sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Contos Populares Portugueses (D. Caio)

Era um alfaiate muito poltrão, que estava a trabalhar à porta da rua. Como ele tinha medo de tudo, o seu maior gosto era fingir de valente. Vai de uma vez, viu muitas moscas juntas e de uma pancada matou sete. Daqui em diante, não fazia senão gabar-se:

- Eu cá mato sete de uma vez!

Ora, o rei andava muito triste, porque lhe tinha morrido na guerra o seu general D. Caio, que era o maior valente que havia. Como sabiam que o país não tinha quem mandasse combatê-las, as tropas inimigas puseram-se a caminho. Os que ouviam o alfaiate andar a dizer por toda a parte «Eu cá mato sete de uma vez!» foram logo contá-lo ao rei. Este lembrou-se de que quem era assim tão valente seria capaz de ocupar o posto de D. Caio. Assim, o gabola foi levado à presença do rei, que lhe perguntou:

- E verdade que matas sete de uma vez?

- Saberá Vossa Majestade que sim.

– Então que vás comandar as minhas tropas e atacar o inimigo, que já nos está a cercar.

Mandou vir o fardamento de D. Caio e fez-lo vestir ao alfaiate, que era muito baixinho, e ficou com o chapéu de dois bicos enterrado até às orelhas. Depois disse que trouxessem o cavalo branco de D. Caio para o alfaiate montar. Ajudaram-no a subir para o cavalo, e ele já estava a tremer como varas verdes. E, assim que o cavalo sentiu as esporas, botou à desfilada. Aflito, o alfaiate desatou a gritar:

- Eu caio! Eu caio!

Todos os que o ouviam por onde ele passava diziam:

- Ele agora diz que é o D. Caio! Já temos homem!

O cavalo, que andava acostumado às batalhas, correu para o sítio em que estavam os soldados já a lutar, e o alfaiate sempre com medo de cair, a gritar como um desesperado:

- Eu caio! Eu caio!

O inimigo, assim que viu vir o cavalo branco do general valente e temido e ouviu o grito «Eu caio! Eu caio!», conheceu o perigo em que estava. Logo disseram os soldados uns para os outros:

- Estamos perdidos, que lá vem D. Caio! Lá vem D. Caio!

E deitaram a fugir em debandada. Os soldados do rei foram-lhe no encalço e mataram eles.

O alfaiate ganhou a batalha assim só a agarrar-se ao pescoço do cavalo e a gritar «Eu caio!». 

O rei ficou muito contente com ele e em paga da vitória deu-lhe a princesa em casamento, e a verdade é que ninguém regateava os maiores louvores à bravura do sucessor do general D. Caio...

Fonte:
Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte VI

2.3 Homens escritores dos séculos XVII a XX: avanços e retrocessos para a inserção feminina no mundo intelectual

[...] pequenas e sofridas histórias são bem
representativas das dificuldades que as
escritoras [...] enfrentaram nos séculos
passados e até nas primeiras décadas
deste, para se imporem numa sociedade
que se recusava a aceitar a concorrência
feminina, em qualquer de seus domínios.
LIMA DUARTE, 1997, p. 56.
                                                              
Ainda no século XVII, João Amos Komensky, Comenius, publica Didática Magna, obra essa em que o autor sugere que o ensino deve ser adequado às diferentes idades. Comenius propõe também a igualdade entre homens e mulheres, partindo do princípio de que todos são racionais e de que não há privilegiados perante Deus, portanto, devem ser instruídos, independente de sexo.

Didática Magna, a obra de Comenius, apresenta valor considerável para a inclusão feminina no campo intelectual, uma vez que o autor, embasado em princípios cristãos quanto à igualdade desprovida de privilégios, escancara a deslealdade das relações humanas, visto que somente homens abastados até então poderiam conhecer e ter acessibilidade ao mundo letrado: “O próprio Deus assegura que, diante d’Ele, não há privilégio de pessoas” (COMENIUS apud NOVAES, 1991, p.111).

Novaes Coelho sustenta a importância dessa obra para aproximar-se mais dos anseios do indivíduo, uma vez que a mesma estaria alçada em diferentes faixas etárias para o ensino-aprendizagem. Além disso, essa obra faz transparecer a triste realidade de um mundo selvagem, onde a violência predominava nas relações entre os homens, sendo que essa situação se comprovava nas histórias registradas da época, assim como nos contos de fadas.

Essa atitude reformista de Comenius, no século XVII, tem para nós um valor indicial: indiretamente revela a violência que imperava, como regra, nas relações entre os homens. O que torna mais compreensíveis a violência, a agressividade e a maldade onipresentes nos “contos de fadas” ou nos “contos prodigiosos” destinados às crianças, e mesmo nas novelas de cavalaria (a despeito de todo seu elevado idealismo) e em outras formas narrativas destinadas aos adultos. (COELHO, 1991, p.111)

Já Rousseau, posterior e contrariamente, em o Livro IV de Emílio (1762), declarou repulsa à leitura das fábulas pelo público infantil e infanto-juvenil. De acordo com ele, essas acentuavam demasiadamente o caráter negativo dos personagens. Além disso, observa-se que o referido escritor mostrou-se favorável ao idealismo patriarcal, em relação à estrutura familiar, uma vez que a mulher deveria estar condicionada ao comando masculino e dele ser servidora. Aliás, esse protótipo feminino esteve presente na literatura até o século XIX.

Novaes Coelho registrou em sua obra o que Rousseau pensava a respeito das fábulas disponibilizadas às crianças e pré-adolescentes. Assim, ele menciona no Livro IV de Emílio:

Ensinamos as fábulas de La Fontaine a todas as crianças, e não há uma só que as compreenda. E se as entendessem, seria pior ainda, porque a moral ali está tão misturada e desproporcionada à sua idade que levaria mais facilmente ao vício do que à virtude. Direis que aí está um paradoxo. Seja, mas vejamos se não são verdades. (ROUSSEAU apud COELHO, 1991, p. 126)
                      
De certo modo, as idéias de Maria Tatar correspondem às de Rousseau, ou seja, ela afirma que se torna inacessível para as crianças a compreensão da moral presente nos contos de Perrault, uma vez que os infantes aprendem realmente através da observação e da experiência pessoal e não por meio de palavras aleatórias e, não raramente, acompanhadas de vaguidão de sentido. Tatar argumenta ainda que o inverso proposto nas lições das histórias acontece, quando posto em prática pelos menores aprendizes.

Novaes Coelho cita ainda as idéias de Rousseau sobre as mulheres e seus deveres, extraídas de sua obra seguinte, o Livro V de Emílio:

Toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradá-los, ser-lhes úteis, se fazerem amar e honrar por eles, educar os jovens. Cuidar dos grandes, aconselhá-los, tornar-lhes a vida agradável e doce: eis os deveres das mulheres em todos os tempos, e o que devemos ensinar-lhes desde a infância. (ROUSSEAU apud COELHO, 1991, p.127)
                      
É notório que, durante a caminhada feminina com destino à emancipação, aconteceram avanços e recuos. Enquanto Comenius, no século XVII, buscava a inclusão intelectual da mulher, argumentando através de discursos cristãos, Rousseau, no século XVIII, retrocedia, sustentando que a educação feminina deveria estar condicionada à dos homens, e que as mulheres deveriam ser orientadas para servi-los, sendo comparadas a meras escravas dos caprichos de seus senhores.

Em 1778, no Brasil, João Rosado de Villa Lobos e Vasconcelos publica uma obra voltada para a educação dos meninos, denominada Livro dos Meninos. Apesar de o ensino, aparentemente, ter sido oferecido a qualquer cidadão, ainda a distância entre os sexos fazia-se visível, uma vez que obras específicas para meninos e outras para meninas, impregnadas de moralismos, ainda eram difundidas.

Quanto à literatura, o século XVIII assemelha-se ao anterior, uma vez que homens escritores redigem suas obras de acordo com a sociedade patriarcal vigente à época. Já no século XIX há a mescla entre o culto e o popular e, com esse meio-termo, surge o romance. Por sua vez, a criança é vista como um possível leitor e, assim, a literatura volta-se a esse público. É nesse século que as narrativas do fantástico-maravilhoso surgem e têm os filólogos Jacob e Wilhelm Grimm como adeptos.

A partir dessa perspectiva de que as crianças já estavam sendo inseridas no contexto literário, poderia se pensar que a mulher seria a próxima a usufruir desse direito. No entanto, as obras dos Irmãos Grimm ainda descrevem a figura feminina e o seu entorno em um espaço repleto de fraquezas, ansiedades, culpas, medos,  tristezas e convencionado de acordo com os moldes patriarcais.

Entre os anos de 1812 e 1822, os Irmãos Grimm publicaram o volume Contos de fadas para crianças e adultos contendo quarenta e uma histórias: A bela adormecida; Os músicos de Bremen; Os sete anões e a Branca de neve; O chapeuzinho vermelho; A gata borralheira; As aventuras do irmão folgazão; O corvo; Frederico e Catarina; Branca de neve e Rosa vermelha; O ganso de ouro; A donzela que não tinha mãos; O pescador e suas esposas; A dama e o leão; O alfaiate valente; Os sete corvos; O rato, o pássaro e a salsicha; A casa do bosque; O lobo e as sete cabras; A guardadora de gansos; O príncipe rã; O caçador habilitado; Olhinho, dois olhinhos, três olhinhos; O lobo e o homem; O príncipe e a princesa; A luz azul; O lobo e a raposa; O enigma; A raposa e a comadre; A raposa e o gato; Margarida, a espertalhona; A alface mágica; As três fiandeiras; João jogatudo; A morte da franguinha; A velha do bosque; O prego; Joãozinho e Maria; O diabo e a avó; O senhor compadre; João, o felizardo e o Pequeno polegar.

Nesses contos a descrição da figura feminina segue os padrões sociais determinados à época, ou seja, mulheres escravizadas e injustiçadas, comumente maltratadas por mulheres mais velhas. Aliás, o estereótipo anjo e demônio é bastante claro nas obras dos Irmãos Grimm. As mulheres-anjo constantemente são testadas em seus valores morais (honestidade, paciência, desprendimento material, obediência, fé inabalável) e, quando vitoriosas, são recompensadas com um casamento e/ou uma posição em ascensão na sociedade.

Posteriormente aos Irmãos Grimm e também redigindo contos, o escritor dinamarquês Hans Christian Andersen publicou cento e sessenta e oito contos entre os anos 1835 e 1872, sendo que os de maior sucesso são: O patinho feio; Os sapatinhos vermelhos; A rainha da neve; O rouxinol e o imperador da China; O soldadinho de chumbo; A pastora e o limpador de chaminés; A pequena vendedora de fósforos; Pequetita; Os cisnes selvagens; A roupa nova do imperador; O companheiro de viagem; O homem da neve; João e Maria; João grande e João pequeno.

As histórias narradas por Andersen apresentam algo novo: dois contrastes marcantes, o mundo fantástico e a triste realidade envolta pela miséria, marcada pelo pós-guerra.

Apesar de o escritor estar vivendo em um cenário nada propenso à aquisição de valores e respeito aos direitos humanos, de certa forma, Andersen contribuiu para a ascensão da personagem feminina, uma vez que ele, através do conto A pequena sereia, caracterizou a personagem sereia através de atitudes nada convencionais para uma mulher e nem ao menos para um ser encantado, ou seja, o autor a vestiu de valores, ideais, atitudes e lhe concedeu voz, características até então pouco comuns na Literatura Infanto-juvenil.

Em A pequena sereia, Andersen inovou a estrutura já estabelecida e tradicionalmente arraigada do conto de fadas.Nessa narrativa, a protagonista é vítima do destino, do meio familiar, da sociedade. Por sua vez, as circunstâncias que a envolvem a instigam a aventurar-se em busca da concretização de seus objetivos e de seu amadurecimento intelectual, assim distanciando-se de seu lar e dos laços familiares, principalmente do paternal. Uma vez que a heroína é órfã de mãe, a sereia embrenha-se no mundo terreno, enquanto o príncipe aproxima as suas atitudes às de um homem comum, sendo que não enfrenta dragões e monstros e nem salva mocinhas desamparadas ou em perigo. Além disso, singular também é o desfecho da história, uma vez que é bem conhecida a frase “e viveram felizes para sempre” em contos de fadas, porém nessa o final feliz não acontece, sendo o final da mesma um convite à pluralidade imaginativa do leitor:

E a pequena sereia levantou seus braços claros em direção ao sol de Deus e pela primeira vez sentiu que lágrimas lhe corriam pelas faces. No navio havia de novo ruídos e vida. Ela viu o príncipe com sua bela noiva procurando-a; tristes contemplavam as espumas efervescentes como se soubessem que ela se havia atirado às águas. Invisível, ela beijou a testa da noiva, sorriu para ele e sumiu com as outras filhas do ar numa nuvem rosada que viajava pelos céus [...] (ANDERSEN, 1994, p.26)

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Jorge Luis Borges (Ulrica)

Hann tekr sverthit Gram ok leggr i methal theira bert.
Völsunga Saga, 27

Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que é a mesma coisa. Os fatos ocorreram há muito pouco, porém sei que o hábito literário é, também, o hábito de intercalar traços circunstanciais e de acentuar as ênfases. Quero narrar o meu encontro com Ulrica (não soube seu sobrenome e talvez nunca venha a sabê-lo) na cidade de York. A crônica abarcará uma noite e uma manhã.

Nada me custaria referir que a vi pela primeira vez junto às Cinco Irmãs de York, esses vitrais puros de toda a imagem que respeitaram os iconoclastas de Cromwell, porém o fato é que nos conhecemos na salinha do Northern Inn, que está do outro lado das muralhas. Éramos poucos e ela estava de costas. Alguém lhe ofereceu uma bebida e ela recusou.

— Sou feminista — disse. — Não quero arremedar os homens. Desagrada-me seu tabaco e seu álcool.

A frase queria ser engenhosa e adivinhei que não era a primeira vez que a pronunciava. Soube depois que não era característica dela, mas o que dizemos nem sempre se parece conosco.

Contou que havia chegado tarde ao museu, mas que a deixaram entrar quando souberam que era norueguesa.

Um dos presentes comentou:

— Não é a primeira vez que os noruegueses entram em York.

— Pois é — disse ela. — a Inglaterra foi nossa e a perdemos, se é que alguém pode ter algo ou algo pode ser perdido.

Foi então que a olhei. Uma linha de William Blake fala de moças de suave prata ou furioso ouro, porém em Ulrica estavam o ouro e a suavidade. Era leve e alta, de traços afilados e de olhos cinzentos. Menos que seu rosto, impressionou-me seu ar de tranqüilo mistério. Sorria facilmente e o sorriso parecia afastá-la. Vestia-se de preto, o que é raro em terras do Norte, que tentam alegrar com cores o apagado do ambiente. Falava um inglês nítido e preciso e acentuava levemente os erres. Não sou observador; essas coisas descobri pouco a pouco.

Apresentaram-nos. Disse-lhe que eu era professor da Universidade de los Andes em Bogotá. Esclareci que era colombiano. Perguntou-me de modo pensativo:

— O que é ser colombiano?

— Não sei — respondi. — É um ato de fé.

— Como ser norueguesa — assentiu.

Nada mais posso recordar do que se disse nessa noite. No dia seguinte, desci cedo para a sala de jantar. Pelas vidraças vi que havia nevado; os páramos se perdiam na da manhã. Não havia ninguém mais. Ulrica me convidou para a sua mesa. Disse que lhe agradava sair para caminhar sozinha.

Lembrei-me de um chiste de Schopenhauer e respondi:

— A mim também. Podemos sair juntos os dois.

Afastamo-nos da casa, sobre a neve recente. Não havia uma alma nos campos. Propus que fôssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a algumas milhas. Sei que já estava enamorado de Ulrica; não teria desejado a meu lado nenhuma outra pessoa.

Ouvi subitamente o distante uivo de um lobo. Nunca tinha ouvido um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica não se alterou.

Em seguida, disse, como se pensasse em voz alta:

— As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me comoveram mais que as grandes naves do museu de Oslo.

Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, nessa tarde, prosseguiria a viagem em direção a Londres; eu, até Edimburgo.

— Em Oxford Street — ela disse-me — repetirei os passos de Quincey, que procurava a sua Anna perdida entre as multidões de Londres.

— De Quincey — respondi — deixou de procurá-la. Eu, ao longo do tempo, continuo procurando-a.

— Talvez — disse em voz baixa — a tenhas encontrado.

Compreendi que uma coisa inesperada não me estava proibida e a beijei-lhe a boca e os olhos. Afastou-me com suave firmeza e depois declarou:

— Serei tua na pousada de Thorgate. Peço-te, enquanto isso, que não me toques. É melhor que assim seja.

Para um celibatário entrado em anos, o amor  é um dom que já não se espera. O milagre tem direito de impor condições. Pensei em minha mocidade em Popayán e em uma moça do Texas, clara e esbelta como Ulrica, que me havia negado seu amor.

Não incorri no erro de lhe perguntar se me amava. Compreendi que não era o primeiro e que não seria o último. Essa aventura, talvez a derradeira para mim, seria uma de tantas para essa resplandecente e resoluta discípula de Ibsen.

De mão dadas, seguimos.

— Tudo isto é como um sonho — disse —  e eu nunca sonho.

— Como aquele rei — replicou Ulrica — que não sonhou até que um feiticeiro o fez dormir numa pocilga. 

Acrescentou em seguida:

— Ouve. Um pássaro está prestes a cantar.

Pouco depois ouvimos o canto.

— Nestas terras — disse — pensam que quem está para a morrer prevê o futuro.

— E eu estou para morrer — disse ela.

Olhei-a, atônito.

— Cortemos pelo bosque — apressei-a — Chegaremos mais rápido a Thorgate.

— O bosque é perigoso — replicou.

Seguimos pelos páramos.

— Eu gostaria que este momento durasse para sempre — murmurei.

— "Sempre" é uma palavra que não é permitida aos homens — afirmou Ulrica e, para minorar a ênfase, pediu-me que repetisse o meu nome, que não ouvira bem.

— Javier Otárola — disse-lhe.

Quis repeti-lo e não pôde. Fracassei, igualmente, com o nome Ulrikke.

— Vou te chamar Sigurd — declarou com um sorriso.

— Se sou Sigurd — repliquei, — tu serás Brynhild.

Havia atrasado o passo.

— Conheces a saga? — perguntei-lhe.

— Naturalmente — disse. — A trágica história que os alemães estragaram com seus tardios Nibelungos.

Não quis discutir e respondi:

— Brynhild, caminhas como se quisesses que entre os dois houvesse uma espada no leito.

Estávamos de repente diante da pousada. Não me surpreendeu que se chamasse, como a outra, Northern Inn.

Do alto da escada, Ulrica me gritou:

— Ouviste o lobo? Já não há lobos na Inglaterra. Apressa-te.

Ao subir para o andar de cima, notei que as paredes estavam empapeladas à maneira de William Morris, de um vermelho muito profundo, com entrelaçados frutos e pássaros. Ulrica entrou primeiro. O aposento escuro era baixo, com um teto de duas águas. O esperado leito se duplicava em um vago cristal e a polida caoba recordou-me o espelho da Escritura. Ulrica já se havia despido. Chamou-me pelo meu verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. Já não havia nem espelhos. Não havia uma espada entre os dois. Como a areia, escoava o tempo. Secular na sombra fluiu o amor, e possuí pela primeira e última vez a imagem de Ulrica.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte V

2.2 Os contos moralizantes de Charles Perrault

Servir uma beleza ingrata
É só perda de tempo e de trabalho
E pretendê-la amável quando trata
É ser como o Grou, um paspalho.
PERRAULT, 2007, p. 155.
                                                                
Charles Perrault revive o popular através da literatura, uma vez que insere em suas obras a magicidade lúdica, bem como inova, ao acrescer à mesma uma lição de moral, o que faz direcionar o entendimento do leitor, evitando possíveis ambiguidades interpretativas. De acordo com Novaes Coelho, ele defendeu, de certo modo, a causa feminista, apoiando Mlle. L’Héritier, sua sobrinha, que lutava pela valorização da mulher quanto à aquisição de direitos intelectuais, embora, ao mesmo tempo, Perrault tenha também assumido posições nada feministas em seus contos.

Da mesma forma, as lições das narrativas apresentam acentuado cunho moralista destinado à postura feminina.

De outro modo, Novaes Coelho salienta que a posição defendida por Perrault é percebida através das temáticas abordadas em seus contos, sendo que versam sobre “mulheres injustiçadas, ameaçadas ou vítimas” (COELHO, 1987, p. 66). Para a escritora, essa abordagem escolhida por Perrault ressalta seu apoio à causa feminista.

Mendes opõe-se à afirmação de Novaes mencionada anteriormente, uma vez que para Mendes o objetivo desse escritor era realmente moralizar o papel feminino, inserido em uma estrutura familista, predominante na época, sustentando que os textos do mesmo falam do significado das funções femininas na sociedade e do significado das funções culturais da narrativa mítica. Num e noutro se consolida a ideologia familista da classe burguesa, que definia seu papel social no século XVIII. (2000, p. 110)
                      
As idéias de Mendes são bastante pertinentes, uma vez que os contos de Perrault sempre trazem uma lição moralizante para a mulher e não para o homem, o que seria mais viável se ele realmente estivesse engajado à causa feminina.

Mendes menciona ainda que Perrault, considerado pioneiro na escritura dos contos infantis, utilizou-se dos mesmos para mascarar o seu real objetivo, ou seja, doutrinar a mulher, iniciando com os menores leitores/ouvintes desde a infância até a idade adulta, ressaltando os papéis sociais.

Maria Tatar solidariza-se com a posição de Mendes. Entretanto, para ela, as lições moralizantes citadas das obras de Perrault não correspondem ao contexto dos contos lá apresentados. Além do mais, os menores leitores não entendiam o que as referidas lições pretendiam ensinar, uma vez que se embasavam em digressões sociais e de caráter, comuns ao público adulto.

[...] Em 1697, ao publicar Contos da Mamãe Gansa, Charles Perrault acrescentou a cada um pelo menos uma lição moral, por vezes duas. Freqüentemente, contudo, essas conclusões morais não se harmonizavam com os eventos na história e vez por outra não ofereciam nada além de uma oportunidade para um comentário social aleatório e digressões sobre caráter. As diretrizes comportamentais explícitas acrescentadas por Perrault e outros tendem a não funcionar quando visam crianças [...] (TATAR, 2004, p.12)
                      
Assim, Perrault compilou contos já existentes, oriundos da cultura popular. Desse modo, ele publica onze contos inseridos no livro Contos da Mamãe Gansa, entre 1691-1697, destinados às crianças e aos adultos que são: 1. A bela adormecida no bosque; 2. Chapeuzinho vermelho; 3. Barba-Azul; 4. O gato de botas; 5. As fadas; 6. A gata borralheira ou Cinderela; 7. Henrique, o topetudo; 8. O pequeno polegar; 9. A pele de asno; 10. Os desejos ridículos e 11. Grisélidis.

Percebe-se que, se Perrault, de certa forma, solidarizou-se com as mulheres, pelo menos em seus contos, as suas intenções não se tornaram claras, uma vez que, em suas obras e nas lições de moral, verifica-se a transparência de uma linguagem desmedidamente machista, conservadora e patriarcal. Além disso, o olhar desse escritor não se voltou para observar as potencialidades femininas fora do âmbito familiar, pois suas personagens assumiam a obediência, a submissão, o temor, a apatia, como características fundamentais femininas que se enfatizavam nas lições de moral.

As contribuições ou restrições que os demais homens escritores ofereceram ou impuseram à figura feminina, em âmbito sócio-intelecto-cultural, através de suas obras, seguem no próximo subcapítulo.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Contos Populares do Tibete (Ngon Tok Gyen: Opame, Chenrezik y Dolma)

O Buda celeste Opame (Amithâba), olhando para baixo desde a sua Terra Pura, contemplou o mundo e viu o sofrimento de todos os seres. Opame sentiu uma grande compaixão por eles. Deste sentimento de compaixão nasceu Chenrezik (valakiteshvara), a encarnação da compaixão, o Senhor da Compaixão.1 As montanhas se abriram e a água saiu em torrentes, cobriu a terra e correu até o Oceano Índico. Chenrezik apareceu numa ilha no centro de Lhasa, e, vendo o sofrimento dos seres, fez o voto de ajudá-los a alcançarem o Nirvana, a realidade última, a paz. Chenrezik fez o voto de não abandonar este mundo sem que todos, até mesmo a última fibra de erva, alcançassem a paz.

Havia no lago muitos seres e todos eles clamavam por um corpo. Ouvindo suas vozes, Chenrezik deu-lhes os corpos que pediam. Mas os corpos eram todos iguais, e, por isso, os seres suplicaram por se diferenciarem uns dos outros. Chenrezik deu, então, a cada um dos seres um corpo distinto, cada um deles característico e diferente dos demais.

Chenrezik, o Senhor da compaixão, pregou o Dharma, o ensinamento de todos os Budas, a fim de que todos os seres do lago, em número incontável, pudessem alcançar o Nirvana. Muitos seres o alcançaram. Mas, cada vez que Chenrezik voltava ao lago, havia muitos mais seres, muitos e muitos mais que os que já havia podido ajudar. De novo, Chenrezik pregou o Dharma, e, de novo, muitos alcançaram o Nirvana.

Quando Chenrezik contemplou o lago pela terceira vez e tornou a ver tantos seres necessitando ajuda, encheu-se de desespero. E compreendendo a impossibilidade da tarefa que se havia imposto, clamou ao Buda celeste Opame para que revogasse o seu voto, pois agora considerava a tarefa demasiado grande para que ele, sozinho, pudesse realizá-la. Em seu desespero e compaixão, o corpo de Chenrezik se fragmentou em inumeráveis pedaços.

Vendo a sua situação, Opame reconstruiu o seu corpo, dando-lhe ainda mais poder para ajudar a todos os seres vivos. Chenrezik tinha agora onze cabeças, coroadas pela cabeça do próprio Opame, e mil braços, e ainda um olho onividente na palma de cada mão.2

Mas, mesmo assim, inclusive com os mil braços e com as onze cabeças, Chenrezik considerou impossível a realização da sua tarefa. Os seres eram incontáveis e suas mentes estavam completamente toldadas por pensamentos impuros. Chenrezik chorou. E, de uma lágrima cristalina de sua face, nasceu Dolma (Târâ), para ser-lhe sua ajuda.3

Assim, pois, não existe um só ser, por insignificante que seja, cujo sofrimento não chegue a ser visto por Chenrezik ou por Dolma, e que não possa ser atingido por sua compaixão.

Notas

1. Amithâba ("luz infinita"), em tibetano Opame (Od-d pag-med), é um dos chamados Chyâni Buddas no budismo tântrico. Estes são aspectos universais, arquetípicos da "bu-deidade", tal como se mostram o espírito em meditação (dhyâna).
A Terra Pura é o chamado Paraíso Sukhâvati ou. Ocidental, no qual reside Amithâba, e que tem dado nome a uma via espiritual centrada na invocação do nome deste, via particularmente florescente no Japão.
Avalokitesvara é como uma extensão de Amithâba, uma emanação sua. Seu nome significa "o senhor que olha para baixo com compaixão", e é, pois, a personificação deste ato de Amithâba.
É a figura mais popular do panteão budista tibetano, e seu mantra (fórmula de invocação) é a oração por excelência de todo tibetano; está presente por igual na devoção popular e nas práticas iniciáticas.
Avalokitesvara, em tibetano Chenrezig (Spv-an-ras gzigs), é igualmente uma figura de primeira ordem em todas as áreas do budismo mahâyâna, como a China e o Japão, onde, na iconografia, assume um aspecto semifeminino algumas vezes, e abertamente feminino em outras, em virtude da doçura misericordiosa que encarna. Na China, é conhecido como Kuan-Yin, e, no Japão, como Kannon.
É um bodhisattva ao qual se atribuem diversas encarnações, e não apenas no mundo dos homens, pois sua compaixão abarca todos os mundos. Em particular, considera-se o Dalai Lama como uma manifestação terrenal sua.
E uma das figuras mais representadas na iconografia budista, principalmente com esta forma (à qual nos aludiremos mais adiante, em nosso relato), de onze cabeças e mil braços, na qual recebe o nome Ekadasmukha.

2. Traduzimos dessa maneira "all-seeing eye". A propósito desta designação e de seu simbolismo, pode ser consultado R. Guénon, Símbolos fundamentais da ciência sagrada, cap. LXXXII, "O olho que a tudo vê", pp. 384-386, Buenos Aires, 1960.

3. Esta é uma das diferentes versões que existem sobre o nascimento de Dolma.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida)

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte IV

2. ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO MASCULINO

Este capítulo se propõe a realizar uma trajetória em território masculino, salientando que, especificamente, as obras de homens escritores ora facilitaram ora dificultaram para que a mulher conquistasse espaço em âmbito social e intelectual.

Desse modo,o primeiro subcapítulo aborda os homens escritores que redigiram fábulas e contos, a partir das células embrionárias Calila e Dimna e Sendebar.

Na seqüência, o estudo enfocará o escritor Charles Perrault, uma vez que o mesmo é caracterizado como inovador para a época, na elaboração de seus contos de fadas, e pioneiro para a Literatura Infantil. Na verdade, Perrault é considerado inovador pois inseriu no final de seus contos lições de moral, e pioneiro na escritura de contos para o público infantil.

Em seguida, verificar-se-ão as contribuições ou restrições que os homens escritores impuseram às mulheres, através de suas obras, em função da conquista de direitos comuns aos dois sexos e também quanto à inserção das mesmas no meio intelectual literário.

De acordo com isso, será visto em obras selecionadas o papel social desempenhado pelas mulheres de acordo com a visão masculina.

E, para finalizar esse capítulo, observar-se-á que, nesse universo de homens
literatos, à mulher era permitido unicamente contar e traduzir obras masculinas.
                                                                                    
2.1 Homens escritores de contos de fadas

Never may believe
These antic fables, nor these fairy toys.
Lovers and madmen have such seething brains,
Such shaping fantasies, that apprehend
More than cool reason ever comprehends...
And as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turns them to shapes, and gives to aery nothing
A local habitation and a name...

(Nunca poderei acreditar/Nessas fábulas antigas, nesses brinquedos de fadas./ As mentes febris dos amantes e  dos loucos,/ Suas fantasias moldadoras, percebem/ Mais do que a fria razão pode abarcar.../ E quando a imaginação concebe/ O contorno de coisas desconhecidas, a pena do poeta/ Transforma-as em formas, e concede ao etéreo nada/ Um endereço e um nome...(SHAKESPEARE, W. Sonho de uma noite de verão).

Em um tempo em que a TV ainda não existia, os contos folclóricos e infantis eram prestigiados como entretenimento para as famílias que, em ambiente doméstico, ouviam ou narravam histórias que se moldavam às angústias e às alegrias de quem as contava ou as ouvia. Desse modo, as histórias que representavam o momento lúdico para as famílias, difundiam-se rapidamente, resultando no surgimento de inúmeros livros escritos por homens que se apoiaram, em sua maioria, nas duas obras originárias: Calila e Dimna e Sendebar.

De acordo com Novaes Coelho, no século XII, o judeu Pedro Alfonso traduziu cerca de trinta fábulas ou contos retirados de Calila e Dimna, Sendebar e Barlaam e Josafá (1991, p. 35). Na seqüência, encontra-se a obra de Raimundo Lúlio, datada de 1286, denominada Libres de Maravelles. Essa é considerada bastante original, mas de clara descendência de Calila e Dimna e do Romance da Raposa (1991, p. 36). No século XV, escrita em letra gótica, Horto do esposo, é obra de um monge português anônimo.

Contudo, é mais um trabalho descendente da obra-origem, citada anteriormente, uma vez que apresenta a fábula do unicórnio e, entre contos exemplares, destacam-se ainda duas fábulas, onde o “exemplo” é dado por animais (1991, p. 40).

Com o Renascimento, o século XVI traz consigo consideráveis mudanças mundiais, ocasionadas pelas grandes navegações. Além disso, a invenção da imprensa e o acesso ao papel propiciaram o ambiente necessário para que o desenvolvimento cultural e literário proliferassem, associados ao ideal humanista que invadia o espírito humano ocidental.

No campo literário e em solo italiano, é publicada a obra Noites agradáveis por Gianfrancesco Straparola, em 1554. Straparola compõe seu trabalho resgatando e registrando a tradição oral de origem oriental e medieval. Processo caracterizado como “composições que nasceram da espontaneidade popular, lembradas a princípio pela tradição oral e mais tarde gravadas numa língua mais ou menos evoluída e idônea à arte [...]”, é o que afirma Leoni (1966, p.13).

Apesar de utilizar o mesmo método de Straparola, algo torna singular a obra de Gonçalo Fernandes Trancoso que, em 1575, publica Contos e histórias de proveito e exemplo. A sua obra é uma mistura do conhecido e o desconhecido, ou seja, o misto entre a tradição popular e o novo, representado pela novelística do Renascimento. O fruto dessa recente roupagem para a época só chegou ao Brasil em 1618.

No entanto, o que deve ser ressaltado no estilo literário de Trancoso é que ele inseriu a filosofia voltada ao moralismo e à postura edificante da mulher. Novaes Coelho tece comentários a respeito do objetivo dessa obra:

É considerada a primeira obra que introduziu o gênero novelesco bocaciano em Portugal. Entretanto, sua intenção principal era bem mais moralizante. Pertence claramente à linha da literatura “exemplar”, edificante (muito comum na Idade Média), mas consegue fundir esse lastro clerical com a tradição folclórica, cheia de humor (trocadilhos, provérbios, paradoxos, adivinhas, situações equívocas, etc.). (COELHO, 1991, p. 57)
                      
Por sua vez, a Itália é novamente berço de outro escritor, Giambattista Basile, que apresenta o Pentamerone, obra publicada após a morte do escritor, entre 1634 e 1636, com o pseudônimo de Gian Alessio Abbattutis. Nessa inclui-se Sole, Luna e Talia, um conto de fadas há muito presente na memória e na cultura oral dos napolitanos.

Sole, Luna e Tália ou Sol, Lua e Tália assemelha-se aos demais contos de A bela adormecida, que surgiram posteriormente a essa obra, porém o que caracteriza a história como única é a presença de opostos em sua narrativa, ou seja, “desde o rotineiro e o vulgar até o sublime”, bem como os pólos extremos que compõem a personalidade humana, dispostos em harmonia perfeita em um único texto.

Enquanto, o mundo preludiava a Era Clássica, em pleno século XVI, no Brasil vivia-se o medievalismo, uma vez que, historicamente, este país havia sido recentemente descoberto e, em conseqüência disso, os interesses voltavam-se para a educação doutrinária e à formação cultural do povo, sendo que as inovações chegaram tardiamente em solo brasileiro. Novaes Coelho apresenta claramente essa situação:

Manoel da Nóbrega e José de Anchieta são os dois primeiros nomes que, no Brasil, se ligariam às atividades embrionárias de educação, cultura e literatura que o século XVI conheceu. Assim, no momento em que, em Portugal, Camões dava voz à renovação renascentista, criando as formas da alta poesia, que iria se constituir em modelo durante toda a Era Clássica, no Brasil José de Anchieta, ainda segundo modelos medievais, escrevia os autos religiosos (destinados à representação para as populações indígenas) e compunha seus singelos poemas em louvor da Virgem. (COELHO, 1991, p. 66)
                      
José Horta Nunes (1994), também descreveu o cenário brasileiro, em âmbito educacional e literário, no período medieval, a partir da definição da palavra catequese, ou seja, a forma de ensino oferecida ao povo brasileiro nessa época:
“Catequese é um projeto educacional que introduz uma prática de linguagem no Brasil. Diante do propósito inicial de ensinar a religião aos índios, essa prática consiste em um trabalho sobre as línguas, ao lado do desenvolvimento de técnicas de ensino doutrinário” (NUNES, p. 96-97).

Assim, a literatura moralizante e os contos de fadas, difundidos no período medieval, estendem-se até o século seguinte, e é a partir daí que os contos passam a fazer parte da recém-criada Literatura Infantil. Novaes Coelho apresenta essa criação desta forma:

Cavaleiros andantes, reis, rainhas, princesas e príncipes bons e maus, fadas, bruxas, metamorfoses de criaturas humanas em animais (ou vice-versa), ogres e ogressas (sic) canibalescos, maldições, profecias, madrastas, crianças abandonadas, crianças que são entregues a alguém para serem mortas, fantasmas e magos, gênios benfazejos e malfazejos... é a fantástica legião de personagens que a partir do século XVII os escritores cultos vão descobrir na tradição oral dos povos europeus e criar a Literatura Infantil que hoje conhecemos como “tradicional”... (COELHO, 1991, p. 66)
                      
Conforme o exposto, surge na França do século XVII a literatura voltada para crianças e representada através de fábulas e contos, uma vez que os escritores buscaram entre a cultura do povo as narrativas orais passadas de geração a geração. Inicialmente, a Literatura Infantil era proposta como ação educativa e moralizante, voltada não somente à criança, mas também e, principalmente, à mulher. Novaes Coelho descreve esse acontecimento histórico e determinante para a Literatura Infantil:

É na França, na segunda metade do século XVII, durante a monarquia absoluta de Luís XIV, o “Rei Sol”, que se manifesta abertamente a preocupação com uma literatura para crianças ou jovens. As Fábulas (1668) de La Fontaine; os Contos da Mãe Gansa (1691/1697) de Charles Perrault; os Contos de Fadas (8 vols. – 1696/1699) de Mme. D’Aulnoy e Telêmaco (1699) de Fénelon são os livros pioneiros do mundo literário infantil, tal como hoje o [sic] conhecemos. (COELHO, 1991, p. 75, grifos da autora)
                      
      É sabido que dentre os séculos XII a XVII, o ensino doutrinário catequético sobrepujava o contexto literário, visando moralizar a postura da criança e da mulher. Consoante a isso, ainda no século XVII, os olhos se voltaram para os menores leitores e surge a Literatura Infantil, representada por fábulas e contos. 

Neste novo cenário criado para a Literatura Infantil, Perrault é um dos pioneiros a divulgar para o mundo dos infantes os seus contos de fadas com claro fundo moralizante, que serão vistos a seguir.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Contos Populares Portugueses (Os dois compadres)

Era uma vez dois compadres - um era muito rico e o outro muito pobre. Este, querendo apanhar dinheiro ao rico, disse para a mulher:

- Olha, tu compras uma perdiz, eu vou à caça com o compadre e levo de cá um dos coelhos que aqui temos. Lá na caçada dou-lhe um recado para ele te vir cá trazer, que é para tu cozinhares a perdiz. Depois o compadre há de querer comprar-me o coelho e eu peço muito dinheiro por ele.

Assim foi. Na caçada, o pobre disse para o coelho:

- Olha, tu vai lá à minha mulher e diz-lhe que arranje uma perdiz guisada e que faça conta com o nosso compadre.

Deu um sopapo ao coelho, que desatou a fugir. O compadre rico estava ansioso de ir a casa do outro a ver se o coelho tinha dado o recado.

Quando chegaram lá dos matos, disse o homem para a mulher:

- Cuido que falta pouco para o guisado estar na mesa. O nosso coelho trouxe o recado, não foi?

- Pois não havia de trazer?! A perdiz está pronta e contava já com o compadre, tal como o coelho me recomendou da tua parte.

Pediu o rico ao pobre:

- Compadre, venda-me o seu coelho!

- Isso é que eu não vendo, que ele faz-me os mandadinhos todos.

- Compadre, venda-me o coelho, que eu dou-lhe muito dinheiro por ele.

Vendeu-lhe o coelho bem vendido. Claro, entregou-lhe um dos que tinha na coelheira. E a primeira vez que o compadre rico mandou o coelho a um recado, nunca mais lhe apareceu.

Entretanto, quando estava para acabar o dinheiro ao pobre, disse este para a mulher:

- Temos de ver se arranjamos outra marosca para apanharmos bagos ao nosso compadre. Olha, tu arranjas a burra velha, eu junto-lhe dinheiro com a ração e depois dizemos que ela deita pelo rabo muito dinheiro e que já somos muito ricos!

Assim foi. Um dia, na caçada, o compadre rico reparou que a burra deitava dinheiro pelo rabo.

- Compadre, venda-me a burra!

- Isso não vendo eu, que já estou muito rico e quando preciso de dinheiro ela é que me dá. Não vendo. E não se lembra do coelho? Vendi-lho por uma bagatela e logo o deixou fugir!

- Compadre, venda-me a burra.

Tanto teimou que ele lha vendeu por muito dinheiro.

Assim, foi para casa o compadre rico com a burra velha comprada e em casa deu-lhe uma boa ração. Mas a besta não largava dinheiro nenhum. Passados dias, era a mesma coisa, e foi reclamar:

- Ó compadre, a burra não faz dinheiro nenhum.

- Eu é que sou um grande burro em lhe vender as coisas. Não sabe tratar delas e depois diz que o engano. É boa!

Ia-se outra vez acabando o dinheiro, quando se lembrou:

- Olha lá, ó mulher, tu arranjas um papo de peru e mete-lhe dentro as tripas do animal. Põe o papo à cintura debaixo do avental e eu dou-te uma navalhada. No papo, está bem de ver! Tu cais logo morta e com as tripas de fora! Depois toco numa gaitinha que vou comprar e tu levantas-te!

Preparada a coisa, convidou o compadre para outra caçada.

- Ó mulher, arranja aí o alforje num instante.

- Não basta ser todos dias esta seca, senão sempre às pressas!

- Cala-te, mulher, não resmungues!
- E ainda terei de me calar? Pois não faço nada!

Armou-se uma grande discussão e ele deu-lhe umas navalhadas. As tripas saltaram logo e a mulher deixou-se logo cair redonda no chão. O compadre ficou todo aflito:

- Ó desgraçado, olha o que fizeste! Mataste a tua mulher!

- Não se incomode. Tenho aqui uma gaita que dá vida aos mortos!

Começou o pobre a tocar uma musiquinha e a mulher levantou-se logo. E o rico de boca aberta:

- Compadre, venda-me a gaita!

- Qual vender, nem qual diabo!

E tudo era lembrar-lhe o coelho e mais a burra. Por fim, vendeu a gaita. Foi o compadre rico para casa, armou uma grande briga com a mulher e mandou-lhe uma navalhada na barriga. Caída ela por terra, morta, e ele pega na gaitinha e vá de tocar, tocar a bom tocar. Mas a mulher não se mexia.

Veio a Justiça. Ele pôs-se a contar o sucedido com o compadre pobre e levaram este preso. No caminho, os guardas quiseram descansar, amarraram o pobre a uma árvore e deitaram-se a dormir a sesta.

Passou um pastor com uns carneiros e perguntou-lhe o que era.

- Ora, querem à força que eu me case com a princesa, mas eu não quero. Por isso me levam preso.

Diz-lhe o pastor:

- Bem podias casar com a princesa e não te levavam para a forca.

E o preso:

- E tu estás interessado em casar com ela? Queres vir para o meu lugar?

- Pois quero.

E mudaram. Depois, o pastor, amarrado à árvore, começou a gritar:

- Eu já quero! Eu já quero!

- Já queres o quê? - perguntaram os guardas, acordando, estremunhados.

- Já quero casar com a princesa!

- Ora essa! Explica lá o que estás a dizer!

E ele contou tudo.

- Bem - disse o chefe dos guardas-, soltem lá esse homem!

Ele foi-se embora. O outro ia todo contente com os carneiros do pastor quando encontrou o compadre, que lhe perguntou:

- Então tu não foste preso?

- Eu não, pois se a minha gaita dá vida aos mortos, como havia de ser preso?

- Então esses carneiros quem te deu?

- Ora, arranjei-os eu.

- Mas como?

- Olha, anda comigo, que eu te ensino como nascem carneiros!

Levou-o para o pé de um pego, onde a água era muito funda. Perguntou-lhe se queria um carneirinho ou um carneirão. O rico disse que um carneirão. Então o pobre agarrou nele e disse com voz forte:

– Cada mergulhinho, um carneirinho. Cada mergulhão um carneirão.

E atirou com ele para dentro do pego e safou-se com o rebanho, que logo foi vender na feira de S. Mateus.

Fonte:
Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte III

1.3 Conceituações e postulados

O conto de fadas é, em si mesmo, a sua melhor explicação, isto é, o seu significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da história. FRANZ,1981, p.15.
                                              
      Quanto à conceituação de contos de fadas, Novaes Coelho os define como narrativa com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da mágica feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, têm como núcleo problemático a realização essencial do herói ou da heroína, realização que, via de regra, está visceralmente ligada à união homem/mulher. (1987, p.13)
                      
      Bruno Bettelheim afirma que os contos de fadas habitam o mundo real, o consciente, e o inconsciente, o irreal, sendo que esse misto de magicidade e concretude é que fascina o ser humano, correspondendo ao que ele já conhece e ao que a imaginação pode alcançar: “As histórias de fadas falam ao nosso consciente e ao nosso inconsciente e, por conseguinte, não precisam evitar as contradições, já que elas coexistem facilmente no nosso consciente” (1997, p. 20).

      Mendes (2000) salienta que os contos derivam de rituais primitivos, praticados em tempos extremamente longínquos, a tal ponto de, nessa época, a mulher ser considerada divindade e apresentar significativo papel na sociedade. Por sua vez, o homem era personagem-antagonista e, como tal, seu papel também constituía função secundária, como a de transformar a menina em mulher.

[...] os contos são herdeiros dos mitos, por sua vez se originam de rituais praticados nas comunidades primitivas. Nessas comunidades, a mulher tinha um papel social importante como sacerdotisa e as divindades eram femininas. [...] O dado mais importante, no entanto, seria a preponderância e a importância das personagens femininas nas narrativas. [...] O personagem masculino é secundário, nem mesmo tem nome e representa apenas o instrumento de transformação e realização da mulher. (MENDES, 2000, p. 125)
                      
Por sua vez, Vladimir Propp afirma que o conto tem uma estrutura uniforme que, inicialmente, prepara o leitor ou ouvinte para um clima harmônico, a fim de que esse atente integralmente e viva em detalhes o emaranhado de tensões fictícias que se sucederão, envolvendo uma família e seus integrantes.

As primeiras palavras do conto: “Em um certo reino, em um certo Estado...” já introduzem o ouvinte em uma atmosfera especial, que se caracteriza pela tranquilidade épica. Mas trata-se de uma impressão ilusória. Ante ele não tardarão a se desenrolar acontecimentos extremamente tensos e vibrantes. Essa tranquilidade é um recurso artístico que contrasta com a dinâmica interna do conto, geralmente vibrante e trágica, às vezes cômica e realista.

O conto prossegue assim: “... havia um camponês que tinha três filhos”; ou então: “... um czar que tinha uma filha,” ou ainda: “... havia três irmãos;” resumindo, o conto apresenta uma família [...] (PROPP, 2002, p. 29)
                      
Amarilha atribui valores psicológicos e sociológicos aos contos de fadas, ressaltando a importância da acessibilidade desses contos às crianças, como forma de interação e compreensão dos problemas humanos, quer individuais ou sociais:

No meu entender, os contos de fada, com seu rico referencial simbólico, ressaltam o papel que a literatura deve ter para a criança. O de tornar acessível ao leitor experiências imaginárias que sejam catalisadoras dos problemas do desenvolvimento humano e assim proporcionar autoconfiança sobre o seu próprio crescimento. (AMARILHA, 1997, p. 73-74)
                      
Conforme Marina Warner, os contos de fadas surgiram como uma válvula de escape, como um apelo ou alento para as mulheres cansadas de serem menosprezadas e injustiçadas por uma sociedade patriarcal, onde a lei do mais forte imperava:
                     
  Os contos de fadas sugerem uma situação em que o próprio menosprezo pelas mulheres abriu, para elas, a possibilidade de exercitar a imaginação e comunicar suas idéias. A responsabilidade das mulheres pelas crianças, o desprezo vigente por ambos os grupos e a suposta identificação daquelas com as pessoas simples, a gente comum, entregaram-lhes os contos de fadas como um tipo diferente de estufa, onde podiam semear seus próprios brotos e plantar suas próprias flores [...] (WARNER, 1999, p. 22)
                     
Já Sheldon Cashdan (2000)8 afirma que os contos relatam e representam a história em suas épocas. Em tempos difíceis como em pós-guerras, percebia-se essa realidade através das narrativas, como as de Andersen, por exemplo: “Os contos de fada são documentos históricos únicos, que nos mostram como era a vida em certos períodos da história - épocas em que cada dia era em si uma batalha pela sobrevivência” (CASHDAN, 2000, p. 62).

D’Onofrio afirma que “sob a denominação de conto popular, conto de fadas ou conto da carochinha, agrupam-se inúmeras narrativas de temas e motivos os mais variados” (2006, p. 110) e salienta ainda que as narrativas apresentam estruturas peculiares, sendo que os seus autores e narradores são desconhecidos, uma vez que essas histórias acompanham a humanidade e são o patrimônio cultural efetivo da mesma. Além disso, os seus personagens representam funções em um tempo e espaço indeterminados.

Já a escritora Clarissa Pinkola Estés sustenta que nos contos de fadas há instruções que conduzem à compreensão da evolução feminina. O passado, para a autora, é o elo e a condução para que a mulher encontre o seu autoconhecimento.

Os contos de fadas, os mitos e as histórias proporcionam uma compreensão que aguça nosso olhar para que possamos escolher o caminho deixado pela natureza selvagem. As instruções encontradas nas histórias nos confirmam que o caminho não terminou, mas que ele ainda conduz as mulheres mais longe, e ainda mais longe, na direção do seu próprio conhecimento. As trilhas que todas estamos seguindo são aquelas do arquétipo da Mulher Selvagem, o Self instintivo inato. (ESTÉS, 1994, p.19)
                      
      Por sua vez, Franz afirma que “o estudo dos contos de fadas é essencial,
para nós, pois eles delineiam a base humana universal” (1981, p. 38), esclarecendo ainda que os contos estão além de quaisquer diferença, quer sejam culturais ou raciais, “podendo assim migrar facilmente de um país para outro. A linguagem dos contos de fadas parece ser a linguagem internacional de toda a espécie humana de idades, raças e culturas” (FRANZ, 1981, p. 38).

Desse modo, depreende-se, através da cultura popular, que os contos de fadas tratam de temas universais e antagônicos. Emaranham-se sentimentos como amor e ódio, atitudes de poder e submissão, bem como desígnios de vida e morte. A bem da verdade, o início e o término da narrativa assemelham-se, uma vez que a estabilidade da mesma é alcançada nesses dois períodos. Primeiramente, esse equilíbrio é desestabilizado com um conflito que gera um ou inúmeros outros problemas existenciais e, no momento em que esses são reconhecidos e solucionados, a harmonia é retomada.

Quanto à conceituação de conto de fadas, nota-se que é a atribuição dada a
uma história fantasiosa, a qual tem fadas como personagens, podendo também não as ter, além de reis, rainhas, príncipes, princesas e bruxas. Por outro lado, se o próprio Lobato denominou o “Mundo das Maravilhas” (1990, p. 249) o lugar onde os personagens vivem e desempenham seus papéis dentro dos contos, percebe-se, desta forma, então, que o enredo transcorre em um mundo mágico envolto por florestas e castelos, sendo que a temática central do mesmo é a luta do bem contra o mal. Assim, esse último acaba perdendo a batalha, e o castigo é aplicado ao malfeitor. Convém salientar que nos contos o fracasso também é castigado, e a coragem enaltecida, como em Rosinha dos espinhos, dos Irmãos Grimm, sendo que nesse muitos homens que vieram salvar a princesa pereceram nos espinheiros, porém, o príncipe, que era destemido, alcançou tamanha proeza: acordar e conquistar a princesa. Essa função heroica do príncipe foi assim enfatizada pelos Irmãos Grimm e, dessa mesma maneira, outros também o fizeram, uma vez que o território para os escritores de contos de fadas tinha a demarcação masculina.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009