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sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Manuel de Arriaga (Poemas Avulsos)

A CRUZ E O PARA-RAIOS

      Da velha catedral, esbelta e rendilhada,
      Votada a ser mansão do Deus, autor do mundo,
      Na flecha a mais gentil, campeia abençoada
      A cruz do Redentor, da Galileia o oriundo!

      Nos ímpetos da fé, cortantes como a espada,
      O ungido do Senhor, d'olhar cavo e iracundo,
      Aponta á multidão, humilde e ajoelhada,
      Por seu supremo amparo a cruz, no azul profundo!

      Em nome dela exalta a fé porque a aviventa,
      E diz mal da razão que tenta, em vãos ensaios,
      Dos céus arrebatar a luz, de que é sedenta!

      Mas do alto onde ela está, que causa até desmaios,
      Temendo que a derrube o fogo da tormenta:
      Em nome da Razão lhe põe um para-raios!...
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ALVORADA


      Algures brilha o sol no azul do firmamento,
      E expõe com resplendor das coisas o espetáculo!
      Aqui, na escuridão, o mundo é tabernáculo
      Onde os frágeis mortais descansam um momento!...

      Além, o Sol incita o mundo ao movimento,
      Á luta pela Vida, o esteio e o sustentáculo
      Desde o ser da Razão ao mínimo animáculo,
      Aqui, o sono esparsa em todos novo alento!

      Ó Luz! tu és do mundo a Força, a Alma, a Vida,
      A essência do meu Ser, a minha própria Ideia,
      O próprio Deus, talvez!... Beleza, Amor, Verdade!

      Atrás de Ti caminha a Terra, mãe querida!
      Bendito caminhar! Por Ti minha alma anseia!...
      Bem vinda sejas, pois, oh doce claridade!
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AMOR E PROVIDÊNCIA


      Enquanto eu, alta noite, velo e lido,
      Por vós mantendo inúmeros cuidados,
      Dormis, caros filhinhos, sossegados
      Em torno a mim o sonho apetecido!

      Dormis?! sonhais de certo... e eu pai envido
      Meus esforços por ver realizados
      Vossos sonhos gentis e perfumados:
      Ampara-vos um peito estremecido.

      Outro Alguém faz por nós o que eu vos faço:
      Com suprema bondade e sapiência,
      Rege os mundos que rolam pelo espaço!

      Esse Alguém é o Amor por excelência,
      O formidável e invisível braço,
      E o olhar que nunca dorme – a Providência!
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MUNDO INTERIOR

      Matéria ou Força, Lei ou Divindade
      Quem quer que seja que dirige o mundo,
      Esparsa em tudo o espírito fecundo
      Do Sumo Bem – Beleza, Amor, Verdade.

      À luz desta Santíssima Trindade,
      Cercado d'esplendor, clamo e jucundo,
      Sorri-me em volta o universo; ao fundo,
      Por síntese Suprema, a Humanidade!

      Dos homens rujam temporais medonhos...
      Que em mim, no meu labor, do Bem sedento,
      Meus dias correm límpidos, risonhos!

      Estrelas que brilhais no firmamento!
      É menos bela a vossa luz que os sonhos
      Que gera na minha alma o Pensamento!
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O QUE EU VI


Saí um dia a contemplar o mundo,
Por ver quanto há de belo e quanto brilha
Na múltipla e gloriosa maravilha,
Que anda suspensa em o azul profundo!

Vi montes, vales, árvores e flores,
Límpidas aguas, múrmuras torrentes,
Do grande mar as músicas plangentes,
Dos céus sem fim os trêmulos fulgores!

Trouxe os olhos tão ricos de beleza,
O coração tão cheio de harmonia,
De quanto havia em terra, mar e céus,

Que interpretando a sós a Natureza:
Dentro de mim esplêndido fulgia,
Num circulo de luz, teu nome, oh Deus!

Fonte:
Manoel D'Arriaga. Cantos Sagrados. Lisboa/Portugal: Manoel Gomes, 1899.

Manuel de Arriaga (1840 – 1917)

Manuel José de Arriaga Brum da Silveira e Peyrelongue nasceu em Horta, Açores, Portugal, 8 de julho de 1840 e faleceu em Lisboa, 5 de março de 1917.

Manuel de Arriaga nasceu na casa do Arco, na freguesia da Matriz, cidade da Horta, ilha do Faial, filho de Sebastião José de Arriaga Brum da Silveira e da sua esposa Maria Cristina Pardal Ramos Caldeira. Pertencente à melhor sociedade faialense, o pai era um dos mais ricos comerciantes da cidade, último administrador do morgadio familiar e grande proprietário. Foi neto do general Sebastião José de Arriaga Brum da Silveira, que se distinguira na Guerra Peninsular, e sobrinho-neto do desembargador Manuel José de Arriaga Brum da Silveira, que em 1821 e 1822 fora deputado pelos Açores às Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa.

Depois de concluídos os estudos preparatórios na cidade da Horta, em 1860 matriculou-se no curso de direito da Universidade de Coimbra. Em Coimbra cedo se revelou um aluno brilhante e um orador notável. Aderiu ao positivismo filosófico e ao republicanismo democrático, passando a ser frequentador assíduo das tertúlias filosóficas e políticas, onde se destacava pela sua verve e capacidade argumentativa.

Esta adesão ao ideário republicano, então considerado subversivo, levou a que o pai, monárquico conservador com laivos miguelistas, cortasse relações com o filho, proibindo-lhe o regresso a casa. Nessas circunstâncias foi obrigado a trabalhar para sustentar os seus estudos, e os do irmão, igualmente proscrito pelo pai por adesão a ideologias subversivas. Lecionava inglês como professor particular, aproveitando os bons conhecimentos daquela língua que adquirira na Horta com a preceptora americana contratada pela sua família.

Formou-se no ano de 1865 e no ano seguinte abriu um escritório de advocacia em Lisboa, cidade onde se fixou. Não tendo conseguido ingressar na docência, rapidamente se notabilizou como advogado, ganhando uma carteira de clientes que lhe permitia segurança financeira e os meios para ajudar o irmão a terminar os seus estudos.

Também se revelou, desde os seus tempos de Coimbra, cultor da poesia e da literatura, tendo mantido até ao fim da sua vida uma atividade literária e interesses culturais que o integram claramente na Geração de 70.

Já advogado de renome em Lisboa, em 18 de maio de 1871 foi um dos doze signatários do programa das conferências democráticas do casino Lisbonense. Tornou-se membro destacado da geração doutrinária do republicanismo português, afirmando-se como um dos seus principais ideólogos. Afirmava-se partidário entusiasta da democracia, tendo sempre militado no republicanismo unitário e democrático, rejeitando o anticlericalismo e o jacobinismo que marcavam a corrente dominante do republicanismo português daquela época.

Casou em Valença com Lucrécia Augusta Brito de Berredo Furtado de Melo, filha do general Roque Francisco Furtado de Melo, natural da ilha do Pico, que fora comandante da sub-divisão militar da Horta e governador do Castelo de São João Baptista do Monte Brasil em Angra do Heroísmo. Deste casamento nasceram quatro filhas e dois filhos.

Em 26 de agosto de 1876 foi nomeado para a Comissão para a Reforma da Instrução Secundária, sendo este o primeiro cargo público que exerceu.

Em 1878 concorreu para o lugar de professor de História Universal e Pátria do Curso Superior de Letras, mas voltou a ser preterido, apesar do brilhantismo da dissertação que apresentou a concurso. Apesar de ser considerado um gentleman e de vestir à melhor moda da aristocracia do tempo, a sua fama de revolucionário não deixou certamente de influir sobre o júri. Acabaria por conseguir um lugar de professor de inglês do Liceu de Lisboa, cargo que manteria por largos anos.

Nesse mesmo ano de 1878, concorreu pela primeira vez a um lugar de deputado nas Cortes, integrando a lista republicana candidata a um dos círculo eleitorais da cidade de Lisboa (o círculo n.º 96). Apesar da forte campanha que conduziu, foi largamente derrotado, obtendo apenas 456 votos, contra os 1 086 sufrágios do vencedor.

Em 1881 faleceu o seu pai, herdando os bens familiares no Faial e no Pico, já que o seu irmão mais velho, Sebastião de Arriaga, falecera precocemente em 1875. Nesse mesmo ano empenhou-se novamente na campanha republicana para as eleições gerais de 21 de Agosto (24.ª legislatura), sendo novamente candidato por um dos círculos de Lisboa, no qual voltou a ser derrotado.

Em 26 de novembro de 1882, numas eleições suplementares, foi finalmente eleito deputado republicano pelo círculo da Madeira. Esta vitória eleitoral deveu-se a um conjunto de circunstâncias que beneficiaram a sua candidatura: apresentara-se a convite de uma comissão de comerciantes e industriais funchalenses, desiludidos com os partidos do rotativismo, beneficiando da ausência de um candidato do Partido Regenerador. Foi proclamado deputado a 8 de Janeiro de 1883, prestando juramento dois dias depois. Foi o segundo republicano a tomar assento no parlamento português, juntando-se no parlamento a José Elias Garcia, que ali tinha assento desde 1881.

Manuel de Arriaga iniciou o seu percurso parlamentar apresentando de imediato uma proposta que visava eliminar o juramento de fidelidade ao rei e à Carta Constitucional a que estavam obrigados os parlamentares, proposta que obviamente foi de imediato rejeitada. Apresentou durante o ano de 1883 diversas propostas legislativas, todas sem sucesso. Durante estes dois anos no Parlamento renunciou ao seu vencimento como professor liceal, recebendo apenas o subsídio parlamentar a que tinham direito os deputados. Terminado o mandato, não foi reeleito.

Na sua ação como deputado, e mesmo não conseguindo fazer parte de qualquer comissão parlamentar, distinguiu-se pela pertinência das suas intervenções e posições e pela fineza do seu trato. Demonstrando elevados dotes intelectuais e uma cultura superior, aliava a uma oratória brilhante uma grande combatividade política e um elevado rigor ético.

No Partido Republicano Português, o prestígio que conquistara nas Cortes e a sua capacidade intelectual guindaram-no para uma posição preponderante, que manteve entre 1883 e 1892. Revelando-se um orador distinto e tendo dado um forte contributo para a estruturação do partido, foi autor de algumas das suas normas estatutárias e doutrinárias. A partir de 31 de Dezembro de 1891 integrou, com Jacinto Nunes, Azevedo e Silva, Bernardino Pinheiro, Teófilo Braga e Francisco Homem Cristo, o diretório do partidário durante o período da sua estruturação.

Foi também vereador republicano da Câmara Municipal de Lisboa.

Nas eleições gerais de 20 de Outubro de 1889 voltou a candidatar-se a deputado, desta feita pelo círculo da sua cidade natal, a Horta. Apesar das ligações familiares, o meio conservador das ilhas não lhe era favorável, pelo que ficou em quarto lugar, num círculo que elegia três deputados.

No ano seguinte, depois de cinco anos fora do Parlamento, a reação popular ao ultimato britânico de 1890, que levara à dissolução do recém-eleito parlamento, veio abrir uma nova oportunidade para os republicanos. Manuel de Arriaga voltou à ribalta política nacional ao liderar a manifestação organizada a 11 de Fevereiro de 1890 em repúdio ao ultimato britânico e à cedência do governo português. Foi preso durante o evento e conduzido a bordo de um navio de guerra, onde ficou retido até ser libertado por uma anistia régia.

Aproveitado a indignação popular contra o rei e os partidos do rotativismo, nas eleições gerais realizadas a 30 de Março de 1890 (28.ª legislatura) concorreu novamente pelo círculo de Lisboa, sendo eleito folgadamente, em conjunto com outros dois republicanos (Elias Garcia e Latino Coelho). Foi proclamado deputado a 30 de Abril de 1890, prestando juramento, novamente sob protesto, a 3 de Maio. Nesta segunda passagem pelo Parlamento, com um grupo republicano substancialmente alargado, tendo passado dos dois de 1883 para seis, teve um papel bastante mais interventivo, recusando novamente a acumulação de vencimentos. Apesar de não fazer parte de qualquer comissão parlamentar, começou por reapresentar a sua proposta de eliminação da obrigatoriedade de juramento, proposta obviamente rejeitada, passando depois a utilizar as Cortes como uma plataforma privilegiada para a sua atividade político-partidária. Considerando-se eleito pelo voto popular, passou a defender acerrimamente a teoria da soberania popular, recusando qualquer solução política que não resultasse diretamente da vontade dos cidadãos. A defesa da liberdade de consciência, de expressão, de reunião e de associação esteve sempre entre os tópicos da sua acção parlamentar.

Outra temática constante da sua ação parlamentar foi a defesa dos interesses do povo, por ele entendido como todos os cidadão. Nessa defesa dava grande importância à dignificação das classes menos favorecidas, tendo sido notável o empenho que colocou em 1883 na defesa dos camponeses e operários da Madeira, o círculo que o elegera, então a braços com uma profunda crise frumentária que condenava muitos deles à fome.

Foi um dos principais autores do programa do PRP apresentado ao público no dia 11 de Fevereiro de 1891. A partir daí participou frequentemente nos comícios de propaganda republicana, onde a sua capacidade oratória e a sua retórica rica e inflamada era muito apreciada pelas camadas populares. Aliás essa sua presença em comícios já vinha desde longe, já que em 1883 já participara num comício dissolvido pela força, razão que o levara depois a protestar veementemente nas Cortes.

Apesar da forte atividade e da pertinência das suas intervenções parlamentares, desencantou-se com a atividade parlamentar, declarando, no termo do mandato que não voltaria às Cortes enquanto novas leis ou melhores condições não investissem os representante do povo de melhores garantias. Desencantado com a política, dedicou-se gradualmente às suas obras literárias, com forte pendor filosófico, publicando, entre 1899 e 1907, dois livros de poesia e um de prosa.


Após a implantação da República Portuguesa, a 17 de Outubro de 1910 foi nomeado reitor da Universidade de Coimbra. Pouco depois, a 17 de Novembro de 1910, foi nomeado Procurador-Geral da República.

A 28 de Abril de 1911 foi eleito novamente deputado constituinte pelo círculo da Madeira. Na Assembleia Nacional Constituinte revelou-se um orador notável, tendo muitos dos seus discursos dado um impulso não negligenciável à causa republicana. Não partilhava, porém, o anticlericalismo próprio dos primeiros republicanos portugueses.

Perante um Partido Republicano Português dividido em facções crescentemente radicalizadas, a 24 de Agosto de 1911 foi eleito Presidente da República Portuguesa, por proposta de António José de Almeida. Sem o apoio da facção dos democráticos de Afonso Costa, tendo como apoiantes toda a ala moderada do republicanismo português. Com 71 anos de idade, foi o primeiro Chefe do Estado eleito do novo regime.

O seu mandato foi atribulado devido a incursões monárquicas movidas por Paiva Couceiro e à crescente instabilidade política resultante da desagregação do PRP. Nesse ambiente, tentou, sem êxito, reunificar o partido que, entretanto, se desmembrava em diferentes facções.

Adversário da hegemonia afonsista da ala radical do PRP, após o Movimento das Espadas, em Janeiro de 1915 Manuel de Arriaga convidou o general Pimenta de Castro a formar governo, dando origem à instauração de uma ditadura, com dissolução inconstitucional do Congresso da República. A decisão deu origem ao descontentamento generalizado dos republicanos, com os parlamentares, reunidos secretamente a 4 de Maio, no Palácio da Mitra, a declararem Manuel de Arriaga e Pimenta de Castro fora da lei e os seus atos nulos. Esta declaração levou a uma revolta, a Revolta de 14 de Maio de 1915.

Desencadeada pelos republicanos democráticos, derrubou o governo do general Pimenta de Castro. Perante a formação de uma junta militar que reclamava a reposição da ordem_presidente constitucional, o bondoso e pacifista Manuel de Arriaga deixou o cargo a 26 de Maio, abandonando em definitivo a vida política, acusado de trair os ideais republicanos democráticos que defendera toda a sua vida. Foi então substituído na Presidência da República por outro açoriano, o professor Teófilo Braga.

Embora amargurado e sentindo-se incompreendido e injustiçado pelos vitupérios de que era vítima por parte dos seus próprios correlegionários republicanos, publicou, em 1916, um livro intitulado Na Primeira Presidência da República Portuguesa, um verdadeiro testamento da sua ação política.

Morreu em Lisboa a 5 de Março de 1917, dois anos depois de ter abandonado a Presidência da República. Foi sepultado em jazigo de família no Cemitério dos Prazeres.

Manuel de Arriaga é patrono da Escola Secundária Manuel de Arriaga, na cidade da Horta, e é recordado em centenas de nomes de ruas e praças. A 19 de Novembro de 2011 foi inaugurada a Casa/Museu Manuel de Arriaga na cidade da Horta, Faial, onde se poderá encontrar a sua história de vida como político, alguns artigos pessoais bem como os seus ideais e valores republicanos.

Conhece-se colaboração da sua autoria nas revistas A Arte Musical (1898-1915) e Brasil-Portugal (1899-1914).

Fonte:
Wikipedia

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Correia Garção (1724 – 1772)

Pedro António Correia Garção, nasceu em Lisboa/Portugal em 13 de junho de 1724 e faleceu em 10 de novembro de 1772.

Estudou Literatura Clássica no Colégio dos Jesuítas, em Lisboa, e frequentou o curso de Direito na Universidade de Coimbra, não terminando-o. Em 1756, juntamente com Cruz e Silva, Teotónio Gomes de Carvalho e Manuel Nicolau Esteves Negrão, fundou a Arcádia Lusitana, utilizando como pseudônimo arcádico Coridon Erimanteu.

Foi escrivão na Casa da Índia e dirigiu a Gazeta de Lisboa de 1760 a 1762. Casado e apreciador da convivência social, manteve relações com estrangeiros, facilitadas pelo domínio do inglês, do francês e do italiano, e também com alguns portugueses das classes mais privilegiadas.

Devido a problemas financeiros, passou a viver na Quinta da Fonte Santa e em 1771 foi detido no Limoeiro, por razões não esclarecidas, onde veio a falecer.

Tentou a criação de um teatro nacional com a redação de alguns textos dramáticos (na comédia Assembleia insere-se a célebre Cantata de Dido) e também dedicou alguma atenção ao gênero epistolar e à poesia de circunstância. Esforçou-se sobretudo no sentido de cultivar os gêneros greco-latinos.

Admirador de Horácio, fundiu o horacianismo com a poesia do cotidiano e atingiu assim o melhor da sua obra. Para além do poeta latino, também seguiu os quinhentistas portugueses Sá de Miranda, António Ferreira, Camões e Diogo Bernardes.

Fonte:
Infopédia

domingo, 31 de maio de 2020

Luís Vaz de Camões (Sonetos) 3


Soneto 043

Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
d'um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso;

e jura que em que veja bonançoso
o violento mar, e sossegado
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

Assi, Senhora eu, que da tormenta,
de vossa vista fujo, por salvar me,
jurando de não mais em outra ver me;

minh'alma que de vós nunca se ausenta,
dá me por preço ver vos, faz tornar me
donde fugi tão perto de perder me.
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Soneto 071


Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
—Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.

—E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
—Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.

—Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?—Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
—Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.
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Soneto 086

Cara minha inimiga, em cuja mão
pôs meus contentamentos a ventura,
faltou te a ti na terra sepultura,
porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão
a tua peregrina formosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura,
sempre viva em minh'alma te acharão.

E se meus rudes versos podem tanto
que possam prometer te longa história
daquele amor tão puro e verdadeiro,

celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memória,
será minha escritura teu letreiro.
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Soneto 093

Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sã vontade,
ora de u’a amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.

Se depois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparência,
por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,
e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência.
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Soneto 097


Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
depois vim a chorar porque cantara
e agora choro já porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,
custa-me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas que passara
tenho pela ‘mor mágoa que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n'alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?
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Soneto 104


Correm turvas as águas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturvaram;
os campos florecidos se secaram,
intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,
u’as coisas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que não há nela mais que o que parece.
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Soneto 159


Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana formosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplendor na terra dura,
com tal rosto e cabelos tão formosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre coisa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era dino dela,
por isso mais na terra não esteve;
ao Céu subiu, que já se lhe devia.

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Sonetos. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Luís Vaz de Camões (Sonetos) 2


SONETO 038

Árvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruto debuxando;

que, pois me emprestas doce e idôneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória
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SONETO 091


Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certíssimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!
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SONETO 096


Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
mas tu, porque com isso mais te apuras,
de manhoso mo negas, e mo juras
no teu dourado arco; e eu to creio.

A mão tenho metida no teu seio,
e não vejo meus danos às escuras;
e tu contudo tanto me asseguras,
que me digo que minto, e que me enleio.

Não somente consinto neste engano,
mas inda to agradeço, e a mim me nego
tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh! poderoso mal a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano,
me possa inda cegar um Moço cego!
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SONETO 103


Cantando estava um dia bem seguro quando,
passando, Sílvio me dizia
(Sílvio, pastor antigo, que sabia
pelo canto das aves o futuro):

—Méris, quando quiser o fado escuro,
oprimir-te virão em um só dia
dois lobos; logo a voz e a melodia
te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi: porque um me degolou
quanto gado vacum pastava e tinha,
de que grandes soldadas esperava;

E outro por meu dano me matou
a cordeira gentil que eu tanto amava,
perpétua saudade da alma minha!
****************************************

SONETO 116


Aqueles claros olhos que chorando
ficavam quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou s'estarão aquele alegre dia
que torne a vê-los, n'alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos,
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!
****************************************

SONETO 120


Cá nesta Babilônia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá onde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina, e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!

Fonte:
Luís Vaz de Camões. Sonetos. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro.

terça-feira, 10 de março de 2020

Fernando Pessoa (Poemas de Amor) 1


O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala; parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
(1928)
****************************************

A tua voz fala amorosa.
Tão meiga fala que me esquece
Que é falsa a sua branda prosa.
Meu coração desentristece.

Sim, como a música sugere
O que na música não 'stá?
Meu coração nada mais quer
Que a melodia que em ti há...

Amar-me? Quem o crera? Fala
Na mesma voz que nada diz
Se és uma música que embala.
Eu ouço, ignoro, e sou feliz.

Nem há felicidade falsa,
Enquanto dura é verdadeira.
Que importa o que a verdade exalça
Se sou feliz desta maneira?
(22.1.1929)
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Deixa-me ouvir o que não ouço...
Não é a brisa ou o arvoredo;
É outra coisa intercalada...
É qualquer coisa que não posso
Ouvir senão em segredo,
E que talvez não seja nada...

Deixa-me ouvir... Não fales alto!
Um momento!... Depois o amor,
Se quiseres... Agora cala!
Tênue longínquo sobressalto
Que substitui a dor,
Que inquieta e embala...

O quê? Só a brisa entre a folhagem?
Talvez… Só um canto pressentido?
Não sei, mas custa amar depois...
Sim, toma a mim, e a paisagem
E a verdadeira brisa, ruído...
Vejo-te, somos dois...

Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares? sorri.

Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele está feito
É que o tens para mo dar.

Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Quando estás a olhar-me assim?
(12.08.1930)
****************************************

INCIDENTE

Dói-me no coração
Uma dor que me envergonha...
Quê! Esta alma que sonha
O âmbito todo do mundo
Sofre de amor e tortura
Por tão pequena cousa...
Uma mulher curiosa
E o meu tédio profundo?
(1931)

Fonte:
Fernando Pessoa. Poemas de amor. RJ: Agir Editora, 2009.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Manuel Du Bocage (Sonetos) IV


Os suaves eflúvios, que respira
A flor de Vênus, a melhor das flores,
Exalas de teus lábios tentadores,
Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira;

A que nasceu das ondas, se te vira,
A seu pesar cantara os teus louvores;
Ditoso quem por ti morre de amores!
Ditoso quem por ti , meu bem, suspira!

E mil vezes ditoso o que merece
Um teu furtivo olhar, um teu sorriso,
Por quem da mãe formosa Amor se esquece!

O sacrílego ateu, sem lei, sem siso,
Contemple-te uma vez, que então conhece
Que é força haver um Deus, e um paraíso.
* * * * * * * * * * * * * *

Meu frágil coração, para que adoras
Para que adoras, se não tens ventura?
Se uns olhos, de quem ardes na luz pura,
Folgando estão das lágrimas que choras?

Os dias vês fugir, voar as horas
Sem achar neles visos de ternura;
E inda a louca esp'rança te figura
O prêmio dos martírios, que devoras!

Desfaz as trevas de um funesto engano,
Que não hás de vencer a inimizade
De um gênio contra ti sempre tirano:

A justa, a sacrossanta divindade
Não força, não violenta o peito humano,
E queres constranger-lhe a liberdade?
* * * * * * * * * * * * * *

Os garços olhos, em que o Amor brincava,
Os rubros lábios, em que o Amor se ria,
As longas tranças, de que o Amor pendia,
As lindas faces, onde Amor brilhava:

As melindrosas mãos, que Amor beijava,
Os níveos braços, onde Amor dormia,
Foram dados, Armândia, à terra fria,
Pelo fatal poder que a tudo agrava;

Seguiu-te Amor ao tácito jazigo,
Entre as irmãs cobertas de amargura;
E eu que faço (ai de mim!) como não sigo!

Que há no mundo que ver, se a formosura,
Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo
Jazem no eterno horror da sepultura?
* * * * * * * * * * * * * *

Urselina gentil, benigna e pura,
Eis nas asas sutis de um ai cansado
A ti meu coração voa alagado
Em torrentes de sangue, e de ternura;

Põe-lhe os olhos, meu bem, vê com brandura
Seu miserável, doloroso estado,
Que nas garras da morte já cravado
A fé, que te jurava, inda te jura:

Põe-lhe os olhos, meu bem, suavemente,
Põe-lhe os mimosos dedos na ferida,
Palpa de Amor a vítima inocente:

E por milagre deles, oh querida,
Verás cerrar-se o golpe, e de repente
Em ondas de prazer tornar-lhe a vida .
* * * * * * * * * * * * * *

Em veneno letífero nadando
No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórridos negreja
De morais aflições espesso bando;

Por ti, Marília, ardendo, e delirando
Entre as garras aspérrimas da Inveja,
Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja
Pelos ares, co’s Zéfiros brincando;

Recreia-se o traidor com meus clamores -
E meu cioso pranto... oh Jove, oh Nume
Que vibras os coriscos vingadores!

Abafa as ondas do tartáreo lume,
Que para os que provocam teus furores
Tens inferno pior, tens o ciúme.
* * * * * * * * * * * * * *

Oh retrato da morte, oh Noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas,ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da obscuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
* * * * * * * * * * * * * *

Vinde, Prazeres, que por entre as flores,
Nos jardins de Citera andais brincando,
E vós, despidas, Graças, que dançando
Trinais alegres sons encantadores:

Deusa dos gostos, deusa dos amores,
Ah ! dos filhinhos teus ajunta o bando,
E vem nas asas de Favônio brando
Dar força, dar beleza a meus louvores.

Da linda Anarda minha voz aspira
A cantar o natal; tu, por clemência,
O teu fiel cantor, deidade, inspira;

Do trácio vate empresta-me a cadência,
E faze que mereça a minha lira
Os cândidos sorrisos da inocência.

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Sonetos e outros poemas.

sábado, 18 de janeiro de 2020

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) IV


AS PALAVRAS PERFUMADAS DA CONFIDÊNCIA
(Maria Goreti Andrade Carneiro Dias in “Textos de Amor", p. 40)

Palavras perfumadas de confidência
Dizias tu baixinho ao meu ouvido
E eu, delas tão sedento e atrevido
Ia perdendo, aos poucos, a inocência.

O amor ardia em nós com tal urgência
E como quase nada era proibido
Sem saber o caminho percorrido
Quase demos às portas da demência.

Dormem os nossos corpos saciados
Perdidos nos lençóis amarrotados
Envoltos numa paz que nos aquece.

Em redor tudo é calmo e é perfeito.
E eu sinto em mim que o mundo é o nosso leito
Como se nele nada mais houvesse.
* * * * * * * * * * * * * *

DE TUDO O QUE PARTIU SEM TER PARTIDO
(Maria Celeste Salgueiro Seabra in "Ânsia de infinito", p. 22)

De tudo o que partiu sem ter partido
Eu guardo nas gavetas da memória
Misturado nas lamas dessa escória
Um brilhante, de todos, o mais querido.

Tudo o que eu fiz morreu, sem alarido
Da vaidade a herança é ilusória
Farta, a riqueza é sempre transitória
E o futuro, de sonhos, é tecido.

Mas uma coisa eu guardo com desvelo:
Um louro caracol do meu cabelo
Que a minha mãe cortou em pequenino.

E mesmo sem ter caixa eu guardo ainda
De todas essas coisas a mais linda:
Os ecos dos meus risos de menino.
* * * * * * * * * * * * * *

NO DIA DA TUA MORTE CHOVEU
(Maria da Glória Oliveira Cardoso in "O Meu Vestido Cor de Rosa", p. 25)

No dia da tua morte choveu
Como se este céu fosse o confidente
Das coisas que não contavas à gente
E soubesse o que o teu peito sofreu.

Com o desgosto o céu se escureceu
E a chorar fez questão de estar presente
Nessa hora em que te fizeste ausente
E essa pura amizade se fendeu.

A chuva molhou todo esse caminho
Por onde te levaram, com carinho
À última morada que terás.

Limpam-se as longas lágrimas terrenas
Que ao fim de tantas lutas, tantas penas
Tu, finalmente, vais viver em paz.
* * * * * * * * * * * * * *

O VENTO ESTÁ DORMINDO NA CALÇADA
(Mário Quintana in "A rua dos Cataventos", p. 20)

O vento está dormindo na calçada
A tempestade o pôs fora de portas
Já ia alta a noite, a horas mortas
Quando ele entrou no lar de madrugada.

Andou a perseguir uma noitada
Que se agitava amena, em curvas tortas
Pelos campos lavrados, junto às hortas
E nela se enredou, noite fechada.

Não foi, de modo algum, um caso sério
Somente as aparências de adultério
Que agora paga, exposto ao pó da rua.

Em casa todos dormem sem cuidados
Só os raios do luar, sempre acordados
O cobrem com a luz que vem da lua.
* * * * * * * * * * * * * *

TENHO A ALMA VESTIDA DE SAUDADE
(Maria Paulina de Sousa in "Coração à Solta'', p. 45)

Tenho a alma vestida de saudade
Como a noite se cobre de negrume
A dor se desabafa num queixume
E a candura se enfeita de verdade.

Partindo, tu levaste a claridade
Desse dia sem paz e sem perfume
Na lareira apagou-se o brando lume
E de mim fizeste uma só metade.

Tenho o corpo dorido pela espera
Que tu voltes e faças Primavera
No chão que tanta chuva já bebeu.

Vem antes que eu me torne um malfeitor
A saudade me faça um pecador
E eu vá deixando, aos poucos, de ser eu.
* * * * * * * * * * * * * *

TUDO O QUE SOU É COMO SE NADA FOSSE
(Maria da Glória Oliveira Cardoso in "O Meu Vestido Cor de Rosa", p. 68)

Tudo o que sou é como se nada fosse
Neste eterno correr de tantos anos
E com ritos banais, de tão profanos
Cremos fazer da vida um limão doce.

Uma vontade louca é que nos trouxe
Fome de sermos mais do que uns humanos
Mas por serem mortais e tão mundanos
A glória desses sonhos acabou-se.

Mergulho na insondável vacuidade
Que me esvai como atroz enfermidade
E eu sofro-a, venenosa como cobra.

É tão pequeno e pobre o meu viver
Que no dia final, quando eu morrer
Tudo de mim se acaba e nada sobra.

Fonte:
Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Livro enviado pelo poeta.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Diogo Bernardes (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 12) 1


[1]

À borda d’um ribeiro, que corria
Por meio d’um florido, e verde prado,
O triste pastor Délio debruçado
Sobre um tronco de freixo assim dizia:

Ah, Marília cruel, quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Quem fez um coração desenganado
Amar coisa que tanto aborrecia?

Que foi daquela fé, que tu me deste?
Que foi daquel' amor que me mostraste?
Como se mudou tudo tão asinha?

Quando tua afeição n’outro puseste,
Como te não lembrou que me juraste
Que não serias nunca senão minha?

[2]

Ando, senhora minha, cá temendo
Se vós em mim cuidais, que cuidareis
Que vos não amo quanto mereceis,
Pois vivo tantos dias não vos vendo:

Ai triste, que da morte me defendo
Com esperar que cedo me vereis
Tal, que logo em mim conhecereis
Que, se vivo sem vós, vivo morrendo.

Faltando este remédio, d’outro modo
A triste vida não se valeria
Contra o mal que lhe ordena a saudade:

Mas quando verei eu, senhora, o dia
Que veja em vossos olhos meu bem todo,
E vós vejais nos meus esta verdade?

[3]

Da branca neve, e da vermelha rosa
O Céu de tal maneira derramou
No vosso rosto as cores, que deixou
A rosa da manhã mais vergonhosa.

Os cabelos (d’amor prisão formosa)
Não d’ouro, que ouro fino desprezou,
Mas dos raios do Sol vo-los dourou,
Do que Cíntia também anda invejosa.

Um resplendor ardente, mas suave,
Está nos vossos olhos derramando
Que o claro deixa escuro, o escuro aclara;

A doce fala, o riso doce, e grave
Entre rubis, e perlas lampejando
Não tem comparação por coisa rara.

[4]

Marília, que do Céu à terra dada
Foste, por glória sua, e nosso espanto,
Que verso louvará, que novo canto,
Formosura tão nova, e desusada?

Qual serena manhã alva, e rosada
Foi nunca tão formosa, ou qual Sol tanto
O mundo alumiou, Marília, quanto
Teus olhos, onde Amor tem sua morada?

Se estrelas, Lua, Sol sua beleza
Perdem diante ti, que desenganos
De perlas, de rubis, de neve, e rosas!

Enfim em ti juntou a natureza
Quanto reparte em mil, e em mil anos
Com mil, e mil, e todas mui formosas.

[5]

Nas águas du’a fonte um dia olhava
O seu rosto, Marília, doutras cheio,
Entregue a mil suspeitas d’um receio,
Que amor em seus amores lhe ordenava.

Mansas águas (dizia) mal cuidava
Em tão ledo começo, e ledo meio,
Que visse um fim tão triste, e tão alheio
Do bem, que do meu bom ver esperava.

De lágrimas fingidas me deixei
Vencer, triste de mim! não suspeitando
Que fossem deste amor injusto preço:

Agora, que me vou desenganando,
Bem vedes vós em mim, que me tornei
Tal, que vendo-me em vós, não me conheço.

[6]

Horas breves de meu contentamento
Nunca me pareceu, quando vos tinha,
Que vos visse tornadas, tão asinha,
Em tão compridos dias de tormento.

Aquelas torres, que fundei no vento,
O vento as levou já que as sustinha,
Do mal, que me ficou, a culpa é minha,
Que sobre coisas vãs fiz fundamento.

Amor com rosto ledo, e vista branda
Promete quanto dele se deseja,
Tudo possível faz, tudo segura:

Mas des (1) que dentro d’alma reina, e manda,
Como na minha fez, quer que se veja,
Quão fugitivo é, quão pouco dura.

[7]

Depois de tantos dias mal gastados,
Depois de tantas noites mal dormidas,
Depois de tantas lágrimas perdidas,
Tantos suspiros vãos, vãmente dados;

Como não sois vós já desenganados,
Desejos, que de coisas esquecidas
Quereis remediar minhas feridas,
Que amor fez sem remédio, ou os meus fados?

Se não tiveres já experiência
Das sem-razões d’amor, a quem servistes,
Fraqueza fora em vós a resistência:

Mas pois por vosso mal seus males vistes,
Os quais não curou tempo, nem ausência
Que bem dele esperais, desejos tristes?

[8]

Que doido pensamento é o que sigo,
Após que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mim, que não me entendo,
Nem o que calo sei, nem sei que digo.

Pelejo com quem trata paz comigo,
De quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pretendo?
Quem do meu próprio mal me fez amigo?

Porque, se nasci livre, me cativo?
E se o quero ser, por que não quero?
Como me engano mais com desenganos?

Se já desesperei, que mais espero?
E se inda espero mais, porque não vivo
Esperando algum bem em tantos danos?
______________________________
Glossário:
(1) Cíntia – equivalente romano a Diana, era filha de Zeus e Latona, e irmã gêmea do Apolo. Homero refere-se a ela como Ártemis Agrótera, Potnia Theron: "Ártemis das terras selvagens, Senhora dos Animais". Os acadianos acreditavam que Ártemis era filha de Deméter, deusa da agricultura. É deusa da lua, da caça, dos animais selvagens, da região selvagem, do parto e da virgindade e protetora das meninas Ela às vezes era conhecida como Cíntia (Cynthia), a partir de sua cidade natal no monte Cinto. (wikipedia)
(2) Des - o mesmo que desde.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Frei Agostinho da Cruz (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 11)


NA SERRA D’ARRÁBIDA

No meio desta serra, onde se cria
Aquela saudade d’alma pura,
Que no duro penedo acha brandura,
Ardente fogo dentro n’água fria:

Ouço do passarinho a melodia,
Vejo vestir o bosque de verdura,
Variar-se no céu outra pintura,
Que em vários sentimentos me varia.

Pasmando de quem mal se gasta a vida
De quem na terra quer subir ao céu
Pois caminhar em fim ninguém duvida.

Menos da vida estreita que escolheu,
Dos seus mais escolhidos mais seguida,
Christo Jesu, que numa Cruz morreu.

DA CONTEMPLAÇÃO A MESMA

Dos solitários bosques a verdura,
Nas duras penedias sustentada,
Nesta serra, do mar largo cercada,
Me move a contemplar mais formosura.

Que tem quem tem na terra mor ventura,
Nos mais altos estados arriscada,
Se não tem a vontade registrada
Nas mãos do Criador da criatura?

A folha que no bosque verde estava,
Em breve espaço cai, perdida a flor,
Que tantas esperanças sustentava.

Por isso considere o pecador,
Se quando na pintura se enlevava
Não se enlevava mais no seu pintor.

A NOSSA SENHORA DA ARRÁBIDA

Aqui, Senhora minha, onde soía
Cantar na minha leve mocidade
O muito que de Vossa saudade
Desejei de acender nesta alma fria;

Aqui torno outra vez, Virgem Maria,
Desenganado já, mais de verdade,
Pois me mostrou do mundo a falsidade,
Que a lágrimas comprei, quem me vendia.

Conselha-me tão claros desenganos
Que comece de novo nova vida
Nesta Serra deserta, alta e fragosa;

Mas são conselhos vãos, leves, humanos,
Que Vós nunca quisestes ser servida.
Se não por puro amor, Virgem formosa

À MORTE

Os correios da morte são chegados
Por caminhos antigos, impedidos
Mal com meus olhos, mal com meus ouvidos,
ML com meus pés, do chão mal levantados.

E mal, por não chorar bem meus pecados,
Que sendo sete, e cinco meus sentidos,
Por serem tantas vezes repetidos,
Impossível será serem contados.

Se não viera a morte acompanhada
De conta, que dar devo tão estreita,
Não fora tão penosa imaginada.

Mas a que vivo e morto tenho feita,
Tenho com meu Senhor na Cruz pregada,
Onde o ladrão contrito não se enjeita.

CHORA OS DESVARIOS DA SUA DESAPROVEITADA MOCIDADE

Ó montes altos, vales abatidos,
Verdes ribeiras de correntes rios,
Ora por baixo de bosques sombrios,
Ora por largos campos estendidos:

Onde mais claros vejo repetidos
Meus mal considerados desvarios
De pensamentos vãos, baixos e frios,
Emendados tão mal, quão mal sentidos.

Passei a mocidade sem proveito,
Antes contra meu Deus acrescentando
Culpas a quantas culpas tenho feito.

Cuja pena a velhice está purgando
Para passar da morte o passo estreito,
Se não se no seu sangue for nadando.

AO RECOLHER À NOITE PARA DORMIR
Onipotente Deus, que o sol criastes
Presidente da luz do claro dia,
E o governo da noite escura e fria
À inconstante lua encarregastes:

Por refúgio das gentes ordenastes
O repousado sono que alivia
O diurno trabalho e agonia,
A que nossa natureza obrigastes.

Pois deste se aproveita o inimigo,
Representando em sonhos e alusões,
Com que a vossa majestade ofendamos:

Livrai-nos do mal dele, e do perigo
De seus ardis e torpes invenções,
Por que dormindo ainda vos sirvamos.

AO LEVANTAR DA CAMA

Graças vos dou, Senhor, que da escura
Noite e perigos dela me livrastes,
Deste dia ver a luz deixaste
A mim humilde vossa criatura.

Fazei que esta alma seja nele pura
E limpa de pecado, pois a amastes,
E para me salvar do céu baixastes,
Tomando a carne nossa a figura

Com todo coração, e de vontade,
Com a palavra, obra e pensamento
Vos sirva, louve e ame neste dia.

Louvando vossa eterna majestade,
A meu obrar dareis merecimento,
Para gozar no céu vossa alegria.

Fonte Principal:

domingo, 8 de setembro de 2019

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa -1-


António Botto
Concavada/Abrantes, 1897 — 1959, Rio de Janeiro/RJ/Brasil

OUTRA


Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: – a luz do dia!
– Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
– Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água – música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
– Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

António Gedeão
Lisboa, 1906 – 1997

AURORA BOREAL


Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

Florbela Espanca
Vila Viçosa, 1894 — 1930, Matosinhos

SONETO VII

São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se pousaram.

São mortos os que nunca levantaram
De entre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,

Tombando, entre doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heroico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!

José Saramago
Azinhaga, 1922 – 2010, Tías/Lanzarote/Espanha

DECLARAÇÃO


Não, não há morte.
Nem esta pedra é morta,
Nem morto está o fruto que tombou:
Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,
Respiram na cadência do meu sangue,
Do bafo que os tocou.
Também um dia, quando esta mão secar,
Na memória doutra mão perdurará,
Como a boca guardará caladamente
O sabor das bocas que beijou.

Mário de Sá-Carneiro
Lisboa, 1890 — 1916, Paris/França

CRISE LAMENTÁVEL


Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe…
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a gente.
Não ter juízo nos meus livros – mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.

Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas –
À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.

Ter força num dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai:
– Não mandar telegramas ao meu Pai,
– Não andar por Paris, como ando, às moscas.

Levantar-me e sair – não precisar
De hora e meia antes de vir pra rua.
– Pôr termo a isto de viver na lua,
– Perder a “frousse” das correntes de ar.

Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento.

Que tudo em mim é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete:
E sempre o ouro em chumbo se derrete
Por meu azar ou minha zoina suada…

Nicolau Santos
(n. Luanda/Angola) Lisboa

HOJE É UM DIA…


Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais e esta noite
uma cratera para boêmios não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria é um dia a mais ou a menos na
alma como chumbo derretido na garganta um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras

Sebastião da Gama
Vila Nogueira de Azeitão, 1924 — 1952, Lisboa

QUANDO EU NASCI

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais…
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém…

Para que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe…

Fonte:
Estúdio Raposa

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Acácio de Paiva (Poemas Diversos)


O TOJO

Porque me fez cruel a natureza,
O tojo diz, é alma da floresta,
E não me concedeu, como a giesta
E mais irmão que tenho a macieza?

Não pode por carícia (que tristeza!)
Diminuir a dor que me molesta,
Pois que por condição, e bem funesta,
A quem me toque eu firo, com dureza.

Pés descalços, de carne preciosa,
Se atravessam os matos dos caminhos
Eu tenho de os rasgar, alma impiedosa,

E tanto desejaria que os espinhos
Se trocassem por pétalas de rosa
Quando os pisam crianças e velhinhos!

A LÍNGUA PORTUGUESA

Assim como onde tem maior pureza
A linfa, é na mãe de água, por ventura
Assim também na aldeia é que é mais pura
A minha amada língua Portuguesa.

Na sua elegantíssima rudeza
Como nos seus extremos de doçura
Todos os pensamentos emoldura
Numa espontânea e artística beleza

Ouço-a forte, nas feiras, discutindo;
Nos serões ouço-a meiga namorando…
E é sempre um trecho de poema lindo

Aqui soberbo, além risonho e brando,
Porque é de Portugal o mar bramindo
E é também o nosso rouxinol trinando

CIDADE FLOR

Nomeou-me Leiria embaixador
Para saudar-vos nesta hora clara
..... Do mais vivo esplendor
Que jamais, até hoje se alumiara

E cedi com vaidade: pela minha
Terra, minha saudade há tantos anos
E que é da Estremadura alta rainha
E por vós dois: excelsos soberanos

Crede: Leiria é digna de visita.
Não exibe a riqueza deslumbrante
Que cega e oprime que entontece e grita
E chega a amedrontar o viandante,

Mas é..., como direi...bem comparada...
Uma Cidade-Flor! É pequenina
Mas tão airosa, amável, perfumada
Como gentil grinalda de menina.

E quanto acolhedora: - uma cidade...
(Não sei onde encontrar comparação
Que possa dar ideia da verdade...)
Vamos... uma Cidade-Coração.

- “Estranha imagem” notareis; por certo,
Mas é condão de alguns ouvir e ler
Nítido em tudo, como em livro aberto,
......Aflição ou prazer...

Assim, desde o seixinho humilde e bruto
Aos mais aparatosos arvoredos,
O coração da minha terra escuto
E entendo em seus recônditos segredos.

Se quisésseis no meu sonho acompanhar-me
Artistas milagrosos da harmonia
Ouvireis em primeiro e junto alarme
O elegante castelo de Leiria...

Depois, o brando e donairoso Lis,
Seus marachões, seus salgueirais e noras,
Os miradouros onde D. Dinis
As estrofes singelas e sonoras

Oferecia à «flor de verde pino»...
Os arcos e os balcões do burgo antigo...
Os sinos...(Um irmão em cada sino,
Tão íntimo, tão nosso, tão amigo!...)

A capelinha de onde avisto as Cortes
De Xavier Cordeiro, senhoriais...
No vento inquieto, as Fontes,
Emanações sádicas dos pinhais...

Leiria toda, enfim, de canto a canto,
Joia de engaste lindo entre as mais lindas
Ouvireis, comigo, dizer: Quanto!
Oh! quanto nos honras! Sede bem-vindas!

O PERU DOS OLIVAIS

I

Adorada perua:
Há dias que, diante do patrão,
ando de rua em rua
não sei por que razão.
Como tu viste, o homem resolveu
fazermos em Lisboa a consoada,
para me divertir, suponho eu.
Porém, se adivinhasse esta estopada,
tinha-lhe dito logo que não vinha,
tanto mais, tanto mais, não vindo tu,
minha peruazinha,
por quem morre de amor o teu peru.
É para ver a terra? Não percebo,
pois mal ergo a cabeça para o ar
trabalha logo a cana do mancebo
e continuo a andar, a andar, a andar…
Às vezes lá paramos, mas estranho
também estas paragens,
porque me agarram certas personagens,
tomam-me o peso, notam-me o tamanho
e até (Deus me perdoe se ouço mal!)
discutem o valor,
como se eu fosse, amor,
uma coisa venal!

Adeus. Com isto não te enfado mais.
Havendo novidades
escrevo. Mil saudades
e beijos do
Peru dos Olivais

II

Meu anjo… Escrevo agora na cozinha
duma senhora muito delicada,
que me tem dado esplêndida papinha
assim como a criada.
Há pouco ainda (ora imagina, filha!)
deram-me até um copo de Bucelas
que me adoçou muitíssimo as goelas
e é uma verdadeira maravilha,
mas Deus queira, Deus queira
como só bebo água lá em casa,
que não me faça mal à mioleira
e que eu não fique com um grão na asa.
Amanhã te direi o que é passado.
Recebe mil bicadas cordiais
do teu apaixonado
Peru dos Olivais

III

Querida. Água a ferver… Uma panela
ao pé dum alguidar… tenho receio…
Fala-se em cabidela
e em peru de recheio…
Afia-se uma faca… Ó céus! Que horror!
O monco já me cai… Nunca supus…
Que é isto meu amor?
Ai Jesus! Ai Jesus!
Já tenho as pernas presas…
Tolda-se a vista… Engasgo-me… Agonizo…
Tremem-me as miudezas…
Turva-se-me o juízo…
Adeus: Recebe o último glu-glu
e os corais
do in… fe… liz
Pe… rú… dos O… li…vais

sábado, 22 de junho de 2019

Bulhão Pato (Livro D’ Ouro da Poesia Portuguesa vol. 10) 1


FELIZ DE AMOR!

Não sabes que ao ver-te triste,
E pensativa a meu lado,
O rosto na mão firmado.
E os olhos postos no chão,
Calado, ansioso, anelante,
Quero ler no teu semblante
A causa da dor constante
Que te oprime o coração?

Pois não basta o meu amor
Para te dar a ventura?
Responde: quando a luz pura
Do sol vem beijar a flor,
Não lhe acende mais a cor?
Não lhe dá mais formosura?

Agora, quando se inflama
Em teu peito aquela chama,
À qual tudo se ilumina
De viva, encantada luz,
Dize: é quando, minha vida,
Pálida, triste, abatida,
A tua fronte se inclina,
E melancólica sombra,
De mal contida amargura
Nos teus olhos se traduz?!

Certeza de que és amada
Com quanto poder na terra
Em peito de homem se encerra,
Tem-la em tua alma gravada!
Então de fundo desgosto
Por que vem nuvem pesada
Carregar teu belo rosto?
Pois se ao vívido calor
Do sol a rosa fulgura
E redobra aroma e cor,
Não te há de dar a ventura
A chama do meu amor?!

VAIS PARTIR!

Vais partir! cada instante que passa
Aproxima o adeus derradeiro,
Para mim neste mundo o primeiro,
Que teus olhos proferem aos meus!
Vais partir! nessas mórbidas pálpebras,
Treme agora uma lágrima ansiosa,
Já desliza na face formosa,
Já teus lábios me dizem adeus!

Vais partir! contemplar esses campos,
Que o sol vivo de abril ilumina,
Ver as relvas da alegre campina
Já cobertas agora de flor.
Escutar as estrofes sentidas
Que de tarde improvisam as aves,
Recordar os instantes suaves
De outros dias de encanto, e de amor.

Vais partir! vais tornar aos lugares
Testemunhas de um céu de delícias,
Que em suaves risonhas carícias,
Para nós neste mundo brilhou!
Cada flor, cada tronco viçoso,
Cada espaço de relva florida
Vai lembrar-te uma cena da vida,
Um momento feliz que passou!

Quando for aos clarões da alvorada
O perfume das plantas mais brando,
Quando as aves voarem em bando,
E cantarem ditosas no vale;
Quando as águas correrem mais vivas,
Pelo verde declive do monte,
Quando as rosas erguerem a fronte
Animadas de um sopro vital...

Que saudade! ai que funda saudade
Hás de ter desse tempo encantado,
Em que bela e feliz a meu lado
Viste as pompas da terra e dos céus!
Quando a aurora era a pura alegria,
Uma vaga saudade o sol posto,
Quando meigo sorria teu rosto
Se eu fitava meus olhos nos teus!
.............................................
Vais partir! cada instante que passa
Aproxima o adeus derradeiro,
Para mim neste mundo o primeiro
Que teus olhos proferem aos meus!
Vais partir! nessas mórbidas pálpebras,
Treme agora uma lágrima ansiosa,
Já desliza na face formosa,
Já teus lábios me dizem adeus!

IMPROVISO

Por que lânguida essa frente
Decai, quando a tarde expira?
Por que nesse olhar dormente
Tua alma ingênua suspira?

Por quê? ai! por quê? responde;
Que se amor do céu procura,
Ei-lo; em meu peito se esconde;
Vive, é teu, tens a ventura!

Verás como então brilhante,
Seduz, toma vida, inspira,
Esse teu belo semblante,
Que apenas hoje se admira!

QUEM NÃO AMA, NÃO VIVE

Pois não vês que se a luz do sol nascente
À rosa na manhã desabrochada,
Não ilumina as folhas, desbotada
Fica na haste pendente,
Sem perfume, sem vida abandonada?

Dize: então queres tu que a formosura
Que o Senhor estampou no teu semblante,
Sem renome, sem glória, passe obscura
No mundo em que radiante
Ostentar-se podia majestosa?
Queres vê-la abatida como a rosa
Que o sol não ilumina?

Pois o que falta a essa fronte bela?
Oh! vais sabê-lo: — O amor!
Que se anime e reviva à luz divina
E verás se depois alguém ao vê-la
Lhe nega o seu fulgor!

AMANHÃ!

Resta um dia, mais um dia,
Algumas horas ainda
De amor, de ternura infinda!
Amanhã nos olhos teus,
Uma lágrima sentida;
Em teus lábios, um adeus!

O instante da despedida
Tão perto está!... Minha vida,
Crava teus olhos nos meus,
Um sorriso, um beijo ainda,
Mais uma hora de ternura,
De amor, de alegria infinda
Antes desse longo adeus!

Adeus de tanta amargura!
Sabe Deus! oh! sabe Deus,
Quando outros dias virão,
Tão gratos ao coração!
Quando nessa face linda
Verei sorrir a ventura;
Mas agora um beijo ainda
Antes que chegue o momento
De soltar o extremo adeus!

Oh! tira do pensamento,
A hora da despedida;
Mais um instante de vida,
De delícia e glória infinda!...

Amanhã!... ai! não te lembres
De tal dia de amargura!
Crava teus olhos nos meus;
Inda uma hora de ventura,
De amor, de alegria infinda
Sorrindo nos olhos teus:
Um beijo, mais outro ainda,
O derradeiro: oh! adeus!

ANJO CAÍDO

Na flor da vida, formosa,
Ingênua, casta, inocente,
Eras tu no mundo, rosa!
Quem te arrojou de repente
Para o abismo fatal!
Viste um dia o sol de abril;
O teu seio virginal
Sorriu alegre e gentil.

Ergueu-se aos clarões suaves
Daquela doce alvorada
A tua face encantada.
Amaste o doce gorjeio
Que desprendiam as aves,
E no teu cândido seio
Quanto amor, quanta ilusão
Alegre pulava então!

Mal haja o fatal destino,
Maldita a sinistra mão,
Que em teu cálix purpurino
Derramou fera e brutal
Esse veneno fatal.

Hoje és bela; mas teu rosto
Que outrora alegre sorria,
É todo melancolia!
Hoje nem sol, nem estrela,
Para ti brilha no céu;
Mal haja quem te perdeu!

Fonte:
Bulhão Pato. Versos. Publicado originalmente em 1862. Livro Digital por Iba Mendes (Editor e revisor ortográfico). 2. Ed. São Paulo: Iba Mendes, 2018.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Poesia sem Fronteiras (Portugal)


AL BERTO 
Coimbra, 1948 – 1997, Lisboa

As mãos pressentem...

As mãos pressentem a leveza rubra do lume 
repetem gestos semelhantes a corolas de flores 
voos de pássaro ferido no marulho da alba 
ou ficam assim azuis 
queimadas pela secular idade desta luz 
encalhada como um barco nos confins do olhar 
ergues de novo as cansadas e sábias mãos 
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e 
o amargor úmido das noites e tanta ignorância 
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva 
quase nada 

ANTERO DE QUENTAL 
Ponta Delgada, 1842 – 1891

Aspiração

Meus dias vão correndo vagarosos,
Sem prazer e sem dor parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém, do pressentir dá-ma a certeza,
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

BOCAGE
Setúbal, 1765 – 1805, Lisboa

Em louvor do grande Camões

Sobre os contrários o terror e a morte
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rápido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:

Embora o bravo Macedônio corte
Coa fulminante espada o nó fadado,
Que eu de mais nobre estímulo tocado,
Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:

Invejo-te, Camões, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fúrias de Lieu raivoso:

Os ais de Inês, de Vénus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O céu de Amor, o inferno do Ciúme.

CAMILO PESSANHA
Coimbra, 1867 – 1926, Macau

Caminho II

Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
- Bom dia, companheiro - te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.

É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.

É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto

Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.

LUÍS DE CAMÕES
Coimbra, 1524 – 1580, Lisboa

Qual tem a borboleta por costume

Qual tem a borboleta por costume,
Que, enlevada na luz da acesa vela,
Dando vai voltas mil, até que nela
Se queima agora, agora se consume,

Tal eu correndo vou ao vivo lume
Desses olhos gentis, Aônia bela;
E abraso-me por mais que com cautela
Livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;

Porém, não quer Amor que lhe resista,
Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
Qual em glória maior, está contente.

CARLOS NOGUEIRA FINO
Évora, 1950

Pensar é uma palavra

pensar é uma palavra
primogênita
onde o ardor decanta das insígnias
os íntimos sinais
e o olhar é um silêncio enorme
e rumoroso
o delicado musgo
da memória
é a matéria-prima
do teu rosto

CESÁRIO VERDE
Lisboa, 1855 – 1886

Eu, que sou feio...

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero  estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura. 
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável, 
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez não o suspeites!- 
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num  pedestal.

EUGÉNIO DE ANDRADE
Fundão, 1923 – 2005, Porto

Urgentemente

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor, 
É urgente permanecer.