terça-feira, 6 de agosto de 2013

Francisco Sobreira (Isa)

Ele a viu aparecer em uma das duas entradas que davam acesso ao bar, de repente estacar, movendo os olhos na direção dos poucos fregueses ali presentes naquele começo de noite. Ele estava em uma mesa perto da entrada de onde ela surgira, na parte do bar que não era coberta, e o rosto voltado para o mesmo local, de maneira a ser facilmente reconhecido. Ainda assim, achou necessário acenar-lhe com a mão, e o gesto, ele não deixou de perceber, apesar de estar tão atento à chegada dela, chamou a atenção dos outros fregueses. Ela acenou também, talvez mais para demonstrar que o vira, e apressou o passo na direção dele, que se levantou para recebê-la. Trocaram beijinhos, ela sentou-se e ele perguntou se o acompanhava na cerveja. Ela preferiu um refrigerante diet.

“Pensei que não viesse mais.”

“Quase que eu não vinha. Relutei muito, antes de me decidir a vir.”

“É, já pelo telefone você resistiu muito à minha proposta de nos encontrarmos. Por que, Isa?”

Ela, que estava com as mãos juntas, afastou-as com um gesto largo, como a sublinhar a resposta.

“Mas eu lhe disse por quê. Achava e continuo achando inútil este encontro.”

“Tudo bem. Mas o que quero ouvir de você é uma razão plausível para não continuarmos. Por que você diz que não dá certo continuarmos?”

Ela ia começar a responder, mas reteve a fala quando notou o garçom se aproximar da mesa, trazendo o refrigerante e um copo. Puxou a argola da latinha, despejou parte do conteúdo no copo, quase o enchendo, sorveu um longo gole, depois do que pôde responder a pergunta.

“Você disse que queria que lhe desse uma razão plausível, não foi? Pois muito bem. O caso é que não sou livre.”

“Não é livre? Como assim?”

Ele alteou a voz, outra vez atraindo a atenção das pessoas sentadas nas mesas próximas. Ela encostou o indicador nos lábios e moveu os olhos para os lados.

“Desculpe, Isa (ele baixou sensivelmente a voz). É que fui surpreendido pelo que você acabou de dizer. Explique­-se melhor.”

“Eu não sou livre. Já lhe disse”

Ele bebeu um longo gole, depois tirou um cigarro da carteira sobre a mesa e o acendeu. Parecia buscar na bebida e no fumo o apoio necessário para não perder a calma.

“Mas, Isa, você não me garantiu que era sozinha? Não foi você que quis que ficássemos na sua própria casa, com aquele papo de que não se sentiria à vontade num motel? Não foi?”

Ela não respondeu, ele repetiu não foi? ela disse foi.

“E então? Que história é essa de que não é livre?”

“Eu menti pra você. Mas agora vou dizer a verdade: eu vivo com um homem há muitos anos. E eu amo esse homem.”

Ele soltou uma risada curta, sem ligar para a curiosidade dos fregueses, nem para a censura gestual que ela podia fazer, mas que não fez. Em seguida ele disse:

“Você tá querendo gozar com a minha cara.”

“Bom, se você não acredita, não posso fazer nada. Acho que não tenho mais nada a fazer aqui.”

Ela fez menção de se levantar, mas ele a reteve com um gesto de mão.

“Queria que você me respondesse com toda a sinceridade de que for capaz. Eu não signifiquei nada pra você?”

A mirada de Isa teve a duração de um piscar de olho. Logo em seguida ela baixou o rosto e não disse uma palavra.

“Não é mais preciso responder. Está muito claro pra mim. Só não está claro é você ter aberto a sua casa para alguém que não representou nada pra você, já que você ama o homem com quem habita nessa mesma casa. Seria pedir demais, Isa, que esclarecesse pra mim essa parte obscura do nosso relacionamento?”

“Você quer mesmo saber?” (Ela tinha levantado o rosto e de novo o encarou.)

“É tudo o que quero saber.”

“Será que vai suportar ouvir a verdade?”

“Vá em frente, Isa.”

Ela esfregou uma mão na outra, como se as mãos estivessem úmidas e precisassem ser aquecidas.

“Não sei como dizer isso.”

“Vá em frente, Isa,” ele repetiu, já com uma certa impaciência.

“Bom. Você foi um... uma... digamos... uma espécie de instrumento...”

“Instrumento?”

“Como os outros...”

“Outros? Houve outros homens?”

Ela estava de novo curvada, insistindo em atritar as mãos.

“É ele, sabe? Precisa que eu faça... O caso é que ele... Eu tenho... tá entendendo?... que ter contato com outros homens...”

Calou-se de repente, como se aquelas palavras lhe tivessem exigido um esforço sobre-humano, deixando-a sem fôlego para prosseguir. Também calado, ele olhava para aquela mulher com a cabeça quase derreada sobre a mesa, indeciso entre a compaixão e o desprezo. Por fim disse:

“Você já pode ir.”

Ela se ergueu, sem olhar para ele, e, sem um mínimo gesto de despedida, afastou-se em passos rápidos. Já ele não tirou os olhos de Isa, até vê-la desaparecer.

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2007/10/francisco-sobreira.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Rufina

O homem é um ser tão mesquinho, que onde quer que ele se ajunte logo lhe sobrevem, pelo número, uma alma coletiva, embora muito rudimentar.

A multidão que se ensardinhava em redor do orador tinha visivelmente a sua; toda ela se agitava num só ritmo, gritava com uma só voz e se enchia de braços erguidos como um só bicho a eriçar-se numa só contração momentânea. O bonde também a possuía mas indiferente, comodista e escarninha.

Uma contava o seu tempo pelo mostrador pequeno, a outra media o dela pelo quadrante maior. Eram duas entidades inconciliáveis, vivendo em duas esferas distintas e irredutíveis da duração.

As duas almas se olhavam sem se compreender: nem a da rua se aplacava, nem se inflamava a do bonde. Dois mundos com trajetórias opostas, um em ebulição, outro frio.

Um começo de automática hostilidade pairava entre um e outro. Viesse um pequeno impulso, e os dois sistemas talvez se engalfinhassem com cega violência, como dois içás colocados rosto a rosto mecanicamente assumem o papel de inimigos de morte, e se agarram e se estraçalham com um santo e inconsciente heroísmo.

Não me esquecerei tão cedo de um casal de namorados que vinha hoje no bonde.

Gente do povo, gente humilde, dessa que não transpôs ainda o limite em que o indivíduo ignorante e simples começa a ver e a querer copiar atitudes, maneiras e atos de uma camada superior. Era, portanto, de uma espontaneidade inocente e quase animal a ternura com que os dois se enlaçavam, tecendo cada um, em redor de ambos, uma teia isolante de carícias, -mãos dadas, olhos compridos, falas em tom velado e plácido, e um permanente sorriso da mais pura e imbecil felicidade.

Ele, um latagão carpintejado à larga; ela, uma bezerrinha forte e carnuda, com uma pele esticada e quente e uns cabelos ásperos e crespos de lavadeira tostada ao sol. Simpáticos. Talvez belos, não tanto dessa "beleza do diabo" (dizem os italianos), mero efeito da mocidade e da saúde, como dessa espécie de beleza promissiva, que não entra pelos olhos, que se entrevê, que é como um esboço deixado de mão quando se encaminhava para a forma perfeita.

O meu prazer foi imaginar que o latagão era eu, que a moça era Rufina. Estávamos entregues um ao outro.

Tinha-me apropriado dela com a naturalidade com que me apropriaria do meu duplo, se ele surgisse a meu lado. Fechara-a no âmbito da minha personalidade e um desdobramento, um acréscimo, uma projeção do meu ser.

Que me importava o seu passado? A mulher que se ama não tem passado. Nasceu na véspera. É a objetivação de um acontecimento interior. Não é um ser: é um fato. É um episódio novo de uma história que vem de longe. A história, com o seu ritmo, a sua lei, a sua necessidade, a sua marcha, o seu destino, engloba, arrasta, dissolve e tinge de sua cor tudo quanto colhe através do seu derrame fluvial.

A mulher que se ama começou com o nosso amor; como disse o catalão Maragall da poesia.

... tot just ha començat
i es plena de virtuts inconegudes.

De repente, o casal desceu. O rapagão foi o primeiro à saltar, e, instintivamente, voltou-se com galante dónaire e estendeu a mão à juvenoa.

Esta pulou rápida e leve, como se tivesse recuperado instantaneamente uma aptidão perdida.

Nesse momento, aquele tosco rapaz, cabouqueiro ou lavrador, nos seus sapatões entorroados, sob o seu chapéu sujo, e aquela moça que mal e superficialmente se alindara, como uma batata apenas cozinhada e descascada, me deram a impressão de duas criaturas saturadas por séculos de galantaria e de cultura.

Eram duas sementes, e já me pareceram duas flores. Eram dois bichos do chão e pareceram-me dois pássaros esguios.

O amor gera e regenera desde que surde. A função generatriz não é um acidente da sua história, nem é a causa da sua aparição: amar e gerar é tudo um, e produz partos mais temporãos e mais estranhos do que os do ventre. Tudo começa ou recomeça, e todas as fecundidades se concentram na carne e na alma dos amantes, e o próprio mundo aparece de repente refeito, banhado das claridades e tocado da magnificência de um gênesis.

Rufina...

Ora, ora, Rufina, uma simples passageira de bonde com quem eu, passageiro de bonde, me encontrei duas vezes por acaso!

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 22

CAPÍTULO XIV

Voltou a casa às horas de jantar, e mais aborrecido do que nunca. Para isto contribuía em grande parte a insociável catadura com que o tio recebeu.

Ao entrar na alcova soltou uma exclamação:

— Pois a senhora ainda está aí? Perguntou ao dar com Ernestina estendida na cama.

— Ora esta!

— Você é um malvado! Respondeu ela com dificuldade, por causa de uma formidável rouquidão. Você é um judeu!

— Está incomodada?

A teimosa meneou a cabeça afirmativamente e explicou, mais por mímica do que por palavras, que aquela sua ida à janela a pusera naquele estado.

— Estou ardendo em febre, disse. — Seu amigo chamou um médico, foi buscar os remédios e deu-me um suadouro. Creio que vou transpirar. É preciso não abrir a janela.

— Pois eu hei de ficar fechado aqui com este calor? Ora, minha senhora!

E o pior, pensava ele, é que estou sem vintém.

Entretanto, desceu ao banheiro, lavou-se, mudou de roupa e, antes de assentar à mesa de jantar, chamou pelo Caetano e, entregando-lhe o seu relógio e a sua corrente, ordenou-lhe que levasse esses objetos a uma casa de penhores.

— Irei depois, objetou o criado: — Por enquanto tenho de servir o jantar.

— E o Sabino?

— O Sabino desapareceu há três dias.

— Bem, nesse caso irás depois.

E mais baixo:

— A Ernestina almoçou?

— Bebeu um caldo. O médico recomendou que não lhe dessem nada de comer.

— Bom. Não te descuides dela.

— É verdade, acrescentou o criado, — Aqui está urna carta de Minas para vossemecê.

— Por falar nisso: o Hipólito chegou; já sabias?

— Ainda não senhor. Vossemecê falou com ele? Como ficou sinhá Gemi?

— É dela justamente esta carta. Vejamos.

Querido sobrinho — Teu tio segue amanhã para aí, vai tratar da compra de um engenho e conta demorar-se um mês ou mais: desejaria eu que o 'procurasse logo que esta recebesses. Ele há de falar-te sobre um pedido que lhe fiz a teu respeito: é uma questão de mesada, visto que, segundo me consta, tens, aí, depois da morte de teu pai, lutado com grandes dificuldades. Eu, se há mais tempo não fui ao teu socorro, é porque teu tio está cada vez mais apertado em questões de dinheiro e não queria por coisa alguma entrar em acordo comigo Mas agora consegui dele prometer-me que te havia de procurar e que te daria 50$ por mês; não é muito, bem sei, mas com esse pouco e alguma boa vontade poderás continuar os estudos, que muito lamento haveres interrompido.
Acredita, meu filho, que, se a coisa dependesse só de mim, não chegaria a sofrer a menor privação; posto que nunca te lembres desta tua pobre tia, que muito te ama e quer.
Adeus.
Receba um abraço, dá lembranças ao Caetano e, quando puderes, vem fazer um passeio à fazenda.

O criado, que ouvira atentamente a leitura, chorava de alegria, quando o amo acabou a carta.

— Sim senhor! Gostei! Exclamou ele — não esperava outra coisa de sinhá Gemi!

— E no entanto, respondeu Teobaldo, nada disto me adianta, pois já estive hoje com meu tio e recusei de antemão a mesada!

— Pois vossemecê recusa a mesada de sua tia?

– Não é por ela, é por aquele malcriado do Hipólito.

— Vossemece faz mal.

— Embirro com ele. Acabou-se! E erguendo-se da mesa: — Mas que ainda fazes aí? Dá-me o café e vai onde mandei. Anda! — Então! Não te mexes?

Caetano dirigiu-se para a porta, mas voltou hesitando

— Então! Fez Teobaldo.

— É que, se vossemecê permitisse... Eu tenho aí algum dinheirinho, que...

— Não, não, obrigado, meu amigo, não te incomodes; desejo mesmo empenhar o relógio... Anda! Vai!

— Então faça ao menos uma coisa...: empenho-o em minhas mãos; sempre é mais seguro...

— Ah! Que és mais impertinente do que o próprio Samuel! Disse o rapaz.

E o Caetano, aproveitando esse bom humor, correu ao seu quarto e voltou com uma pequena caixa de folha.

— Vossemecê tenha a bondade de servir-se...

Teobaldo retirou duas notas de vinte mil réis.

— Estás satisfeito, usurário? Não sabia que era essa a tua vocação!

— Agora, Vossemecê faz-me um favor...

— Ainda?

— É de guardar-me esses objetos; podem roubá-lo e...

— Mas, que diabo! Eu não devo ficar com o dinheiro o com o penhor!

— Vossemecê pagará depois os juros...

— Também já entendes de juros, hein?...

— Oh! Se entendo... Fosse vivo nho Miló, coitado! Que ele lhe daria as contas que eu sabia fazer de cabeça?... Nunca me passaram a perna num vintém!

— Pois olha, se com todos fazias negócios desta ordem, podes limpar as mãos à parede!

O velho, satisfeito com o que acabava de dar-se, prendeu por suas próprias mãos a corrente ao colete do amo, meteu-lhe o relógio na algibeira e afastou-se receoso de comove-lo com a sua presença.

Logo depois Teobaldo saiu e dirigiu-se diretamente para o colégio onde trabalhava o Coruja.

Encontrou-o ainda ocupado com a última aula e dispôs-se a esperar por ele.

— Tu por aqui? Disse André, quando lhe apareceu no fim de meia hora.

— É verdade, procurei-te para te pedir um obséquio.

— Estou às tuas ordens.

— Quando fores para casa, se ainda encontrares lá aquele estafermo, despede-o por uma vez e dize-lhe que eu não voltarei enquanto me constar que ela não se foi embora.

— A Ernestina? Mas sabes que ela está doente?

— Apenas constipada; não é motivo para não ir.

— Coitada. Ela parece gostar tanto de ti...

— De acordo, mas eu é que não tenho nada com isso. São muito engraçadas estas senhoras: entendem que um homem, pelo simples fato de que as agrada e lhes merece amor, deve ficar submisso às ordens delas.

— Mas...

— Imagina tu que vinte mulheres pensam do mesmo modo e ao mesmo tempo a meu respeito; algumas, pelo menos, ficarão fatalmente sacrificadas, porque a gente não pode dedicar-se a tantas... E note-se que nenhuma delas admite divisões de ternura; cada uma quer tudo para si e leva o egoísmo ao ponto de não consentir que o objeto do seu amor pense em outra pessoa que não seja ela! Ah! É uma bela coisa, não há dúvida!

— Escolhe uma entre todas e dedica-te só a essa. A Ernestina, por exemplo...

— Não, não quero Ernestina, como não quero nenhuma. Trata tu de despachá-la, que eu me encarrego das mais. Daqui, vou já principiar a cuidar disso; é preciso não perder tempo. Adeus.

Coruja quis ainda dete-lo:

— Olha, ouve!

— Nada! Faze-me o que te pedi e, se ela de todo não quiser sair, amanhã mesmo nos mudaremos. Adeus.

E ganhou a rua, tomando logo a direção da casa de Leonília. Durante o caminho fez ainda várias considerações sobre aquela "terrível fatalidade" que lhe prendia aos calcanhares uma inevitável cauda de mulheres. Suplício estranho, contra o qual não havia remédio possível, a não ser que ele fugisse para um lugar onde só houvesse homens.

 Teobaldo tinha um desses tipos de que em geral gostam infinitamente as senhoras de moral fraca. Nele tudo parecia feito de propósito para cativá-las: os seus grandes olhos apaixonados, ora ternos, ora atrevidos, tão prontos a desmaiarem de amor como a ferirem com arrogâncias; o seu pequeno bigode crespo, arrepiado; a sua boca desdenhosa, aristocrata e sensual a um tempo; a sua fronte de homem de talento, sobre a qual uma bela cabeleira caía em anéis que se agitavam ao menor movimento da cabeça; o seu largo pescoço de estátua, pálido e rijo como o mármore; o seu perfil sereno e firme, orlado pela fina transparência da epiderme; as suas mãos longas e formosas; o seu porte gracioso e desafetadamente altivo; a sua voz Insinuante e ligeiramente irônica; a sua verbosidade original, cheia de espírito e alheia aparentemente ao efeito que levantava; tudo isso, e mais os pequeninos nadas do seu todo, que ninguém poderia determinar, mas que todos sentiam como se sente um perfume sem saber donde ele vem: tudo isso parecia destinado a encher de sonhos a fantasia das mulheres ávidas de ideal. E cada uma delas via nele o homem ambicionado; e cada uma, por amá-lo como as outras, entendia-se com o direito exclusivo de persegui-lo.

Triste martírio para quem, como Teobaldo, não queria aceitar favores de qualquer gênero que fosse, e para quem era necessário cuidar seriamente do futuro. E a graça é que a pobreza, a que ele se via agora reduzido, longe de ser uma barreira de resguardo contra aquela invasão, era como que um novo atrativo ajuntado aos seus encantos. E quanto mais fugia delas, com tanta mais insistência o rebuscavam; quanto era maior a sua indiferença, tanto maior o empenho que elas faziam. Se as tratava pelo modo por que tratou Ernestina, se as ameaçava, se lhes chegava a bater, como fizera a diversas, então é que o não deixavam de todo e a perseguição contra o belo desgraçado tomava um caráter horroroso.

E ele, que a princípio com isso se divertia, chegando até a julgar-se lisonjeado no seu amor-próprio, já por último andava sinceramente aborrecido com tanto amor; já o irritavam os beijos soluçados e as delirantes palavras de ternura. — Ah! Não queria ouvir falar em paixão, e fugia de certas mulheres como um criminoso foge da polícia.

A Ernestina, então, uma atriz de segunda ordem em tudo, mas que não perdia as esperanças de conquistá-lo, essa o trazia num cortado. Era bispá-la, quebrava ele a primeira esquina, metia-se no primeiro corredor, enfiava pela primeira escada, e, apesar disto, não conseguia escapar-lhe, porque o demônio da mulher parecia ter faro de cão matreiro.

Quando ele chegou à casa de Leonília, disseram-lhe que esta havia-se mudado para um hotel na Tijuca, porque o médico assim lho ordenara.

— Está doente? Perguntou Teobaldo.

Responderam-lhe que sim, que lhe aparecera febre, uma enorme sobreexcitação nervosa, fastio e dores na caixa do peito.

Entrou na alcova: O isolamento desta, em vez de o impressionar desagradavelmente, trouxe-lhe ao contrário um certo prazer íntimo de quem se vê livre de uma maçada que já tinha como inevitável.

Deitou-se na cama e tomou um livro que estava sobre o velador. Dentro do livro havia uma carta sobrescritada para ele.

— Escreveu-me, mas não se animou a remeter-me a carta, pensou, abrindo-a. Teobaldo.

“És um miserável. Melhor seria que, em vez de procederes infamamente para comigo, como acabas de proceder, me houvesse falado logo com toda a franqueza e tivesse me mandado para o diabo. Seria mais simples e muito mais digno. Até hoje homem nenhum teve a petulância de fazer-me a vigésima parte do que tens feito; envergonho-me de me haver iludido ao ponto de contar, já não digo com o teu amor, que tu só amas a ti próprio, mas ao menos com o teu reconhecimento, que era dever teu para comigo.

Saíste-me vulgar e mesquinho como os outros — Paciência!

Ontem fui â tua casa; mas, ao subir as escadas ouvi uma voz de mulher, espiei pela fechadura, vi-te a discutir e a ralhar com uma sujeita; alguma cena de ciúmes! Quis entrar e confundir a ambos, resolvi, porém, não ligar tanta importância a um fato que afinal não a merecia, e sal com a intenção de nunca mais te procurar. “Ao chegar á casa, ardia em febre; à noite não pude me levantar da cama; veio o médico, aconselhou-me todo o repouso, e que eu evitasse contrariedades e que, mal me achasse em estado de sair, procurasse um arrabalde bem tranqüilo e salubre”.

“Não sei qual é a minha moléstia, posso apenas afiançar que estou muito doente, nervosa a um ponto de fazer lástima, sem poder comer e sem poder dormir; a boca muito amarga, a caixa do peito muito dorida, e que a causa de tudo isso, — És tu”.

“Não obstante perdôo-te, porque não és o culpado de te amar eu tanto”. Só desejo que nunca te façam passar pelo que me tens feito sofrer.

“Adeus”.
Amanhã sigo para a Tijuca, e é natural que em breve esteja de viagem para a Europa. Se quiseres me ver antes disto procura-me e, se não queres, remete-me o teu retrato. Adeus.

Assinara o nome dela.

— Sempre a mesma coisa!... Pensou Teobaldo com um gesto de aborrecimento; mas foi interrompido pelo criado, que vinha fazer entrega de uma carta que deixara a senhora.

— Uma carta!... Para mim!... Perguntou o rapaz.

— Sim, para o Sr. Teobaldo.

Lembrou-se este então de que a outra, que acabava de ler, não lhe tinha sido remetida e abriu a nova com uma certa curiosidade.

Querido Teobaldo.
Peço-te que não me procure. Deixo esta casinha por interesses particulares e é natural que do lugar a que me destino siga logo para a Europa. Sou inconstante, perdoe, é uma questão de temperamento
Adeus. Seja feliz!

Teobaldo sorriu ao terminar a leitura.

— Coitada! Disse consigo. — Foi infeliz! Esqueceu-se de inutilizar a outra carta, sem o que talvez produzisse esta o efeito a que se destina. Definitivamente não nasci para sofrer pelas mulheres!…

E ganhando de novo a rua:

— Daqui nada mais tenho a recear! Desta estou livre!

Ao entrar na cidade encontrou logo o Aguiar.

— Amanhã, hein? Disse-lhe este, não te esqueças!

Teobaldo já se não lembrava de que.

— Oh! Homem, da festa de meu tio! Amanhã é o dia dos anos de Branca.

— Ah! Sim! É bem possível que eu vá.

E seguiram juntos para tomar alguma coisa.
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continua...

Anderson Soares Gomes (“As aventuras de Pi”: fé na ficção e os limites da narrativa)

Título: As Aventuras de Pi
Diretor: Ang Lee
Roteirista: David Magee
Atores principais: Suraj Sharma, Irrfan Khan, Rafe Spall
Ano: 2012
País: EUA/Taiwan
Duração: 127 min


Lançado em 2012, As Aventuras de Pi foi uma das mais premiadas produções cinematográficas do ano. Vencedor de quatro Oscars, o filme do diretor Ang Lee atingiu um nível de popularidade igual ou maior ao do beste-seller A Vida de Pi, de Yann Martel, que serviu de fonte para a adaptação para o cinema. O romance A Vida de Pi pode ser resumido em apenas uma frase: um garoto e um tigre estão em um bote salva-vidas no meio do oceano. A engenhosidade narrativa com que Martel conduziu a história rendeu ao autor inúmeros prêmios literários (inclusive o prestigioso Man Booker Prize) e um sucesso de vendas, mas também uma acusação de plágio por parte da crítica ao serem notadas semelhanças indiscutíveis entre o enredo de A Vida de Pi e o livro Max e os Felinos, de Moacyr Scliar, lançado vinte anos antes. Inicialmente relutante em confessar a (mais do que) inspiração, as edições atuais de A Vida de Pi têm um agradecimento especial a Scliar.

É bastante curioso que A Vida de Pi, para além de suas qualidades literárias, tenha suscitado uma polêmica tão grande com relação aos limites da criatividade e da originalidade quando esse é justamente um dos temas centrais de seu enredo. A jornada individual pela qual passa o protagonista tem relação direta com sua habilidade de criar histórias que ultrapassem a discussão sobre o que é possível ou verdadeiro. Se a moldura narrativa de Martel foi construída a partir da ideia de Scliar, a moldura narrativa das histórias de Pi são sua própria existência.

O filme As Aventuras de Pi (a “vida” sem “aventuras” parece ter sido insuficiente para o título em português) traduz tais discussões, para além do terreno literário, de maneira brilhante. Em primeiro lugar, o filme faz uso bastante criativo da linguagem 3D. Recurso dos estúdios norte-americanos atualmente para aumentar a renda da bilheteria, o 3D acabou se tornando uma espécie de estratagema para seduzir o público a ir ao cinema (cada vez mais ameaçado como modelo negócios com o avanço das TVs de alta definição e da banda larga de internet). Todavia, As Aventuras de Pi é uma feliz exceção: o filme se junta a uma pequena lista de produções (Avatar e A Invenção de Hugo Cabret são outros notáveis exemplos) que realmente usam dessa tecnologia para inovar a narrativa. O prólogo com um quê de realismo mágico que envolve o protagonista em um zoológico na Índia, a história da surrealmente límpida piscina pública de Paris e, obviamente, toda a sequência com o tigre no meio do oceano, adquirem uma atmosfera de hiperrealismo com o efeito 3D. Ao explicitar uma transposição fantástica que mimetiza o real, As Aventuras de Pi indica, de forma auto-reflexiva, a categoria de (meta)ficção nas histórias contadas por seu protagonista.

As Aventuras de Pi também sugere suas origens literárias de diferentes formas. O protagonista, por exemplo, aparece lendo livros em três fases distintas de sua vida. Quando criança, na escola, lê A Ilha Misteriosa, de Júlio Verne. Já na adolescência, aparece lendo em uma cena Notas do Subsolo de Dostoyevsky e, em outra, O Estrangeiro de Albert Camus. Na sequência em que aparece lendo os dois últimos livros, Pi afirma que se sentia inquieto, dizendo que procurava algo que desse significado à sua vida.

Inicialmente, esse sentido para a existência é proporcionado por uma imensa fé, ilustrada pelo fato de Pi se tornar devoto de três religiões diferentes: o Hinduísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Enquanto sua mãe apoia esse sincretismo inusitado, o seu pai vê nas religiões um artifício para enganar o homem, baseando suas decisões inteiramente na lógica e na razão – como afirma o Sr. Patel, “acreditar em tudo ao mesmo tempo é o mesmo que acreditar em nada.

A principal qualidade de As Aventuras de Pi consiste em mostrar, entre uma vivência mais racional ou mais religiosa, um terceiro caminho: o da ficção. É apenas quando narra o real de forma imaginativa que Pi consegue afirmar a sua identidade. Não é à toa que ele se pergunta sobre um significado para a vida no momento em que lê os romances – é a ficção que dá a Pi o estofo para suportar a carga da realidade. Até mesmo a sua devoção religiosa na infância ilustra isso, pois o que o atraíam eram justamente as narrativas das diferentes versões de Deus e da Criação. Após 227 dias em um bote no meio do oceano, tendo um tigre de bengala chamado Richard Parker como companhia, abandonado por Deus e pelo racionalismo, Pi encontrará na ficção o sentido máximo da existência.

Contar histórias faz parte da existência diária do protagonista. Desde o momento em que inicia a conversa com o escritor canadense, Pi o inunda de histórias: como seu tio, Mamaji, teve seus pulmões superdesenvolvidos; o episódio de Mamaji na piscina pública de Paris e como isso se relaciona com seu nome, Piscine; toda a sequência de como ele conseguiu convencer de que o chamassem apenas de “Pi” na escola; o erro na documentação que fez o tigre se chamar Richard Parker; e, claro, a história do bote no oceano.

Mesmo sendo storytelling parte constante de sua vida, Pi também deixa transparecer um lado racional e lógico que demonstra que “ficção” está longe de significar o mesmo que “mentira”. O seu próprio nome, “Pi”, vislumbra isso. Não é apenas o nome que Pi partilha com o número da constante matemática. Assim como o número irracional, Pi também é inconstante, não está na Índia nem no Canadá, vai além dos limites da razão e, especialmente, tem uma carga reflexiva que se estende até o infinito. O racionalismo também se faz presente na própria profissão de Pi: ele é um professor de teologia que procura, academicamente, ensinar os princípios de cada religião. Não satisfeito em ser cristão, hindu e muçulmano, o Pi adulto confessa que também dá um curso sobre Cabala na universidade.

Quando o bastante imaginativo Pi começa a contar sua jornada épica pelo oceano ao escritor (que, ironicamente, está passando por um bloqueio criativo), não parece ser coincidência que o nome do navio que afunda é Tsimtsum, um termo cabalístico. Na Cabala, tsimtsum é a manipulação da energia criativa para a criação de mundos, o que sugere que, a partir daquele momento da narrativa, estaremos embarcando, junto com o protagonista, em um mundo concebido pela imaginação. O nome dado ao tigre – Richard Parker – também é resultado de uma elaboração bastante engenhosa. Primeiramente, o nome remete à história real do naufrágio de um navio inglês em 1884, onde apenas quatro membros da tripulação conseguiram sobreviver em um barco salva-vidas. Desesperados e sem suprimentos, eles matam o mais jovem entre eles e o devoram. O nome do rapaz morto era Richard Parker. Outra origem para o nome é o romance A Narrativa de Arthur Gordon Pym, publicado por Edgar Allan Poe em 1837. Em um episódio do romance, o protagonista Pym e um amigo, tomados pela fome e desesperança, alimentam-se de um homem chamado Richard Parker. O curioso é que o romance de Poe foi publicado aproximadamente cinquenta anos antes do naufrágio do navio inglês. A presença de um tigre chamado Richard Parker em As Aventuras de Pi serve como indicador dessa aproximação entre ficção e realidade, tão importante para compreender a narrativa contada por Pi.

Após o naugrágio do Tsimtsum, Pi se encontra no bote salva-vidas, tendo como companhia uma zebra, uma hiena, um orangotango e um tigre de bengala (é a “arca de Pi”, tal como o próprio protagonista descreve a situação). Quando os imperativos da cadeia alimentar se fazem presentes, Pi passa a ter apenas Richard Parker como companheiro de sua jornada pelo oceano. A presença do elemento água em toda a narrativa de Pi tem uma carga simbólica em diversos momentos: em seu próprio nome, Piscine; quando é apresentado ao Hinduísmo, vendo os barcos iluminados na água; quando é apresentado ao Cristianismo, bebe a água benta e depois o padre lhe oferece água; na piscina de água doce da ilha misteriosa; e, é claro, na água do oceano que o rodeia. Essa fluidez da água reflete a própria maneira como Pi conta a sua história: maleável, contínua, mas sinuosa.

O oceano em si pode ser lido como a representação desse espaço altamente liminar, levando-nos para além da rigidez de identidades. O oceano é um espaço, não um lugar, terreno do transporte e da transformação, que constantemente mistura e combina seus próprios elementos. Dessa forma, não há espaço, na narrativa, para Pi se considerar um rei ou colonizador. Pi é um Robinson Crusoé contemporâneo, que a qualquer momento pode ser devorado pelo seu Sexta-Feira felino.

Quando está no bote, Pi busca novamente refúgio na narrativa para superar o fardo de uma situação extrema. Ele escreve um diário de bordo descrevendo seu cotidiano e seus pensamentos, assim como uma tradicional mensagem na garrafa (no seu caso, um lata de água) pedindo por socorro. O personagem afirma que “palavras são tudo que eu tenho para me agarrar”. Na condição de náufrago, pode se entender que as palavras de sua narrativa são o verdadeiro bote salva-vidas de Pi. Da mesma forma, o Pi adulto – sujeito diaspórico entre a Índia e o Canadá, sem origens, sem família, sem raízes – tem apenas as suas palavras (histórias) para se agarrar no meio do oceano da existência.

Uma das passagens mais interessantes do filme é quando Pi chega a uma ilha misteriosa (ecos de Júlio Verne) surgida no meio do oceano. A ilha, na verdade uma grande formação vegetal, serve de porto seguro para Pi quando achou que tudo estava perdido. Aparentemente paradisíaca, a ilha, porém, possui um lado letal: à noite, ela se torna carnívora, devorando todos os animais que nela se encontram.  Visualmente, essa é uma das sequências mais espetaculares de As Aventuras de Pi, repleta de momentos encantadores (os lêmures), mas também sinistros (o dente na fruta). O fato de a ilha ter o formato de uma pessoa deitada (morta?) realça o seu aspecto estranho.

Ao final de As Aventuras de Pi, após ser resgatado na costa do México, o protagonista é confrontado por burocratas japoneses, representantes da empresa dona do navio Tsimtsum, que querem saber a razão do naufrágio e a verdade dos fatos. Os japoneses se recusam a acreditar no relato de Pi sobre sua sobrevivência com os animais no bote, achando-a fantástica demais e repleta de incongruências. Os japoneses dizem que não podem escrever essa história no relatório, demandando a Pi uma história “em que pudessem acreditar”. Pi então conta uma outra versão, bem mais realista: ele teria sobrevivido no bote com sua mãe, um cozinheiro de má índole (vivido em cena breve por Gerard Depardieu) e um marinheiro amigável. O cozinheiro teria assassinado o marinheiro e também a mãe de Pi que, para se vingar, o mata. Essa história é análoga à dos animais, sendo os personagens entendidos de forma dupla: marinheiro/zebra, cozinheiro/hiena, mãe/orangotango e Pi/tigre. Após ouvir a versão brutal e factual de Pi, os japoneses preferem escrever no relatório a versão dos animais. Conversando com o escritor canadense, Pi pergunta qual seria a “melhor história”: a com os animais ou aquela com os humanos. O escritor diz, então, que prefere a história com os animais, ao que Pi responde: “com Deus é a mesma coisa”.

Tanto o romance A Vida de Pi quanto sua adaptação cinematográfica enfatizaram muito, em sua estratégia de divulgação, o mesmo discurso usado por Mamaji para convencer o escritor canadense a procurar Pi: a história dele o fará acreditar em Deus. Na verdade, Pi usa duas versões do mesmo episódio para ilustrar duas abordagens com relação à realidade: uma mais coerente e lógica; outra mais fantástica e imaginativa. Ao final, ele pergunta qual é a “melhor história”. Ao escolher a versão com os animais como a melhor, o escritor canadense percebe que é melhor entender a realidade por meio da ficção do que buscar sentido apenas na crueza dos fatos.

A partir desse ponto de vista, se faz necessária a narrativa religiosa, repleta de símbolos, alegorias e parábolas. Afinal, Pi suporta a dor de tudo pelo qual passou justamente por representar as suas perdas e traumas por meio de uma narrativa de sobrevivência de cunho fantástico, ou seja, diferentemente de seu pai, Pi prova que a existência também se torna mais serena quando se acredita em algo que foge à razão. Dessa forma, As Aventuras de Pi aproxima a religião da ficção, já que ambas são formas de contar essa “melhor história”.

Ao mesmo tempo filme de aventura, reflexão filosófica e estudo metaficcional, As Aventuras de Pi é uma das mais tematicamente ricas produções do cinema recente. Apresentando um deslumbre visual e questionando a natureza da própria narrativa, é um filme que indaga sobre os limites da fé, da ficção e da forma como que compreendemos a realidade.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - Mensal - Ano XI – Julho de 2013 – Ensaios sobre Cinema
Editor: Antonio Ozaí da Silva (UEM).

domingo, 4 de agosto de 2013

Francisco Sobreira (A Pantera)

Bonita. Muito bonita. Os olhos bem abertos, agateados, que davam ao rosto um ar de pantera, a boca parecendo ter o tamanho certo – nem grande, nem pequena. Os braços – e aí um pequeno senão na sua beleza – eram um pouco musculosos, assim formados, certamente, por exercícios em uma academia. Quando a viu pela primeira vez, ela surgindo de repente, com o olhar provocador, foi tomado por uma sensação estranha. Um impacto. Ou, antes, um susto pelo inesperado da presença da moça, como algo ameaçador, embora revestido de beleza. Ela estava colada à vitrine da parte lateral de uma perfumaria, localizada num centro comercial. O que sentiu, de tão forte, quase como se percebesse uma ameaça de agressão (e a beleza dela tinha um quê de agressivo), o fez olhar rapidamente para a moça e continuar a caminhada de todo final de tarde, dando várias voltas pelos dois longos quarteirões, no primeiro dos quais se situava aquele centro comercial. Seguiu com a imagem da moça na cabeça. Atingiu o fim do segundo quarteirão, dobrou à direita, passou em frente a um antigo colégio, depois pegou outra vez a direita e foi percorrendo os dois quarteirões do lado oposto, até alcançar outra vez o centro comercial. Era assim todas as tardes, quando começava a escurecer. Ao se aproximar da farmácia, já se sentia preparado para não sofrer o mesmo efeito de minutos antes e foi até a vitrine, para examinar a moça. E, embora tocado pela agressividade de sua beleza, permaneceu uns dois a três minutos observando detalhadamente o rosto e a mão que segurava um frasco de perfume de nome inglês.

Ao voltar para o apartamento vazio, desfez-se da bermuda, do tênis, da camiseta, enxugou o suor do corpo, escolheu um cd, deitou-se na cama para ouvi-lo. Como fazia todas as tardes, antes de tomar banho e depois comer o jantar frugal. Mas daquela vez ocorreu uma quebra na rotina. Ele ouvia as músicas, mas sem a mesma concentração. Em algumas músicas até que a concentração era inteira (talvez porque fossem as de que gostasse mais), já em outras a imagem da moça se sobrepunha e ele não tinha força para rejeitá-la. Quando mais tarde foi ler, em muitos momentos parecia “ver” a moça presente no relato. Houve uma vez que ao ler a descrição dos olhos de um personagem feminino, imaginou que eles fossem iguais aos dela. Interrompeu a leitura e, com o livro seguro na mão, pôs-se a pensar na moça. E pelo resto da noite não conseguiu livrar-se da sua imagem e teve a certeza, ao deitar-se, de que ela apareceria num sonho, mas isso não ocorreu.

No dia seguinte, ao despertar, o primeiro pensamento foi para ela. Rápida, veio a resolução de tomar a providência de evitá-la, alterando o itinerário da caminhada. Ficou cada vez mais distante da perfumaria, na certeza de que, não vendo a moça, ela sairia da sua cabeça. A providência deu resultado, mas não imediato, por alguns dias a imagem da moça, o ar de pantera, o rosto de uma beleza perfeita surgiam, de repente, por entre as páginas de um livro, no meio de uma música, na tela da televisão. Até que um dia ela desapareceu, afinal. Experimentou uma grande satisfação, como se tivesse ganho um prêmio. Com o passar do tempo, livre dela, chegou a pensar em vê-la outra vez, pois acreditava que não iria lhe acontecer mais nada, a não ser a indiferença. Saiu uma tarde disposto a retomar o antigo itinerário, mas, ao chegar a poucos metros da perfumaria, algo estranho o dominou, impedindo-o de seguir. Voltou, então, pelo caminho que o levara até ali, continuando a caminhada no sentido das outras tardes. Enquanto andava, percebeu, num misto de decepção e raiva, que não estava de todo livre dela.

Um dia foi ao centro da cidade. Fazia anos que não ia lá, para não ser incomodado pelo barulho dos carros de propaganda e do número excessivo de pedintes e de pessoas oferecendo cartões de crédito, empréstimos, entregando papeizinhos de serviços diversos. Mas um amigo lhe dissera que tinha visto numa grande loja o cd que ele procurara, sem sucesso, em outros locais da cidade. Encontrou o cd, após uma busca que levou uns dez minutos, uma única unidade, escondido por outros discos, como se estivesse à sua espera. Pagou-o e, em vez de sair pela entrada, preferiu a porta dos fundos. Ao passar pela seção de perfumaria, sem um razão que justificasse o ato, como impelido por alguma coisa da qual não pudesse escapar, desviou a vista para a parede ao lado. E viu. No alto da parede, ela, os olhos parecendo mais agateados, a expressão no rosto parecendo ainda mais agressiva, olhando desafiadora para ele, dando-lhe a impressão de que quisesse saltar do pôster para cima dele. Virou-se com tanta rapidez que o corpo perdeu um pouco o equilíbrio e precisou apoiar-se numa prateleira para não cair. Logo em seguida, retomou a caminhada, apressado, esbarrando nas pessoas, sem se desculpar, ansioso para encontrar a saída. E mesmo depois de sair da loja, continuou a andar veloz, quase correndo, como se achasse que a moça, tinha de fato, saltado do pôster e, tão rápida quanto ele, viesse em seu encalço. Nem quando entrou no carro, sentiu-se livre. Em disparada voltou para o apartamento.

E, à noite, sonhou com ela.

Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2007/10/francisco-sobreira.html

Francisco Sobreira (1942)

Francisco de Paula Sobreira Bezerra (Canindé, 1942) fez o antigo Ginasial e o Científico, incompleto, em Fortaleza. Concursado no Banco do Brasil, foi trabalhar no interior do Estado, depois fixou residência em Natal, Rio Grande do Norte. Publicou os livros de histórias curtas A Morte Trágica de Alain Delon (1972), A Noite Mágica (1979), Não Enterrarei os Meus Mortos (1980), Um Dia... os Mesmos Dias (1983), O Tempo Está Dentro de Nós (1989), Clarita (1993), Grandes Amizades (1995) e Crônica do Amor e do Ódio (1997); os romances Palavras Manchadas de Sangue (1991), A Venda Retirada (1999) e Infância do Coração (2002). Cinéfilo, foi presidente do Cineclube Tirol, de Natal, e do Clube de Cinema, de Fortaleza. Ganhador de vários prêmios literários, como o da Fundação José Augusto de Ficção, de 1879 e 1981. Também venceu o Prêmio Aurélio Pinheiro de Ficção, de 1985, e o Concurso Literário “5 Contistas Potiguares”; além do Concurso Literário Câmara Cascudo, de 1987, dentre outros. Participa de várias antologias.

A maioria das peças ficcionais de Sobreira se situa na estante das chamadas narrativas lineares, com um episódio central, poucos personagens, desfecho, narração, diálogos e alguma descrição. Em “Operação coroada de êxito”, do primeiro volume, o narrador, internado num hospital, monologa por alguns minutos, no presente, e vez ou outra “repete” falas, de pouco interesse, de seres fictícios insignificantes, ao seu redor. No entanto, a obra de título igual ao da coleção tem arquitetura mais moderna: uma notícia de jornal (a morte do cachorrinho Alain Delon), uma crônica, outras notícias menores relativas ao cão, duas entrevistas e, finalmente, a notícia do julgamento do assassino.

Seu segundo livro, A Noite Mágica, nada tem de revolucionário, de vanguardista, de inovador. Muito pelo contrário, é tecnicamente conservador. Francisco Sobreira não faz nenhuma alquimia de estilo, não cria nenhuma nova linguagem. No entanto, esta aparente acomodação não indica seja ele um simples contador de histórias.

Sendo conservador na forma, o livro de Sobreira segue a trilha da prosa de ficção de pós-1964. Perpassa por quase todas as composições um vento forte de paranoia, caudaloso na literatura urbana brasileira dos últimos anos do século XX. Histórias de medo, terror, alucinação. Medo de ser preso, de perder o emprego, de morrer de fome, medo disso e daquilo. As pessoas se sentem caçadas como bichos, ameaçadas, perseguidas. Os amigos e os parentes são delatores ou espiões a serviço do Poder. A própria sombra de cada ser humano é um dedo-duro em potencial. Esse horror kafkiano é notório em contos como “O Caçado”, “Enquanto o Diabo Esfrega o Olho”, “O Falso Álibi”, “A Promissória” e “O Caçador de Nostálgicos”. O narrador, sempre perseguido, sempre paranoico, torna-se perseguidor, delator, comparsa da polícia (representação do direito de perseguir), como em “A Voz do Vizinho”. O protagonista, sem nome explícito (“o homem que vinha denunciar”, “senhor” ou “denunciante”), comparece a uma delegacia para denunciar o seu vizinho, pelo crime de não falar, embora não seja mudo. Os outros seres fictícios são “o soldado” e “o Delegado”. Constituído basicamente de diálogos, a história tem um quê de non-sens ou, se quiserem, de parábola. E isto é visto em outras peças, como “A Fábrica”, a lembrar José J. Veiga, especialmente “A Usina Atrás do Morro”. Entretanto, a notícia da fábrica, da sua inauguração perde importância logo, para dar lugar à presença de “estranhos”, isto é, os construtores ou trabalhadores da fábrica, na cidade. E somente um personagem adquire significância: o palhaço Arrelia. Por que este e não o professor, o padeiro, o padre? Perfeito desvario, o que não deixa de ser valioso.

O absurdo é, assim, o ingrediente principal da iguaria narrada. Às vezes um absurdo que, de tão cotidiano, perde o sabor de coisa literária. Em “A Lâmina”, por exemplo. Porque ninguém é mais dono de nada. Outras vezes, a situação anormal se apresenta como se o ser fictício fosse apenas um deficiente mental, incapaz de perceber a vida e a morte ao seu redor, manejado por tentáculos tão torturantes quanto os fantasmas dos pesadelos. A realidade narrada aproxima-se, então, do sonho. Os protagonistas e os espectadores são meros joguetes nas malhas de seres todo-poderosos que inventam a vida ou o fato. Por isto, em alguns contos a presença do elemento onírico é perfeitamente perceptível ou mesmo preponderante. Os atos e as imagens se sucedem de forma incoerente, deixando o personagem simplesmente perplexo, espantado diante da estranha realidade de que tenta desesperadamente fugir. Assim, reduz à condição de ficção, de brincadeira de mau gosto, de encenação, quando muito de logro, a peça que lhe pregam. Não acredita ser possível tão absurda realidade. Por fim se convence e tenta fugir. Porém, já é tarde demais.

Essa cosmovisão, esse sentimento de inferioridade, de pequenez, essa crença nos super-homens, nos homens de milhões de dólares, nos seres biônicos, nos deuses e entes mitológicos do mundo moderno, possibilitaram a ascensão do nazi-fascismo e possibilitam, ainda, um mundo de tantos disparates.

“A Pedra” é belíssima composição e tem dimensão diferente das demais. No entanto, o mesmo clima de perseguição, de repressão, na pessoa de um pobre sertanejo virado pagador de promessas.

A linguagem nas narrativas de Sobreira é coloquial, popular, recheada de gírias e modismos (“meu chapa”, “abonado”), expressões de uso comum (“era a última coisa que faria naquele momento”; “ajuda de que tanto necessitava”; “tocava na sua ferida”; “pele de uma alvura imaculada”), observações desnecessárias (“Lá bem distante o mar glaucíssimo oferecia-se à admiração das pessoas”; “Mas os jornalistas parecem sofrer do mesmo tipo de amnésia que afeta os eleitores e os torcedores”; “É preciso que se diga que”). O narrador de “Aquele casal” (pode ser o próprio autor também) observa: “A rotina, seria dispensável dizê-lo, gruda-se na vida de todos nós de uma tal maneira...” Apesar disso, esta peça é magnífica até no desenlace. Sobreira inverteu os papéis dos personagens: o narrador, Ernani, é mero espectador, e é o único com nome explícito. Os protagonistas são “o homem” ou “o gigante” e “a mulher” ou “a mulherzinha”, ou, como se fossem um só, “o casal”. O narrador e os seres fictícios que gravitam ao seu redor falam, gritam, ouvem, veem, discutem, se relacionam. Exercem seus papéis no palco da rua. Por outro lado, os protagonistas simplesmente passam diante deles, em permanente discussão, como se o mundo além deles não existisse.

Em Sobreira a narração é minuciosa, o narrador se perde em detalhes. Há explicações em demasia: “A submissão aos maridos, naquela época, era como que uma cláusula no contrato de casamento, que as esposas tinham que cumprir, e ainda vigora na maioria das uniões existentes no Nordeste do Brasil”. A linguagem da crônica, do ensaio, da matéria jornalística não pode ser a do conto, salvo se o propósito do contista for o de imitar ou parodiar uma ou outra.

Personagens sem nenhuma influência na trama surgem de repente e logo desaparecem, como em “Lastênia”. Algumas obras parecem capítulos de romance, com vários episódios e personagens secundários que poderiam se apresentar sem nomes, como Jofre Colares, Celso Meireles, Benito, Policarpo, Hermógenes, Zeca Marcolino, de “Soldadinhos de chumbo”.

O Francisco Sobreira das histórias insólitas, das parábolas, dos contos fantásticos é, sem dúvida, muito superior ao narrador das pequenas cenas domésticas, das narrativas do cotidiano das pessoas. Entretanto, se depurasse a linguagem, se transgredisse as normas do conto, mesmo os episódios ordinários poderiam alcançar degraus mais altos da arte literária. E, ainda, se buscasse sobrepor ao objetivo um pouco de sugestivo, ou seja, se transitasse da movimentação episódica externa para a ação interior.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil, ensaio, 2008. Imprece, Fortaleza, CE.

Vânia Figueiredo (Galera Legal)

Vânia é de Bauru/SP
(4o. Lugar no VI Concurso Literário Cidade de Maringá, Modalidade Crônica: Troféu Lucilla Maria Simas de Assis)
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    Uma salva de palmas a essa moçada laboriosa que desde cedo batalha para colocar o pé na estrada certa da vida. E que não tem tempo para besteira, porque eles têm mais o que fazer. Para vê-los, basta passar cedinho nos pontos de ônibus e vê-los, de carinha ainda amassada de sono, às vezes tiritando de frio, sabe-se lá que café da manhã tiveram.

    Quem tem mania de achar que a juventude está perdida, não viu ainda este pessoalzinho adolescente que levanta antes do sol raiar, estuda, trabalha em pequenos empregos, ainda ajuda a família com uns trocadinhos e sabe que vai passar um longo tempo trabalhando. Vão fazer o impossível para conseguir chegar à Faculdade ou uma Escola Técnica que lhes assegure uma profissão. Depois, para progredir, ainda vão ter que competir num mercado de trabalho estreito e acima de tudo preconceituoso. Mas eles não desanimam.

    E tudo de cara alegre, felizes da vida, orgulhosos de si, com uma fé inabalável de que estão fazendo o melhor que podem. Não há espaço para tédio, nem para fazer coisa errada, porque não dá tempo nem vontade. No tempinho que sobra até vale um namoro, cinema, sorvete, mas também dormir cedo, que amanhã é outro dia.

    Se Deus ajuda a quem se ajuda, então esta galera mais do que legal deve ser a menina dos olhos do Pai do Céu. Eles merecem!

Fonte:
Livreto dos Concursos

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) O Bonde e a Rua

O bonde da tarde, hoje, foi demorado por uma qualquer manifestação popular, que lhe barrou a passagem. Os viajantes, depois de satisfeita a primeira curiosidade, obra de segundos, começavam a dar sinais de irritação, quando um orador entrou a trovejar. Essa obstrução pareceu a todos insuportável, e todavia não durou mais de cinco ou seis minutos.

Sempre é verdade que a medida real do tempo é o nosso desejo.

Isto me faz lembrar o meu colega Sinfrônio de Mendonça, que, outro dia, lá na repartição, ao inaugurar-se o retrato do chefe, quis à viva força ler um discurso. E leu, prevenindo os ouvintes: "É curtinho senhores, tenham paciência".

Esta esfarrapada desculpa com que se costumam cobrir os oradores intempestivos baseia-se toda num passe finório com as noções de tempo - a do tempo mecânico e objetivo e a do tempo psicológico ou subjetivo. Quando dizem que a peça é curta, é porque lhe aplicam a medida-relógio, como se fosse esta a que importasse aos ouvintes como se não fosse, por exemplo, uma verdade universal que o pequenino sermão de ouro que nos aborrece é dez ou mil vezes mais comprido do que a interminável lenga-lenga que nos lisonjeia.

O nosso relógio interior tem também dois mostradores, um grande e outro pequeno, mas o grande é que dá medida prática dos minutos desagradáveis, que aí correspondem às horas, e o pequeno marca a duração das horas amenas, que nele são minúsculas frações -quando o ponteiro não está engasgado.

O tempo real é conforme ao ícone que dele deixaram os gregos -um velho decrépito que naturalmente se arrasta quando caminha por seus pés, mas que também voa como um pássaro, porque tem asas, e quando bate as asas rejuvenesce.

Fonte:
Domínio Público

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 21

CAPÍTULO XIII

Teobaldo saiu de casa verdadeiramente aborrecido.

— Malditas fossem todas as mulheres! Maldito fosse ele, que não conseguia dar um passo sem tropeçar logo num rabo de saia! Arre! Era preciso despedir-se de Leonília por uma vez e fazer com todas as outras o que fizera com Ernestina! Esta com certeza estava mais que despachada!

E, assim considerando pelo caminho, principiou a passar uma revista mental aos seus amores.

— No fim de contas, pensava, só trouxera de tudo isso conseqüências ridículas ou perniciosas, que serviam apenas para lhe atrasar a vida e afastá-lo dos seus verdadeiros interesses. Ah! Mas desta vez havia de tomar uma resolução, uma medida séria! Naquele andar não conseguiria nunca fazer carreira... A ter de ter amores, que fossem estes com mulheres de quem lhe viesse algum benefício real: mulheres que, lhe abrindo os braços, abrissem-lhe também as portas de um futuro garantido e cômodo. Estava disposto a amar, sim senhor, contanto que lhe viesse daí algum proveito imediato para as suas ambições.

Com estes cálculos chegava ao largo de S. Francisco quando o Aguiar lhe bateu no ombro. Virou-se, sem ter tempo de compor um sorriso amável.

— Oh! Estás com uma cara! Disse-lhe aquele.

— Não é nada! Tédio.

— Eu também não me sinto de bom humor. Dormi mal A noite passada e tive enxaqueca durante todo o dia. Vou beber para ver se distrai; queres vir também?

— Não, obrigado; estou incapaz de tudo.

— Anda daí.

— Está bom. Vamos lá.

E à mesa do botequim, defronte dos copos de cerveja:

— Mas, que diabo tens tu? perguntou Aguiar.

— Desanimado, filho, totalmente desanimado! Não imaginas a série de contrariedades que me sucedem todos os dias. Agora, para cúmulo de caiporismo, é o diabo da Leonília que entende perseguir-me de um modo atroz!

E contou minuciosamente o que ela fizera.

Aguiar abriu os olhos com exagero de espanto.

— Que! Pois seria crível? Ora, para que lhe havia de dar! Exclamava a rir. Paixão aguda, com caráter pernicioso! Podre Leonília.

— Pobre, mas é de mim! Emendou Teobaldo, muito preocupado.

— De ti? Tu o que és é um grande felizardo! Disse o outro. As mulheres procuram-te e são capazes de ir ao inferno para te descobrirem!

— Não esta má fortuna! Dava-a de boa vontade a quem a quisesse!

— Deixa-te disso…

— Juro-te, meu amigo, que estou deveras aborrecido com tudo isto e que de bom grado abandonaria o Rio de Janeiro, se me achasse em condições de fazer uma viagem.

Depois de alguns outros copos, os dois rapazes ficaram mais expansivos. Aguiar confessou então, que a causa do seu mal-estar não era a tal noite mal passada, nem tampouco a suposta enxaqueca, mas o diabinho de uma prima que ele tinha, um diabinho de quinze anos, que ele adorava, sem conseguir arrancar-lhe um ar de sua graça.

— Não te corresponde?

— Qual! Parece até embirrar comigo. Talvez me confunda com os tipos que a cobiçam por causa do dote…

— Ah! É rica!

— Tem cento e tantos contos... Ah! Mas tu sabes perfeitamente que eu, só por parte de minha mãe, possuo mais do que isso, sem contar com a morte de meu avô.

Teobaldo soltou um suspiro.

— Já vês... Disse o outro, que não é pelo dote!

— Está claro!

— Pois, apesar disso, não consigo agradá-la. Tenho empregado todos os meios; não penso rim outra coisa; persigo-a por toda a parte, e a malvadinha cada vez mais cruel!

— Decerto; toda mulher foge enquanto a perseguem. Deixa-a. de mão; finge indiferença, e verás que ela se chega.

— Homem. e dizes bem. vou fazer-me indiferente.

Mas acrescentou logo depois:

— Qual! É impossível! Não tenho forcas para isso!... Será bastante vê-la, encontrá-la na rua, vara que eu perca de todo a cabeça e não saiba mais regular os meus atos. Fico louco!

— Oh! Mas então a coisa é séria!

— Que queres tu? Adoro-a!

— Ela é bonita?

— Encantadora! Queres ver o retrato?

E, tirando do bolso uma fotografia.

— Olha.

— É linda. com efeito. Pois. filho, se estás tão apaixonado, é insistir, porque a água mole em pedra dura...

— Sim. mas já me vão faltando as esperanças de conseguir qualquer coisa... Ri. sabes? Ela depois de amanhã faz anos; hesito ainda no presente que lhe devo dar...

— Não lhe dês nada.

— Impossível. Há uma festa em casa da família. O pai, o comendador

Rodrigues que protege as minhas pretensões sobre a filha. convidou-me.

— Ah! O pai protege-te?

— Pai, parentes, amigos, todos me protegem, menos ela.

— É o diabo! Estás mal!

— Contudo, ainda não desanimei de todo e vou experimentar uma idéia, que tive agora, uma idéia para o dia de seus anos.

— Qual é?

— Uma idéia magnifica; só tu, porém, me podes ajudar.

— Eu? De que modo?

— Vou levar-lhe de presente uma poesia... Que achas? É um presente econômico.

— Mas eu não sei fazer versos; tu és quem os há de arranjar.

— Não seja essa a dificuldade. Podes contar com eles.

— Não. Há de ser já; ao contrário sei que não os pilho.

— Agora?

— Sim. Olha; ali tens uma mesa com papel e tinta; toma a fotografia para te inspirares, e mãos à obra!

— Ora, filho, mas isto é uma espiga.

— Anda! Escreve!

Teobaldo ainda recalcitrou, mas o outro insistiu por tal forma, que ele afinal não teve remédio senão fazer-lhe a vontade.

E, colocando o retrato defronte de si, compôs ao correr da pena meia dúzia de estrofes líricas, repassadas de arrebatamento amoroso; depois limou-as pelo melhor que pode e leu-as ao amigo.

— Que tal achas?

— Soberbo! Com isto creio que avanço uma légua nas minhas pretensões.

E guardando os versos na algibeira:

— É verdade! Tu bem podias vir comigo à festa; é domingo. Hás de gostar.

— Pode ser... respondeu o outro

— Não; quero que venha com certeza; desejo apresentar-te a meu tio.

Teobaldo, havia muitos meses, não tinha ocasião de visitar famílias o que com a sua educação, fazia-lhe certa falta; não lhe foi por conseguinte de mau efeito o convite do amigo, e, logo que este pôs à disposição dele algum dinheiro, ficou entre os dois combinado que jantariam juntos no domingo em casa do Aguiar e seguiriam depois para o baile do comendador Rodrigues. Depois foram daí ao teatro e à volta deste cearam no Mangini em companhia de uma francesa que se lhe agregara durante o espetáculo.

Eram duas horas da madrugada quando Teobaldo, um pouco eletrizado pelos seus vinhos italianos, recolhia-se afinal a casa, pé ante pé, para não acordar o Coruja. Mas, ao entrar no quarto, ficou surpreendido; alguém ressonava na sua cama. Acendeu a vela; era Ernestina, que dormia o sono solto.

— Ora esta! Pensou ele, tomando uma carta que acabava de descobrir sobre a mesa, e, ato contínuo, soprou o vela e tornou a sair, muito enfiado.

— Diabo! Exclamou, fechando sobre si a porta da rua. Pois nem com a minha pobre cama posso contar?

Neste instante, Ernestina, que havia acordado, aparecia à janela, estremunhada e aflita.

— Que! Pois não ficas em casa?! Perguntou ela.

— Decerto! Respondeu de baixo o moço com raiva.

— És um homem impossível!

E ouviram-se soluços.

— Impossível é a senhora! Gritou ele. Creio que não podia lhe falar com mais franqueza do que falei! Fez mal em ficar!

— Sobe! Pediu ela com a voz chorosa.

— Não me aborreça, replicou Teobaldo, afastando-se furioso.

E pensar, considerava o fugitivo pela rua, que não fui ter hoje com Leonília só para gozar uma noite completamente sossegada...

E, depois de alguns passos, enquanto seu pensamento trabalhava, deteve-se no meio da rua, batendo freneticamente com a bengala no chão.

— Mas isto não tem jeito! No fim de contas é uma violência que me incomoda, que me irrita, que me põe neste estado! Quero dormir, quero repousar e nem isso me permitem! Antes ser escravo! Antes ser um cão, que esses ao menos descansam! Então foi que se lembrou da carta encontrada sobre a mesa; aproximou-se de um lampião e abriu-a. Reconheceu logo pelo sobrescrito que era de Leonília.

Teobaldo — Confesso-te que estou deveras surpresa com o teu procedimento; vejo que me enganei — não és um cavalheiro. Por tua causa enterrei-me neste arrabalde, transformei toda « minha vida e tu, logo nos primeiros dias,foges de mim como se eu fosse a peste em pessoa; ora, hás de...

Teobaldo não leu o resto; amarrotou a folha de papel entre os dedos e lançou-a fora com arremesso.

— Vão todas para o diabo! Disse, e foi continuando a caminhar até à porta do hotel Paris. Bateu e pediu um quarto.

Só depois de recolhido se lembrou de que tinha consigo pouco dinheiro e, pois, não devia gastá-lo em coisas supérfluas.

— Amanhã... Amanhã darei um jeito a tudo isto!... Deliberou entre os lençóis. Vou falar com franqueza ao Coruja e pedir-lhe que me ajude a fugir desta crítica situação em que me acho... Ele é muito capaz de descobrir um meio, e se não descobrir, arranjarei o negócio por minha conta... Aqueles demônios das mulheres... .

Adormeceu em meio deste raciocínio e tão profundamente, que só acordou no dia seguinte à uma hora da tarde. A despeito disso não teve vontade de sair da cama; um entorpecimento doentio parecia chumbá-lo ao colchão; e com os olhos ainda cerrados, deixava que sua consciência funcionasse à vontade, grupando em torno dela um mundo de exprobrações.

Para mais lhe enervar o espírito ali estava aquele insociável aspecto do quarto de hotel, onde se sentiam ainda os rastros da última mulher que o habitara. Teobaldo, despertando afinal, reparou para tudo isso, minuciosamente, com o doloroso prazer de quem repisa de propósito uma parte do corpo que está dorida e machucada.

— A cama era muito larga, com um grande colchão de molas, onde o corpo se abismava; os travesseiros monstruosos e enfeitados de rendas e fitas; e por cima um imenso cortinado de labirinto, enxovalhado de pó. Sobre o mármore do lavatório via-se a bacia de gigantescas proporções, ao lado de uma porção de vasilhas de porcelana; e, em contraste com o resto, um miserável pedaço de sabão de 200 rs., fornecido pelo hotel. A o canto da pedra, esquecida sobre os rebordos do lavatório, havia uma escova de dentes, suja de opiato.

E todo esse aspecto de abandono e desleixo, todo esse falso conforto de quarto sem dono e nunca desocupado, tudo isso ainda mais o entristecia e acabrunhava. Depois — o fato de não ter mudado de roupa e ver--se obrigado a vestir aquela mesma camisa da véspera também o torturava.

— Maldita Ernestina!

Pagas a dormida e uma xícara de café que lhe deram, não lhe ficava dinheiro suficiente para o almoço; vestiu--se, disposto a sair logo. Mas, enquanto se aprontava, ouviu no quarto imediato uma voz grossa, de homem, que altercava com o criado.

— Esta voz!... Pensou o rapaz.

E, tomando de curiosidade, abriu a porta e espiou para o corredor, justamente quando o seu vizinho ia a sair.

— Mas, não me engano! Exclamou. É ele! É o marido da tia Gemi! O velho Hipólito!

— Velho, não! Respondeu o homem. Velho é trapo!

E a sua testa enrugava-se em orlas regulares, como água onde caísse uma pedra.
E reparando:

— Ora, espera! Você é o Teobaldo!...

— Em carne e osso, meu tio.

— As orlas da testa do velho acentuaram-se mais, numa expressão de contrariedade, que ele não procurava disfarçar; circunstância que alterou no mesmo instante o ar de contentamento que se havia formado no rosto do moço.

— Não sabia que o senhor estava na corte... Disse este, para quebrar o silêncio.

— Cheguei ontem e tive o caiporismo de meter-me no diabo deste hotel, que afinal me parece o menos próprio para mim! Com a breca, só vejo franceses e pelintras! E, demais, esfolam-me! Pedem-me os olhos da cara por dar cá aquela palha! Você mora aqui?...

— Não, senhor; vim apenas dormir esta noite: mas a ninguém lembra morar neste hotel. O senhor deve procurar outro. Como ficou minha tia?

— Bem. Está perfeitamente boa!

— Oh! Dir-se-ia que o senhor dá notícias de sua mulher contra a vontade...

— É o meu gênio!

E, sem poder dominar-se:

— Demais, para que precisa você das notícias de sua tia? Parece-me que uma pessoa que, durante dois anos, não se lembrou dos parentes, não há de ter muito interesse por eles...

— Perdão! Replicou Teobaldo. — Eu escrevi à tia Gemi por ocasião da morte de meu pai e depois creio que mais duas vezes; segundo, porém, a única resposta que recebi, quis acreditar que tanto ela como o senhor estavam persuadidos de que eu lhes escrevia para obter dinheiro, e...

— Ah, sim! Sua tia chegou a falar-me em dar-lhe uma mesada, mas, se me não engano, você foi o próprio a rejeitá-la.

— Não me lembro disso, mas é natural que seja exato.

— Pois eu me lembro perfeitamente e afianço que é.

— Bom.

E Teobaldo declarou o número da casa em que morava e pô-la à disposição do tio.

— Passe bem! Respondeu este.

E, quando o rapaz havia-se afastado:

— Um peralta que abandonou os estudos, que não arranjou meios de vida, um pobre diabo! Ainda vem para aqui com soberbas... Bata a outra porta, se quiser: comigo não se arranjará! Ah! Eu logo vi que semelhante educação havia de dar nisto mesmo!

Entretanto Teobaldo sofria e sofria muito. Só quem já atravessou uma boa quadra de necessidade, quando se tem o estômago mal confortado e o coração cheio de orgulho, poderá julgar do desgosto profundo e do tédio homicida que o acompanhavam.

Maldita educação! Maldito temperamento! Compreender o seu estado e não poder reagir contra ele; sentir escorregar-se para o abismo e não conseguir suster a queda; haverá maior desgraça e mais dolorosa tortura?

A surda aflição que lhe punha no espírito a sua falta de recursos, a força de reproduzir-se, havia já se convertido em estado patológico, numa espécie de enfermidade nervosa, que o trazia sempre desinquieto e lhe dera o hábito de levantar de vez em quando o canto do lábio superior com um certo trejeito de impaciência. Orgulhoso como era, a ninguém, a nenhum amigo, exceção feita do Coruja, confessava as suas necessidades e este fato ainda mais as agravava.

E quando em tais ocasiões lhe pediam dinheiro emprestado? Oh! Não se pode imaginar que suplício para Teobaldo! Principiava por lhe faltar a coragem de confessar que não o tinha; e, se o do pedido insistia, começava ele a arranjar pretextos, a remanchear, a prometer para daí a pouco, a mentir, como um caloteiro que deseja engodar um credor impertinente. E, se o sujeito não desistia, Teobaldo dizia-lhe que esperasse um instante e corria a empenhar o relógio, a arranjar dinheiro fosse lá como fosse, contanto que não tivesse de confessar a sua miséria a outro necessitado.

Estes sacrifícios eram tanto mais rigorosamente cumpridos, quanto menos seu amigo era o sujeito que lhe fazia o pedido; não representavam desejo de servir, mas pura e simples manifestação de vaidade.

Quando, porém, o pedinchão lhe era de todo desconhecido, Teobaldo preferia passar por mau e respondia-lhe com a lógica de um sovina, e aos mendigos negava a esmola rindo, fingindo não acreditar nas lágrimas de fome que muita vez lhes saltavam dos olhos.
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continua...

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Mário de Andrade (Tempo de Camisolinha)

A feiúra dos cabelos cortados me fez mal. Não sei que noção prematura de sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa experiência da minha primeira infância. O que não pude esquecer, e é minha recordação mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos, alguém, não sei mais quem, uma voz masculina falando: "Você ficou um homem, assim!" Ora eu tinha três anos, fui tomado de pavor. Veio um medo lancinante de já ter ficado homem naquele tamanhinho, um medo medonho, e recomecei a chorar.

Meus cabelos eram muitos bonitos, dum negro quente, acastanhado nos reflexos. Caíam pelos meus ombros com cachos gordos, com ritmos pesados de molas de espiral. Me lembro de uma fotografia minha desse tempo, que depois destrui por uma espécie de polidez envergonhada... Era já agora bem homem e aqueles cabelos adorados na infância, me pareceram de repente como um engano grave, destrui com rapidez o retrato. Os traços não eram felizes, mas na moldura da cabeleira havia sempre um olhar manso, um rosto sem marcas, franco, promessa de alma sem maldade. De um ano depois do corte dos cabelos ou pouco mais, guardo outro retrato tirado junto com Totó, meu mano. Ele, quatro anos mais velho que eu, vem garboso e completamente infantil numa bonita roupa marinheira; eu, bem menor, inda conservo uma camisolinha de veludo, muito besta, que minha mãe por economia teimava utilizar até o fim.

Guardo esta fotografia porque se ela não me perdoa do que tenho sido, aos menos me explica. Dou a impressão de uma monstruosidade insubordinada. Meu irmão, com seus oito anos é uma criança integral, olhar vazio de experiência, rosto rechonchudo e lisinho, sem caráter fixo, sem malícia, a própria imagem da infância. Eu, tão menor, tenho esse quê repulsivo do anão, pareço velho. E o que é mais triste, com uns sulcos vividos descendo das abas voluptuosas do nariz e da boca larga, entreaberta num risinho pérfido. Meus olhos não olham, espreitam. Fornecem às claras, com uma facilidade teatral, todos os indícios de uma segunda intenção.

Não sei por que não destruí em tempo também essa fotografia, agora é tarde. Muitas vezes passei minutos compridos me contemplando, me buscando dentro dela. E me achando. Comparava-a com meus atos e tudo eram confirmações. Tenho certeza que essa fotografia me fez imenso mal, porque me deu muita preguiça de reagir. Me proclamava demasiadamente em mim e afogou meus possíveis anseios de perfeição. Voltemos ao caso que é melhor

Toda a gente apreciava os meus cabelos cacheados, tão lentos! e eu me envaidecia deles, mais que isso, os adorava por causa dos elogios. Foi por uma tarde, me lembro bem, que meu pai suavemente murmurou uma daquelas suas decisões irrevogáveis: "É preciso cortar os cabelos desse menino." Olhei de um lado, de outro, procurando um apoio, um jeito de fugir daquela ordem, muito aflito. Preferi o instinto e fixei os olhos já lacrimosos em mamãe. Ela quis me olhar compassiva, mas me lembro como se fosse hoje, não aguentou meus últimos olhos de inocência perfeita, baixou os dela, oscilando entre a piedade por mim e a razão possível que estivesse no mando do chefe. Hoje, imagino um egoísmo grande da parte dela, não reagindo. As camisolinhas, ela as conservaria ainda por mais de ano, até que se acabassem feitas trapos. Mas ninguém percebeu a delicadeza da minha vaidade infantil. Deixassem que eu sentisse por mim, me incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cabelos, nada: uma decisão à antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa, primeiro convite às revoltas intimas: "é preciso cortar os cabelos desse menino".

Tudo o mais são memórias confusas ritmadas por gritos horríveis, cabeça sacudida com violência, mãos enérgicas me agarrando, palavras aflitas me mandando com raiva entre piedades infecundas, dificuldades irritadas do cabeleireiro que se esforçava em ter paciência e me dava terror. E o pranto, afinal. E no último e prolongado fim, o chorinho doloridíssimo, convulsivo, cheio de visagens próximas atrozes, um desespero desprendido de tudo, uma fixação emperrada em não querer aceitar o consumado.

E o meu passado se acabou pela primeira vez. Só ficavam como demonstrações desagradáveis dele, as camisolinhas. Foi dentro delas, camisolas de fazendinha barata (a gloriosa, de veludo, era só para as grande ocasiões), foi dentro ainda das camisolinhas que parti com os meus pra Santos, aproveitar as férias do Totó sempre fraquinho, um junho.

Havia aliás outra razão mais tristonha pra essa vilegiatura aparentemente festiva de férias. Me viera uma irmãzinha aumentar a família e parece que o parto fora desastroso, não sei direito... Sei que mamãe ficara quase dois meses de cama, paralítica, e só principiara mesmo a andar premida pelas obrigações da casa e dos filhos. Mas andava mal, se encostando nos móveis, se arrastando, com dores insuportáveis na voz, sentindo puxões nos músculos das pernas e um desânimo vasto. Menos tratava da casa que se iludia, consolada por cumprir a obrigação de tratar da casa. Diante da iminência de algum desastre maior, papai fizera um esforço espantoso para o seu ser que só imaginava a existência no trabalho sem receio, todo assombrado com os progressos financeiros que fazia e a subida de classe. Resolvera aceitar o conselho do médico, se dera férias também, e levara mamãe aos receita dos banhos de mar

Isso foi, convém lembrar, ali pelos últimos anos do século passado, e a praia do José Menino era quase um deserto longe. Mesmo assim, a casa que papai alugara não ficava na praia exatamente, mas numa das ruas que a ela davam e onde uns operários trabalhavam diariamente no alimento de um dos canais que carreavam o enxurro da cidade para o mar do golfo. Ai vivemos perto de dois meses, casão imenso e vazio, lar improvisado cheio de deficiência, a que o desmazelo doentio de mamãe ainda melancolizava mais, deixando pousar em tudo um ar de mau trato e passagem.

É certo que os banhos logo lhe tinham feito bem, lhe voltaram as cores, as forças, e os puxões dos nervos desapareciam com rapidez. Mas ficara a lembrança do sofrimento muito grande e próximo, e ela sentia um prazer perdoável de representar naquelas férias o papel largado da convalescente. A papai então o passeio deixara bem menos pai, um ótimo camarada com muita fome e condescendência. Eu é que não tomava banho de mar nem que me batessem! No primeiro dia, na roupinha de baeta calçuda, como era a moda de então, fora com todos até a primeira onda, mas não sei que pavor me tomou, dera tais gritos, que nem mesmo o exemplo sempre invejado de meu mano mais velho me fizera mais entrar naquelas águas vivas. Me parecia morte certa, vingativa, um castigo inexplicável do mar, que o céu de névoa de inverno deixava cinzento e mau, enfarruscado, cheio de ameaças impiedosas. E até hoje detesto banho de mar... Odiei o mar, e tanto, que nem as caminhadas na praia me agradavam, apesar da companhia agora deliciosa e faladeira de papai. Os
outros que fossem passar, eu ficava no terreno maltratado da casa, algumas árvores frias e um capim amarelo, nas minhas conversas com as formigas e o meu sonho grande. Ainda apreciava mais ir até à borda barrenta do canal, onde os operários me protegiam de qualquer perigo. Papai é que não gostava muito disso não, porque tendo sido operário um dia e subido de classe por esforço pessoal e Deus sabe lá que sacrifícios, considerava operário má companhia pra filho de negociante mais ou menos. Porém mamãe intervinha com o "deixa ele!" de agora, fatigado, de convalescente pela primeira vez na vida com vontades; e lá estava eu dia inteiro, sujando a barra da camisolinha na terra amontoada do canal, com os operários.

Vivia sujo. Muitas vezes agora até me faltavam, por baixo da camisola, as calcinhas de encobrir as coisas feias, e eu sentia um esporte de inverno em levantar a camisola na frente pra o friozinho entrar Mamãe se incomodava muito com isso, mas não havia calcinhas que chegassem, todas no varal enxugando ao sol fraco. E foi por causa disso que entrei a detestar minha madrinha, Nossa Senhora do Carmo. Não vê que minha mãe levara pra Santos aquele quadro antigo de que falei e de que ela não se separava nunca quando me via erguendo a camisola no gesto indiscreto, me ameaçava com a minha encantadora madrinha: — "Meu filho, não mostra isso, que feio! repare: sua madrinha está te olhando na parede!" Eu espiava pra minha madrinha do Carmo na parede, e descia a camisolinha, mal convencido, com raiva da santa linda, tão apreciada noutros tempos, sorrindo sempre e com aquelas mãos gordas e quentes. E desgostoso ia brincar no barro do canal, botando a culpa de tudo no quadro secular Odiei minha madrinha santa.

Pois um dia, não sei o que me deu de repente, o designio explodiu, nem pensei: largo correndo os meus brinquedos com o barro, barafusto porta a dentro, vou primeiro espiar onde mamãe estava. Não estava. Fora passear na praia matinal com papai e Totó. Só a cozinheira no fogão perdida, conversando com a ama da Mariazinha nova. Então podia! Entrei na sala da frente, solene, com uma coragem desenvolta, heróica, de quem perde tudo mas se quer liberto. Olhei francamente, com ódio, a minha madrinha santa, eu bem sabia, era santa, com os doces olhos se rindo para mim. Levantei quanto pude a camisola e empinando a barriguinha, mostrei tudo pra ela. "Tó! que eu dizia, olhe! olhe bem! tó! olhe bastante mesmo!" E empinava a barriguinha de quase me quebrar pra trás.

Mas não sucedeu nada, eu bem imaginava que não sucedia nada... Minha ma
drinha do quadro continuava olhando pra mim, se rindo, a boba, não zangando comigo nada. E eu saí muito firme, quase sem remorso, delirando num orgulho tão corajoso no peito, que me arrisquei a chegar sozinho até a esquina da praia larga. Estavam uns pescadores ali mesmo na esquina, conversando, e me meti no meio deles, sempre era uma proteção. E todos eles eram casados, tinham filhos, não se amolavam proletariamente com os filhos, mas proletariamente davam muita importância pra o filhinho de "seu dotô" meu pai, que nem era doutor, graças a Deus.

Ora se deu que um dos pescadores pegara três lindas estrelas-do-mar e brincava com elas na mão, expondo-as ao solzinho. E eu fiquei num delírio de entusiasmo por causa das estrelas-do-mar O pescador percebeu logo meus olhos de desejo, e sem paciência pra ser bom devagar, com brutalidade, foi logo me dando todas.

— Tome para você, que ele disse, estrela-do-mar dá boa sorte.

— O que é boa sorte, hein?

Ele olhou rápido os companheiros porque não sabia explicar o que era boa sorte. Mas todos estavam esperando e ele arrancou meio bravo:

— Isto é... não vê que a gente fica cheio de tudo... dinheiro, saúde...

Pigarreou fatigado. E depois de me olhar com um olho indiferentemente carinhoso, acrescentou mais firme:

— Seque bem elas no sol que dá boa sorte.

Isso nem agradeci, fui numa chispada luminosa pra casa esconder minhas estrelas-do-mar Pus as três ao sol, perto do muro lá no fundo do quintal onde ninguém chegava, e entre feliz e inquieto fui brincar no canal. Mas quem disse brincar! me dava aquela vontade amante de ver minhas estrelas e voltava numa chispada luminosa contemplar as minhas tesoureiras de boa sorte. A felicidade era tamanha e o desejo de contar minha glória, que até meu pai se inquietou com o meu fastio no almoço. Mas eu não queria contar. Era um segredo contra tudo e todos, a arma certa da minha vingança, eu havia de machucar bastante Totó, e quando mamãe se incomodasse com o meu sujo, não sei não... mas pelo menos ela havia de dar um trupicão de até dizer "ai", bem feito! As minhas estrelas-do-mar estavam lá escondidas junto do muro me dando boa sorte. Comer? pra que comer? elas me davam tudo, me alimentavam, me davam licença pra brincar no barro, e se Nossa Senhora, minha madrinha, quisesse se vingar daquilo que eu fizera pra ela, as estrelas me salvavam, davam nela, machucavam muito ela, isto é... muito eu não queria não, só um bocadinho, que machucassem um pouco, sem estragar a cara tão linda da pintura, só pra minha madrinha saber que agora eu tinha a boa sorte, estava protegido e nem precisava mais dela, tó! ai que saudades das minhas estrelas-do-mar!... Mas não podia desistir do almoço pra ir espiá-las. Totó era capaz de me seguir e querer uma pra ele, isso nunca!

— Esse menino não come nada, Maria Luísa!

— Não sei o que é isso hoje, Carlos! Meu filho, coma ao menos a goiabada...

Que goiabada nem mané goiabada! eu estava era pensando nas minhas estrelas, doido por enxergá-las. E nem bem o almoço se acabou, até disfarcei bem, e fui correndo ver as estrelas-do-mar.

Eram três, uma menorzinha e duas grandonas. Uma das grandonas tinha as pernas um bocado tortas para o meu gosto, mas assim mesmo era muito mais bonita que a pequetitinha, que trazia um defeito imenso numa das pernas, faltava a ponta. Essa decerto não dava boa sorte não, as outras é que davam: e agora eu havia  de ser sempre feliz, não havia de crescer, minha madrinha gostosa se rindo sempre, mamãe completamente sarada me dando brinquedos, com papai não se amolando por causa dos gastos. Não! a estrela pequenina dava boa sorte também, nunca que eu largasse de uma delas!

Foi então que aconteceu o caso desgraçado de que jamais me esquecerei no seu menor detalhe. Cansei de olhar minhas estrelas e fui brincar no canal. Era já na hora do meio-dia, hora do almoço, da janta, do não sei o-quê dos operários, e eles estavam descansando jogados na sombra das árvores. Apenas um porém, um portuga magriço e bárbaro, de enorme bigodões, que não me entrava nem jamais dera importância pra mim, estava assentado num monte de terra, afastado dos outros, ar de melancolia. Eu brincava por ali tudo, mas a solidão do homem me preocupava, quase me doía, e eu rabeava umas olhadelas para a banda dele, desejoso de consolar. Fui chegando com ar de quem não quer e perguntei o que ele tinha. O operário primeiro deu de ombros, português, bruto, bárbaro, longe de consentir na carícia da minha pergunta infantil. Mas estava com uns olhos tão tristes, o bigode caía tanto, desolado, que insisti no meu carinho e perguntei mais outra vez o que ele tinha.

"Má sorte" ele resmungou, mais a si mesmo que a mim.

Eu porém é que ficara aterrado. Minha Nossa Senhora! aquele homem tinha má sorte! aquele homem enorme com tantos filhinhos pequenos e uma mulher paralítica na cama!... E no entanto eu era feliz, feliz! e com três estrelinhas-do-mar pra me darem sorte... É certo: eu pusera imediatamente as três estrelas no diminutivo, porque se houvesse de ceder alguma ao operário, já de antemão eu desvalorizava as três, todas as três, na esperança desesperada de dar apenas a menor. Não havia diferença mais, eram apenas três "estrelinhas"-do-mar. Fiquei desesperado. Mas a lei se riscara iniludível no meu espírito: e se eu desse boa sorte ao operário na pessoa da minha menor estrelinha pequetitinha?... Bem que podia dar a menor, era tão feia mesmo, faltava uma das pontas, mas sempre era uma estrelinha-do-mar Depois: o operário não era bem vestido como papai, não carecia de uma boa sorte muito grande não. Meus passos tontos já me conduziam para o fundo do quintal fatalizadamente. Eu sentia um sol de rachar completamente forte. Agora é que as estrelinhas ficavam bem secas e davam uma boa sorte danada, acabava duma vez a paralisia da mulher do operário, os filhinhos teriam pão e Nossa Senhora do Carmo, minha madrinha, nem se amolava de enxergar o pintinho deles. Lá estavam as três estrelinhas, brilhando no ar do sol, cheias de uma boa sorte imensa. E eu tinha que me desligar de uma delas, da menorzinha estragada, tão linda! justamente a que eu gostava mais, todas valiam igual, porque a mulher do operário não tomava banhos de mar? mas sempre, ah meu Deus que sofrimento! eu bem não queria pensar mas pensava sem querer, deslumbrado, mas a boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de dar mais boa sorte pra aquele malvado de operário que viera, cachorro! dizer que estava com má sorte. Agora eu tinha que dar pra ele a minha grande, a minha sublime estrelona-do-mar!...

Eu chorava. As lágrimas corriam francas listrando a cara sujinha. O sofrimento era tanto que os meus soluços nem me deixavam pensar bem. Fazia um calor horrível, era preciso tirar as estrelas do sol, senão elas secavam demais, se acabava a boa sorte delas, o sol me batia no coco, eu estava tonto, operário, má sorte, a estrela, a paralítica, a minha sublime estrelona-do-mar! Isso eu agarrei na estrela com raiva, meu desejo era quebrar a perna dela também pra que ficasse igualzinha à
menor, mas as mãos adorantes desmentiam meus desígnios, meus pés é que resolveram correr daquele jeito, rapidíssimos, pra acabar de uma vez com o martírio.

Fui correndo, fui morrendo, fui chorando, carregando com fúria e carícia a minha maiorzona estrelinha-do-mar. Cheguei pro operário, ele estava se erguendo, toquei nele com aspereza, puxei duro a roupa dele:

— Tome! eu soluçava gritado, tome a minha... tome a estrela-do-mar! dá... dá, sim, boa sorte!...

O operário olhou surpreso sem compreender. Eu soluçava, era um suplício medonho.

— Pegue depressa! faz favor! depressa! dá boa sorte mesmo!

Aí, que ele entendeu, pois não aguentava mais! Me olhou, foi pegando na estrela, sorriu por trás dos bigodões portugas, um sorriso desacostumado, não falou nada felizmente que senão eu desatava a berrar. A mão calosa quis se ajeitar em concha para me acarinhar, certo! ele nem media a extensão do meu sacrifício! e a mão calosa apenas roçou por meus cabelos cortados.

Eu corri. Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os soluços no travesseiro sozinho. Mas por dentro era impossível saber o que havia em mim, era uma luz, uma Nossa Senhora, um gosto maltratado, cheio de desilusões claríssimas, em que eu sofria arrependido, vendo inutilizar-se no infinito dos sofrimentos humanos a minha estrela-do-mar.

Henrique Wellen (“O Leitor” e a crítica da racionalização da irracionalidade)

 Via de regra, existe uma tendência de que o processo de adaptação de obras literárias para o cinema repercute em perda de qualidade artística. Seja na impossibilidade de exibição dos detalhes presentes nos livros, seja, especialmente, nas dificuldades em expor qualidades subjetivas dos personagens, os leitores costumam acusar alguma frustração quando se deparam com as transformações dos textos romanescos em filmes. Esse não é, todavia, o caso do filme O Leitor que, inspirado no livro homônimo de Bernard Schlink, tem muito mais a oferecer que a peça original. O filme dirigido por Stephen Daldry não somente consegue narrar melhor a história contida no livro, entrelaçando mais precisamente os tempos narrados, como é capaz de superar algumas das limitações de forma e conteúdo que travejam o texto de Schlink.

A narrativa, que se passa na Alemanha, e que se reparte em tempos históricos distintos, intenta, a partir do romance entre um jovem estudante e uma mulher adulta, suscitar reflexões sobre as relações sociais das gerações que vivenciaram e herdaram a época nazista. O tempo é medido pela exposição dos momentos de vida do personagem principal, Michael Berg, na sua juventude e nos momentos da vida adulta (respectivamente expressos nas boas atuações de David Kross e de Ralph Fiennes). O papel da sua amante, Hanna Schmitz, é estrelado de forma precisa e destacada por Kate Winslet, garantindo os momentos mais artísticos do filme.

O encontro dos dois personagens ocorre em 1955, na cidade de Neustadt, num momento de doença do jovem estudante, que é ajudado por Hanna. Depois de uma visita destinada ao agradecimento, os dois acabam se envolvendo sexualmente e, com o desenvolvimento da relação, passam a alternar os momentos de relação sexual com a leitura de obras literárias, lidas pelo estudante para a sua amante. Daí surge, portanto, o título do livro. Contudo, a relação dos dois, perpassada por qualidades de afetividade e de carinho (momentos mais expressivos no filme do que no livro), é quebrada quando Hanna desaparece misteriosamente. Os dois só voltam a se encontrar num segundo momento, em 1966, quando Berg, agora estudante de direito na universidade de Heildelberg, depara-se com Hanna no tribunal, sendo julgada por crimes ocorridos nos campos de concentração nazistas.

A forma narrativa utilizada no livro se estabelece na primeira pessoa, descrevendo atos e fatos passados, dando o tom de uma confissão refletida de Michael Berg. Já o filme, utilizando-se da metanarrativa, consegue superar algumas incoerências narrativas presentes no livro. Tal recurso, além de auxiliar no desenvolvimento da história, facilitando a apreensão sobre os tempos distintos intercalados, também proporciona tons de credibilidade ao personagem principal, na sua tentativa de expurgo de uma culpa implícita. Isso porque, o filme, ao estender a esfera narrativa, fornece uma visão mais ampla das relações sociais, evitando o isolamento no subjetivismo.

Não obstante, o filme não consegue superar algumas limitações da obra original, reproduzindo cenas em que personagens e fatos aparecem pré-determinados e sem possibilidade de alteração, descritas de maneira naturalista. Por outro lado, mesmo que tal problema seja mais expressivo no livro, fica patente a intenção de criticar e superar as qualidades passivas dos personagens a partir de uma concepção antípoda. De um lado o naturalismo e de outro o subjetivismo idealista. Os personagens não são capazes de ultrapassar a passividade das suas vidas, mas são cobrados moralmente e subjetivamente por isso. Especialmente no caso do livro, ocorre a relação entre essas duas questões, pois, ao passo que centra esforços narrativos e dramáticos naquela, não aprofunda de forma necessária e criteriosa a análise social.

Tal fato poderia apresentar qualidades estéticas positivas, caso os personagens fossem sínteses dessas determinações e, a partir das suas condutas pessoais, expressassem mediações particulares desse movimento da totalidade social. No entanto, a história narrada, pecando pela ausência dessa relação social, não apenas hipertrofia a singularidade, como tece nuances que parecem inverossímeis. Tal processo se pluga numa concepção idealista e moralista do escritor, elegendo o mundo das ideias como causa motora dos atos humanos e, dessa forma, derrapa para um julgamento idealista e valorativo dos acontecimentos sociais. Às vezes esses dois movimentos se unem em tons naturalistas: ora situando o enredo (as lembranças do passado) como pré-determinadas e a crítica limitada apenas à contemplação dos fatos e, principalmente, apresentando a personagem principal – Hanna – como intelectualmente e cognitivamente e portadora de problemas psicológicos. Tal descrição se apresenta, portanto, ausente de verossimilhança.

Essa personagem não apresenta muitas qualidades tão reais pois, caso as suas limitações fossem tão elevadas, quais os atrativos que ela poderia exercer sobre o jovem e, inversamente, se ela fosse dominada pela angústia ou pela culpa, o desfecho seria diferente. Trata-se de uma mulher adulta, independente, fisicamente atrativa, mas muito ignorante, com pouca noção dos seus atos sociais. Mas, sendo assim, por que o seu isolamento? Por que a sua brutalidade a priori contra os outros? Se ela é realmente movida pela culpa, esses elementos se entronizariam no seu ser e se apresentariam em forma de contradições. O problema é que, principalmente no livro, essas contradições não são suficientemente apresentadas. O grande suposto desfecho, que representaria o principal enigma do livro, fica antecipadamente explicitado: a incapacidade de leitura de Hanna representa um ingrediente a mais na sua limitada personalidade e não, como desejaria o escritor, uma contradição ao seu ser.

Outro paradoxo existe  na construção do relacionamento do casal, uma vez que, mesmo sendo jovem, o menino – Michael – apresenta inquietações e reflexões mais amplas que Hanna e, pela aparência, a única medida da sua atração por ela ocorre pelo sexo. Mas seria possível a manutenção dessa relação apenas por esse motivo? Aqui o autor não exerce um determinismo biológico, tão presente nos livros naturalistas? A idade precoce dele explica em parte a permanência dessa relação, mas não serve para sustentar a narrativa. Além disso, o autor não expõe no livro outros motivos de admiração dele por ela (diferentemente do filme). Os carinhos que ele recebe ou se restringem ao teor sexual ou aparentam uma relação maternal. Por isso a ausência de admiração autêntica. Inclusive cogita-se que o jovem tenha também problemas psicológicos, o que fermenta ainda mais o grau de naturalismo.

Schlink tenta criar um clima de drama com expectativa sobre o futuro, mas sem sucesso, seja pela própria ausência de drama e suspense, seja, especialmente, pela superficial e introdutória construção dos personagens. Diferentemente, no filme, os fatos e as relações entre os personagens são esteticamente mais elaborados e humanamente melhor abordados, apresentando cenas delicadas e imagens que envolvem o expectador, ora apresentando o problema, ora insinuando as limitações da personagem central. A Hanna da tela é mais humana do que a do livro e isso, mesmo sem alcançar a intensidade almejada, ajuda a segurar a ação trágica e dramática. O filme apresenta uma relação amorosa mais delicada, em que Hanna não apenas instrui seu amante nos roteiros sexuais, como existe uma admiração por parte de Michael perante o comportamento sensível da parceira. Da mesma forma se apresentam nuances emotivas da personagem, quando essa escuta e se emociona com as histórias lidas pelo amante. Um exemplo dessas diferenças encontra-se na cena da igreja, dentro do passeio realizado pelo casal. Enquanto o livro tende a demonstrar um grau mais elevado de ignorância ou brutalidade em Hanna, o filme a apresenta com tons de humanismo, expondo suas sensações emotivas ao ouvir o coro das crianças. É nesse sentido que se justifica a ausência de uma cena do livro, a da agressão de Hanna em Berg que, não sendo incorporada, serviu para elevar a qualidade humana em detrimento de elementos naturalistas.

A distância estética entre as duas obras diminui a partir da segunda parte, quando o livro passa por uma alteração dinâmica de forma e conteúdo. Nesse novo ambiente literário, em que se descrevem os meandros do mundo jurídico (campo profissional de Schlink), os detalhes exibidos passam a funcionar esteticamente na sua dupla atuação de reflexo: como descrição dos fatos da realidade e na exposição artística dessas determinações sobre os personagens. Ainda que os personagens não alcancem méritos artísticos capazes de sustentar sua plena verossimilhança, aqui eles estão mais humanizados e problematizados. Mostram-se e se escondem com base nas suas contradições humanas. Inclusive quando se apresentam covardemente e passivamente, essa condição está mediada pelas circunstancias sociais. É nesse momento que essas obras estéticas conduzem o leitor e/ou expectador a uma importante reflexão filosófica. O julgamento das guardas nazistas, dentre elas Hanna Schmitz, sobre a culpa em crimes cometidos durante o holocausto, constitui-se como ápice artístico e reflexivo de O Leitor. Nesse ambiente podem se observar três tipos de julgamentos e de culpas. Dois desses recaem diretamente sobre os personagens principais, enquanto o terceiro é mais amplo e de maior impacto atual.

Pelo desenvolvimento das cenas, fica clara não apenas a culpa de Hanna pela morte de prisioneiras judias, mas, em seguida, também a de Berg, culpado de omissão por não revelar a condição de analfabetismo da ré e que alteraria a sentença auferida. É a culpa que representa a tônica do filme, servindo como motor da história até o desfecho do filme quando, finalmente, Berg tenta realizar a sua purgação. O julgamento mais importante, contudo, é sobre a organização racional da irracionalidade, que se inicia com a reflexão sobre a vigência da lei. A lei pode ser retroativa ou não? Os guardas nazistas, que seguiam as leis da época, podem ser culpados?

A primeira indicação filosófica sobre esse julgamento é orientada pelo professor de direito (uma bela atuação de Bruno Ganz) – que acompanha os estudantes durante os processos nazistas. Ele afirma que “As sociedades pensam que funcionam através de conceitos morais, mas não. Elas funcionam através de algo que se chama lei. Ninguém é culpado de nada só porque trabalhou em Auschwitz”. “Para provar um homicídio tem que provar o dolo. Esta é a lei”. “A questão não é se foi errado, mas se foi dentro da lei. E não das leis atuais. Não, das leis da época”.

Apesar da tentativa de apreensão social e histórica sobre esses fatos, no fundo se descai em uma análise idealista, utilizando alguns princípios morais deslocados do tempo e do espaço como parâmetros para análise. Utiliza-se de um imperativo categórico para analisar outro: a lei pela moral. Não se consegue, assim, encontrar fundamentos ontológicos que permitam superar uma concepção idealista. A questão se Hanna, que cumpriu ordens, pode ser condenada, deve ser antecipada por outra que analise e fundamente os princípios históricos da própria lei. E são, contraditoriamente, as afirmações de Hanna que indicam os elementos para essa análise.

Ao ser perguntada por que ela ingressou na SS, a resposta de Hanna é simples: “Eu soube que havia vagas” e, assim, foi trabalhar como guarda no campo de concentração de Auschwitz. Além disso, Hanna assume a participação na morte de prisioneiras, quando realizou seleção daquelas que seriam escolhidas para morrer: “éramos seis guardas e decidimos que cada uma escolheria dez pessoas. Era o que fazíamos”. E, ao ser perguntada pelo juiz se ela não havia percebido “que estava mandando essas mulheres para a morte?”, ela responde burocraticamente: “Sim, mas novas prisioneiras chegavam a toda hora e as antigas tinham que dar lugar às novas”. O diálogo se intensifica e o juiz a questiona: “Para arranjar espaço você escolhia as mulheres dizendo: ‘Você, você e você serão mandadas de volta para morrer”. Mais uma vez a resposta de Hanna é operacional: “O que o senhor teria feito?”.

A pergunta produziu dois impactos, pois não apenas demonstrava à limitação das reflexões da ré diante da ordem estabelecida e, por isso, representava, para ela, uma pergunta inédita, como acarretou implicações para o juiz que, não sabendo o que responder, balbuciou respostas transversais. Tal anátema se amplia para o público quando um episódio genocida é narrado pela sua sobrevivente. Durante uma noite, quando ocorria uma travessia de 300 prisioneiras, o local onde estas estavam abrigadas começou a pegar fogo e, sendo mantido trancado pelas seis guardas, produziu o trágico acontecimento genocida. Ao ser questionada sobre os motivos de não ter aberto as portas, Hanna responde: “É óbvio. Por um motivo óbvio. Não podíamos abrir”. “Éramos guardas. Nossa tarefa era vigiar as prisioneiras. Não podíamos deixa-las escapar”. “Se abríssemos as portas, seria o caos. Como restabeleceríamos a ordem?”.

Essa é a grande reflexão colocada por O Leitor: a burocratização de práticas irracionais que, limitando-se ao cumprimento de ordens e padrões estabelecidos, serve para legitimar a mais absurda das ideologias. Pena que, aos poucos, o seu roteiro se encaminhe para uma naturalização e individualização do problema, ora apresentando a ré como portadora de patologia mental, consubstanciada de qualidades sádicas, ora como intelectualmente e cognitivamente incapaz de entender o que se passa em sua volta. Por isso que, conforme afirmamos, o suposto grande segredo do filme, de que Hanna era analfabeta serve, dentro desses termos, mais para fermentar essa postura escapista e idealista do escritor, do que para providenciar ingredientes de suspense para a trama.

E, dessa forma, não adentra na análise de elementos essenciais sobre os fatos acontecidos e, principalmente, sobre as possibilidades de transformar a irracionalidade em sistema racionalmente operacionalizado, estabelecida pela imediaticidade e pela manipulação das atividades práticas. Não tangencia para a questão sobre os limites da práxis imediata e manipulatória que, atendendo aos requisitos de uma organização racional pragmática, tende ao automatismo e ao imediatismo superficial e, dessa forma, impossibilita a reflexão entre meios e fins. Atendendo a uma organização racional autômata, descarta-se o vínculo entre os atos imediatos e as suas consequências futuras. Tais práticas, naturais em qualquer esfera da vida cotidiana, são dependentes da esfera moral que lhes fornece validação e, a depender do contexto social, essas se estabelecem sem reflexão sobre o real, tomando-se apenas pela sua aparência, com um circuito de adaptação e, portanto, de validação e legitimação do sistema vigente.

Nesse sentido, pode-se fazer outra pergunta, mais filosófica: é possível estabelecer uma organização racional de uma proposta de um sistema irracional? A lei positivista e instrumental pode servir para validar uma sociedade de exceção? Se o crime é – dentro dos cânones positivistas – um atentado à lei e essa, por sua vez, representa um fato social independente e superior, mesmo que oriundo de uma cristalização histórica de valores e regras morais, existe alguma impossibilidade dessas qualidades se vincularem ao irracionalismo? Como combater a maldição nazista com instrumentos de forma e conteúdo manipulatórios?

Inversamente, a única forma real de combater o irracionalismo e a sua possibilidade de organização racional não é pela adoção da razão manipulatória, mas com base no humanismo e, assim, com base no pensamento dialético. Da mesma forma, se o objetivo é extinguir as possibilidades prenhas de estados de exceção social e de teor irracionais, como o nazismo, a única solução é a extrema democratização da vida social, em todos os seus expoentes, desde a participação política até a produção e distribuição da riqueza social. É por essa via que o humanismo torna-se capaz de superar os imperativos da propriedade privada, uma vez que, por mais distante ou nebuloso que possa aparecer para alguns ideólogos de plantão, no horizonte do sistema burguês, especialmente em momentos de crise (como a vivenciada atualmente), encontram-se presentes vários ingredientes da exceção social e do irracionalismo, tendo como sua protoforma a vigência da mercadoria como fonte de mediação entre as pessoas.

Se a medida das relações sociais se dá pela craveira monetária e a mercadoria aparece como a síntese da sociabilidade, como negar que a desigualdade econômica, amplificada pela ideologia consumista não derive na adversidade entre seres humanos e, assim, estabeleça círculos limitadores da vida humana? E, a partir desse ponto, como se evitar a construção irracional de tipologias humanas, criando insulamentos grupos sociais em diferentes guetos? Nessa medida de adversidade humana, com a negação do humanismo, as pessoas são adestradas ao mais cínico egocentrismo e, entre essa concepção de mundo e uma ideologia de aristocracia humana, em que algumas pessoas são apresentadas como os eleitos, a fronteira é muito tênue.

Muitas vezes as duas perspectivas se misturam, sendo uma catalizadora da outra. A liberdade de mercado sobrepujando a igualdade de possibilidades e acessos a objetivações sociais, ou seja, subordinando a liberdade dos seres humanos, é um elemento central nesse processo ressuscitador de monstros não tão adormecidos. O capitalismo não é apenas o pai do imperialismo mas, nas suas crises permanentes e distintas, encontra-se o germe da besta nazista. Esse embrião pode até ter sido, em momentos anteriores, um ente bastardo, mas hoje se apresenta bem próximo de ter a marca do seu DNA.

Todavia, ainda que avance bastante em relação ao livro de Schlink, o filme de Daldry não introduz o expectador nesse campo de reflexões. Sua narrativa aparece mais como uma revolta pessoal – fixada em valores morais – de alguns indivíduos contra a passividade de seus atos. É a partir desse lugar que se situam as críticas das práticas nazistas; menos pela estrutura que sustentou os delineamentos desse sistema social e mais pelo trato das pessoas como desprovidas de autonomia da vontade. Como se as pessoas, se não fossem desconhecedoras dessas práticas, ao menos não teriam coragem e capacidade de atentar contra o status quo. Uma crítica idealista contra uma análise naturalista.

Mesmo avançando no argumento individual, como um plano importante da exposição artística, o filme fica ausente de mediações profundas nas relações entre indivíduo e sociedade, elegendo os valores morais de maneira categórica e, contraditoriamente, exigindo dos sujeitos que não sigam as determinações históricas. Ausente da crítica aos fundamentos estruturais da sociedade, O Leitor admoesta a culpa a partir de concepções moralistas. Também por isso a sua construção artística não resiste a uma apreciação mais crítica. O reflexo realista encontra-se ofuscado, ficando na porta de entrada e, assim, nem a amplitude da culpa é efetivamente julgada, nem os personagens conseguem expurgar o peso das suas consciências.

Fonte:
Revista Espaço Acadêmico - Mensal - Julho de 2013 – Ano XI - ISSN 15196186 – Editor: Antonio Ozaí da Silva (UEM).