura, nossa ficção encontra os valores universais no mundo humano regional, pois, como disse Tolstoi, para ser universal deve-se cantar a sua aldeia.

A nossa história começa com a chegada de um homem vindo da Sibéria, quando nível do mar baixou, e o Estreito de Bering era terra firme, pouco antes de 20.000 a.C. Depois de milhares de anos de vida seminômade, experimenta a agricultura, adquirindo um desenvolvimento econômico, cultural, social e político que não pode ser desprezado, como o foi desde a época da colonização. Mas estamos às portas de um novo século, de um novo milênio e não podemos incorrer em sectarismos.

O brasileiro é um povo mesclado, um povo mestiço, um misto de etnias diferentes: índios, negros, brancos com sensibilidade própria, com uma concepção própria da vida. A ficção nacional deve ser compreendida como um todo, que prossegue com um desenrolar-se contínuo, que parte de mananciais brasileiros, de elementos do folclore, da tradição oral, de um imaginário e um fabulário populares que geram os componentes da nossa narrativa; que partem desse complexo cultural. Nossas constantes literárias – o indianismo, o abolicionismo, o sertanismo, o urbanismo – são provenientes da oralidade advinda da formação, da fomentação social brasileira. Essa marcante oralidade prenuncia o futuro gosto dos nossos ficcionistas pelo documentário em suas narrativas calcadas, sobretudo, na sensibilidade e no inconsciente populares somados ao tratamento e aos elementos literários que lhes irão conferir validade estética.

A ficção irá predominar em uma nova fase do Modernismo brasileiro, desencadeada por A Bagaceira, de José de Américo de Almeida e por Macunaíma, de Mário de Andrade. Neste momento, as duas direções da narrativa brasileira – a regionalista e a psicológica – são marcadas por um veemente caráter de brasilidade e de renovação. Depois do realismo e do impressionismo, ativadas ainda pelo experimentalismo, essas duas direções amadureciam para gerar a época de ouro da ficção modernista, uma das mais altas da nossa literatura, dos anos de 1930 e 1945.

Nesta época de inquietações sociais originadas com a crise econômica de 1929, a literatura brasileira trilhou novos rumos à esquerda, com um enfoque novo do realismo, que veio a influenciar profundamente a ficção social portuguesa da década de 40, através das narrativas de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado. Esses ficcionistas têm a terra como elemento constitutivo de seus contos e romances. Outra característica de certos autores desse período é apresentar uma obra de cunho documental, o que ocasiona algumas dúvidas quanto ao valor dessa ficção e a relação entre o romance – do ponto de vista estético – e o seu sentido social. Mas esses ficcionistas, com uma expressão artística atualizada, redefiniram o romance regionalista tradicional. Suas narrativas, ainda que ambientadas numa determinada região, possuem uma dimensão que poderia compreender o conjunto de todo o Brasil, sobretudo pela visão crítica convergindo para o caráter social. Eles não estavam a representar os problemas específicos de uma determinada região e sim, problemas nacionais.

A literatura brasileira desse período procura retratar o que ocorria efetivamente, de modo realista, com um sentido bastante engajado, visando a transformar a realidade em suas estruturas sociais. O percurso do romance social de 30 estende-se nas décadas posteriores, em que se procurava enxergar o país a partir de setores marginalizados, incluindo-se, também, seus registros de fala, como acontece, por exemplo, na ficção de Jorge Amado.

A ficção amadiana está envolvida por toda uma reflexão crítica dos problemas sociais do Brasil, e procura conscientizar o leitor dos verdadeiros problemas do seu tempo. Nesse período é predominante o romance de intervenção social, sendo para seus autores a ficção um espaço de crítica ou de denúncia social, numa tentativa de encontrar solução para aqueles problemas mesmo diante do poder de pressão exercido por Getúlio Vargas sobre os órgãos de comunicação.

O Modernismo, nos seus primeiros tempos, retoma o espírito de liberdade e o sentimento de orgulho em ser brasileiro, fazendo uma releitura dos valores românticos. O desejo de liberdade modernista reflete-se sobretudo na linguagem, que vai procurar transcrever o coloquial nos diálogos da nossa ficção, alcançando seu ponto alto na obra de Jorge Amado.

Dentro de toda esta profusão de anseio pelo novo, pelo movimento, pelo futuro, surge a geração de 45, a procurar impor ordem, disciplina ao que, para ela, seria o caos. A geração de 45, num certo retorno parnasiano, tenta apurar o estilo ficcional brasileiro valorizando a linguagem acima de tudo, tendo seu ponto máximo na obra revolucionária de Guimarães Rosa, cuja força épica e poder onírico de sua narrativa abalaram a consciência literária brasileira, desde a publicação de Sagarana, em 1946. Na ficção rosiana, a revolução se dá principalmente na linguagem: primeiro, na construção da frase, passando, posteriormente, para o rebuscamento vocabular, desencavando arcaísmos mineiros, como um verdadeiro filólogo amador, criando ousados neologismos.

O romance de 45, todavia, não deixa de ter, como a ficção de 30, um teor documental.

Fonte:
www.seruniversitario.com.br

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Conde de Ficalho (A Caçada do Malhadeiro)

 Tínhamos ido — o mestre Domingos ferreiro, o malhadeiro(1) do Valfundo e eu — em busca de um porco-do-mato, que o malhadeiro atalaiara na véspera. Tencionávamos fazer apenas uma mancha(2) pequena, próximo da qual o porco fora visto, e voltar à tarde ao monte das Pedras Alvas, onde ficara o nosso rancho.

O malhadeiro foi com os cães bater, enquanto o mestre Domingos e eu esperávamos nas portas. O porco não estava na mancha. Batemos segunda, onde também não estava; mas aí os cães pegaram com força no rasto, e embaixo do vale achamos-lhe as saídas frescas. Sempre na esperança de o encontrar, batemos terceira e quarta mancha, e fomos de cerro em cerro, de vale em vale, até que, quando nos decidimos a voltar — sem ter visto um pêlo do porco — estávamos a duas léguas, e léguas de serra áspera das Pedras Alvas. Era em dezembro, já ao cair da tarde. Começava a chover, e as nuvens grossas, correndo ao lado do sul, anunciavam uma noite de água.

— Nós, com um tempo desses, não deitamos nas Pedras Alvas senão alta noite — disse o mestre Domingos.

— Não deitamos, é certo! Maus raios partam o porco! — acrescentou o malhadeiro, para se consolar.

— Mas que há a fazer?

— Podíamos ir à malhada da Crespa, que é daqui meia légua. O tio João sempre há de ter alguma coisa que se coma, e um lume pra gente se enxugar.

— Pois vamos lá.

As nuvens negras tinham-se fundido num tom cinzento. A chuva engrossava. Batida com força pelo vento, passava em linhas claras, apertadas, quase horizontais, sobre o verde-negro dos cerros. O malhadeiro abria caminho a corta-mato,(3) e o mestre Domingos e eu seguíamos, abaixando a cabeça, fugindo às rajadas de chuva que nos açoitavam a cara. Em fila atrás dos nossos calcanhares vinham os cães, tristes, de orelha caída. O mato escorria. Nos vales, cheios de erva densa, a terra ensopada cedia fofa debaixo dos pés; e as pegadas, marcadas no musgo verde, enchiam-se logo da água que ressumava. À luz tênue da tarde, algumas poças maiores brilhavam, com reflexos frios de prata polida. Duas galinholas saltaram-nos aos pés, sacudindo com a ponta da asa as gotas cintilantes, presas às folhas viscosas das estevas; mas as espingardas estavam carregadas de bala, bem acomodadas debaixo do braço, com as fecharias tapadas pelas abas dos jalecos, e nenhum de nós ia de humor para atirar em galinholas.

— Maus raios partam o porco! — dizia de vez em quando o malhadeiro.

Era noite fechada, quando os perfis confusos de umas azinheiras grandes se desenharam diante de nós, no clarão baço do céu. Ouvimos ladrar os cães — estávamos na Crespa. O tio João veio à porta, conheceu a voz do outro malhadeiro e abriu logo. Estava só em casa, com a nora e os netos pequenos; o filho andava trabalhando longe dali, e não voltara.

Improvisou-se rapidamente uma ceia pobre, que nos pareceu excelente. Duas braçadas de lenha seca de azinho estalavam na enorme chaminé, com uma chama clara, muito alegre. E quando acabamos de cear e nos chegamos para o lume, acendendo os cigarros, penetrou-nos uma grande sensação de bem-estar. Lá fora ouvia-se o cair monótono da chuva, e as lufadas do sul assobiando na telha-vã da malhada.

Naturalmente falou-se de caça — o ferreiro e os dois malhadeiros eram os três primeiros caçadores da serra.

— Oh! tio João, você é que fez uma caçaria melhor que todas essas? — disse o ferreiro, depois de se contarem muitos casos de mortes de porcos e de veados.

— Fiz... fiz... — disse o velho, como quem meditava.

— Você devia nos contar esse caso esta noite.

— Ó mestre Domingos, eu não gosto de falar nisso.

— Ora, uma vez não são vezes... Eu sei do caso, mas nunca lho ouvi contar bem a preceito como ele foi, e os mais que aqui estão não o sabem.

— Pois conto — respondeu o malhadeiro, abaixando-se para acender o cigarro em uma brasa.

Estava sentado defronte de mim, dentro da chaminé, ao lado da nora. A luz crua da labareda iluminava-lhe brutalmente a cara enérgica, sulcada de rugas fundas, muito queimada. Entre os joelhos tinha o neto, uma criança de sete ou oito anos, com uma cabecita redonda, bem encabelada, e uns olhinhos pretos, vivos, em que a chama punha pontos brilhantes. De vez em quando a mão negra, muito dura, do velho passava sobre a cabeça do pequeno, com um toque suave, de uma doçura infinita. Diante do lume, o ferreiro e o Joaquim do Valfundo estendiam para o brasido os sapatos grossos e as polainas, que ainda fumavam. A chama, levantando e abaixando, projetava-lhes as sombras, desmesuradamente grandes, na parede caiada do fundo, fazendo-as dançar de um modo fantástico.

— Isto por aqui, no tempo dos franceses, esteve mau... muito mau! — começou o malhadeiro. Passaram aí duas vezes. Quando passaram juntos, em tropa, bem foi; mas depois, quando iam na retirada, sem respeito lá aos seus comandantes nem a ninguém, queimavam e roubavam tudo. Os montes, nos barros, estavam todos desertos; e mesmo cá na serra, nas malhadas mais perto das estradas, não ficou viva alma. Todos fugiam, levando alguma coisa melhorzita que tinham. Meu pai quis aqui ficar. “Pra onde há de a gente ir? — dizia ele. — E depois, isto é cá desviado, não vêm cá”.

Eu, ao tempo, era rapazote, ia nos meus dezassete. Estava aqui com meu pai e as minhas duas irmãs; a Inês, a mais nova, que ainda vive, era mais velha do que eu um ano; e a Mariana, Deus lhe perdoe, teria então os seus vinte ou vinte e um.

Passou tempo, sem os franceses aparecerem. A gente sabia que passavam tropas, aí pelas estradas, direitas a Espanha; mas cá na serra já estava descuidada. Quando uma manhã, que eu andava lavrando com a parelha ali no farrejal, e meu pai estava falquejando umas aivecas aqui na empena, a Inês, que tinha ido à fonte... — a fontinha lá abaixo na umbria, sabes, Joaquim? — a Inês veio fugindo ladeira acima, e chegou aí esfalfada, dizendo: “Aí vêm... aí vêm!”

E vinham. Tinham se desviado da estrada, perderam-se e vieram a corta-mato, diretos à casa, que viam aqui na altura. Eram oito. Vinham muito rotos, com os sapatos em frangalhos, atados com trapos. Um — estou-o vendo — alto, magro, com o nariz grande e o bigode caído nos cantos da boca, trazia um lenço branco, sujo, com grandes manchas de sangue, atado à roda da cabeça.

Meu pai bradou-me, e quando eu vim correndo, disse-me baixo: “Esconda as espingardas”.

Fui àquele canto onde elas sempre têm estado, peguei-as, passei à porta de trás, e fui metê-las na palha da arramada. Quando voltei, já os franceses estavam dentro de casa. Não se percebia nada do que diziam, senão vino... vino..., e faziam sinal que queriam comer. O pai disse às moças que lhes dessem o que havia; mas eles não esperavam, abriam as arcas e traziam o que achavam pra cima dessa mesa. Meu pai tinha-se sentado naquele banco...

O velho indicava os lugares com o gesto, que o Joaquim e o mestre Domingos seguiam no movimento de atenção dos olhos; e assim contada, naquela casa que não tinha mudado nos últimos sessenta anos, onde ainda se viam as espingardas encostadas ao mesmo canto, e o banco tosco ao lado da porta, a história adquiria uma intensidade de vida, uma atualidade singular.

— Os franceses — prosseguiu o tio João — comeram, beberam, estavam já alegres, rindo e gritando. Um deles, um loiro, que tinha um galão e parecia mandar alguma coisa nos outros, quando a minha Inês passou ao pé dele, deitou-lhe um braço à cintura, sentou-a à força nos joelhos e deu-lhe um beijo.

Eu vi isto, e no mesmo instante vi meu pai de pé, e um machado de cortar azinho direito à cabeça do francês. O francês era leve, furtou-se; quatro ou cinco deles agarraram-se a meu pai, e depois de uma luta o deitaram no chão. Eu tinha levado uma coronhada pelos peitos, e estava encostado àquela arca, seguro por outros dois. O loiro ria-se com um riso mau, mas dizia — quis-me a mim parecer — que nos não fizessem mal, que nos atassem. Estava aí uma corda grande, com que eles ataram o pai de pés e mãos. A mim, ataram-me com um baraço e com a minha cinta.

As moças... arrastaram-nas para a casa de dentro, gritando e chorando...

À mesa ficaram dois franceses, bebendo.

Eu ouvia minhas irmãs chorarem lá dentro, chamando-nos, que lhes acudíssemos; e via o pai deitado no chão, com a camisa rasgada e as mãos atadas atrás das costas. Na luta, quando caiu, partiu a cabeça na esquina do banco. Um fio delgado de sangue corria-lhe da testa até às suíças brancas; e, dos olhos muito fitos, vi correrem-lhe as lágrimas, que se misturavam com o sangue.

Não posso dizer o tempo que isto durou; mas pareceu-me muito.

Quando os franceses saíram, rindo e metendo nos bornais o pão e uns queijinhos que tinham sobejado, nem olharam para o pai; a mim, pegaram-me, e assim mesmo atado como estava, levaram-me à porta para lhes ensinar o caminho. Não sei o que me lembrou, mas em lugar de lhes mostrar o atalho que vai direito à estrada, mostrei-lhes a que desce para a ribeira. Essa era a mais seguida das duas. Eles não desconfiaram, deitaram as espingardas ao ombro e desceram vale abaixo.

A Inês não dava acordo de si; mas a Mariana, muito branca, muito enfiada, veio cá fora desatar o pai. Ele não falava. Quando a Mariana me desatou, disse-me só: “As espingardas”.

Fui à arramada buscá-las, e quando vim, já o pai tinha o polvorinho a tiracolo; apontou para o outro polvorinho, que eu enfiei; tirando da arca o saco das balas, esteve-as dividindo; deu-me um punhado delas e meteu as outras na algibeira. Saímos, sem ele dizer uma palavra à Mariana. Fez-lhe sinal que chamasse e fechasse os cães. Só deixou ir uma podenga velha vermelha; mas a podenga era — salvo seja — como uma criatura; quando estava numa porta, nem latia nem mexia um cabelo. À ponta dos farrejais, abaixou-se; desafivelou a coleira do chocalho da cadela e deitou-a fora.

Nós íamos devagar. Entendi eu que meu pai os queria deixar meter bem para os vales mais ásperos. Lá embaixo, nos matões do barranco do Alendroal, é que os apanhamos. Vimo-los de longe, numa volta da trilha. Meu pai não falava, fez-me sinal que fosse à meia encosta da umbria, que ele ia pela soalheira; e quando nos apartamos, numa voz ainda trêmula, disse-me só estas palavras: “Não atires, sem eu atirar”.

Eu meti à encosta, de gatas, por baixo das estevas. Era uma criança ainda, mas não me lembrei de ter medo. Fui... fui, até que cheguei bem à distância de um tiro. Já nesse tempo atirava bem. Desde pequeno eu andava com meu pai. E você ainda se lembra como ele atirava, mestre Domingos?

— Era a primeira espingarda da serra, a chumbo e a bala! — afirmou o ferreiro.

— E era! — continuou o velho. — Eu não o via; mas sabia que ele ia na outra encosta. Os franceses iam embaixo, no vale, todos numa linha, porque a trilha era estreita. Numa volta do vale, ouvi um tiro; e o francês, o loiro, que ia adiante, abriu os braços e caiu de bruços. Os outros pararam; eu apontei bem um, dei no dedo, e ele caiu redondo. Ao segundo tiro, viraram-se para o meu lado; então o pai, para me livrar, apareceu-lhes no mato. Atiraram-lhe todos, e eu vi as estevas cortadas pelas balas em volta dele; mas não lhe deram. Os homens ainda quiseram avançar pela encosta, direito a ele, mas era uma moita de mato muito forte; não puderam romper, e, deixando os dois mortos, abalaram a correr pelo vale.

O pai chamou-me, e fomos juntos sempre pelo fio da altura, a ver o caminho que tomavam. Acho que se arrecearam de ir pelo vale, que era cada vez mais estreito, e meteram a uns matos ralos, de umas queimadas que se tinham feito nesse ano, direito à porta-baixa do Sovereiral.

Quando os topamos, foi já no barranco do Algeriz, ali no açude do Moinho Velho. Estávamos metidos nos medronhais altos, e eles vieram sair no claro do areal do barranco — mesmo onde tu mataste a porca grande, Joaquim, na semana passada.

Era quase à queima-roupa: caíram dois. Os homens eram valentes. Os quatro que restavam ficaram direitos, encostados uns aos outros. Atiraram para o mato, na direção do sítio em que tinham visto o fumo, e uma bala cortou um ramo por cima da minha cabeça. Nós separamo-nos, e mesmo de rastos por baixo do mato, fomos carregando. Quando atiramos, eu precipitei-me e errei; mas o pai não errou... nem errava! Os três perderam coragem e fugiram para o mato. Era já escuro, perdemo-los.

Fomos para um cabeço e ficamos ali toda a noite. Eu estava cansado, era uma criança, e ali me deitei. Mas o pai nunca dormiu; e quando eu de noite acordava, com o frio e com a fome, via-o sentado numa pedra, direito, encostado à espingarda.

Logo ao romper da manhã, abalamos. Os três franceses tinham tido toda a noite para fugir; mas aqui na serra, quem não é prático, jamais avança caminho de noite. Pode um homem andar uma noite toda, e de manhã achar-se no mesmo sítio. Ainda assim deram-nos trabalho; atalaiamos pelos cerros; rastejamos os vales e as passagens dos barrancos, como se a gente andasse à busca de um javardo ou de um veado; até a cadela, Deus me perdoe, já lhes pegava no rasto. Seria meio-dia quando os vimos lá muito embaixo, nos areais da ribeira. Tinham ido à água. Dali a duas horas estavam mortos todos três.

Quando voltamos para a malhada, já os abutres andavam no ar às voltas, às voltas, por cima do vale, onde ficaram os dois primeiros.

Meu pai, ao entrar em casa, não disse nada; mas agarrou as filhas e teve-as muito tempo abraçadas, e nunca até à hora da sua morte o ouvi falar no que tinha sucedido.

O lume ia-se apagando, sem que — presos à narração — nos lembrássemos de o atiçar; e o vasto brasido, onde ainda corriam umas chamas incertas, azuladas, iluminava vagamente a figura austera do velho, que amparava com muito cuidado sobre os joelhos o pequenito adormecido.

NOTAS:

1 - Malhadeiro: indivíduo que trata de colméias; colmeeiro.
2 - Mancha: cama do javali, ou porco-do-mato
3 - A corta-mato: a direito, por atalho; pelo caminho mais curto.

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira & Paulo Ronái. Mar de histórias. vol. 5. RJ: Nova Fronteira.

domingo, 5 de maio de 2013

Vicente de Carvalho (Poemas Avulsos)

(Santos SP, 1866 - idem, 1924)

Folha Solta

Eis o ninho abandonado
Dos sonhos do nosso amor...
É o mesmo o chão onde oscila
A mesma sombra tranquila
Dos arvoredos em flor.

É o mesmo o banco de pedra
Onde assentados nós dois
Falamos de amor um dia...
Lembras-te? Então, que alegria!
E que tristeza depois!...

Falamos de amor... E sobre
Minh'alma arqueava-se o azul
Do teu olhar transparente
Como o céu alvorecente
Das nossas manhãs do sul.

Quanta loucura sonhamos!
Quanta ilusão multicor!
Quanta risonha esperança
Nessas almas de criança
Iluminadas de amor!

 Marinha

I

Eis o tempo feliz das pescarias — quando
Maio aponta a sorrir pela boca das flores.
Derramam-se na praia as gaivotas em bando...
Alerta, pescadores!

Crepusculeja ainda a aurora, mas quem pesca
Deve esperar o dia entre as ondas — enquanto
Sopra enfunando a vela a matutina fresca
E o sol não queima tanto.

Mulheres, fazei fogo! Ao alcance do braço,
Mesmo à porta do rancho a maré pôs a lenha.
Aprontai o café! Vibra já pelo espaço
A buzina roufenha.

Peixe na costa! O aviso erra de frágua em frágua,
Chama de rancho em rancho os pescadores. Eia!
As canoas estão ainda fora d'água
Encalhadas na areia:

Prestes, descei-as! Ide apanhar às estacas
A rede. Ide-a colhendo às pressas; colocai-a
Na canoa. Descendo agora nas ressacas,
Isso, fora da praia!

E é remar, é remar para o largo... As crianças
E as mulheres, em terra, esperam aguentando
O cabo que por sobre o azul das ondas mansas
A rede vai largando...

Sugestões do Crepúsculo

Estranha voz, estranha prece
Aquela prece e aquela voz,
Cuja humildade nem parece
Provir do mar bruto e feroz;

Do mar, pagão criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas;

Cuja ternura assustadora
Agride a tudo que ama e quer,
E vai, nas praias onde estoura,
Tanto beijar como morder...

Torvo gigante repelido
Numa paixão lasciva e louca,
É todo fúria: em sua boca
Blasfema a dor, mora o rugido.

Sonha a nudez: brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.

Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde — e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito:

No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar.

E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas, e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas...

A Ternura do Mar

No firmamento azul, cheio de estrelas de ouro
Ia boiando a lua indiferente e fria...
De penhasco em penhasco e de estouro em estouro,
Embaixo, o mar dizia:

"Lua, só meu amor é fiel tempo em fora...
Muda o céu, que se alegra à madrugada, e pelas
Sombras do entardecer todo entristece, e chora
Marejado de estrelas;

Ora em pompas, a terra, ora desfeita e nua
— Como a folha que vai arrastada na brisa —
Aos caprichos do tempo inconstante flutua
Indecisa, indecisa...

Desfolha-se, encanece em musgos, aos rigores
Do céu mostra a nudez dos seus galhos mesquinhos,
A árvore que viçou toda folhas e flores,
Toda aromas e ninhos:

Cóleras de tufão, pompas de primavera,
Céu que em sombras se esvai, terra que se desnuda,
A tudo o tempo alcança, e a tudo o tempo altera...
— Só o meu amor não muda!

Há mil anos que eu vivo a terra suprimindo:
Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas,
Dentro de vagalhões penhascos submergindo,
Submergindo montanhas.

Hei de alcançar-te um dia... Embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes...
Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara,
Subindo os horizontes.

Um passo para ti cada dia entesouro;
Há de ter fim o espaço, e o meu amor caminha...
Dona do céu azul e das estrelas de ouro,
Um dia serás minha!

E serei teu escravo... À noite, pela calma
Rendilharei de espuma o teu berço de areias,
E há de embalar teu sono e acalentar tua alma
O canto das sereias.

Quando a aurora romper no céu despovoado,
Tesouros a teus pés estenderei, de rastros...
Ser amante do mar vale mais, sonho amado,
Que ser dona dos astros.

Deliciando-te o olhar, afagando-te a vista,
Todo me tingirei de mil cores cambiantes,
E abrir-se-á de meu seio a brancura imprevista
Das ondas arquejantes.

Levar-te-ei de onda e monda a vagar de ilha em ilha,
Tranquilas solidões, ermas como atalaias,
Onde o marulho canta e a salsugem polvilha
A alva nudez das praias.

Ao longe, de repente assomando e fugindo,
Alguma vela, ao sol, verás alva de neve:
Teus olhos sonharão enlevados, seguindo
Seu vôo claro e leve;

Sonharão, na delícia indefinida e vaga
De sentir-se levar sem destino, um momento,
Para além... para além... nos balanços da vaga,
Nos acasos do vento.

Far-te-ei ver o país, nunca visto, da sombra,
Onde cascos de naus arrombadas, a espaços
Dormem o último sono, estendido na alfombra
De algas e de sargaços.

Opulentos galeões, pelas junturas rotas,
Vertem ouro, troféus inúteis, vis monturos,
Que foram conquistar às praias mais remotas,
Pelos parcéis mais duros:

Flâmula ao vento, proa em rumo ao largo, velas
Desfraldadas, varando ermos desconhecidos,
Rudes ondas, tufões brutais, turvas procelas,
Sombra, fuzis, bramidos,

Todo o estranho pavor das águas afrontando,
Altivos como reis e leves como plumas,
Iam de golfo em golfo, em triunfo arrastando
Uma esteira de espumas.

Ei-los, carcassas vis donde o ouro em vão supuro,
Esqueletos de heróis... dei-os em pasto à fome
Silenciosa e sutil da multidão obscura,
Dos moluscos sem nome.

Essa estranha região nunca vista, hás de vê-la,
Onde, numa bizarra exuberância, a flora
Rebenta pelo chão pérolas cor de estrela
E conchas cor de aurora;

Onde o humilde infusório aspira ás maravilhas
Da glória, sonha o sol, e, dos grotões mais fundos
De meu seio, levanta a pouco e pouco as ilhas,
Arquipélagos, mundos...

Lua, eu sou a paixão, eu sou a vida... Eu te amo.
Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha!...
Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que reclamo!
Um dia serás minha!

Embalde nos afasta e embalde nos separa
A largura da terra e o fraguedo dos montes:
Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara,
Subindo os horizontes..."

---****

Na quietação da noite apenas tumultua
Quebrada de onda em onda a voz brusca do mar:
Corta o silêncio, agita o sossego, flutua
E espalha-se no luar…

Tomás Antônio Gonzaga (Marília de Dirceu)

  
  É a lírica amorosa mais popular da literatura de língua portuguesa. Segundo o autor do prefácio da obra (Lisboa - 1957), Rodrigues Lapa, não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal - foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos. Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo."

    Dividido em liras que a partir da publicação do poema em livro, em 1792, foram declamadas, musicadas e cantadas em serestas e saraus pelo Brasil afora. Referindo-se à lira III da parte III, Manuel Bandeira escreveu : "Nessa lira esqueceu o Poeta a paisagem e a vida européia, os pastores, os vinhos, o azeite e as brancas ovelhinhas, esqueceu o travesso deus Cupido, e a sua poesia reflete com formosura a natureza e o ambiente social brasileiro, expressos nos termos da terra com um fino gosto que não tiveram seus precursores".

    Existem três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Dorotéia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical.

    A obra se divide em duas partes (há uma terceira, cuja autenticidade é contestada por alguns críticos):

    Na 1ª parte estão os poemas escritos na época anterior à prisão do autor. Nela predominam as composições convencionais, as características arcádicas: o pastor Dirceu celebra a beleza de Marília em pequenas odes anacreônticas. Em algumas liras, entretanto, as convenções mal disfarçam a confissão amorosa do amor: a ansiedade de um quarentão apaixonado por uma adolescente; a necessidade de mostrar que não é um qualquer e que merece sua amada; os projetos de uma sossegada vida futura, rodeado de filhos e bem cuidado por suas mulher etc. Nesta 1ª parte das liras o autor denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade.

    Já a 2ª parte (e a terceira, se autêntica), foi escrita na prisão da ilha das Cobras, e os poemas exprimem a solidão de Dirceu, saudoso de Marília. Encontramos aí a melhor poesia de Gonzaga. Entende-se aqui que as características pré-românticas se fazem sentir mais agudamente. O sentimento da injustiça, da solidão, da saudade de Marília, o temor do futuro e a perspectiva da morte rompem constantemente o equilíbrio clássico. As convenções, embora ainda presentes, não sustentam o equilíbrio neoclássico. O tom confessional e o pessimismo prenunciam o emocionalismo romântico. Nesta 2ª parte das liras, há o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas.

    Em Marília de Dirceu, há a refinada simplicidade neoclássica: uma dicção aparentemente direta e espontânea, cheia de imagens graciosas e de alegorias mitológicas; um ritmo agradável, suavizado pelos versos curtos, pela alternância de decassílabos e hexassílabos, pelo uso do refrão e dos versos brancos.

    A estrutura métrica das liras são a versificação pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm a redondilha menor, com acentuação na 2ª e 5ª sílabas; o heróico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo.

    Temas e formas

    I

    1 Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
    2  que viva de guardar alheio gado,
    3  de tosco trato, de expressões grosseiro,
    4 dos frios gelos e dos sóis queimado.
   5  Tenho próprio casal e nele assisto;
    6 dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
    7  das brancas ovelhinhas tiro o leite
    8 e mais as finas lãs, de que me visto.

    9 Graças, Marília, bela,
    10  graças à minha estrela!
   
11 Eu vi o meu semblante numa fonte:
    12    dos anos inda não está cortado;
    13    Os pastores que habitam este monte
    14 respeitam o poder do meu cajado.
    15    Com tal destreza toco a sanfoninha,
    16    que inveja até me tem o próprio Alceste:
    17    ao som dela concerto a voz celeste,
    18    nem canto letra que não seja minha.

    19 graças, Marília bela,
    20   graças à minha estrela!

    Uma leitura atenta do fragmento transcrito permite-nos identificar algumas constantes das Liras:

    1. Pastoralismo — bucolismo: na exaltação da vida pastoril, campestre; no entendimento de que a felicidade e a beleza decorrem da vida no campo. É da convenção arcádica o poeta identificar-se artisticamente como pastor e identificar sua musa como pastora. Observe estas palavras: “vaqueiro", “gado”, “ovelhinhas”, “fonte", “pastores”, “monte”, “cajado”.

    2. Otimismo — narcisismo: no estribilho, o poeta manifesta-se satisfeito com o próprio destino: “Graças, Marília bela, / Graças à minha estrela”. É evidente o propósito de auto-valorização (narcisismo): nos versos 11 e 12; na afirmação da juventude: nos versos 13 e 14; na alusão à virilidade; e na exaltação da sensibilidade artística: nos versos 15 e 16.

    3. Ideal burguês de vida: na afirmação da condição de proprietário, no orgulho pela posse da terra (versos de 5 a 8), apóia-se o poeta para expressar a consciência de superioridade sobre “o vaqueiro que viva de guardar alheio gado”, que o poeta deprecia (versos 3 e 4). Observa-se esse ideal também no verso 19:

    Que prazer não terão os pais ao verem
    Com as mães um dos filhos abraçados;
    Jogar outros a luta, outros correrem
    Nos cordeiros montados!
    Que estado de ventura!

    4. Simplicidade: observe o predomínio da ordem direta da frase e a clareza da expressão, sem muitas figuras de linguagem, próxima do ritmo da prosa.

    II

    A minha amada
    é mais formosa
    que branco lírio,
    dobrada rosa,
    que o cinamomo,
    quando matiza
    co’a folha a flor:
    Vênus não chega
    ao meu amor.

    Vasta campina,
    de trigo cheia,
    quando na sesta
    co vento ondeia,
    ao seu cabelo,
    quando flutua,
    não é igual.
    Tem a cor negra,
    mas quanto val!
    (...)

    III

    (...)

    Aqui um regato
    corria, sereno,
    por margens cobertas
    de flores e feno;
    à esquerda se erguia
    um bosque fechado;
    e o tempo apressado,
    que nada respeita,
    já tudo mudou.

    São estes os sítios?
    São estes; mas eu
    o mesmo não sou.
    Marília, tu chamas?
    Espera, que eu vou.

    5. Os dois textos revelam a vertente mais convencional da poesia de Gonzaga: a aproximação com o estilo rococó, marcado pela graça, leveza e frivolidade, pelos idílios campestres, pela natureza delicada e aprazível (locus amoenus). Observe os metros curtos, melódicos que emolduram a suavidade do quadro descrito, como os movimentos sutis de um minueto, dançado na Corte de Luís XV, na época de ouro do Rococó.

    6. Mas, em alguns momentos, avulta o realismo descritivo, captando a rusticidade da paisagem e da vida da Colônia. Exemplo marcante é o fragmento que segue. Observe as referências à mineração e à agricultura:

    IV

    Tu não verás, Marília, cem cativos
    tirarem o cascalho e a rica terra,
    ou dos cercos dos rios caudalosos,
    ou da minada serra.
    Não verás separar ao hábil negro
    do pesado esmeril a grossa areia,
    e já brilharem os granetes de oiro
    no fundo da batéia.

    Não verás derrubar os virgens matos,
    queimar as capoeiras inda novas,
    servir de adubo à terra a fértil cinza,
    lançar os grãos nas covas.
    Não verás enrolar negros pacotes
    das secas folhas do cheiroso fumo;
    nem espremer entre as dentadas rodas
    da doce cana o sumo.

    (...)

      V

    Com os anos, Marília, o gosto falta,
    e se entorpece o corpo já cansado:
    triste, o velho cordeiro está deitado,
    e o leve filho, sempre alegre, salta.
    A mesma formosura
    é dote que só goza a mocidade:
    rugam-se as faces, o cabelo alveja,
    mal chega a longa idade.

    Que havemos de esperar Marília bela?
    que vão passando os florescentes dias?
    As glórias que vêm tarde, já vêm frias,
    e pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.
    Ah! não, minha Marília,
    aproveite-se o tempo, antes que faça
    o estrago de roubar ao corpo as forças,
    e ao semblante a graça!

    7. O texto V, dos mais belos das liras, manifesta a atitude clássica, o carpe diem (= “aproveita o dia”). Na primeira estrofe, o poeta expressa a consciência da fugacidade do tempo. Na estrofe seguinte, propõe à Marília a fruição dos prazeres da vida, antes que o tempo fizesse o estrago de “roubar ao corpo [do poeta] as forças, e ao semblante [de Marília], a graça.

    8. Nas liras escritas no cárcere, predomina o lirismo lamuriento, pré-romântico, mas submetido ainda à disciplina e sobriedade neoclássicas. Nas últimas liras, nota-se que, ainda quando nem os céus acudiam o poeta em suas atribulações, a expressão de suas dores é contida:

       VI

    Porém se os justos céus, por fins ocultos,
    em tão tirano mal me não socorrem,
    verás então que os sábios,
    bem como vivem, morrem.
    Eu tenho um coração maior que o mundo,
    tu, formosa Marília, bem o sabes:
    um coração, e basta,
    onde tu mesma cabes.

    9. As contradições também ocorrem: ora Dirceu se diz pastor, ora se diz magistrado; Marília é muitas vezes pretexto para o exercício poético de Gonzaga e seus traços variam:

    Aqui Marília tem cabelos pretos:

    VII

    (...)

    Os seus compridos cabelos,
    que sobre as costas ondeiam,
    são que os de ApoIo mais belos,
    mas de loura cor não são.
    Têm a cor da negra noite,
    e com o branco do rosto
    fazem, Marília, um composto
    da mais formosa união.

    (...)

    Aqui tem cabelos loiros:

    VIII

    (...)

    Os teus olhos espalham luz divina,
    a quem a luz do sol em vão se atreve;
    papoila ou rosa delicada e fina
    te cobre as faces, que são cor da neve.
    Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
    teu lindo corpo bálsamos vapora.
    (...)

    Na lira 64, Gonzaga refere-se a Tiradentes depreciativamente. Parece que as expressões ofensivas com que se dirige ao alferes foram ditadas pelo propósito de minimizar seu comprometimento na Inconfidência, já que o processo ainda estava em curso. É o que argumentam os admiradores do poeta, na tentativa de “salvá­lo” como vulto histórico e inconfidente.

    IX

    Ama a gente assisada  (1)
    a honra, a vida, o cabedal tão pouco,
    que ponha uma ação destas (2)
    nas mãos dum pobre, sem respeito e louco? (3)
    E quando a comissão lhe confiasse,
    não tinha pobre soma,
    que por paga ou esmola lhe mandasse?

    X

    O mesmo autor do insulto
    mais a riso do que a terror me move;
    deu-lhe nesta loucura,
    podia-se fazer Netuno ou Jove.
    A prudência é tratá-lo por demente;
    ou prendê-lo, ou entregá-lo,
    para dele zombar a moça gente.

NOTAS:
(1) ajuizada
(2) a Inconfidência
(3) Tiradentes

Fonte:
Passeiweb

sábado, 4 de maio de 2013

Olivaldo Junior (Boa Nova)

Quando passa um vento e canta...
Quando eu canto e me contento...
Quando atento ao que me encanta...
Quando, em prantos, te acalento...

Quando passa um deus e planta...
Quando eu planto e reinvento...
Quando invento o que me adianta...
Quando adianto e viro vento...

Quando passa um vento frio...
Quando o frio só me prova...
Quando mato o meu vazio...

Quando um cântico renova...
Quando inovo e te assovio...
canto a vida em boa nova.

Fonte:
O Autor

Boleslaw Prus (O Realejo)


Bolesław Prus, batizado com o nome de Aleksander Głowacki, nasceu em 20 de agosto de 1847, em Hrubieszów, na Polônia, descendente de uma família de nobres empobrecidos. Já na mais precoce juventude, viveu experiências como revolucionário e prisioneiro que marcaram decisivamente sua obra artística. Aos 25 anos, principiou uma grande carreira jornalística, na qual atuaria por quatro décadas. Prus, que serviu sua nação como soldado, filósofo e escritor, e com sua obra assegurou um lugar de destaque no panteão da literatura universal, não chegou a vivenciar a independência definitiva da Polônia, depois do fim da Primeira Guerra Mundial: morreu em Varsóvia, em 19 de maio de 1912.
-----------------------------------------------------------------------
 Na Rua Miodowa, por volta do meio-dia, via-se diariamente um senhor de certa idade, a caminhar da Praça dos Krasinski em direção à Rua Senatorska. Durante o verão, usava elegante capote azul-marinho-escuro e cartola já um tanto surrada. Tinha o rosto rosado, suíças grisalhas e olhos claros, bondosos. Andava meio inclinado, com as mãos nos bolsos. Se o tempo era bom, sobraçava uma bengala; nos dias nublados, carregava um guarda-chuva inglês de seda.

Caminhava devagar, abismado em profundas meditações. Diante da igreja dos Capuchinhos, tocava piedosamente na cartola e atravessava a rua para observar na vitrina da Pik a elevação do barômetro e do termômetro; depois, voltava à calçada direita, parava em frente da vitrina da Mieczkowsky, contemplava as fotografias de Modrzejewska e retomava o passeio, cedendo o lugar a cada transeunte; e se alguém o empurrava, sorria com benevolência. Cruzando alguma jovem bonita, punha os óculos para vê-la melhor. Mas, como executasse a operação bem devagar, quase nunca lograva êxito.

Este cavalheiro era o Sr. Tomás. Havia trinta anos que percorria a Rua Miodowa, e por vezes pensava que muita coisa nela tinha mudado. A rua poderia pensar o mesmo a respeito dele. Quando ainda advogado num tribunal de paz, corria tão depressa que nenhuma costureirinha, de volta da loja para casa, conseguiria escapar-lhe. O Sr. Tomás era então alegre, loquaz, esbelto, tinha cabeleira, e bigode retorcido.

Já naquela época o impressionavam as belas-artes, porém não lhes consagrava o seu tempo, porque era louco pelas mulheres. Freqüentemente fora bem-sucedido com elas e tivera boas oportunidades de casar; mas a isso ligava pouca importância, e nunca se lhe oferecia ocasião para declarar-se, ocupado que estava com a profissão ou com os encontros amorosos. Depois de haver visitado a Chiquita, dirigia-se ao tribunal, de onde corria à casa da Sofia, a quem deixava tarde para jantar com a Josefina e a Filka.

Ao ser nomeado advogado junto a um tribunal mais alto, já tinha a testa crescida até o topo da cabeça, em conseqüência do árduo trabalho mental, e apontavam-lhe no bigode uns fios brancos. Perdera o ardor juvenil, possuía razoável fortuna e passava por um conhecedor das belas-artes. E, como continuasse a amar as moças, começou a pensar em casar-se. Alugou um apartamento de seis quartos, mandou pavimentá-lo, cobriu as paredes de papéis pintados, comprou lindos móveis e foi à procura de uma esposa.

Porém não era fácil a escolha para um homem maduro. Uma era jovem demais; a outra, ele a namorava desde muitíssimo tempo; a terceira tinha aparência e idade adequadas, mas gênio impróprio; a quarta, de aparência, idade e gênio apropriados, não aguardou a declaração do advogado e casou com um médico.

Não se afligia muito o Sr. Tomás: mulheres não faltavam. Entretanto completava o arranjo do aposento, cuidando cada vez mais de que as menores peças tivessem valor artístico. Mudava os móveis, deslocava os espelhos, comprava quadros.

Com o correr do tempo, o apartamento se tornara famoso. O Sr. Tomás, não se sabia quando, transformara a casa numa verdadeira galeria. O número de amigos e curiosos que iam visitá-la aumentava sempre, tanto mais que o dono era muito hospitaleiro, dava recepções excelentes e mantinha relações com alguns músicos. Aos poucos, iam-se organizando em sua residência vesperais de concertos, honradas também com a presença de senhoras. O Sr. Tomás recebia a todos com muita fidalguia.

Verificando, nos espelhos, que a testa já lhe ultrapassara o topo da cabeça e se aproximava, por trás, do colarinho impecavelmente branco, lembrava-se de que, fosse como fosse, era tempo de tomar estado; tanto mais quanto os seus sentimentos em relação ao belo sexo se mantinham calorosos.

Certa vez, ao receber uma companhia mais numerosa que de costume, uma das moças, contemplando os salões, exclamou:
— Que quadros! E este parquete, que beleza! A esposa do senhor será muito feliz!
— Será, se o belo parquete lhe bastar para a felicidade — observou baixinho um bom amigo do advogado.

O ambiente do salão fez-se muito alegre. O Sr. Tomás sorriu também, mas desde aquele dia, se alguém lhe falava em casamento, ele se limitava a um gesto de desdém, dizendo apenas:
— Ih, ih, ih!

Nessa época, rapou o bigode e deixou crescer as suíças. A respeito das mulheres, continuava a exprimir-se muito respeitosamente, desculpando-lhes os defeitos com larga indulgência.

Nada mais esperando da sociedade, pois já tinha abandonado a profissão, o advogado concentrou nas artes os seus tranqüilos afetos. Um lindo quadro, um bom concerto, uma pré-estréia, eram acontecimentos marcantes na sua vida. Não se extasiava, não se agitava: saboreava.

Nos concertos, escolhia sempre um lugar longe da platéia, para ouvir a música sem perceber nenhum outro ruído e sem ver os artistas. Antes de ir ao teatro, lia a peça, a fim de poder observar sem curiosidade febril o desempenho dos atores. Quando não havia muita gente na galeria, admirava os quadros. Passava ali horas inteiras.

Se gostava de uma coisa, dizia:

— Vocês sabem, isto não está mau!

Era um desses poucos entendidos que logo reconhecem um talento. Mas nem por isso condenava as obras medíocres.

— Aguardem um pouco — dizia, ao ouvir criticarem um artista. — Talvez ele melhore.

E assim continuava, sempre indulgente com as imperfeições humanas, sem jamais comentar as falhas.

Felizmente nenhum dos mortais é de todo livre de extravagâncias. Não o era o Sr. Tomás. Odiava ele os realejos e os homens que os tocam.

Ao sentir na rua os sons de um realejo, acelerava o passo e perdia o bom humor por algumas horas. Apesar de tão calmo, agitava-se; de tão silencioso, gritava; de tão brando, encolerizava-se, ouvindo o primeiro toque de um realejo.

Longe de esconder esta fraqueza, explicava-a:

— A música — dizia, fora de si — é a coisa mais sutil, mais espiritual que existe; no realejo, todo esse espírito se transforma em execução mecânica num instrumento de banditismo; pois que são os tocadores de realejo, senão uns bandidos? Por isso — acrescentava — os realejos irritam-me; e como só tenho uma vida, não quero desperdiçá-la escutando essa música detestável.

Uma pessoa malévola, conhecendo-lhe a aversão às caixas de música, lembrou-se de lhe pregar uma peça: mandou dois realejistas tocarem sob suas janelas. O Sr. Tomás adoeceu de indignação, e depois, tendo descoberto o autor, provocou-o a duelo. Foi preciso convocar-se um tribunal de honra, para evitar derramamento de sangue por motivo aparentemente tão frívolo.

O edifício onde morava o Sr. Tomás mudou algumas vezes de proprietário. E cada um deles, naturalmente, considerava de seu dever aumentar o aluguel de todos os inquilinos, principalmente do Sr. Tomás. O advogado pagava sem protesto os aumentos, mas, de cada vez, estipulava no contrato, com todos os efes-e-erres, que não poderiam tocar realejo no quintal do edifício.

Independentemente das restrições contratuais, sempre que chegava novo vigia o Sr. Tomás o chamava ao seu apartamento e tinha com ele mais ou menos esta conversa:

— Escute, amigo... Seu nome?

— Casimiro, senhor.

— Escute, Casimiro: cada vez que eu voltar para casa tarde e você me abrir a porta, terá vinte groszy. Entendeu?

— Entendi, Excelência.

— Além disso, você terá de mim, no fim de cada mês, dez zlotych. Sabe para quê?

— Não posso saber, Excelência — respondia o vigia, todo alvoroçado.

— Para que você nunca deixe entrar ninguém com realejo no quintal. Entendeu?

— Entendi, Excelência.

O apartamento do Sr. Tomás compunha-se de duas partes. Quatro grandes cômodos tinham janelas para a rua; dois menores, para o quintal. A parte mais elegante do apartamento destinava-se aos convidados. Aí se realizavam os banquetes, aí eram recebidos os clientes, aí se hospedavam parentes e conhecidos do advogado, vindos da roça. Raramente o Sr. Tomás aparecia nessa parte — apenas para ver se o parquete estava bem encerado, se os móveis não se estragavam e se lhes tinham tirado a poeira.

Quando ficava em casa, levava dias inteiros no gabinete, do lado do quintal; lia, escrevia cartas ou examinava documentos dos conhecidos que lhe pediam conselho. Se queria descansar a vista, sentava-se numa poltrona ao pé de uma das janelas e, acendendo um charuto, abismava-se em meditações. Sabia que o pensamento constituía função muito importante da vida, função que um homem cuidoso da saúde não devia desprezar.

Do outro lado do quintal, em frente das janelas do Sr. Tomás, havia um apartamento alugado a pessoas de menores recursos. Muito tempo morou ali um velho funcionário do tribunal, que, tendo perdido o seu posto, se mudou para Praga. Depois, um alfaiate alugou o pequeno apartamento; mas, como gostava de embriagar-se de vez em quando, e então fazia barulho, foi despejado. Veio em seguida a viúva de um funcionário, a qual passava o tempo a brigar com a empregada. Mas no dia de S. João uns parentes da província vieram buscar a velha, já muito decrépita (aliás, relativamente rica), e levaram-na consigo, apesar do seu gênio altercador. O apartamento foi ocupado por duas senhoras e uma menina de uns oito anos.

As senhoras viviam do seu trabalho: uma cosia, a outra fazia meias e coletes numa máquina de tricotar. A menina chamava mãe à mais jovem e bonita das mulheres, e tratava a outra por "senhora".

Tanto as janelas do Sr. Tomás como as das novas moradoras ficavam abertas o dia inteiro. Assim, sentado na sua poltrona, podia o advogado ver perfeitamente o que se passava no apartamento das vizinhas, cujos móveis eram modestos para aquele local. Nas mesas e nas cadeiras, no sofá e na camiseira viam-se panos para costurar e novelos de algodão para meias.

De manhã as moças varriam, elas mesmas, o apartamento; ao meio-dia, mais ou menos, uma criada lhes trazia o almoço parco.

Durante o resto do dia, as duas mulheres quase não deixavam as sussurrantes máquinas.

A criança ficava, em geral, sentada à janela. Tinha cabelos pretos e um lindo rostinho, mas era singularmente pálida e de uma calma excessiva. Às vezes, com duas agulhas de tricô, fazia uma cinta com um pouco de linho ou de algodão. Outras vezes, brincava com uma boneca, vestindo-a e despindo-a repetidamente, a custo. Em outras ocasiões, não fazia nada; permanecia sentada à janela, à escuta.

Nunca o Sr. Tomás a ouviu cantar nem a viu correr pelo quarto, nem lhe enxergou nunca um sorriso nos lábios exangues e no rosto impassível.

— "Que menina esquisita!" — dizia consigo.

E entrou a observá-la mais atentamente.

Certo dia — um domingo — notou que a mãe dera à criança um pequeno ramozinho de flores. A menina animou-se, separou e juntou as flores, beijou-as. Finalmente fez delas outro ramo e o pôs num copo de água, sentou-se à janela a disse:

— Mamãe, está muito triste aqui, não é?

O advogado espantou-se. Como? Triste aquela casa onde ele vivera de bom humor tantos anos?

Outro dia, por volta das quatro horas, o advogado encontrava-se de novo no seu gabinete. A essa hora o Sol batia na janela das vizinhas, aclarando-a e aquecendo-a bastante. O Sr. Tomás olhava para o outro lado do quintal. De repente botou os óculos, como se houvesse algo extraordinário. Eis o que era: A pálida menina, apoiando a cabeça no braço, quase se deitara de costas para a janela, e com os olhos escancarados fitava o Sol. No seu rosto, de ordinário tão impassível, refletiam-se agora alguns sentimentos, um pouco de alegria, um pouco de tristeza.

— "Ela não vê" — disse consigo o Sr. Tomás, baixando os óculos.

E só de pensar como se podia fitar assim o Sol, que parecia lançar fogo, sentia doerem-lhe os olhos.

De fato, a menina era cega havia dois anos. Aos seis, adoecera de estranha moléstia, que a deixou desacordada algumas semanas, e depois a tornou tão débil que ela ficava estendida na cama, sem se mover, sem falar, como se estivesse morta. Davam-lhe vinho e canja, a assim se refazia aos poucos. Mas no primeiro dia em que se pôde sentar na cama, perguntou à mãe:

— Mamãe, agora é noite?

— Não, minha filha... Por que é que você pergunta?

A criança não respondeu; tinha sono. Só no dia seguinte, ao chegar o médico, perguntou de novo:

— Ainda é noite?

Então compreenderam que estava cega. O médico examinou-lhe os olhos e disse que era preciso aguardar.

Mas a doente, à medida que recuperava as forças, preocupava-se cada vez mais com aquela enfermidade:

— Mamãe, por que não posso ver a senhora?

— Porque você tem os olhos tapados. Mas isso há de passar.

— Quando?

— Daqui a algum tempo.

— Amanhã, talvez?

— Dentro de alguns dias, minha filha.

— Então, quando isto passar, mamãe, me avise imediatamente, porque, assim como estou, fico muito triste, por não ver nada.

Dias e semanas decorreram em expectativa. A menina principiou a levantar-se. Aprendeu a andar no quarto às cegas, vestia-se e despia-se sozinha, mas com vagar e cautela. A vista, porém, não voltava.

Um dia, ela disse:

— Mamãe, o meu vestido é azul, não é?

— Não, minha filha, é cinzento.

— Você o vê?

— Vejo-o, sim, querida.

— Como se fosse dia?

— Sim.

— E eu, eu também voltarei a ver tudo daqui a poucos dias? Dentro de um mês, por exemplo?

Como não obtivesse resposta, continuou:

— Mamãe, na rua é sempre dia, não é? O jardim tem árvores, como dantes? E aquele gatinho branco de patas pretas vem sempre visitar a gente? Não é verdade, mamãe, que eu já me tenho visto num espelho? Você não tem um?

A mãe deu-lhe um espelho.

— A gente deve olhar aqui, onde o espelho é liso — disse a pequena, aproximando-o do rosto —, mas não vejo nada. Mamãe, você também não me vê no espelho?

— Vejo-a, meu bem.

— Como pode ser? — exclamou a menina, aflita. — Se eu não me posso ver, não deveria haver ninguém no espelho... E essa menina que você vê no espelho, ela me vê ou não?

A mãe saiu às pressas, chorando.

O passatempo preferido da menina era tocar diferentes objetos pequenos com as mãos e reconhecê-los.

Um dia a mãe deu-lhe uma boneca de porcelana, bem-vestida, que custara um rublo. A criança não largava a boneca, fazia-lhe carinhos. Deitou-se muito tarde, pensando sempre no brinquedo, que guardou numa caixa estofada de algodão.

À noite a mãe foi despertada por um ruído; saltou da cama, acendeu uma vela e viu num canto a sua filha, já vestida, a brincar com a boneca.

— Que é que está fazendo? — exclamou. — Por que não dorme?

— Para que dormir, se já é dia? — respondeu a ceguinha.

Para ela, dia e noite fundiam-se, e duravam sempre...

Obliterava-se-lhe gradualmente a memória das sensações visuais. Uma cereja vermelha tornava-se uma frutinha lisa, redonda e macia; uma moeda reluzente fazia-se um pequeno disco duro e tininte, com figurinhas em baixo-relevo. Ela sabia que o quarto era maior do que ela mesma, a casa maior do que o quarto, a rua maior do que a casa. Mas tudo isto se foi de certa maneira resumindo, na sua imaginação.

Concentrava-se-lhe a atenção no tato, no olfato a no ouvido. O rosto a as mãos adquiriram sensibilidade tal que, ao aproximar-se algumas polegadas de uma parede, sentia um leve frio. Acontecimentos mais afastados penetravam nela pelo ouvido; ficava escutando dias inteiros.

Reconhecia os passos vagarosos do vigia de voz aguda que varria o quintal. Distinguia se o veículo que passava diante da casa era um carro de camponês carregando madeira, um fiacre ou um caminhão de lixo. Não lhe escapava o menor ruído, o cheiro mais leve, um resfriamento ou um aquecimento imperceptível do ar. Com incrível sagacidade, percebia os menores fatos e deles tirava conclusões.

Um dia, ouvindo a mãe chamar a empregada:
— Ela saiu — disse a cega, sentada, como sempre, no seu canto. — Foi buscar água.
— Como é que você sabe? — perguntou a mãe, assombrada.
— Como? Sei que apanhou o regador na cozinha e foi ao outro quintal tirar água com a bomba. Agora está conversando com o vigia.

Com efeito, do outro lado da cerca vinha o som da conversa de duas pessoas, mas tão abafado que dificilmente se podia entender.

Por maior que fosse o aperfeiçoamento dos outros sentidos, não substituía a vista, e a menina começou a ressentir-se da escassez de impressões e a experimentar saudades.

Permitiam-lhe andar por toda a casa, o que a serenava um pouco. Conhecia cada pedra do quintal, tocava em todos os algerozes, em todos os barris. Mas o maior prazer advinha-lhe de excursões a dois mundos inteiramente diversos: o celeiro e a adega.

Na adega o ar era fresco, as paredes úmidas. O bulício da rua chegava de cima, amortecido; os outros sons desapareciam. Para a cega, isso era a noite. No celeiro, sobretudo perto da janelinha, tudo se passava de maneira completamente diversa. Havia mais barulho que no quarto. A menina percebia o ruído dos carros de algumas ruas. De mais a mais, lá se concentravam os rumores da casa inteira. Um vento quente lhe afagava o rosto. Ouvia o gorjeio das aves, o latido dos cães e o sussurro das árvores num jardim vizinho. Era o dia.

Não só isto: no celeiro o Sol brilhava com maior freqüência que no quarto, e, ao volver para o Sol os seus olhos extintos, a pequena tinha a impressão de ver alguma coisa. Na sua imaginação apontavam sombras de formas e cores, mas tão confusas e fugidias que não podia lembrar-se de nada.

Foi nesse tempo que a mãe, tendo-se reunido à amiga, se mudou para a casa onde residia o Sr. Tomás. Estavam ambas as senhoras muito contentes da nova morada, mas para a ceguinha a mudança foi um verdadeiro desastre. Era obrigada a ficar no quarto, não lhe sendo permitido ir à adega nem ao celeiro. Não ouvia aves nem árvores. Reinava no quintal um silêncio horrível. Lá nunca entravam belchiores para quebrá-lo. Era proibida a entrada de velhas mendigas que entoavam cânticos religiosos, assim como de velhos tocadores de clarineta ou de realejo.

A única distração da menina era olhar para o Sol; mas nem sempre este luzia da mesma forma, e não tardava a esconder-se atrás das casas.

A criança principiou novamente a sentir saudades, emagreceu em poucos dias, e apareceu-lhe no rosto aquela expressão de desalento e desânimo que tanto espantou o Sr. Tomás.

Não podendo ver, a ceguinha queria ao menos ouvir os rumores mais diferentes; mas a casa era toda silenciosa...

— "Coitada da pequena!" — resmungava por vezes o Sr. Tomás, observando a triste menina. — "E se eu pudesse fazer alguma coisa por ela?" — perguntava, vendo-a cada vez mais pálida a magra.

Por esse tempo, um amigo do advogado teve um processo e, como de praxe, trouxe-lhe os autos, pedindo que os examinasse e desse alguns conselhos. Embora já não pleiteasse no tribunal, o Sr. Tomás, como bom profissional que era, sabia sempre indicar o caminho adequado e fornecia ao colega, por ele mesmo escolhido, muitas explicações úteis.

A causa que o Sr. Tomás agora estava examinando era complicada. Quanto mais atentamente a estudava, tanto mais se enchia de paixão. No ancião aposentado acordava o causídico. Já não saía do apartamento, já não verificava se fora tirada a poeira dos móveis. Encerrado no seu gabinete, lia os documentos e tomava notas.

À noite chegou, como de costume, o velho lacaio do advogado, com um relatório dos acontecimentos do dia. Informou que a esposa do doutor partira com os filhos em férias; que não estava sendo feito o fornecimento da água; que o vigia Casimiro, tendo brigado com um policial, fora preso por uma semana. Por fim, perguntou se o senhor advogado não queria falar com o novo vigia. O amo, inclinado sobre os papéis, fumava o seu charuto, lançava anéis de fumaça, e nem volveu os olhos para o fiel criado.

No dia seguinte o Sr. Tomás ainda estudava os autos. Por volta das duas almoçou, e depois tornou ao trabalho. O rosto vermelho e as suíças grisalhas, em combinação com o fundo azul da parede, assemelhavam-se a uma natureza-morta. A mãe da menina cega e a sua companheira, que fazia meias à máquina, observavam o advogado, a quem julgavam um viúvo robusto que habitualmente dormia da manhã até à noite, sentado à mesa do trabalho.

No entanto, o Sr. Tomás, bem que estivesse de olhos fechados, não dormia. Meditava sobre o caso.

Em 1872 o cidadão X legou ao sobrinho A uma fazenda, e em 1875, ao sobrinho B, um edifício. B pretendia que em 1872 X era louco, ao passo que A queria provar que ele só enlouquecera em 1875. Porém o marido da irmã do falecido Sr. X apresentou documentos autênticos que provavam que, tanto em 1872 como em 1875, X agia como um doido, pois havia legado a fortuna à irmã já em 1869, tempo em que ainda se achava de posse de todas as suas faculdades.

O Sr. Tomás fora convidado a resolver quando X enlouquecera, e depois a reconciliar as três partes, nenhuma das quais estava disposta a fazer a menor concessão.

Enquanto o Sr. Tomás procurava dirimir todas essas complicações, aconteceu um incidente incompreensível e estranho: No quintal, justamente sob a sua janela, um realejo pôs-se a berrar.

Se o falecido Sr. X se tivesse levantado do túmulo, houvesse recuperado os sentidos e entrado no gabinete para ajudar o advogado a encontrar a solução, decerto o Sr. Tomás não teria sentido espanto igual ao que experimentou ouvindo o realejo.

E se pelo menos fosse um realejo italiano, de acordes agradáveis como os de uma flauta, de boa fabricação, tocando belas melodias! Mas não! Como para irritá-lo de modo especial, o instrumento estava quebrado, tocava desafinadamente valsas a polcas ordinárias, a tão alto que as vidraças tremiam. Para cúmulo de desgraça, a tuba do realejo bramia de vez em quando, que nem uma fera raivosa.

Sob a tremenda impressão, o advogado ficou atônito. Não sabia que fazer nem que pensar. Por um instante cismou até que, lendo o testamento do louco Sr. X, ele mesmo houvesse perdido a razão e estivesse sujeito a alucinações. Mas qual! não eram alucinações. Era um verdadeiro realejo de pífanos quebrados e de tubo extra-forte.

No coração do Sr. Tomás, homem tão indulgente, tão afável, levantaram-se instintos selvagens. Lamentava que a natureza não o tivesse feito rei de Daomei, com o direito de matar os seus súditos, e imaginava o prazer com que, naquele momento, tiraria a vida ao tocador.

Como os homens do gênio do Sr. Tomás, quando violentamente encolerizados, passam com facilidade de projetos audaciosos a realizações terríveis, o advogado saltou à janela como um tigre, decidido a ralhar contra o homem do realejo com palavras as mais ásperas. Já se debruçara no peitoril para gritar "seu vagabundo!", quando ouviu uma voz infantil. Olhou para o apartamento fronteiro.

A menina cega dançava no quarto, batendo palmas. O rostinho pálido estava corado, a boca ria, e, contudo, corriam lágrimas dos olhos extintos. Havia muito tempo a coitadinha não conhecia tamanhas impressões naquela casa tranqüila! Que bela aparição constituíam para ela os acordes falhos do realejo! Que soberbo o rugido da tuba, que por um triz não causou uma apoplexia ao advogado!

Vendo o júbilo da criança, pôs-se o tocador a marcar o ritmo com o grande salto do sapato e a assobiar feito uma locomotiva ao cruzar-se com outra.

— Meu Deus! Que beleza, este assobio!

No gabinete do advogado surgiu o seu criado fiel, fora de si, empurrando para a frente o vigia, a exclamar:

— Eu disse a este patife, Excelência, que pusesse logo no olho da rua esse tocador. Expliquei-lhe que ia receber uma gratificação de V. Exa., e que nós tínhamos um contrato. Mas o malandro chegou da roça há uma semana, e não conhece os nossos costumes. Agora você vai ouvir — gritou, aferrando o braço do vigia. — Escute o que S. Exa. em pessoa lhe vai dizer.

O realejo tocava já a terceira melodia, sempre no mesmo tom desafinado e barulhento das duas primeiras. A menina estava em delírio.

O advogado voltou-se para o vigia, com a sua calma habitual, embora estivesse um pouco pálido:

— Escute, amigo... Como se chama você?

— Paulo, Excelência.

— Então, Paulo, eu lhe pagarei dez zlotych por mês, mas sabe para quê?

— Para que eu nunca deixe tocarem realejo no quintal — interveio o criado.

— Não — disse o Sr. Tomás. — Para que, por algum tempo, você deixe todos os dias tocarem realejo no quintal. Entendeu?

— Que é que o senhor está dizendo? — exclamou o criado, a quem a ordem incompreensível tornara muito atrevido.

— Digo que ele deve, até ordem em contrário, deixar diariamente tocarem realejo no quintal — repetiu o advogado, pondo as mãos nos bolsos.

— Não estou compreendendo o senhor — disse o criado, com sinais insolentes de surpresa.

— Você é bobo, meu velho amigo — replicou-lhe bondosamente o Sr. Tomás.

E acrescentou:

— Está bem, voltem ao serviço.

O criado e o vigia saíram. O advogado notou que o seu fiel criado murmurou alguma coisa ao ouvido do companheiro, pondo um dedo na testa.

O Sr. Tomás sorriu-se e, como para confirmar as sinistras suposições do criado, lançou uma moeda ao tocador do realejo.

Depois, tomando de um calendário, procurou a lista dos médicos e anotou numa folha os endereços de alguns oftalmologistas. Como o tocador, animado pela moeda, se virou agora para a sua janela e entrou a bater com os pés e assobiar ainda com mais força, o que não deixou de irritá-lo, agarrou a folha e saiu resmungando:

— Coitada da menina! Eu devia ter tomado conta dela há muito tempo...

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. Mar de histórias. vol. 7. RJ: Nova Fronteira.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Rúhiyyih Rabbani (Poemas Avulsos)

Biblioteca Manuel Antonio Pina, in Facebook
EM TUDO ESTÁ TUA LEMBRANÇA
Em tudo está tua lembrança,
Na chuva e no sol,
Nos passos nas escadas...
Como uma noiva eu cheguei, há muito tempo,
Os seixos nas trilhas,
E as ruas de muitas cidades,
O caminhar em teus belos jardins,
Cada flor e rosa e árvore...

Em mim mesma está tua lembrança,
Pois tuas palavras e teus olhares
Me alcançam de mil formas,
Formas simples e gentis do dia-a-dia
Vivido tanto tempo juntos.

Como um planeta, giro em minha órbita
Em voltas, voltas, voltas
E meu centro é esta dor infinita,
A insaciável saudade de ti,
O amor que abrasa todo meu peito.
 
POR QUE SE FECHOU A PORTA DO PARAÍSO?

Um bom homem teve um sonho:
Duas Almas Santas saíam dos sepulcros
E levavam consigo o nobre rebento
De sua gloriosa e elevada estirpe;
Regressavam então à tumba,
A parede selava seu repentino bocejo
E tudo era silêncio.

Por que se fechou a sublime porta do paraíso?
Um furacão arrebatou o plano de Deus
E, envolvendo-o em asas de fogo,
Apressou-se através daquele majestoso portal.
Em meio a estrondos de ensurdecedoras ondas de ar
Fechou-se ante a face dos homens.

Agora, em todas as terras, eles observam
Os frios portões altaneiros do Céu
E, como crianças, de olhos assustados,
Buscam uma fresta qualquer, uma fenda de luz!

Como os trigais se curvam e suspiram
Nos poderosos ventos estivais,
Assim são fustigados os corações dos homens;
Debatem-se em agonia,
Dor, desespero, esperança desvairada, orações.
Por que, Deus, ó Poderoso Deus, por quê?

Em ondas esta indagação bate
Às portas do Teu Reino
E sempre sempre o eco
Retorna solitário, miserável, vazio --
Por quê?

Somos teus filhos, Senhor!
Mostra misericórdia, ó Tu que tens piedade dos escravos.
Perdoa, cura, estende a mão,
E salva-nos de nós mesmos.

De outro modo, afundamos em noite universal,
Mergulhados em círculos e círculos de trevas
E todo o Teu dia luminoso some
Para sempre de nossos corações, e nós
E outros, que ansiavam por menos,
Caímos na perdição eterna.

INVOCAÇÃO

Nada mais pode curar esta ferida;
Só a terra e o pó
Podem estancar esta dor.
Derramai a terra gentil,
Em cujos grãos a vida
Se prende de mil modos,
Jogai-a sobre minha cabeça e meu coração;
Somente isso me pode curar.

O bálsamo do maior dom da vida:
A morte, majestosa, final, selo dos selos.
Dai-me isso para estancar meu sangue,
Pois a ferida sangra sem sessar.
Eu desmaio, eu cambaleio, eu caio;
Ah, Deus! Misericórdia!
Não nos escutas?
Também nos negas teus ouvidos
Como Tua face
Que nos mostravas
Na face de um ser amado?

Piedade, ó Compassivo!
Rebenta as cadeias,
Liberta-me.
Todo o meu ser anseia,
Como um rio inquieto,
Pelo deserto da morte!

RELÓGIOS DA ALMA E DA MENTE
 
As horas correm lentas...
Não nos relógios feitos por homens,
Mas nos relógios estranhos da alma e da mente
Ajustados com a catástrofe e a dor.

Um minuto são mil pensamentos,
Um pensamento doloroso, um ano,
Um mês é a dor lacerante de ontem
E, ontem, um vida toda que passou...

Passado e presente se fundem na memória
E a memória se torna eterna:
O futuro se volta como uma serpente
E crava no coração
O veneno negro do passado.

Cada segundo cai como água,
Desgasta a pedra da vida,
Mas a vida arde como teias de aranha
Numa repentina labareda.

AFLIÇÃO

Como o açúcar se dissolve na água
Até que os dois se tornam um só,
Assim a dor e o pesar em mim
Misturam-se totalmente.

Poderei eu afastar de meus lábios
A poção ardente
Da amargura
Adoçada com todo meu amor?

Pode alguém separar o coração
De seu sangue
E seguir vivendo em paz?
Ah, não!

Cada recordação querida,
Envolta em espinhos,
Eu seguro e abraço com dor
E choro enquanto exulto!

AH. MEU AMOR!
Ah, meu amor,
Eles me dizem
“Seca tuas lágrimas
E deixa de sofrer—
Não é adequado
Ante a eternidade
Lamentar tanto
E tanto tempo!“

Eles não vêem
Que todo meu íntimo
Clama por ti
Como se fosses
Meu coração
Arrancado vivo
De meu peito!
Que colocarei eu
Nessa ferida aberta?

O dia para mim é noite
E a noite é um dia aterrador
Estranho
Que queima em memórias.
Eles me pensam
Enlutada por ti
Como uma esposa
Se enluta por
Seu mui-amado companheiro.

Como poderei algum dia
Fazê-los compreender
Que não se trata disso?

Eu te pranteio
Como a chuva
Chora sua nuvem perdida,
Como o raio
Queima por seu perdido sol,
Como o perfume
Desmaia por sua flor perdida,
Como cada eco morre
Por sua perdida voz!

Jamais soube
Que tal força eu possuía.
Como um estranho metal
Forjado para o espaço exterior
Eu subsisto em meio ao calor
Da saudade ardente!
Mas a incandescência
Virá afinal:
Cedo ou tarde
Minh’alma queimará
Sua prisão
E partirá.

O SEGREDO

Curvei-me ante a Morte
E disse-lhe “Bom-dia,
Não ficarás comigo
Para uma dança?“

Ela sorriu forçado e se curvou,
Por sua vez, em longa deferência;
E pensei: ela não despreza
Meu convite.

Mas quando foi hora
De iniciar a dança
Ela não assumiu seu posto;
Apenas ficou olhando.

“Por que apenas olhas,
Parceira minha”, disse eu
“Vem! pois tentarei
Uma valsa contigo.”

Ela me olhou
Por longo tempo
E então disse sorrindo:
“Danço contigo
Todo o tempo
Pois estou em ti,
Sempre e sempre,
Minha fibra está lá.”

“Quê? Eu tão cheia
De sangue e vida,
Em meu coração não bate
Nem esforço nem dor!”

“Mesmo assim”,
Disse-me a Morte,
“Eu estou em ti.
Vê teu interior!”

Senti, ao observar
Minhas mãos,
Os ossos nus
Dentro da carne,

E todo meu ser
Era pleno de ossos,
Minha caveira como pedra
Atrás de meu rosto vivo.

“Sou um esqueleto”
Disse-lhe eu,
“Muito antes de morrer
Tu estás em mim!”

Ela sorriu de novo,
Um sorriso gentil,
“Espera mais um pouco
E eu chegarei

“E te chamarei
Para mim, para o amor, para a vida
Para longe da luta,
Para os campos da paz;

“Lá colherás
Margaridas
Nos campos raros
Cada flor uma estrela;

“Não terás angústias
Nem pesar nem lágrimas;
Eu te prometo o sono
E o descanso afinal;

“Sê paciente mais um pouco,
Vê como cada dia eu cresço
Em ti, mais profundo meu domínio
Sobre tua vida.”

O esqueleto
Brilha como uma luz
Através da pele tão fina,
Até que enfim
Ele consome
A gaiola, e livre
Virás a mim,
Mas não agora.

Fonte:
http://www.bahai.org.br/