quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Folclore Japonês (A Princesa e a Peônia)

Este é um dos antigos e mais poéticos contos do folclore japonês. Ele nos conta a triste história de um amor impossível entre uma bela princesa e um espírito encantador materializado em forma de flor: O espírito da peônia que manifesta-se sob a aparição de um belo jovem.

Há muitos e muitos anos, em Gamo-Gun, na província de Omi, havia um castelo chamado Azuchi. Era um lugar antigo e magnífico, cercado por uma alta parede de pedras e um fosso cheio de lótus. O senhor feudal era um homem muito rico, porém mal humorado chamado Yuki Naizen no Jô. Sua esposa tinha estado doente por muitos anos e teve uma única filha, que todos chamavam carinhosamente de Aya Hime (princesa Aya).

Na época, o Japão vivia um longo período de paz e tranquilidade, e os senhores feudais haviam abandonado a ideia de guerrear constantemente para conquistar novos territórios. Como os feudatários mantinham relacionamento amigável, Naizen no Jô percebeu então que, a época era oportuna para encontrar um bom pretendente para sua princesa.  Depois de vários contatos, ele optou pelo segundo filho do senhor do castelo de Ako, da província de Harima. Este, para Naizen no Jô, seria apropriado para ser o marido de sua única e amada filha. Os dois feudatários ficaram muito satisfeitos com a possibilidade de que seus filhos viessem a se casar, pois a aliança matrimonial fortaleceria o poder bélico de ambos.

Por esse tempo, no Japão, as famílias ricas marcavam os casamentos de seus filhos sem que estes tivessem prévio conhecimento um do outro. Já que era obrigada a aceitar a determinação de seu pai, a princesa Aya fez grande esforço mental para aceitar seu futuro marido, falando e pensando nele positivamente, mesmo sem nunca tê-lo visto.

Certa ocasião, junto com sua dama de companhia, Aya Hime caminhava pelo enorme jardim do castelo e foi até o canteiro das peônias. Era o seu local preferido, onde adorava apreciar o reflexo da lua, projetada nas águas do lago, e fazia isso, principalmente, em noites de lua cheia que lhe trazia belas inspirações para compor poesias.

Naquela noite, quando Aya Hime estava passeando distraidamente na beira do lago, tropeçou em uma raiz exposta e desequilibrou-se em direção à água. De repente, foi amparada por um jovem que surgiu como num passe de mágica, evitando milagrosamente que ela afundasse lago adentro. Em seguida, assim que a colocou no chão, o rapaz desapareceu tão rapidamente como apareceu. A dama de companhia viu, quando ela tropeçou, um clarão de luz em torno da princesa refletido na água, mas não chegou a ver claramente nenhum rapaz protegendo-a da queda. Já Aya Hime tinha visto perfeitamente o rosto de seu salvador.
A Princesa encontra o Jovem Espírito da flor…

Era o  homem mais bonito que ela poderia imaginar. –Vinte anos de idade, disse ela a Sadayo San, sua dama de companhia favorita, –Ele deve ser um samurai da mais alta ordem. Seu traje estava coberto com minhas peônias preferidas, e sua espada era ricamente ornamentada. Oh!!! eu poderia tê-lo visto mais um minuto, para agradecer-lhe por me salvar da água! Quem pode ser?

– Mas princesa, como ele teria chegado ao jardim, se todo o castelo está cercado pelo fosso e existem muitos guardas no portão? Acho melhor não comentar nada a ninguém, pois seu pai pode ficar zangado, se souber que um estranho esteve no jardim.

A partir daquela noite, Aya não conseguiu esquecer o misterioso rapaz. Por várias vezes esteve no jardim, mas nunca mais o viu.

Tempos depois, ela ficou muito doente e com dificuldades para comer e dormir. Cada dia foi ficando mais pálida e tornou-se impossível realizar seu casamento com o príncipe de Ako na data marcada.
Vários médicos vieram de Quioto para examinar Aya Hime, porém ninguém conseguiu diagnosticar de que doença se tratava. Como último recurso, o senhor feudal Naizen no Jô, interrogou com veemência Sadayo, a dama de companhia de sua filha, pois sabia que ela era a confidente da princesa.

– Os médicos chegaram a pensar que ela estava fingindo estar doente, só para não se casar com o prometido príncipe de Ako. Se você sabe de algum amor secreto dela, me diga, pois, se continuar assim, ela vai acabar morrendo. Você não quer que ela morra, quer? – perguntou o feudatário.

– Senhor, eu prometi à sua filha que jamais revelaria seu segredo. Porém, diante do risco de vida que ela está correndo por causa de sua enfermidade, sou forçada a revelá-lo, se é que isso contribuirá para sua salvação.

Assim, Sadayo contou detalhadamente o que aconteceu na noite de lua cheia no canteiro das peônias…

– Meu senhor, acredito que a doença da princesa Aya é uma doença de amor. Ela está profundamente apaixonada pelo jovem que viu por alguns instantes e depois desapareceu misteriosamente. Tenho medo de que, se não conseguirmos encontrar o tal jovem, ela definhe dia a dia até morrer – disse Sadayo, a dama de companhia da princesa.

– Mas o nosso castelo é muito vigiado, é humanamente impossível que alguém consiga entrar e sair sem ser visto pelos guardas dos portões…  murmurou o pai de Aya, Naizen no Jô.

– Está sugerindo alguma coisa senhor?! Bem sabes que raposas e texugos têm o poder de se transformar em seres humanos e nos enganar. Será possível que algum desses bichos tenha entrado no castelo por alguma pequena abertura no muro?!

Nessa noite, para tentar reanimar a princesa, foi trazido da capital o famoso músico Yashakita Kengyo, mestre num instrumento de cinco cordas chamado “biwa”. A noite estava quente, e o concerto musical foi ao ar livre. Os acordes espalharam-se pelo ar, tomando conta do belo jardim do castelo.

De repente, no canteiro das peônias, um jovem de ar nobre apareceu para ouvir a música. Desta vez todos o viram, e ele trajava a mesma roupa com bordados de peônias em fios de ouro. – É ele! – gritaram todos os que assistiam o concerto. Diante da reação das pessoas, o jovem desapareceu instantaneamente.

 A princesa ficou visivelmente excitada. Levantou-se e foi procurar pelo moço no jardim, mas nada encontrou. O pai dela, senhor do castelo, ficou muito confuso com a situação. No dia seguinte, mandou fazer uma busca minuciosa no jardim, revirando pedras, removendo canteiros de arbustos e procurando em cima das árvores, porém, não encontrou ninguém escondido, nem mesmo raposa ou texugo.

Nessa mesma noite, quando dois músicos do castelo, Yaesan e Yakumo tocavam seus instrumentos, respectivamente a shakuhachi (flauta) e o koto (instrumento de cordas), o jovem novamente apareceu e desapareceu ao ser notado. O mistério aumentou, pois a vigilância tinha sido triplicada, e tudo no castelo foi vasculhado palmo a palmo.

Yuki Naizen no Jô resolveu chamar, então, o renomado Maki Hyogo, um veterano oficial do exército que atuava como conselheiro na corte do Shogun, para capturar o jovem misterioso. O astuto Maki, que adorava desafios, aceitou prontamente a missão. Vestiu-se de preto, como um ninja, para fazer-se invisível e escondeu-se no canteiro das peônias.

Todos tinham percebido que a música exercia certo fascínio sobre o jovem misterioso. Consequentemente, os músicos Yaesan e Yakumo fizeram um concerto naquela noite. O público presente prestou mais atenção no canteiro das peônias do que na música. A certa altura, um belo jovem surgiu no jardim, com magnífica veste ornada de peônias bordadas.

Maki Hyogo levou um susto, pois o jovem surgiu do nada exatamente a um passo de onde ele estava escondido. Em seguida, agarrou o jovem por trás, na altura da cintura. Manteve-o apertado por alguns segundos, quando sentiu uma baforada de vapor na cara e caiu no chão agarrado firmemente ao jovem.

Os guardas e o pessoal do castelo que assistiram à cena correram para o canteiro e, ao chegarem deparam-se com Maki Hyogo no chão:

– Vejam, consegui agarrá-lo – disse Maki, mas, vendo o que estava abraçando, descobriu que se tratava apenas de uma enorme peônia. Como Hiogo também era astrólogo, logo descobriu do que se tratava.

– Raposas e texugos não conseguiriam passar pelos portões e os guardas do castelo, porém, o jovem sim, pois ele é o espírito da peônia e nasceu aqui mesmo.

Os videntes que estavam no local concordaram plenamente com Maki Hiogo. O espírito da peônia manifestava-se sob aparição de um belo jovem, porém não era na verdade um ser material. Esclarecido o caso, a princesa Aya levou a grande flor de peônia para seu quarto e colocou-a num vaso com água.

Dia a dia, ela foi melhorando de saúde, até recuperar-se completamente. Inexplicavelmente, a grande peônia do vaso também ficava cada vez mais radiante, não dando nenhuma mostra de murchar, apesar de o tempo ir passando.

Como a princesa estava agora com ótima aparência, seu pai não via nenhum motivo para continuar adiando o casamento. Então, dias depois, o senhor de Ako e sua família chegaram com uma luxuosa comitiva, para realizar o casamento de seu segundo filho.

A princesa Aya, com pesar, despediu-se da grande peônia e foi para a cerimônia de casamento. Após o ofício, seguiu com seu marido para o castelo de Ako.

As camareiras que acompanharam a princesa viram a incomparável beleza da flor quando foram para a cerimônia. E, após o evento, quando passaram pelo quarto da princesa novamente, viram a peônia murchar e despetalar-se.

A alma da flor, não suportando a dor de ver sua amada princesa casando-se com outro, despetalou-se de tristeza.
 
Fontes: Livro de Richard Gordon Smith, contos antigos e Folclore do Japão in Caçadores de Lendas

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Paulo Leminski (XLV)


Ângela Ramalho (Poemas Escolhidos)

PARTES DE MIM

Uma parte de mim é festa,
outra parte é melancolia,
uma parte de mim silencia,
enquanto outra se manifesta.

Uma parte de mim é emoção,
outra parte um ser racional,
uma parte é sentimental
enquanto outra prefere a razão.

Uma parte de mim é menina
outra parte altiva senhora,
uma parte de mim vai embora
enquanto outra se descortina.

Uma parte me pede segredo,
outra parte se escancara,
uma parte de mim dá na cara
enquanto outra se encolhe de medo.

Uma parte de mim faz furor,
outra parte vive camuflada,
uma parte de mim é abafada,
enquanto outra vive o esplendor.

SONETO DE DEVOÇÃO

Essa que veio na rede, imagem dividida
e foi achada por simples pescadores,
tornou-se nossa Mãe Aparecida,
A que veio curar as nossas dores.

Intercessora, salvou-me a vida
Curou o mal sem deixar cicatriz,
A ela sou eternamente agradecida,
Hoje é a padroeira desse meu país.

Inconfundível mãe, de cor morena,
Que a minha mãe em sonho visitou,
num momento de desespero e aflição.

Vendo sofrer uma criança tão pequena
No corpo em chamas um milagre operou,
Graças vos dou, eterna é minha devoção!

DIAMANTE BRUTO

Você gosta de músicas antigas,
de comidas simples,
de ficar em casa.
Você não liga para a aparência.
Você, tão sem cerimônias,
com seu jeitão de matuto...
Você, meu diamante bruto!
Você, simples e verdadeiro,
de mãos calejadas e de jeito rude,
que eu quero conhecer, mais amiúde...
Você às vezes lembra meu pai, severo, astuto...
Você, meu diamante bruto!

Você, homem de caráter e brio,
que me aquece quando tenho frio,
e me faz transpirar, sem ter calor.
Você, companhia da qual eu desfruto,
pedra preciosa, diamante bruto,
mas que, se eu lapidar, perde o valor.

AMOR E POESIA

Há tempos não fazemos um soneto,
Isso requer um tema embriagador,
Eu e você fazemos um bom dueto
Nas parcerias das rimas e do amor.

Rimamos tanto e em tanta sintonia
Que juntos, parecemos tão iguais,
E os belos versos desta poesia,
Até parecem alguns dos imortais.

Entre versos, desejos e malícias,
O amor flui em perfeita harmonia,
E a um canto... a caneta e o papel,

Esperam que troquemos mil carícias,
Ser tua em prosa e verso, à luz do dia,
É mais que poesia, é ir ao céu!

PALAVRAS...

Palavras...
Palavrinhas...
Palavrões...
Falam tudo,
falam nada,
tecem canções.
Causam raiva,
causam ira,
arranhões...
Nos cutucam,
nos inflamam,
são paixões.
Deixam sequelas
coisas belas,
sensações.
Causam alegria
euforia,
aos corações.
Nos ensinam
nos fascinam
aos milhões.
Mas sem elas,
ai meu Deus
como seria?
Deixaria
de existir
a poesia?

DE POETAS E LOUCOS…

Da minha loucura,
tiro lucidez,
chego até vocês.
Da minha lucidez
invento loucuras,
como ninguém fez.
Sou louco, sou pouco,
sou muito, sou tantos
e em tantos, sozinho,
procuro um ninho,
igual passarinho.
Na rua, assobio,
sorriso escrachado,
sem ninguém do lado,
mas dou meu recado:
Se tenho alegria
Sou louco de fato,
Pois faço meu dia
Virar poesia.
Sou muitos,
sou tantos,
Em tantos,
sou pouco
a muitos encanto,
a outros espanto.
Sou poeta, sou louco,
Entretanto,
sou quantos?

SÓ POESIA...

Acabei de fazer um soneto,
quase ao meio dia,
de barriga vazia,
só me alimentando
de poesia!

Alimentar o corpo
a gente espera.
Esqueço a fome,
deixo-a quieta:
-Agora sou poeta!

IDENTIDADE

Em que momento,
em que fase,
em que período,
eu me distanciei de mim?

Por quem fui levada?
(ou melhor dizendo)
Porque me deixei levar?

Quantas escolhas vãs,
quantos amores desfeitos,
quanto sacrifício inútil.

Só agora me dou conta
que a maturidade
trouxe de volta
minha identidade.

A VIDA ENSINA

Não sei porque cismei com você.
Não sei porque achei
que poderia te levar a sério.
Quanta insensatez!
Quantas promessas vãs,
quanto romantismo barato,
quanta ironia!
E eu aqui sonhando
e fazendo poesia.
Onde foi parar minha razão?
Porque deixei falar
mais alto o coração?
Será que amor faz mal,
deixa doente?
Ou eu é que fui
muito inconsequente?
Fazer o que,
sofrer é minha sina.
Contra mal de amor
não existe vacina,
nenhum remédio
cura essa ferida.
Bem ou mal,
levo comigo pela vida
lições de amores não correspondidos.
De professora, passei a aluna
cuja matéria sequer compreende,
embora o que a gente não aprende,
a duras penas a vida ensina.

CORINGA

Pego o baralho: corto!
Embaralho e me pego,
pensando na vida
(tão embaralhada).
Compro uma carta que não me
serve.
A prudência me pede para retê-la,
mas tomada pelo imediatismo,
descarto.
É apenas um jogo, penso.
Mas, e na vida
quantas vezes descartei sem pensar?
É minha vez de comprar.
Mais uma que não me serve.
Não tem coringa nesse monte?
Descarto cartas sem serventia,
e sem muito refletir,
vou comprando, comprando…
Alguém bate
e eu fico com as mãos
repletas de cartas,
e a minha falta de lucidez.
Quantas partidas a vida ainda me dará,
até que eu aprenda a pensar,
sem me acomodar,
à espera que venha o coringa?

sábado, 3 de setembro de 2016

Paulo Leminski (XLIV)


Voltaire (Memnon, o Filósofo)

Memnon, certo dia, meteu na cabeça ser um grande filósofo. Poucos homens há que não tenham, nesta ou naquela ocasião, concebido o mesmo projeto insensato. E diz Memnon de si para si:

“Se quiser ser um perfeito filósofo, e naturalmente gozar de perfeita felicidade, nada terei a fazer senão despir-me inteiramente de todas as paixões e, nada mais fácil, como todo mundo sabe. Em primeiro lugar, jamais amarei, porque, quando avistar uma mulher bonita direi comigo mesmo: aquelas faces murcharão um dia, vermelhos e lacrimosos se tornarão aqueles olhos, flácidos, cairão aqueles seios, e aquela cabeça tornar-se-á calva. Isto é, bastar-me-a imaginar o que será ela no futuro, e certamente não haverá rosto bonito que me vire a cabeça.

Em segundo lugar, serei sempre moderado. Em vão me tentarão seduzir com bom petisco, delicioso vinho, ou os encantos da sociedade. Será suficiente que me figure as consequências do excesso, uma dor de cabeça, a indigestão, a perda do juízo, da saúde e do tempo. Comerei, pois, apenas para suprir os gastos da natureza, permanecerá estável a minha saúde, e minhas ideias serão sempre luminosas e puras. É tudo tão fácil que mérito algum há de consegui-lo.

É preciso, – ainda diz Memnon – pensar um pouco no dinheiro: meus desejos são moderados, minha riqueza está entregue ao Recebedor Geral de Finanças de Nínive, tenho que viver independente e esta é a maior das bênçãos. Nunca me encontrarei na cruel necessidade de bajular a corte, não invejarei ninguém, e ninguém me invejará, todavia, isto é fácil de conseguir. Tenho amigos, continuou ele, e conserva-los-ei, pois me farão diferença, não levarei a mal o que eles disserem ou fizerem, e da mesma forma se comportarão eles comigo. E não há dificuldade neste particular.”

Estabelecido desse modo o seu modesto plano filosófico, Memnon aproximou-se da janela e olhou para a rua. Viu duas mulheres que caminhavam sob os plátanos próximos de sua casa. Uma era velha, e dir-se-ia não pensar em nada, e outra, bonita, parecia muito agitada, suspirava, chorava, e com tudo isso tornava-se ainda mais bonita. Comoveu-se o nosso filósofo, não, é claro, com a formosura da senhora (era forte sua deliberação de não se deixar levar por tais emoções), mas sim com o desgosto que no rosto dela se estampava. Desceu a escada e interpelou a jovem , no intuito de levar-lhe o consolo da filosofia. A adorável criatura contou-lhe então, com ar de grande simplicidade, e de maneira afetuosíssima, as injúrias que sofria de um tio imaginário, da manha com que a despojara ele de seus bens imaginários, e das violências que fingiu sofrer. “Vejo ser o senhor – disse depois – homem de tamanha sabedoria, que se condescender em seguir-me até a minha casa e examinar de perto a minha situação, estou convencida de que me livrará dos cruéis sofrimentos de que sou vítima.” Não hesitou Memnon em acompanhá-la, a fim de filosoficamente examinar-lhe os problemas íntimos e dar-lhe avisado conselho.

Conduziu-o a aflita senhora a um quarto perfumado, e polidamente fê-lo sentar-se com ela num largo sofá, onde ambos se colocaram em posição de conversa, um em frente do outro, as pernas cruzadas, uma, ansiosa por contar a própria história, o outro, pronto para escutá-la com atenção devota. A senhora falou com os olhos baixos, dos quais uma ou outra vez deslizava uma lágrima, e quando se aventurava a erguê-los, se encontravam sempre com os do sábio Memnon. Cheio de ternura foi o discurso dela, e redobrava de meiguice toda vez que seus olhos se encontravam. Memnon acolheu em seu coração, com excessivo ardor, os lamentos da senhora, e a cada instante mais e mais inclinado se sentia a servir uma tão virtuosa e infeliz criatura. Aos poucos, com o calor da conversa, deixaram de sentar-se um diante do outro, aproximaram-se mais, e já não tinham as pernas cruzadas. De tão perto a aconselhava Memnon, e com tão suave exortação, que pouco depois não falavam mais de aflições e não sabiam o que tinham ido ali fazer.

Nesse interessante momento, como bem pode ser imaginado, quem chegou se não o tio? Vinha armado da cabeça aos pés, e a primeira coisa que disse foi que sacrificaria imediatamente, como era justo, o sábio Memnon e a própria sobrinha, a última a afirmar foi que estava disposto a perdoar mediante polpuda quantia. Memnon foi obrigado a comprar a própria liberdade com todo o dinheiro que possuía no momento. Naqueles dias se conhecia a felicidade da fácil libertação. A América não fora descoberta, e as senhoras aflitas não eram tão perigosas quanto são as de hoje.

Coberto de vergonha e confusão, retirou-se Memnon para sua casa; lá encontrou um convite para jantar com um de seus amigos íntimos. “Se eu ficar só em casa, pensou ele, ficarei todo o tempo a martirizar o espírito com esta triste aventura, não serei capaz de comer migalha, e acabarei doente. É prudente, pois, que eu vá ver os meus amigos e partilhe com eles de um frugal repasto. Esquecerei, com os encantos da companhia, a tolice que tive, a fraqueza de praticar hoje de manhã”. E foi à festa. Lá sentiu-se indisposto, e pediram-lhe para beber e pôr de parte os cuidados. Um pouco de vinho, bebido com moderação, conforta o coração de Deus e do homem, assim raciocinou o filósofo Memnon, e acabou embriagado. Depois da refeição, alguém propôs o jogo. Um joguinho com amigos íntimos é inofensivo passa tempo. Jogou e perdeu tudo o que tinha na carteira, e quatro vezes mais, sob palavra. Em dado momento do jogo, surge uma discussão, os contendores se acaloram, e um dos amigos íntimos atira-lhe à cabeça uma caixa de dados, além de esmurrar-lhe um olho. Embriagado e sem níquel, levam para casa o filósofo Memnon que sentia ainda o desfalque de uma vista.

Dorme ele a sua orgia, e quando sente mais lúcido o entendimento manda o criado à casa do Recebedor Geral das Finanças de Nínive, a fim de sacar pequena importância com que pretende pagar a dívida de honra assumida com os amigos íntimos. Volta o criado e diz-lhe que naquele mesmo instante fora o Recebedor Geral declarado em falência fraudulenta, e que com isso tinham sido reduzidas à pobreza e ao desespero centenas de famílias. Memnon, quase fora de si, põe um emplastro no olho e uma petição no bolso, e corre à justiça para pedir intervenção do rei contra o falido. No palácio encontra-se com inúmeras senhoras em excelente disposição de espírito, todas vestidas de saias de arcos de vinte e quatro pés de circunferência. Uma delas, que o conhecia, olha-o de soslaio e brada:

“Oh! Que monstro horrível!” E outra, mais bem relacionada com o filósofo, chega-se a ele com estas palavras. “Bom dia, sr. Memnon. Folgo em vê-lo tão bem disposto. Ah! Como perdeu o olho, sr. Memnon?” E girando no calcanhar afastou-se sem esperar resposta.

Memnon escondeu-se num canto e esperou a hora de atirar-se aos pés do monarca. Chegou enfim o momento. Três vezes beijou o chão, e entregou o seu requerimento. Sua Majestade recebeu-o muito favoravelmente, e passou o papel a um dos sátrapas, para que lhe desse seu parecer. O sátrapa agarra Memnon, leva-o para o lado, e diz-lhe com ar altivo e um arreganho satírico:

“Ouça, seu caolho, você me parece um grande impertinente, para dirigir-se ao rei em vez de falar comigo, e mais ainda por se atrever a pedir justiça contra um honesto falido, a quem protejo, e que é sobrinho da dama de companhia de minha senhora. Não se envolva mais neste negócio, meu bom amigo, se quiser poupar o olho que lhe resta”.

Memnon, que, havia pouco no seu quarto, renunciara às mulheres, aos excessos da mesa, ao jogo e às controvérsias, e que especialmente determinara jamais ir à corte, no espaço de vinte e quatro horas fora ludibriado e roubado por sedutora dama, embebedara-se, jogara, numa querela perdera um olho, e comparecera à corte, onde o insultaram e maltrataram.

Petrificado de estupefação, o coração varado de mágoas, voltou Memnon para casa, em desespero. Ia entrar, quando foi repelido por oficiais de justiça que lhe carregaram a mobília para compensação dos credores: deixou-se cair sob um plátano, quase sem vida. Encontrou aí a linda mulher da aventura matinal, a qual conversava com seu estimado tio e ambos explodiram em gostosa gargalhada ao avistar Memnon com o emplastro. Caiu a noite, e Memnon preparou seu leito num monte de palha perto de sua casa. Atacou-o a febre intermitente, e ele adormeceu num dos acessos, quando lhe apareceu em sonho um espírito celestial.

Era todo resplandecente: tinha seis asas vistosas, mas nem pés, nem cabeça, nem cauda, não havendo nada com que ele se assemelhasse.

– Quem és? – perguntou Memnon.

– O teu anjo da guarda – replicou-lhe a aparição.

– Devolve-me então o meu olho, minha saúde, a fortuna e o entendimento que perdi – implorou Memnon, e contou-lhe como tudo perdera em um só dia.

– São aventuras que nunca nos esquecem no mundo onde vivemos. – disse o espírito.

– E que mundo habitas? – perguntou o aflito homem.

– Minha terra natal – replicou seu interlocutor – fica a quinhentos milhões de léguas distante do Sol, numa pequenina estrela perto de Sírius que daqui se pode ver.

– Encantador país – exclamou o filósofo. – E não há realmente mulheres vis para enganar um pobre diabo, nem amigos íntimos que nos roubem o dinheiro e nos arranquem os olhos a murros, nem falências fraudulentas, nem sátrapas que escarneçam de nós ao mesmo tempo que nos negam justiça?

– Não, – disse o habitante da estrela – nada disso que falaste temos lá. As mulheres não nos ludibriam, porque as desconhecemos, à mesa não cometemos excessos, porque jamais comemos ou bebemos, não sabemos o que são falências, porque não possuímos ouro nem prata, nem nos podem arrancar os olhos a bofetadas porque não temos, como os teus e, por sermos todos iguais, não existem lá sátrapas, que nos façam injustiças.

– Senhor! – atalhou Memnon – Sem mulheres e sem comer, como passais o tempo?

– A vigiar – disse o gênio – os outros mundos que nos são confiados, e eu aqui estou para consolar-te.

– Ai de mim! – lamentou-se o filósofo – Porque não vieste ontem para impedir que eu praticasse tantos despautérios?

– Estive com Hassan, teu irmão mais velho. – replicou a celestial criatura. – Ele merece muito mais piedade do que tu. Sua Majestade benevolentíssima, o Sultão das Índias, em cuja corte ele tem a honra de servir, mandou-lhe arrancar os dois olhos por insignificante indiscrição, e está agora num calabouço, mãos e pés cobertos de grilhões.

– É de fato uma felicidade – disse Memnon – ter-se na família um anjo bom, quando um irmão é cego de um olho, e outro de ambos: um a dormir na palha, jogado o outro num calabouço.

– Tua sorte mudará. – declarou o animal da estrela. – É uma verdade que nunca mais recobrarás a vista, mas afora isto, serás suficientemente feliz se tirares da cabeça a ideia de ser filósofo perfeito.

– É isso, então, coisa impossível? – indagou o outro.

– Tão impossível quanto a sabedoria perfeita, a força, o poder ou a felicidade perfeitos. Nós, ao menos, estamos longe disso. Há em verdade um mundo onde tudo é possível, mas nos cem mil milhões de mundos dispersos no espaço tudo caminha gradualmente. Há menos filosofia e menos prazeres no segundo do que no primeiro, menos no terceiro de que no segundo, e assim até o último da escala, onde são todos completamente loucos.

– Receio – disse Memnon – ser o nosso pequeno globo terráqueo o manicômio desses cem mil milhões de mundos dos quais tive a honra de ouvir referências.

– Não é bem assim – respondeu o espírito – mas é quase. Tudo deve estar no seu devido lugar. – Mas certos poetas e filósofos não têm então razão quando nos dizem que tudo está pelo melhor no melhor dos mundos?

– Eles têm razão – respondeu o filósofo celestial – mas quando consideramos as coisas relativamente ao universo inteiro…

– Oh! Pois nunca mais acreditarei em nada disso, enquanto não recuperar o olho perdido – replicou o infortunado Memnon.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Paulo Leminski (XLIII)


Lenda Australiana (Uma Estória de Canguru)

Lá longe no Kowmung e ao redor dos picos escarpados em que se encontram os grandes filões contendo a  prata de Yarranderie (1), vagava uma tribo de negros que têm a sua própria estória do primeiro canguru.

Essas pessoas diziam que certo dia uma mulher se escondeu do marido. Esse homem era um caçador muito inteligente. Seu bumerangue infalível derrubava todos os goanna (2). Os bumerangues que ele fazia só para diversão, voavam à distâncias mais longas, e voltavam e giravam uma e outra vez por cima da cabeça do lançador antes de pousar rapidamente a seus pés, e foi o que ele fez como uma arma e, claro, não voltaria, pois era o mais pesado e mais mortal, seja na caça ou na guerra.

Ele poderia habilmente virar o porco-espinho e não erraria um pássaro se ele tentasse derrubá-lo. Portanto, a bolsa de sua esposa estava sempre cheio de caudas de goannas, com grandes porcos-espinhos,  pássaros e larvas, embora a mulher tivesse ela mesmo catado as larvas, bem como as raízes de samambaia. As larvas eram de uma bela cor branca e se encontravam em buracos de troncos podres e eram chamados de “nuttoo”.

Se diz que o primeiro canguru era uma grande besta e era capaz de comer pequenas crianças. Se uma criança caminhava para longe de seu tapete ou sua caminha de folhas, sua mãe sempre a ameaçava com o chamado do canguru gigante.

Agora, a mulher com a sacola carregada se rebelou. Ela jogou fora o saco pesado e saiu correndo. Ela estava de pé, também, para que ninguém pudesse pegá-la.

Ao redor dessa parte do país se encontram muitas áreas pantanosas, que são densamente arborizadas com o Melaleuca Maideni (3) e foram igualmente cobertas com essas árvores nos dias distantes do primeiro canguru.

A esposa fugitiva se escondeu atrás do tronco de uma das maiores dessas árvores. Sua casca era branca, e em manchas largas, suave, irregular e com aparência de papel. E descascava em grandes pedaços.

O marido dela, muitas vezes conseguia alcançá-la e ela tinha que ser muito, muito rápida quando saia do esconderijo e começava a correr.

Dias se passaram e ela ainda não tinha sido capturado. Mas ela estava ficando cansada, e ela começou a pensar que carregar um pesado saco de carne estragada não era uma tarefa tão terrível como a ficar brincando de esconde-esconde pela vida inteira, em que ela era obrigada a fazer constantemente.

Se ela não tivesse sido uma das mulheres que tinha aprendido os segredos que apenas os homens deveriam possuir, ela nunca teria tido coragem de se rebelar. Se as coisas ficassem ainda pior, ela poderia invocar a ajuda do espírito, e algo aconteceria a seu favor. Ela sabia onde o barro que era necessário para a magia podia ser encontrado. O único problema era que ela não tinha conhecimento do paradeiro de seu povo. No entanto, ela arriscou tudo, e ao escalar o lado íngreme do monte, viu fumaça de fogueira.

Ela estava muito feliz ao perceber que ele estava na direção da montanha agora chamada de “Werong” (4), escapando sob as “Rochas de Alum.” E entre ela e as Rochas de Alum havia um depósito de argila  vermelho, amarelo, e branco. E lá foi ela, e logo ela que ela marcou um local cuidadosamente, colocando ainda o algodão selvagem nas linhas da argila para ter certeza de que ela iria receber a ajuda que ela precisava.

Por essa altura já era noite, e ela dormiu.

Pela manhã os alimentos vieram para ela. A larva de nuttoo enfiou a cabeça no tronco da árvore grama, e ela não teve dificuldade em atraí-lo para fora, e, torrada a larva era muito doce. O sabor da larva nuttoo, que quase sempre podem ser encontrados em acácias,  a fez querer muito mais.

É bem conhecido que um grande número de insetos muito destrutivos habitam as acácias. O eucalipto ou coolibah(5), também é outro hospedeiro para larvas de pragas. E acácias e coolibabs crescem em abundância, pois em menos de duas horas ela tinha recolhido um saco enorme, e logo em seguida ela procurou um lugar para fazer um outro fogo.

Este fogo foi sua ruína. A fumaça foi logo vista por seu marido. Ele era persistente e nunca deixou de observar e procurar por ela.

Com toda a sua astúcia, ele aproximou-se das pequenas espirais azuis de fumaça.

Mas a mulher não era de forma nenhuma irresponsável. Seus ouvidos estavam atentos, e ela ouviu claramente um galho se quebrando e o roçar de olhas mortas perturbando o ar. A mulher então apelou ao Espírito, batendo nos seus seios ao mesmo tempo. Entre ela e o homem rastejando furtivamente havia um toco de árvore do chá. O topo tinha sido arrancado por uma ventania e ele caíra morto no chão. Ela se lançou ao tronco, e se endireitando ela apertou os braços ao redor dele, suplicando ao Espírito, ao mesmo tempo, para protegê-la e guiá-la.

O toco de árvore ganhou vida. Ele pulsava. Tinha quase se separado de suas raízes, pois havia muito tempo desde que o seus ramos tinham sido arrancados dele.

O homem viu isso muito claramente. Para ele era só um toco de árvore do chá. Os grandes pedaços de casca eram bastante visíveis para ele.

Portanto, ele não viu nada de mais. Ele foi se aproximando até que ele pudesse ver o fogo ardente e suas narinas se enchessem do cheiro da refeição a cozinhar. Não havia nenhum sinal de sua esposa.

Bem, pensou ele, não importa neste momento. Ele iria comer sua refeição e, em seguida, ele iria espionar as trilhas e segui-la.

Ele passou a poucos metros do toco do árvore de chá, e assim ele estava tão distraído de sua guarda e estava prestes a começar a refeição, quando o toco saltou. Ele lançou um olhar para ele.  A surpresa o manteve paralisado. Lá, agarrado ao tronco, o que quer que fosse, estava sua esposa.

Ele teve um vislumbre das linhas brancas do tronco, e ele desistiu da ideia de o seguir.

Portanto, desde que o tempo é difícil dizer distinguir um canguru de um toco. Quando ele ainda está de pé no mato pode-se facilmente imaginar que é uma mulher aborígene, coberta nas costas com barro e algodão selvagens. As patas dianteiras escuras do canguru são seus braços. A  costa escura é o seu corpo. Sua cabeça escura é seu rosto. Mas sua frente desgrenhada e branca é toco da árvore.

A obsessão do canguru por bebês aborígenes  nasceu dessa mulher fugitiva que originou o seu ser. Alguns acreditam que ele os come, mas outros negam isso, mas esse mistério nunca será desvendado.

Mesmo sem acreditar, as mães aborígenes assustam seus filhos com essa estória, dizendo que o canguru o faz.
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NOTAS
(1) Yerranderrie é uma cidade fantasma localizada próximo do Kanangra-Boyd National Park de New South Wales, Australia em Wollondilly Shire.
Yerranderie era antes uma cidade mineira de aproximadamente duas mil pessoas, mas a indústria da mineração entrou em em 1927, e, desed 1959,  a cidade não teve mais acesso direto para a cidade de  Sydney pelas terras da represa de Warragamba e o lago Lake Burragorang. O posto do correio de Yerranderie abriu em 1 de novembro de 1899 e fechou em 1958.
Agora a cidade é dividida em duas partes, as adjacências residenciais próximas a uma pista de pouso e o sítio histórico um quilômetro mais a oeste. A área é cercada por relíquias e entradas de minas abandonadas. Acessada principalmente por uma estrada de terra de Oberon, New South Wales 70 km ao oeste, embora haja uma rota raramente utilizada através do Oakdale ao leste. Aviões voam ocasionalmente vindos do aeroporto de Camden . A cidade foi fundada nos arredores do Pico de Yerranderrie Peak, que são os restos de um dique vulcânica dique e a fonte da riqueza mineral da região. Yerranderrie provém de duas palavras aborígenes,  que significa encosta e topo.
 
(2) Tipo de lagarto monitor encontrado na Austrália. Das trinta espécie conhecidas, vinte e cinco são australianas.
 
(3) Tipo de árvore:
 
(4) Monte localizado no Blue Mountains National Park.
 
(5) É um tipo de eucalipto de zonas alagadas que é encontrado por toda a Austrália. A árvore é comumente chamada de  coolibah or coolabah.

Fonte:
http://www.sacred-texts.com/aus/peck/peck14.htm disponível em Casa de Cha

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Paulo Leminski (XLII)


Luiz Poeta (Poemas Escolhidos)

BOTÃO DE ROSA

Aos meus pés cai uma flor
Trazida pelo vento,
Dizendo talvez que o amor
É sutil ou violento.

Eu não a deixo ao relento;
É uma rosa... e quase fala !
Mas firo seus sentimentos
Se ela se despetala.

Pego-a delicadamente,
Mas me firo em seu espinho
Eu nem sei se ela sente
Esta forma de carinho.

Com minhas mãos perfumadas,
Seguro esta rosa-botão
Que mesmo depois de arrancada,
Se abre no meu coração.

A DOR DA TUA AUSÊNCIA

Se a tua ausência pode ser sentida
Como uma dor que apenas incomoda
E se em teu ser só fica uma ferida
No exato instante em que alguém te poda...

É interessante que tu compreendas
Que a outra ausência também é doída
E se tu queres que alguém te entenda,
Faz tua dor sutil ser percebida.

Não te maltrates – assim é a vida:
Fica o perfume onde morre a flor;
A dor da ausência é menos dolorida
Quando ela nasce da falta de amor.

E o teu amor é uma flor tão doce
Que não merece assim ser destruída...
Guarda em teu ser o amor que alguém te trouxe,
Porque ele faz parte da tua vida.

PALPITAÇÕES
 
Teu coração te palpita
Porque tem aprisionado
Um velho amor que te grita
De um tempo do teu passado.

Teu coração maltratado
Por teus sutis devaneios,
Grita sem ser escutado
Por quem não tem teus anseios.

E essa aflição repentina...
Que importa de onde ela veio ?
O importante, menina,
É que ela pulsa em teu seio.

AMANTE É QUEM AMA

Somos amantes sem sê-lo,
Mesmo epidermicamente,
Somos mesmo sem sabê-lo,
Somos amantes na mente.

Se um corpo alheio, ao vê-lo,
Sentimos um calor fremente
E, num átimo, por tê-lo,
Ansiamos de repente…

Mesmo estando tão presente
A pessoa que nos ama,
Mesmo estando até na cama
Em carícias envolventes…

Traímos o que nos sente,
Sem todavia traí-lo,
Sentimos o amante ausente,
Sem entretanto senti-lo.

E não depende da gente
Lembrar alguém no momento
Do amor mais forte e envolvente,
Repleto de sentimento.

Traímos no pensamento,
Sem toques e sem contatos,
Portanto, se não há ato,
Não traímos, tão-somente.

Se em pensamentos traímos…
Traímos! …mas quem reclama ?
Porque, quando nos unimos,
Amante é aquele que ama.

AO MAIS ANTIGO CIDADÃO DE SÃO FIDÉLIS

Sem que o relevo desta terra te proíba,
Com sedutora imponência…e mansidão…
Tu atravessas nossa história, Paraíba,
Abençoando muito mais que um coração.

Tua corrente é poesia em movimento
E por cruzares nossa Cidade Poema,
Quem te navega com o olhar, vê num momento,
Que és o verso…São Fidélis é o tema.

Numa das ruas que te abraçam, da matriz
Duzentos anos te miram…o campanário
Geme estridências solidárias e te diz
Que o teu matiz é sempre um novo itinerário.

Se retornasses há alguns tempos passados,
As tuas margens…de tão líricos caminhos,
Enlaçariam teus Puris e Coroados
E reveriam teus sublimes capuchinhos.

Quando anoitece, a cidade se emoldura…
E na ternura dos olhares solidários,
A luz da Lua se mistura…com brandura,
À escultura dos seus prédios centenários.

Das luminárias do presente fidelense…
Às lamparinas dos casebres ribeirinhos,
A poesia se dilui…sublimemente
Na agitação dos teus eternos torvelinhos.

E quando o sol, pela manhã, te ilumina,
Cada retina comovida que te chora
Reflete em tua solidão mais…mais cristalina…
A repentina emoção de quem te adora.

Os flamboiants fazem a corte quando passas,
Porque eles sabem que sempre reverencias
Cada poeta que passeia pelas praças
De São Fidélis, respirando fantasia.

Na solidão das tuas águas mais douradas,
Quando teu ímpeto…perene…nos completa,
Teu coração, em pulsações cadenciadas
Fala de amor com a ternura de um poeta.

Nós te louvamos, porque és o nosso irmão,
E quem visita nossa lírica cidade,
Sempre te vê, atravessando um coração
E desaguando em nossa sensibilidade.

PINTURA ALEATÓRIA

Tu te mascaras, mas as caras que tu fazes
São tantas caras... por que usas tantas tintas ?
Tuas pinturas inseguras são fugazes
Teu rosto é lindo... afinal... por que te pintas ?

Os que te amam de verdade não projetam
O que não és... querem te ver sem maquiagem
Ao natural... feliz... com os sonhos que completam
O interior do teu amor... por que outra imagem ?

Que importa a cor de um falso amor, se o rosto é triste ?
Se tu chorares, teu pranto vai dissolver
Essa pintura aleatória à dor que existe
E que insiste em habitar todo o teu ser.

Tira essa tinta... onde está o teu sorriso ?
Quando tu ris, teu coração, como uma flor
Se abre em pétalas sutis... rir é preciso
Porque o sorriso pinta a cor do teu amor.

Queres pintar o teu amor sem te mentir ?
Apenas ri da tua dor aleatória
Ao teu amor, assim vais multicolorir
O que existir de desamor na tua história.

Se a chuva é triste, o arco-íris se revela
Quando uma luz timidamente se projeta
Por entre as nuvens... como a cor dessa aquarela
Do teu amor na luz do olhar... que te completa.

PASSE...ARTE

Tu me passeias por dentro, irmã do meu coração,
Percorres a solidão do meu silêncio mais fundo...
São ermos reflexivos... são lagos onde a paixão
Repousa na abstração de um sonho fora do mundo...

Eu te passeio, menina... e entendo cada caminho
Que enfeitas devagarzinho com teu olhar delicado...
E a cada rumo que traças, colores com teu carinho
A borda de cada ninho de um passarinho encantado.

Poetas voam tão alto, diluem-se em devaneios,
São anjos...criam enleios tão nebulosos... sutis...
Que, quando sonham, sublimam a essência dos seus anseios
Alheios, dão seus passeios nos sonhos mais infantis...

Somos assim, minha amiga... iguais na necessidade
De amar nebulosidades e infinitos sem fim,
Por isso é que eu te passeio, percorro tuas cidades
E tuas ansiedades se perdem... dentro de mim.

ÂNSIAS SONOLENTAS

O homem mente quando diz que se extasia
Com a fantasia de amar o que ele inventa;
A euforia taciturna só aumenta
A sua ânsia de viver sem hipocrisia.

Por outro lado, é nas ilhas nevoentas
Que as formas dançam sedutoras, seminuas
E cada sombra toma a direção das ruas
Que o sonho cria em suas ânsias sonolentas.

É da emoção que o coração se alimenta;
O sonho tenta misturar a realidade,
Com seu prazer de amar e ter felicidade,
Quando a ilusão de ser feliz não o contenta.

O homem crê no que ele vê, porém duvida
Da sua vida, quando sua solidão
Cria a razão de uma dor que intimida
A própria vida do seu próprio coração.

Mas é no pranto que deságua no poeta
Que se completa este ciclo sedutor
Que se alimenta da essência inquieta
Quando o poeta inquieta o próprio amor.