quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Paulo Leminski ("Pense depressa")


Lenda Russa (A Cobra D’Água)

Era uma vez uma senhora que tinha uma filha, uma dia a garota desceu à lagoa para tomar banho com outras meninas. Elas se despiram e caíram na água. Então uma cobra surgiu e se escondeu em suas roupas. Depois de um tempo, todas saíram, e começaram a se vestir, bem como a filha da anciã, mas quando ela quis botar as roupas descobriu a cobra deitada sobre elas. Ela tentou se livrar do animal, mas ele agarrou as roupas e não se moveu. Então, a serpente disse: “Se você casar comigo,  devolvo suas roupas.”

Ela não estava nem um pouco inclinada a se casar com ele, mas as outras meninas disseram, “Como se fosse possível você se casar com ele! Diga que vai!”

Então ela disse: “Muito bem, caso.” Então, a serpente largou as roupas e foi direto para a água. A menina vestiu-se e foi para casa. E logo que ela chegou lá, ela disse à sua mãe, “Mãe! Mãe! Aconteceu isso e isso, e então uma serpente pegou minhas roupas e disse: - Case comigo ou não vou deixar você mudar suas roupas! e eu disse: Caso!”

“Que besteira você está dizendo, sua bocó! Como se fosse possível você casar com uma cobra!” E assim tudo voltou ao normal e o assunto foi esquecido.

Uma semana se passou por, e um dia elas viram muitas cobras, como nunca tinham visto antes, uma enorme tropa se arrastando até a casa delas. “Ah, mãezinha! Salve-me! Salve-me!” chorava a menina e sua mãe bateu a porta e barrou a entrada o mais rapidamente possível. As cobras correram até a entrada, mas a porta foi fechada. Elas teriam corrido até a fresta, mas essa foi fechada também. Então, em um momento elas se enrolaram até formar uma bola, se arremessaram contra a janela, que foi feita em pedaços e formaram um só corpo que entrou na sala. A menina chegou junto ao fogão, mas eles a seguiram, se arrastaram para baixo dela, a puxaram para fora da casa, atravessando as portas. Sua mãe correu atrás dela, chorando como louca.

Elas levaram a menina até a lagoa e mergulharam direto na água com ela. E lá se transformaram em homens e mulheres. A mãe permaneceu durante algum tempo sobre o dique, lamentou-se um pouco, e depois foi para casa.

Três anos passaram. A moça vivia lá e tinha dois filhos, um filho e uma filha. Agora ela frequentemente pedia ao seu marido para que deixar ela ir ver a mãe. Então, finalmente, um dia em que ele levou ela até a superfície da água, e a deixou em terra. Mas ela perguntou-lhe antes de sair ele, “O que devo dizer quando quiser que você venha?”

“Diga, Osip, [Joseph] Osip, vem aqui! E eu virei" , ele respondeu.

Então ele mergulhou novamente debaixo de água, e ela foi ver a mãe, carregando a menina no seu braço e levando seu menino pela mão. Logo saiu a mãe para recebê-la. Ela ficou tão feliz por vê-la!

“Bom dia, mãe!” Disse a filha.

“Você está bem, vivendo lá embaixo?” Perguntou a mãe.

“Muito bem, mãe. Minha vida lá é melhor do era aqui.”

Eles sentaram e conversam um pouco. Sua mãe tinha o jantar pronto para ela, e ela jantou. “Qual é o nome do seu marido?” Perguntou a mãe.

“Osip”, ela respondeu.

“E como é que vocês vão voltar para casa?”

“Vou ir à represa, e aí chamo: - Osip, Osip, vem aqui! -  E ele vai vir.”

“Deite um pouco, filha, e descanse”, disse a mãe.

Assim, a filha deitou e dormiu. A mãe imediatamente pegou um machado e o amolou, descendo até a represa com ele. E quando ela chegou, começou a chamar: “Osip, Osip, vem aqui!”

Nem bem Osip mostrou sua cabeça a velha mulher pegou o machado e cortou ela fora. E água do lago ficou escura com o sangue.

A anciã foi para casa. E quando a velha chegou, sua filha acordou. “Ah! Mãe”, diz ela, “Estou ficando cansada de ficar aqui, quero voltar para minha casa.”

“Durma esta noite aqui, filha; talvez você não tenha outra chance de ficar comigo.”

Assim, a filha resolveu passar a noite ali. Pela manhã ela acordou e sua mãe aprontou um pequeno lanche para ela. Ela comeu e em seguida disse adeus para a mãe e foi embora, carregando sua menina em seu braço, enquanto o menino seguiu atrás dela. Ela chegou à represa e gritou: - “Osip, Osip, vem aqui!”

Ela chamou e pediu, mas ele não veio. Então ela olhou para a água e lá viu uma cabeça flutuando. Então ela adivinhou o que tinha acontecido.

"Ai! Minha mãe o matou! ” Ela chorava.

Lá na margem ela chorou e lamentou. E em seguida, para sua filhinha ela gritou “Voe como uma andorinha, agora e para sempre!”

E o seu menino chorava com ela, “Voe como uma cotovia, meu menino, agora e para sempre!”

“Mas eu”, disse ela, “voarei como um cuco, chorando “Cuckoo!” Agora e para sempre!

Fonte:
W. R. S. Ralston, Russian Folk-Tales (London, 1873) . Ralston’s source: A. A. Erlenvein. in https://casadecha.wordpress.com/tag/russia/

Voltaire (O Carregador Zarolho)

Os dois olhos que temos em nada melhoram a nossa condição, serve-nos um para ver os bens, e o outro para ver os males da vida. Muita gente possui o mau hábito de fechar o primeiro, e poucos fecham o segundo, eis por que há tantas pessoas que prefeririam ser cegos a ver, tudo o que veem. Felizes os zarolhos que só são privados desse olho mau que estraga tudo quanto a gente olha! Era o caso de Mesrour.

Seria preciso ser cego para não ver que Mesrour era zarolho. Era-o de nascença, mas era um zarolho tão satisfeito com a sua condição que jamais se lembrara de desejar outro olho. Não eram os dons da fortuna que o consolavam dos malefícios da natureza, pois não passava de um simples carregador e não tinha outro tesouro senão os seus ombros, mas era feliz, e mostrava que mais um olho e menos trabalho pouco contribuem para a felicidade. O dinheiro e o apetite lhe vinham sempre em proporção com o exercício que fazia, trabalhava de manhã, comia e bebia de tarde, dormia de noite, e considerava cada dia como uma vida à parte, de modo que a preocupação do futuro jamais lhe perturbava o gozo do presente. Era (como o vedes) ao mesmo tempo zarolho, carregador e filósofo.

Viu por acaso passar numa suntuosa carruagem uma grande princesa que tinha um olho mais do que ele, o que não o impediu de achá-la muito bela, e, como os zarolhos não diferem dos outros homens senão em que têm um olho de menos, apaixonou-se perdidamente pela princesa. Dirão talvez que, quando se é carregador e zarolho, o melhor é a gente não se apaixonar, principalmente por uma grande princesa e, o que é mais, uma princesa que tem dois olhos; no entanto, como não há amor sem esperança, e como o nosso carregador amava, ousou esperar.

Tendo mais pernas que olhos, e boas pernas, seguiu durante quatro léguas o carro da sua deusa, que seis grandes cavalos brancos puxavam velozmente. Era moda, naqueles tempos, entre as damas, viajar sem lacaios e sem cocheiro, conduzindo elas próprias o carro, queriam os maridos que elas andassem sempre sozinhas, para ficar mais seguros da sua virtude, o que é diametralmente oposto ao parecer dos moralistas, que dizem que não há virtude na solidão.

Mesrour continuava a correr junto às rodas do carro, voltando seu olho bom na direção da dama, espantada de ver um zarolho com tamanha agilidade. Enquanto ele provava assim o quanto se é infatigável quando se ama, um animal selvagem, perseguido por caçadores, atravessou a estrada, espantando os cavalos, que tomaram o freio nos dentes e já arrastavam a bela para um precipício. Seu novo apaixonado, ainda mais assustado do que ela, embora a princesa o estivesse bastante, cortou as correias com maravilhosa habilidade, somente os seis cavalos deram o salto mortal, e a dama, que não estava menos branca do que eles, apenas passou por um grande susto.

— Quem quer que sejas – disse-lhe ela – jamais esquecerei que te devo a vida; pede-me o que quiseres: tudo o que tenho está a teu dispor.

 — Ah! com muito mais razão – respondeu Mesrour – posso eu oferecer-vos outro tanto; mas, assim fazendo, sempre vos oferecerei menos, pois só tenho um olho, e vós tendes dois, mas um olho que vos contempla vale mais que dois olhos que não veem os vossos.

A dama sorriu, pois as galanterias de um zarolho são sempre galanterias, e as galanterias sempre fazem sorrir.

— Eu desejaria dar-te um outro olho – disse ela – mas só a tua mãe podia dar-te esse presente; mas continua a acompanhar-me.

Dizendo essas palavras, desce ela do carro e prossegue o caminho a pé, seu cãozinho também desceu e marchava ao lado da dona, ladrando para a estranha figura do seu escudeiro. Faço mal em lhe dar o título de escudeiro, porque, por mais que ele lhe oferecesse o braço, não quis a dama aceitá-lo, sob o pretexto de que o braço estava muito sujo, e ides ver agora como a princesa foi vítima de seu próprio asseio. Tinha ela uns pequeninos pés, e uns sapatinhos ainda menores, de maneira que não era feita para longas caminhadas, nem estava devidamente calçada para isso.

Lindos pezinhos consolam de ter pernas débeis, quando se passa a vida numa espreguiçadeira, em meio de uma porção de janotas, mas de que servem sapatos bordados e lantejoulados em um caminho pedregoso, onde só podem ser vistos por um carregador e, ainda por cima, por um carregador que só tem um olho?

Melinade (é este o nome da dama, que tive minhas razões para calar até agora, visto que ainda não fora inventado), Melinade avançava como podia, amaldiçoando o seu sapateiro, escorchando os pés, e dando um mau jeito a cada passo. Fazia hora e meia que ela marchava como as grandes damas, isto é, já fizera perto de um quarto de légua, quando tombou de fadiga.

Mesrour, cujos serviços ela recusara enquanto estava de pé, hesitava em lhos oferecer, por medo de a macular com o seu contato, pois bem sabia que não estava limpo (a dama claramente lho dera a entender), e a comparação que fizera em caminho entre a sua pessoa e a da sua amada ainda lho mostrava com maior clareza. Tinha ela um leve vestido cor de prata, semeado de guirlandas, que lhe ressaltava a beleza do talhe; e ele, um blusão pardacento, todo manchado, rasgado e remendado, e de tal maneira que os remendos ficavam ao lado dos buracos e não por baixo, onde estariam mais no seu lugar. Havia comparado as suas mãos musculosas e cobertas de calos com as duas pequenas mãos mais brancas e delicadas do que lírios. Vira enfim os lindos cabelos loiros de Melinade, que se entre mostravam através de um véu de gaze, penteados em tranças e cachos, e ele, para colocar ao lado disso, não tinha mais que umas eriçadas crinas negras, cujo único ornamento era um turbante roto.

No entanto Melinade tenta erguer-se, mas tomba em seguida, e tão desastradamente, que o que ela deixou ver a Mesrour tirou-lhe o pouco de razão que a vista de seu rosto pudera deixar-lhe. Esqueceu que era carregador, que era zarolho, e não mais pensou na distância que a fortuna pusera entre ambos, mal se lembrou que amava, pois faltou à delicadeza que dizem inseparável de um verdadeiro amor, e que às vezes lhe constitui o encanto, e muitas vezes o aborrecimento, serviu-se dos direitos à brutalidade que lhe dava a sua condição de carregador, foi brutal e feliz. A princesa, então, estava, sem dúvida desmaiada, ou lamentava a sua sorte, mas, como tinha um espírito justo, abençoava decerto o destino pelo fato de todo infortúnio trazer consigo o seu próprio consolo.

A noite estendera os véus no horizonte, e ocultava na sua sombra a verdadeira felicidade de Mesrour e a pretensa desgraça de Melinade. Mesrour desfrutava os prazeres dos perfeitos amantes, e desfrutava-os como carregador, quer dizer (para vergonha da humanidade) da maneira mais perfeita, os desmaios de Melinade voltavam-lhe a cada momento, e a cada momento o seu amante recuperava forças.

— Poderoso Maomé – disse ele uma vez, como homem arrebatado, mas como péssimo católico – só o que falta à minha felicidade é ser sentida por aquela que a causa, enquanto estou no teu paraíso, divino profeta, concede-me ainda um favor, o de ser para os olhos de Melinade o que ela seria para os meus olhos, se houvesse luz.

Acabou de rezar e continuou o prazer. A aurora, sempre demasiado diligente para os amantes, surpreendeu a ambos na atitude onde ela própria poderia ter sido surpreendida um momento antes, com Titono. Mas qual não foi o espanto de Melinade quando, abrindo os olhos aos primeiros raios do dia, viu-se num lugar encantado, com um homem de nobre estrutura, cujo rosto se assemelhava ao astro cuja volta a terra aguardava! Tinha faces de rosa, lábios de coral, seus grandes olhos, ao mesmo tempo ternos e vivos, exprimiam e inspiravam volúpia; sua aljava de ouro, ornado de pedrarias, pendia-lhe do ombro e só o prazer fazia ressoar as suas flechas; sua longa cabeleira, presa por um cordão de diamantes, flutuava-lhe livremente sobre os rins, e um tecido transparente, bordado de pérolas lhe servia de veste, sem nada ocultar da beleza do seu corpo.

— Onde estou, e quem és – exclamou Melinade no auge da surpresa.

— Estais – respondeu ele – com o miserável que teve a ventura de vos salvar a vida, e que tão bem cobrou o seu trabalho.

Melinade, tão satisfeita quanto espantada, lamentou que a metamorfose de Mesrour não tivesse começado mais cedo. Aproxima-se de um magnífico palácio que lhe atraíra o olhar e lê esta inscrição na porta: “Afastai-vos, profanos; estas portas só se abrirão para o senhor do anel.” Mesrour aproxima-se por sua vez para ler a mesma inscrição, mas viu outros caracteres e leu estas palavras: “Bate sem receio.” Bateu, e em seguida as portas se abriram por si mesmas com fragor. Os dois amantes entraram, ao som de mil vozes e de mil instrumentos, num vestíbulo de mármore de Paros; dali passaram para uma sala soberba, onde os esperava há mil duzentos e cinquenta anos um festim delicioso, sem que nenhum dos pratos houvesse esfriado: puseram-se à. mesa e foram servidos cada um por mil escravas da maior formosura; a refeição foi entremeada de concertos e danças; e, quando terminou, todos os gênios vieram, na maior ordem, em diferentes grupos, com vestuários tão suntuosos quão singulares, prestar juramento de fidelidade ao senhor do anel, e beijar o dedo sagrado que o carregava.

Ora, havia em Bagdad um muçulmano muito devoto que, não podendo ir lavar-se na mesquita, fazia a água da mesquita vir à sua casa, mediante uma pequena retribuição que pagava ao sacerdote. Acabava ele de fazer a quinta ablução, a fim de se preparar para a quinta prece. E a sua criada, rapariga insensata e muito pouco devota, desembaraçou-se da água santa lançando-a pela janela. A água caiu sobre um infeliz profundamente adormecido junto a um marco que lhe servia de apoio. Acordou-se com o choque. Era o pobre Mesrour que, voltando do seu passeio encantado, perdera na viagem o anel de Salomão. Deixara as soberbas vestes e retomara o seu blusão; sua bela aljava de ouro havia-se transformado num porta fardos de madeira e, para cúmulo da desgraça, tinha deixado um dos olhos no caminho. Lembrou-se então de que bebera na véspera grande quantidade de aguardente, que lhe adormecera os sentidos e aquecera a imaginação. E Mesrour, que até aquele instante amara essa bebida por gosto, começou a amá-la por gratidão, e voltou alegremente ao trabalho, resolvido a empregar o salário daquele dia na aquisição dos meios para tornar a ver a sua querida Melinade. Qualquer outro ficaria desolado de ser um mísero zarolho depois de ter tido dois lindos olhos; de sofrer as recusas das varredoras do palácio depois de haver gozado os favores de uma princesa mais bela do que as amantes do califa; e de estar a serviço de todos os burgueses de Bagdad depois de haver reinado sobre todos os gênios; mas Mesrour não possuía o olho que vê o lado mau das coisas.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Paulo Leminski ("O olho da rua vê")


Nilto Maciel (A Fala dos Cães)

O cervo conseguiu escapar à fúria de seus perseguidores e meteu-se na selva. Acteão talvez tivesse tido pena dele. Chamara de volta seus terríveis cães. Descansassem um pouco. Havia tempo de sobra. O dia mal começava.

O caçador avistara uns corpos nus à beira do rio. E tra­tou de impor silêncio. Nada de gritos, nem latidos, nem gemi­dos.

Agachado atrás de moitas, pôs-se a espiar as banhistas. Todas muito belas, cheias de curvas, dengosas. Sim, Diana e suas ninfas, em total nudez.

Os cães farejavam o chão, imunes a qualquer volúpia. Que o caçador satisfizesse seus mais caros desejos.

Acteão só via os corpos nus em contorções sensuais. Seus olhos pareciam poucos e pequenos para tanta beleza. Nada existia além daquele pedaço de rio. Nem cervos, nem cães. E muito menos serpentes.

Havia, porém, uma serpente à sua volta. E escorregava pelo chão, maliciosa.

Um cão ladrou e correu para o réptil. Irritado, Acteão apanhou uma pedra e, de olho no rio, quis calar o animal. No entanto a rocha atingiu a cobra, que fugiu.

Diana e as ninfas apenas se banhavam, como se no mun­do não existissem caçadores, cães e serpentes. E parlavam, riam e se faziam mais belas.

Havia, porém, outra serpente a dois passos de Acteão. E outro cão ladrou.

Furioso, o caçador de cervos atirou outra pedra contra o latido inoportuno. E, como da vez anterior, houve erro de pontaria.

No rio, as águas banhavam ainda as formosas fêmeas. E o lascivo Acteão gemia de prazer.

A terceira serpente apareceu. Terceiro latido, terceira pedrada.

A mesma cena repetiu-se pela quinta, sexta ou sétima vez. E os cães perderam a paciência. Aquele maldito Acteão ia terminar picado e morto. E adeus cervos.

Um dos cães propôs deixarem o caçador à mercê das cobras. Não, não podiam trair o amo. Apesar das pedradas que haviam recebido.

Outro sugeriu o mais difícil: falariam a Acteão da exis­tência de serpentes naquele local. Falariam, em vez de latir.

Não, os deuses jamais dariam voz humana aos cães.

E se pedissem ajuda a Diana?

Acteão ouviu os sussurros caninos. Aqueles malditos cães só serviam para estragar prazeres.

E atirou-lhes mais pedras.

Nota: Naquele mesmo dia (ou noutro), Diana surpreendeu Acteão detrás das moitas e o transformou em cervo. Ato contínuo, os cães o devoraram.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

Baú de Trovas VI

Eu não possuo riqueza,
fui pobre desde criança!
Mas dentro desta pobreza
sou rica... tenho Esperança !
Adalzira Bittencourt

"Quem espera sempre alcança!..."
- Esperar por quem ?... Por quê?...
Se a derradeira esperança,   
morreu também com você!...
Anis Murad
 

Quando a minha trova lerdes,
tereis plena segurança,
de que eu pus nuns olhos verdes,
a minha eterna esperança.
Antonieta Borges Alves

Quando a dor nos desespera,
a Esperança nos mantém
engambelados, à espera
de algo que, às vezes, não vem!
Antonio Bastos Dias

Nasci pobre e, na pobreza,
desconheci a abastança...
Mas sempre tive a riqueza
      de possuir a esperança.
Antonio Martins

Onde a esperança?... Eu explico:
    - Ela está no fiapinho
que as aves levam no bico,
quando estão fazendo ninho!...
Archimimo Lapagesse

Desde o tempo de criança
- de ingênua colegial -
fiz de ti minha esperança
e só tenho esse fanal.
Ariete Regina de Paula Fernandes

Não é fácil conceberdes
de que a esperança é capaz:
- mentirosa de olhos verdes,
promete e nem sempre faz...
Bittencourt de Sá

Penso em ti. Mas a esperança,
de ver-te minha, se trunca:
- Meu sonho sempre te alcança,
mas eu não te alcanço nunca.
Cesídio Ambrogi

Agora, sei por que vives
alegre, mesmo sofrendo;
aprendi muito contigo:
de Esperança estou vivendo.
Cira Martins Guimarães
 

A esperança é o quem-me-dera,
o Deus-te-ouça, a oração;
une a vida ao que se espera,
como um traço de união.
Edgar Barcelos Cerqueira

Recolhi-me à paz da prece...
E veio a consolação.
Nova esperança me aquece...
Outras saudades virão...
Esther Carmem Sauer Baptista

Na miragem da esperança
que todo mundo procura,
é que a gente ainda alcança
          um farrapo de ventura!
Félix Aires

Esperança - benfazeja
visão de um doce porvir
- algo bom que se deseja
que pode vir ou não vir.
Geraldo Pimenta de Moraes

Eu te olhei e me mostraste,
na mão direita, a aliança.
- Tu pensas que me afastaste,
mas só me deste esperança…
Heraldo Lisboa

Ante a inclemência dos fados
da vida em cada revés...
Consolo dos desgraçados!
- Esperança é o que tu és!...
Honório Santana

Nasceu a felicidade
da mais sublime aliança:
um pouquinho de saudade
e um punhado de esperança
Irací do Nascimento e Silva
 

Na vida prossigo a pé
minha jornada não cansa:
de provisão - levo a Fé;
de lenitivo - a Esperança...
João Vicente da Costa

Adeus sonho, adeus quimera
que se busca e não se alcança.
Prender ilusões - quem dera!
Ao menos fica, Esperança!
Jorge de Faria Goes

O verbo "amar” conjugado,
tem dois tempos, assegurado:
a saudade - que é o passado,
a esperança - que é o futuro...
Jorge Murad

Esperança e, simplesmente
um sentimento perjuro:
são mentiras no presente...       
desenganos no futuro...
Lectícia Pires Rangel Coelho

Numa era de baixeza,
num mundo de podridão,
a esperança  é a tocha acesa
que trago no coração.
Luiz Evandro Inocêncio

Minha esperança, você
já está ficando velhinha.
Já é vovó dos meus sonhos!
Mas sempre bem queridinha!
Maria  Aparecida Meyer Pires Resende

Aguardo, espero com ânsia;
minha vida é esperar...
e contra toda a esperança
continuarei a te amar!...
Maria do Carmo Mendes Resende Costa

De flores tão enfeitada,
loiros cabelos em trança
Neste esquife azul , deitada,
vai toda a minha Esperança.
Maria José Fortes Braga

Quando contemplo à tardinha,
vindo da escola, as crianças,
sinto que o ocaso  alvorece
nesse arrebol de esperanças.
Maria Rosa Maciel
 

Esperança, isto se chama
e a todo instante acontece:
uma carta... um telegrama...
um meigo olhar... uma prece...
Mauro Barbosa Armond

Das perdidas esperanças
a pior foi a primeira;
pois deixou-me as alianças
e levou-me a companheira.
Natal Machado

Pelos caminhos da vida,
ora aflitiva, ora mansa,
guiou-me sempre a querida,
a bendita luz da esperança.
Nelo Filipi

A Esperança é a voz divina
que a alma da gente acalanta;
nesta terra pequenina
nenhuma voz a suplanta.
Odete Donah

Por muito amar-te perdi
metade de minha vida;
e agora perco, esperando,
a outra metade, querida...
Olímpio da Cruz S. Coutinho

Quando minha alma sentida
nesta vida nada alcança,
     inda me resta na vida
- graças a Deus ! - a esperança!
Rodolfo Coelho Cavalcanti

Todo bem, toda alegria,
que neste mundo se alcança,
são juros de economia
guardado pela Esperança.
Severino Uchoa

No tédio de minha vida
de emoções vazia e nua,
só me torna comovida
a Esperança de ser tua...
Vera Milward de Carvalho

Ai, do pobre, sem carinhos,
cuja dor se vê na face,           
se no meio dos espinhos,
a esperança não brilhasse...
Virgilio Guerreiro

Se eu perdesse, de repente,
tudo o que a vida me deu,
tendo a Esperança, somente,
- bem pouco perdera eu!...
Waldemar Soares Carneiro

Mistério que nos sustenta,
quando a vida fere e cansa…
- Quanto maior a tormenta,
maior também a esperança.
Zalkind Piatigorsky

Fonte:
Luiz Otávio e J. G. de Araújo Jorge. Cem trovas sobre a esperança. Ed. Vecchi, 1959.

Lenda Russa (Os 7 Gigantes dos Urais)

Uma tribo do distrito de Khantia-Mansia, os Mansi tem uma lenda muito interessante para explicar a formação de Man-Pupu-Nyor ou “pequena montanha dos deuses”. Dizem que as sete formações são o resultado de uma luta entre seis gigantes e filho do líder da tribo.

Tudo começou quando o gigante Torev, que andava caçando com seus irmãos nos arredores da montanha Hariz, ficou sabendo da beleza da filha do chefe da tribo dos Mansi e desejou-a para si.

Kuuschay era o seu líder e ele tinha um filho e uma filha. Os homens dessa tribo eram conhecidos por serem ótimos caçadores e corredores e os espíritos da montanha Yalping. Nyeri os protegiam porque ele era um chefe muito justo e sábio.

Aproveitando-se que Pygrychum, o filho do chefe estava ausente caçando com seus guerreiros Torev foi até lá exigir que a bela jovem fosse lhe dada em casamento. Claro que seu pai recusou, e os gigantes resolveram atacar para raptá-la.

O velho chefe desesperado suplicou aos deuses que os ajudassem, pois as muralhas da cidade estavam para cair diante da força dos gigantes. Em resposta um nevoeiro espesso cobriu toda a cidade no mesmo momento em que Torev a golpeou com sua clava. Pedacinhos da muralha se espalharam na planície por causa do vento forte que soprava.

Eles decidiram esperar até amanhecer para atacar, mas para azar deles o jovem Pygrychum, havia voltado com seus guerreiros e vinha portando um escudo e uma poderosa espada, que ao ser banhada pelo sol projetou um raio de fogo nos olhos de Torev. Ele enfurecido atacou junto com seus irmãos. De repente, os movimentos dos gigantes começaram a se tornar lentos e a luz se tornou uma cúpula que cobriu os gigantes e o próprio Pygrychum. Quando ela se dissipou os guerreiros viram que o jovem e os seis gigantes haviam se tornando pilares de pedra.

E lá eles estão até hoje, como lembrança de uma estória de bravura e sacrifício.

Notas:

A formação geológica fica em em platô de difícil acesso, recomendado que somente aventureiros mais experientes viagem até lá. Sua altura varia de 30 a 42 metros. Espalhadas pela planície se veem milhares de pedrinhas, que segundo a lenda se originaram dos pedaços da muralha da cidade que foi atingida pela clava do gigante.

Fonte:
https://casadecha.wordpress.com/tag/russia/

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Paulo Leminski ("Achar")


Folclore Japonês (Tokoyo, A filha do Samurai)


Tokoyo é um conto de perigo, amor, sacrifício e aventura do Japão antigo. Conta a lenda que na “Terra do Sol Nascente”, durante a regência de Hojo Takatoki (início do século XIV dC), vivia uma jovem chamada Tokoyo que cresceu com o pai, o samurai Oribe Shima. Eles viviam na província de Shima, onde muitos ganhavam a vida no mar. Os dois viviam muito felizes, e a convivência da jovem menina com os samurais a ensinou a ser forte.

Um fatídico dia, vítima de uma conspiração, o samurai (invejado por muitos por suas habilidades) foi acusado de ser o responsável por agravar a doença do imperador. Assim, ele foi banido para a pequena e distante ilha Kamishima, nas Ilhas Oki. 


Após o triste episódio, Tokoyo, que amava muito seu pai, ficou inconsolável, e determinada a reencontrar a única família que lhe restava. Sozinha em sua antiga casa na província de Shima, Tokoyo chorava dia e noite. Então um dia ela decidiu partir de sua terra em uma jornada para encontrar e resgatá-lo. Primeiro, ela vendeu todos os seus bens a um comerciante local para juntar dinheiro suficiente para a sua empreitada.

A jovem então partiu em sua longa viagem até o litoral de Akasaki, de onde mal podia avistar ao longe a ilha em que se encontrava exilado seu amado pai. Tokoyo tentou convencer os pescadores locais a levá-la até a ilha, mas por não ter dinheiro o bastante para oferecer-lhes, estes se recusaram. Mesmo assim, a determinada menina não desistiu.

O sol já tinha se posto e as estrelas acordado, quando naquela mesma noite, ela encontrou um pequeno e velho barco semi-enterrado e coberto de algas nas areias da baía. Experiente em assuntos do mar, pois quando criança ela costumava mergulhar com as mulheres de sua aldeia para coletar conchas e pérolas, partiu imediatamente rumo à ilha. Foi uma viagem difícil por águas tortuosas com o pequeno barco, mas isso não era nada para a valente Tokoyo.

Ainda estava escuro quando ela chegou à costa. Desembarcando, a jovem passou o dia todo procurando por seu pai na ilha, mas não o encontrou. A noite chegou, e Tokoyo muito cansada e triste decidiu descansar debaixo de uma árvore.

Depois de algumas horas, ela foi despertada pelo som de uma voz feminina que em  soluços pedia: “Não, por favor, você não pode fazer isso! Eu não sou o sacrifício!” Lamentava a voz. “É honroso morrer pela vila, e por causa do dragão. Você deve entender isso.” Respondeu outra figura materializada a partir da crescente escuridão, segurando-a, tentando confortá-la, e, ao mesmo tempo, murmurando orações.

Tokoyo, escondida atrás de um arbusto, avistou uma jovem vestida com uma túnica branca acompanhada de um monge. Eles estavam de pé na beira de um penhasco, e o monge murmurava repetindo: “Namu Amida Butsu.” A menina lutando estava sem fôlego de tanto gritar e brigar, caindo de joelhos, gotas de água salgada refletindo crepúsculo. “Não! Não! Por favor, tenha misericórdia, tenha misericórdia.” Chorava a menina. “Lembre-se! Seu nobre sacrifício, e seu amor vão renascer em gerações vindouras. Você está criando um futuro melhor, querida. Mantenha isso em seu coração, pois este é o seu destino.” Repetia-lhe o sacerdote, que terminando a sua oração, levou a menina até a borda das rochas, e ameaçava empurra-la penhasco abaixo sobre o mar, quando Tokoyo correu em seu socorro.

O monge, diante da abrupta interrupção, tentou responder pacientemente à intervenção de Tokoyo. Segundo o seu relato, uma antiga serpente-dragão chamado Yofune-Nushi, habitava uma caverna nas profundezas dos mares em torno das ilhas Oki. Yofune-Nushi durante décadas aterrorizou as pessoas da ilha e ameaçava  evocar tempestades e destruir a indústria da pesca (única fonte de renda dos aldeões), a menos que lhe sacrificassem uma virgem a cada ano, em 13 de Junho. Dizia-se que, enquanto eles mantivessem a sua parte no sangrento acordo, o temido dragão iria deixar a cidade em paz.

Tokoyo sentiu a injustiça sofrida pelas donzelas diante de um trágico destino, e mesmo angustiada para resgatar seu pai, resignada, ofereceu-se para tomar o lugar da jovem. Vestiu então a túnica branca ofertada pela menina, e saltou do penhasco mergulhando no oceano gelado com um punhal entre os dentes, para o espanto do sacerdote e da garota.

Tokoyo mergulhou cada vez mais fundo, através das águas iluminadas pelo sol que já acordara no céu, lutando contra a sensação gelada que inundava seu corpo. Abaixo, abaixo ela nadou, passando escalas intermináveis de escorregadios peixes de prata, e formações de corais de tirar o fôlego. Afastando-se, ela nadou mais profundamente.

A luz solar que havia preenchido previamente o oceano com um sentimento calorosamente feliz, foi lentamente sendo apagados enquanto nadava mais profundo, até que encontrou uma caverna em uma floresta de algas.

Todo o lugar reluzia com conchas, pérolas e luzes fosforescentes. Na entrada da caverna havia uma pequena estátua de Hojo Takatoki. Tomada pela raiva que sentia do Imperador por banir seu pai do reino, seu primeiro instinto foi destruir a escultura, mas decidiu que seria melhor levá-la primeiro para a superfície. Tokoyo então a atou a seu cinto, preparando-se para emergir, quando vislumbrou uma imagem imensa surgindo das profundezas da caverna.

Era Yofune-Nushi, o temido Dragão. Ele tinha a forma de uma cobra, mas com chifres dourados, pernas e as escamas fosforescentes, com aproximadamente 26 pés de comprimento e olhos de fogo. Presumindo que Tokoyo fosse a oferenda, ele ondulou lentamente em direção a ela a atacando.

Tokoyo não se intimidou com seu tamanho, e corajosamente colocou-se em posição de defesa desviando do ataque da fera. A valente tirava vantagem de sua agilidade, e num golpe rápido ela mergulhou a adaga no olho da ameaçadora criatura. Cego com o sangue que jorrava de seu olho e cambaleante de dor, o dragão tentou retornar para a caverna, mas Tokoyo, destemida, o perseguiu. Mais uma vez, a jovem e o Dragão se enfrentaram em um embate, e a  brava Tokoyo aproveitando-se de sua cegueira continuou a atacá-lo o atingindo no lado inferior vulnerável de seu pescoço. Por fim, não resistindo a agilidade dos golpes da jovem aprendiz de samurai, o vil Yofune-Nushi foi morto. Bolhas de sangue tingiram a água do mar.

Sentindo seus pulmões queimarem sem ar, Tokoyo acelerou sua subida a superfície. A valente guerreira, saindo das águas, arrastou-se sobre a terra, onde ela caiu fraca e cansada na areia. O monge e a garota correram em direção a ela, e não podiam acreditar que ela vencera a fera. O grande Dragão foi morto!

O sacerdote levou Tokoyo para a aldeia, e a notícia de seu heroísmo se espalhou rapidamente. A notícia chegou ao Imperador, que agora se encontrava bem e saudável. Logo perceberam que a magia do dragão Yofune-Nushi amaldiçoou sua imagem na forma da estátua sob o oceano, e quando Tokoyo matou o dragão e recuperou a escultura, a maldição foi quebrada.

Então, percebendo que o pai de Tokoyo era inocente, o Imperador mandou que o libertassem imediatamente, devolvendo-o a sua corajosa filha. Lamentando-se por ter banido seu melhor samurai e amigo, o Imperador ainda ordenou que enviassem a Tokoyo e seu pai, uma enorme quantia de tesouros e recompensas.

Tokoyo, depois de dias adormecida pelo desgaste do combate, despertou ao som de tambores e flautas trovejantes. A aldeia inteira estava em festa, todos gritavam o nome de Tokoyo saudando sua heroína. À distância, ela avistou fileiras de casas, e por entre elas, o oceano onde tinha enfrentado o temeroso dragão. Foi quando Tokoyo ouviu uma voz familiarmente querida chamar-lhe o nome, mal acreditando no que ouvira, virou-se, e seus olhos encheram-se de lágrimas.

Parado ali, logo a sua frente, trajando trapos, com cabelo preto acinzentado bagunçado na cabeça, quase irreconhecível. No entanto, um sorriso iluminou seu rosto, e esse era inesquecível. Tokoyo só conseguiu murmurar… Meu pai!

Também foi dado a valente jovem, o privilégio de servir no palácio como uma guerreira samurai ao lado de seu pai, e no reino, a partir de então, viveram juntos e felizes.

Fontes: 
Wikipedia / Myths and Legends of Japan, in Caçadores de Lendas

Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 8, final

Três meses mais tarde, Luís Carlos desembarcava no aeroporto de Lisboa, vindo desta vez da Suíça.

Ainda nada sabia do resultado da operação da Sandra Cristina, pois nunca mais comunicara com o Dr. Richter, e passara o tempo por várias capitais da Europa, embebedando-se para esquecer a razão de ser da sua própria vida.

Por fim, convencido de que seria inútil continuar naquelas liberações, que o impossibilitavam para o trabalho, lhe arruinavam a saúde, e pior do que isso não lhe arrancava do seu coração a imagem de Sandra Cristina. Foi assim que decidiu, repentinamente, voltar a São Pedro de Moel, para visitar o seu amigo António das Ondas, e também, saber alguma coisa da Sandra.

Ao chegar à linda praia de São Pedro de Moel, logo encontrou o António das Ondas, que se encontrava sentado no chamado "banco dos reformados", que fica numa rua íngreme que vai dar ao varandim da esplanada, e logo os dois homens caíram nos braços um do outro.

Luís: -  Ah... Ah quanto tempo não o via e que saudades já tinha disto tudo, incluindo o Sr. António!

António: -  Eu já tinha quase esquecido a tua cara e a tua pessoa. Tu é que te esqueceste dos amigos…

Luís: - Olhe que nunca me esqueci, não... Mas diga-me: como está a Sandra Cristina?

António: -  Ela... Ela está completamente curada, e por acaso chega amanhã aqui. Foi um milagre, um verdadeiro milagre, a sua cura total!

Luís: - Completamente curada?!... Decerto que foi... Foi um grande milagre, Deus seja louvado por mais este milagre... A Sandra completamente curada!!!

António: - Não te excites tanto, Luís Carlos. Mas chora à vontade, pois nem sempre é feio um homem chorar. Mas, por favor, acalma-te!

Luís: -  Mas aquela linda mocinha completamente curada, até parece um sonho!

António: - Mas olha lá, tudo bem, mas não é razão par ficarmos para aqui os dois, agarrados um ao outro, a chorar como duas "Madalenas arrependidas"!

Luís: - Tem toda a razão, Sr. António.

António: -  Vamos a casa dos Mendes, e pelo caminho, tenho que passar pelos Correios, para saber se tenho lá alguma coisa para mim...

Luís Carlos ficou passeando pelo largo dos automóveis, enquanto o António das Ondas apressou-se a expedir um telegrama urgente para Nova Iorque e dirigido a Sandra Cristina, dizendo apenas isto:

"Luís Carlos chegou. Perguntou por ti. Disse-lhe que chegavas amanhã. Regressa rápido. António das Ondas".

Ao sair dos Correios, o bom velhote pensava e comentava com os seus botões:

"A verdade é que foi a primeira vez que menti na minha vida - mas foi por bem. Sim, porque senão guardo aqui este maluco do Luís Carlos à espera da Sandra Cristina, ele ainda é bem capaz de arranjar mais "macaquinhos" na sua cabeça, e sendo assim, ainda a nossa Sandra fica mais um ano à espera dele!”.

No outro dia e no último “expresso” que vinha de Lisboa, chegava a Sandra Cristina. Luís Carlos e o António das Ondas, assim como seus pais e alguns amigos, estavam à espera da moça…

Sandra: - Olá queridos papás! Graças a Deus que me encontro completamente curada!

Emília: - Minha querida filha, ainda me parece um sonho, um sonho lindo!

André: - Oh filha querida, como estás linda!

António: - Olá querida mocinha, tu cada vez estás mais bela, e agora, completamente curada!

Sandra: - Estou tão feliz! Mas... Mas o Luís Carlos, não me veio esperar?...

Luís: - Pois claro que sim, por isso estou aqui!...

Sandra: - Oh Luís Carlos, como estou feliz, meu amor! ... Perdoas-me?...

Luís: - O passado morreu minha querida. Mas como estás linda…

E um beijo uniu aquele grande amor...

Dois meses depois a capela de São Pedro de Moel estava linda...

Nesse dia, Luís Carlos e Sandra Cristina, dentro das suas convicções religiosas, iam-se unir para sempre.

São Pedro de Moel estava em festa, e toda a gente feliz com o evento.

Luís: - Olha, minha querida Sandra Cristina, temos de ir fazendo as nossas despedidas, antes de partirmos para a nossa lua-de-mel...

Sandra: - Vamos então. Podemos começar aqui pelo Sr. António das Ondas... Ora diga-me: como é que você sabia que eu ia chegar naquele dia e àquela hora?

O bom velhote levantou-se e calmamente encarou os dois jovens que estavam ali à sua frente, e com um sorriso nos lábios, respondeu-lhe:

António: - Olha lá Sandra, tu por acaso não recebeste o meu telegrama?

Sandra: -  Telegrama?! ... Ah, pois, claro que recebi. Ahahahahah! 

António - Então, minha boa e querida amiga, por vossa causa, menti, pela primeira vez na vida. Vão lá à vossa vida e sejam muito felizes!
 
F I M

Fonte:
O Autor

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Paulo Leminski (" de som a som ")


Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 7

Entretanto, na sala de operações, do melhor e mais bem apetrechado hospital de Lisboa, o Dr. Roger Richter, terminara a segunda operação, a Sandra Cristina. Na ante-sala, esperavam-no o pai e a mãe da paciente. O médico saiu da sala das operações, com o semblante carregado. Os Mendes encararam-se, preocupados.

Encarando com eles, o Dr. Roger Richter disse, com aquela rudeza quase agressiva, que o caracterizava, quando estava enfronhado nos seus trabalhos profissionais:

Dr. Roger: -  A vossa filha vai ficar curada. Cheguei a recear que apenas pudesse fazê-la coxear um pouco menos. Mas a verdade, é que Deus me ajudou, e agora, posso garantir-lhes que dentro de três a seis meses, a nossa gentil Sandra Cristina, correrá e dançará, como qualquer rapariga que nunca tenha sofrido qualquer acidente!

Emília: -  Oh, Sr. Doutor!

A mãe da rapariga rompeu num pranto silencioso e feliz, enquanto o marido caminhava para o Dr. Roger Richter, e estendeu-lhe a mão, com os olhos marejados de lágrimas. O médico apertou-a e com um sorriso. Já perdera aquele ar carrancudo que tinha, quando prestava a sua atenção profissional, e disse-lhe:

Dr. Roger: Não tem nada que me agradecer, Sr. André Mendes. Fiz o que pude. Mas olhe que a sua mulher precisa de si…

Efetivamente, Emília Mendes tateava o ar, procurando onde se pudesse apoiar. Na sua perturbação, aquela mãe ainda duvidava das palavras claríssimas que acabara de ouvir!

Depois do marido a ter amparado e a levado até a uma cadeira, a pobre senhora levantou os olhos para o médico, e nesse olhar endereçou-lhe o mais eloquente agradecimento que ele poderia ter recebido. Sensibilizado, o Dr. Roger Richter disse-lhe então:

Dr. Roger: -  Dentro de uma hora, podem fazer companhia à vossa menina, mas por poucos minutos, dez o máximo. E não se esqueçam que ficam completamente proibidos de lhes dizer o que eu lhes contei do êxito da intervenção cirúrgica. 

Emília: -  Assim faremos, Sr. Doutor. Até parece um sonho, o melhor sonho de minha vida!

Dr. Roger: - Se lhe dissessem isso lhe provocaria um choque nervoso, que poderia ser-lhe prejudicial na evolução no processo de recuperação, que agora deve ser rápido.

Emília: -  Faremos tudo o que o Sr. Doutor nos mandar ...

Dr. Roger: -  Digam-lhe que não estiveram comigo, depois da operação.

Emília: -  Pode estar descansado, Sr. Doutor.

Dr. Roger: -  E para terminar, também vos quero dizer que os convido para jantarem comigo e com a minha mulher, esta noite.

Eles sorriram envergonhados, mas o médico receou que não o tivessem compreendido que lhes estava a fazer um convite formal, pelo que se apressou a acrescentar:

Dr. Roger: -  Esta será a última parte da mentira, que peçam que não digam a Sandra... Bem, não é rigorosamente uma mentira, pois, minha mulher e eu, esperamos que nos deem o prazer da vossa companhia, hoje, ao jantar - está bem ?!

Emília: -  Temos todo o prazer em aceitar o seu amável convite!

Dr. Roger: -  Então até logo às oito horas no hotel.

No final do jantar, o Dr. Roger Richter esclareceu o casal Mendes:

Dr. Roger: -  Convidei-os com um determinado fim, ou seja, o caso de Sandra Cristina. Em princípio, ela deveria de precisar de outra intervenção cirúrgica, mas que talvez seja desnecessária, se durante estes meses mais próximos, for vigiada com toda a atenção e competência. Nós temos de partir de avião para Nova Iorque, na próxima semana, pois não posso de modo algum protelar a data da minha partida, por compromissos anteriormente assumidos.

André: -  E o que nós podemos para ajudar a nossa querida filha?

Dr. Roger: -  Tenham calma e escutem a minha mulher vos tem para vos dizer.

Jodie: -  Por isso pensei, ou melhor, pensamos eu e meu marido, em pedir emprestada a vossa filha por uns meses. Autorizem que a Sandra venha conosco, pois lhe faria muito bem mudar de ambiente. Em Nova Iorque, temos muitos amigos, e ela recompor-se-á noutro meio ambiente, de modo que, quando regressar será outra rapariga, tendo inclusive já perdido todos os seus complexos, que sempre a têm atormentado. Que me dizem?

Emília: -  Nós gostaríamos que ela fosse, mas compreendem as saudades... E, além disso, financeiramente, não podemos suportar tanta despesa,

Jodie: -  Mas atenção, pois tratasse de um pedido nosso, sem qualquer encargo financeiro para vós.

Dr. Roger: -  Reforçando a ideia de minha mulher, lhes direi que não vos fiz qualquer pedido em proveito próprio, a não ser aquele de cederem parte da vossa mesa, na esplanada, no primeiro dia que nos conhecemos!

Jodie: -  É um convite que fazemos com todo o prazer, e que não representa para vocês, repito qualquer despesa financeira.

Dias depois, Sandra Cristina, acompanhada pelo casal Richter, partia de avião rumo a Nova Iorque.

Quando o carro particular do casal parou, de fronte a um enorme arranha-céus onde moravam, o Dr. ajudou Sandra a descer do automóvel, e a rapariga, também amparada a sua mulher, caminhou devagarzinho até ao ascensor.

Estava radiante de felicidade. Chegados ao último andar, o ascensor parou. Um mordomo veio-os receber e cumprimentou-os respeitosamente. A senhora Jodie Richter, perguntou-lhe então:

Jodie: -  Antony, anteontem recebeu um telegrama meu?

Mordomo: -  Recebi sim, minha senhora!

Jodie: -  Então, está tudo conforme as indicações que lhe dei?

Mordomo: -  Segui todas as suas indicações, minha senhora.

Jodie: -  Muito bem... Sandra Cristina venha agora ver a cidade de Nova Iorque, do alto de um centésimo quinto andar.

Devagarzinho, com mil precauções e carinhosamente, a mulher do Dr. Roger Richter levou a Sandra, até a uma grande janela que se abria sobre o coração da cidade. O espetáculo que daí se avistava, era simplesmente maravilhoso!

O Dr. Roger Richter, veio reunir-se a ela e a sua mulher.

Dr. Roger: -  O que se avista daqui é de facto esmagador! Mas vim aqui convidá-las a passarem à biblioteca. Venha, Sandra Cristina, que nós a ajudaremos.

Jodie: -  Eu vou à frente abrir a porta, e a Sandra vai entrar sozinha, sem estar amparada a nós. Serão os primeiros passos que dará, sem coxear, valeu?

Sandra: -  Vamos lá a ver se conseguirei…

A porta abriu-se e a rapariga viu-se num dos topos de uma grande sala, confortável e forrada com estantes cheias de livros. Não estava ninguém na biblioteca, apenas, na grande parede do fundo, estava uma tela...

Ao ver a tela, Sandra Cristina caminhou sozinha para a frente, com o corpo direito e sem coxear, com o olhar brilhante e fixo naquele quadro, como se estivesse sonhando.

Era ela a retratada, era ela que estava ali, numa técnica de pintura como nunca vira, e em que cada traço lhe falava de um amor, que ela não soubera compreender a tempo...

Sim, ela tinha razão quando argumentou com os pais, que o quadro recebido do Luís Carlos, não poderia ser o original. O seu coração não a enganara!

E foi os seus olhos brilhantes, que fizeram a pergunta, que os seus lábios não se atreveram a formular.

Então, conscientemente e pela primeira vez na sua vida, o Dr. Roger Richter faltou à sua palavra, e explicou a Sandra, como é que aquele precioso quadro, que o autor nunca quisera vender por preço algum, se encontrava ali em sua casa, na sua biblioteca.

A Sandra Cristina teve uma inevitável crise de lágrimas e logo quis saber onde se encontrava Luís Carlos.

Jodie: -  Isso também nós queríamos saber, Sandra. Até porque o meu marido tem de fazer contas com ele, pois todas as despesas extras da operação deviam ser pagas por ele. Ora, para isso mandou-nos um cheque com uma importância muito superior àquela que despendemos, mesmo contando com esta sua viagem a Nova Iorque. E o meu marido, quer-lhe devolver-lhe o excedente.

Sandra: -  Mas então têm o endereço dele de Paris?

Jodie: -   Também não temos esse endereço, e só sabemos que ele partiu da capital francesa, sem deixar rastro.

Sandra Cristina ficou pensativa, mordendo os lábios. Foi o Dr. Roger Richter quem lhe indicou o que ela devia de fazer:

Dr. Roger: -  Para mim, não pode haver quaisquer dúvidas sobre o que vai acontecer. Mais dia, menos dia, Luís Carlos vai quer saber o resultado da operação, e então terá de comunicar comigo para poder saber o que aconteceu, ou, então, vai aparecer em São Pedro de Moel, visto que daqui a dois meses, fará dois anos que vocês ali se conheceram, não é verdade?

Sandra: -  É verdade. Estou a ver que o Sr. Doutor sabe tudo a nosso respeito. Mas que posso eu fazer?

Dr. Roger: -  Por enquanto, minha boa amiga, ainda está sob a alçada do clínico, que está a vigiar a sua convalescença.

Sandra: -  E ainda terei que ficar por cá muito tempo?

Jodie: -  Daqui a dois meses e meio ou três, regressará a Portugal e a São Pedro de Moel, novinha em folha e capaz de amar sem qualquer complexo, o mais generoso e bondoso coração de homem que palpita sobre a terra, ou seja, o Luís Carlos! E vai ver que ele aparecer-lhe-á, disso não tenha a menor dúvida, minha amiga!

Sandra: -  Se me pudesse garantir isso...

Dr. Roger: -  O que minha mulher lhe disse, é rigorosamente verdade, pois nada sabemos de Luís Carlos. Mas quase lhe podemos garantir-lhe o seguinte: cuide-se de si, pois com certeza que ele a procurará... e a encontrará!

Sandra: -  Se eu tivesse a certeza...

Jodie: -  Quase lhe posso dar a minha palavra de honra que ele a procurará!

Sandra: -  A sua palavra de honra?! ... Então, deve saber mais algumas coisas, além do que me disse...

Dr. Roger: -  Pode crer que  nem eu nem minha mulher sabemos mais nada, a não ser que o amor dos homens honrados, é a maior força que os impele neste mundo!

continua…

Fonte:
O Autor

domingo, 7 de agosto de 2016

Lídia Vasconcelos (Tristeza)


Nilto Maciel (A Condenação do Senhor Felício)

Nunca mais vi o Dr. Aderaldo Ascegas. Dizem já ter morrido, de velhice, do coração, de qualquer doença. Lembro-me bem da última vez que estivemos juntos, no dia do meu julga­mento. Mostrava-se muito preocupado comigo, não tanto em razão da condenação, mas sobretudo porque eu não admitia ser acusado por aquela promotora e julgado por aquele juiz. Aconselhou-me repouso e tratamento médico. Procurasse uma boa clínica psiquiátrica, com urgência. Aquilo me deixou mais nervoso ainda. Tive ímpetos de ofendê-lo fisicamente, chamá-lo de morcego, ou rato. Sim, ele me lembrava um roedor. Cheguei a ansiar matá-lo. Não precisei, no entanto, cometer o crime. Velho como era, não duraria muito. E contive-me.

Na verdade, eu andava mesmo transtornado e, à medida que se aproximava o dia do meu julgamento, mais eu me sentia nervoso. Na véspera, quase enlouqueci. Passei a noite em claro, não consegui pegar no sono sequer por um minuto. Imaginava-me condenado e desgraçado para o resto da vida. Até tarde fiquei diante da televisão, a ver filmes de violência, noticiários, shows. Nada via, no entanto, a não ser eu mesmo refletido no espelho do vídeo. Tentei outras distrações e passatempos. Coloquei discos na radiola, fumei uma infinidade de cigarros, bebi uns dois ou três conhaques e terminei lendo artigos do Código Penal.

Esses modos já se haviam tornado rotina em minha vida, há algum tempo. Depois de um dia de trabalho, corria para casa, tomava banho, jantava, ligava a televisão. E assim passava a noite, quase sempre acordado. Como seria o julgamento? Pedi mil vezes ao Dr. Aderaldo que me descrevesse minuciosamente um julgamento. Lembrava-me de filmes americanos. Aqui era diferente, dizia-me. Decidi ir ver de perto um julgamento qualquer. Pedia licença ao chefe e corria ao fórum. Nunca pedi licença nenhuma, com medo da simples palavra fórum. E o juiz, como seria? O Dr. Aderaldo não o conhecia direito. Havia sido lotado recentemente na Vara. E o promotor? Passava horas e horas a imaginar as feições de ambos. O juiz seria um velhote de óculos, careca, sério, olhar enigmático. O promotor, um senhor de bigodes grossos, carrancudo, feioso.

Cansado, sonolento, cheio de olheiras, deixei a cama na manhã do dia D como se saísse de um caixão de defuntos. A cabeça parecia enorme, pesada, disforme. Olhei-me ao espelho e me pareceu ver um monstro saído do fundo da terra. Tomei um banho demorado. A partir daí, agarrei-me ao telefone. Precisava conversar com o Dr. Aderaldo. Não se encontrava no escritório, informava a secretária. Tomei calmantes, deitei-me no sofá, ouvi música suave. Necessitava relaxar. Num minuto estava de novo ligando para o advogado. Sem sossego, ia e vinha pela casa. Chegada a hora do almoço, nada comi. Não tinha apetite, embora uma espécie de mal-estar me lembrasse pratos variados e exóticos. Imaginei jias assadas, cobras picadinhas, baratas no arroz. Saí de casa às carreiras, a fugir do almoço indigesto. Por sorte, passava um táxi livre. Direto para o escritório do Dr. Aderaldo. Achou uma loucura eu ter saído tão cedo de casa. Devia até estar trabalhando. O julgamento só começaria às 15 horas. Fosse passear, espairecer, fazer hora. Eu parecia excessivamente abatido e agitado, como se fosse ser executado. De qualquer forma, eu continuaria solto, com direito a sursis. Não me preocupasse tanto.

Li ou tentei ler jornais, revistas, códigos. As caras do juiz e do promotor teimavam em emergir das páginas, das letras, cresciam, vinham ao encontro do meu rosto. Línguas, narizes, olhos saltavam do papel para me lamber, cheirar, espiar. Apavorado, largava o impresso e me punha a andar pelo escritório, a falar e atrapalhar o trabalho do doutor.

Nem sei como cheguei ao foro. Não me lembro do percurso, de sua duração, do que conversamos. Recordo-me a caminhar pelos corredores da Justiça, atônito, sonâmbulo, cheio de medo. E, de repente, o susto. Nem sequer mais um passo consegui dar, tão profundo choque senti ao chegar à porta da sala de audiências. Sim, o palco montado e os personagens terríveis em seus lugares. O juiz, aquele cachorro, sentado ao centro da grande mesa, circunspecto, pronto a decidir o meu destino. Então eu ia ser julgado por aquele animal?! Tive ímpetos de gritar, dizer uns insultos e fugir. Porém o Dr. Aderaldo me arrastava para o interior da sala, respeitoso, solene, decidido. Eu não tirava os olhos daquele sujeito asqueroso à minha frente e então quis rir, gargalhar. Ora, um cachorro daqueles na função de juiz! Cochichei aos ouvidos do meu advogado: “Você já percebeu quem está ali?” Ele apertou-me o braço com força e retribuiu o cochicho: “Não ria, não fale nada, comporte-se”. Do contrário, eu poderia até ser preso, antes mesmo do início da audiência, por desrespeito à Justiça.

Atraído pela figura medúsica do magistrado, custei a desviar os olhos para as outras pessoas. Quando o fiz, encontrei o olhar firme de uma sujeita, sentada à esquerda do juiz. “É a promotora”, segredou-me o Dr. Aderaldo. E já não tive susto nenhum. Só vontade de rir de novo. Ora, aquilo já me parecia cômico. “Comporte-se, Felício”, sussurrou-me o advogado.

Voltei os olhos novamente para o juiz. Ele continuava muito sério em sua toga, a boca sempre aberta, feito um idiota. Olhei para a sua direita, onde um indivíduo batia à máquina. Tanto podia ser novo como velho, escondido que se achava na penumbra. Podia até ser um bicho. Porém não me preocupei com isso.

Despertei de minhas observações ao som de uma sineta. A audiência ia começar. Olhei para o juiz, Dr. Luís Bernardo Galgo (informou-me depois meu advogado), e notei sua boca cheia de saliva, parecendo baba, a língua comprida a projetar-se na minha direção, os enormes dentes caninos, as patas horríveis sobre a mesa. Eu quis rir, mas todos permaneciam muito graves. Procurei o escrivão e não o distingui na sombra. Olhei para o Dr. Aderaldo, em busca do cúmplice necessário, e desisti do riso. Dada a palavra à promotora, desviei minha atenção para ela, que também babava, tinha dentes enormes e boca animalesca. Não dava para aguentar. Aquilo merecia uma boa gargalhada. “Comporte-se, Felício”, beliscou-me o advogado, por baixo da mesa.

Durante longo tempo a cadela latiu, enquanto o escrivão datilografava, certamente os latidos da doutora Cândida Platino Canavieira. E eu com gana de gritar, para não ouvir mais tanto o latir daquela cadela metida a bonitona.

Depois falou o Dr. Aderaldo, enquanto eu não perdia um só gesto dos dois cachorros. Não, não dava para conter mais o riso. O juiz olhou para mim e latiu qualquer coisa como: “Comporte-se, Seu Felício!” Tive vontade de saltar sobre ele, rasgar-lhe o focinho com as unhas, mordê-lo, matá-lo. “Mais um miado, e mando prendê-lo” — latiu. Foi o fim de tudo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. As insolentes patas do cão. São Paulo: Scortecci, 1991.

J. G. Araújo Jorge (Poemas Escolhidos)

DEDICATÓRIA

Dedico  este  livro  aos  irmãos  da   América   e  do   Mundo,
não importa que cruzem as pernas nos "pagodes" exóticos
ou sigam a palavra de Confúcio no templo de papel e de bambu;
que subam aos minaretes, se curvem beijando a terra,
ou simplesmente se ajoelhem no palácio de vitrais e incensos;
que dispam a palavra de Cristo de púrpuras e de ouros,
ou que sigam sem Deus, a procurá-lo nos livros...

Dedico este meu livro a todos os irmãos da América e do Mundo,
negros  ou  brancos,  amarelos  ou  vermelhos,  azuis   ou  roxos,
altos ou baixos, gordos ou magros, louros ou castanhos;
nos que ainda não morreram e aos que ainda poderão vir;
aos das planícies e dos campos, aos das florestas e das montanhas,
aos dos gelos e dos desertos,
aos das aldeias e das cidades,
aos dos faróis e aos da solidão,
aos dos navios, dos aviões ou dos subterrâneos,
a todos os homens, sem a menor distinção,
basta que creiam ainda na Vida e em nós mesmos.

Por isso escrevi este livro
como se abrisse uma veia, para o sangue aliviar o coração;
como se colhesse um fruto para o desejo inábil;
como se trouxesse água na mão, para a boca sedenta e empoeirada;
como se escrevesse sem palavras, e pudesse chegar a todos os ouvidos
e a todas as consciências
sem tradução...
Por isso escrevi este livro. Como quem acende uma lanterna
para descobrir que não está perdido...

Não se admirem irmãos, se as suas letras tiverem a cor do meu sangue,
porque elas são o meu sangue que vos ofereço,
são uma doação que faço aos que ainda creem que vivem,
mesmo aos que não poderão se refazer,
porque nunca sabemos os que resistirão...
              
Que este livro, pois, possa ao menos ser útil como o sangue,
como o ar, ou como o pão,
e possa prolongar algumas esperanças
confortar alguns momentos finais
e salvar alguns desesperos...

Que ao menos, chegue a tempo, para alguns…

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A LIBERDADE E A LARANJA
                                     (A Guilherme Figueiredo)

Um dia a liberdade será como a laranja
que tens na mão...

Já não será o sangue que espirrará em teu rosto
prova, e sentirás o gosto,
- será apenas o suco doce da laranja irmão...

Um dia, sentirás o gosto da liberdade,
apalparás a liberdade entre os dedos,
e ela escorrerá pelos teus lábios
e molhará a tua garganta...

Um dia, essa liberdade de que tanto te falam
e que tanto te prometem
deixará de ser palavra, e terá forma e cor...
E hás de apertá-la então, nas mãos ansiosas,
e hás de sentir na boca e na alma o seu sabor!
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ESPERANÇA!

Sobre a miséria dos pobres,
a caridade dos ricos,          
a injustiça dos governos,   
o sangue dos inocentes,     
a áspera luta dos fracos,    
a revolta e a humilhação    
dos vencidos e explorados;  
  sobre as manchetes do mundo,
impressas em negro e rubro,
sobre ameaças e pragas      
foguetes, bombas, políticos,

- de repente, ouço, distante,
uma criança gritar: mamãe!
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INQUÉRITO SOBRE A LIBERDADE
Perguntei ao lavrador que tão cedo madrugava
a cuspir, nas duras mãos, presa ao cabo da enxada
se ele queria a liberdade...

E ele me olhou em silêncio, desconfiado,
e baixou os olhos à terra amarga do seu Senhor...
(Inútil terra que só tem servido para enterrar os seus mortos).

Perguntei ao trabalhador apressado, na sombra da manhã,
escravo da família, a crescer e a morrer,
acuado pela vida
se ele queria a liberdade...

e ele deu de ombros, e falou em mais feijão e mais carne em sua mesa,
em segurança e escola para seus filhos...
(Inúteis reivindicações sempre adiante do seu salário).

Perguntei ao intelectual, preocupado e inquieto
entre frustrações e ameaças
se ele queria a liberdade...

E ele indagou: Qual? A americana, que massacra
negros, e explora povos indefesos?
Ou a francesa? que garantiu o direito do rico
ser cada vez mais rico,
e se transformou num estado-policial contra a pobreza?
(Inúteis liberdades que apenas mistificam e revoltam).

Até ao menino maltrapilho, sujo, abandonado,
entre outros companheiros, perambulando nas ruas
perguntei se queria a liberdade...

E ele fugiu sem responder, correu em liberdade...
(Inútil liberdade que o levará ao crime e ao presídio).

Liberdade, ó santa liberdade, ó doce liberdade
tão bela nos hinos escolares, nos discursos políticos
nas manchetes dos jornais,

em que dia, em que dia,
encontrando-te a ti mesma, com um sentimento novo,
deixarás de ser proxeneta da burguesia
para ser a verdade do povo?
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POEMA   AO  JORNALISTA
                                                              À Mario Martins
Ninguém te vê. Nem o homem sério de óculos que se sentou
                                       [ de pijama na cadeira de palhinha
na calçada de um subúrbio qualquer,
nem a mulher gorda que tira os óculos e chora por causa do
                                                             [ assassinato hediondo,
- o homem que matou seis filhos e bebeu veneno -
ou pelos dez órfãos da mãe desesperada,
a mulher que se jogou na linha do trem e o trem repartiu na
                                                                                       [terra.
Ninguém te vê. Nem o garoto que fuma escondido num lugar
                                                         [mal cheiroso do colégio,
nem a menina de tranças que gosta de se sentar na ponta do
                                                                     [banco do bonde
e esquece a rua com as últimas histórias do impossível;
ninguém te vê, nem o rapaz que discute política na mesa do café,
nem a moça que procura o seu nome na crônica social, onde
a caridade fica muito mais bonita e onde ela se sente muito mais humana...

Ninguém te vê.
Estás sentado na tua mesa, entre papéis disperses,
                                                         [telegramas de última hora,
a voz do secretário, o relâmpago do magnésio, a campainha do
                                                                                       [diretor,
a importância do homem que vai dar uma entrevista;
estás sentado na tua mesa, e escreves com a música dos
                                                                        [linotipos
o ruído das máquinas datilográficas,
o vozerio dos companheiros que vão e vêm
a bandeja de café, a fumaça do cigarro, o cheiro de óleo,
- e na tua cabeça há uma prodigiosa procissão de coisas
                                                                           [diversas
que se atropelam como os homens na rua
na mudança dos sinais.
(Verde-vermelho,verde-vermelho-verde -vermelho)

Há presidente e chefes em Washington depois que o ladrão
                           [assaltou o apartamento de Copacabana,
dois tiros, um aniversário, Marieta que cortou os pulsos
                                                             [pela décima vez,
mil aviões desovando bombas, o jantar elegante no grill
                                                                      [do cassino,
um fascista graúdo que tomou chumbo na cara, a mulher que
                                                               [teve quatro gêmeos,
a crônica sobre o vestido de Madame X, o político que
                                                [promete um mundo melhor,
o operário que caiu do 5.0 andar, o quilo de feijão a 3
                                                                            [cruzeiros,
Clark Gable que voltou da guerra, o último gol do América,
-tudo isto está na tua cabeça, que a tua cabeça é o mundo
debruçado sobre um bloco de papel...

Ninguém te vê. Mas tu vês o mundo, tu sentes o mundo, cada
                                                                       [dia, cada noite,
captas o mundo, cada dia, cada noite,
e daqui a pouco, e amanhã bem cedo, terás milhões de olhos,
                                                [terás milhões de consciências,
Porque te difundirás na multidão e andarás na multidão como
                                                                                      [os pés
no corpo...

És tu que mudas todos os dias a alma das multidões,
dá-lhes novo alimento, nova água, novas preocupações, novas alegrias,
ou novos tormentos,
depois do sol, é a tua manchete que brilha mais, e que
                                                                             [clareia a rua,
depois da noite, é a tua manchete que enluta o mundo e
                                                               [encobre os homens...


Ninguém te vê. E existes e estás presente em toda parte,
                                                                             [como Deus,
nas ruas, nas batalhas, no avião que ronca no céu, no navio
                                                                  [que não chegará,
na hora do fuzilamento, no recado para a família, nas
                                                                            [barricadas,
nos subterrâneos inconquistáveis onde a liberdade se
                                                                             [recolheu,
na festa do ministro, no banquete do político, na cadeia,
                                                       [na praça onde a bomba
estourou,
na escadaria onde falava o orador, no salão de baile, no
                                                 [microfone não localizado,
na première da grande fita,
-tens mil olhos, mil ouvidos, mil almas, mil mãos,
estás em toda parte, e ninguém te vê,
até o momento em que explodes na rua como uma granada
e a tua voz é o hino de mil letras dos homens heterogêneos
                                                                            [e dispersos...

Alma nova do mundo a cada novo dia. Música das ruas todos
                                                                              [os instantes.
História efêmera que passa e a memória esquecerá
se os livros não lembrarem;
sem ti, reduziríamos o mundo ao alcance dos nossos olhos.
e ficaríamos surdos e mudos, e de tal forma haveria silêncio
e deserto ao redor,
que nos julgaríamos de repente saídos de algum foguete a jato
sobre a face da lua...

Sem ti o mundo de hoje seria como mastro sem bandeira
como bandeira sem vento, como rádio sem antena,
como cérebro sem pensamento, como bússola sem norte,
como morte sem vida
como vida sem morte. .

Sem ti, o mundo seria mundos
muitos mundos, o meu, o teu, o dele, mundinhos de cada um,
nunca um mundo só, nosso mundo, imenso mundo, mundão,
que sai da tua cabeça
e escorre na tua mão!
__
Fonte:
JORGE, J. G. de Araújo. Mensagem (coletânea). 

Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 6

Na manhã seguinte, logo pelas nove horas, retiniu a campainha do portão. Sandra Cristina, atarantada, nem conseguiu esperar que a criadinha fosse abrir o portão, e correu logo a abri-lo ela. Ofegante, o seu adorável rosto empalideceu de emoção, ao encontrar-se em frente do médico que lhe sorria calmamente, segurando nas mãos uma pasta e um magnífico ramo de rosas que lhe estendeu, enquanto lhe dizia:

Dr. Roger: -  Bom dia, Sandra Cristina. Minha mulher manda-me pedir desculpa de não poder vir, mas tinha umas voltas a dar na Marinha Grande. Então como passou a menina a sua noite?

Sandra: -  Oh Sr. Doutor, que gentileza a sua! Muito obrigada. Mamã, olhe o que o Sr. Doutor me trouxe!

Emília: -  Bom dia, Sr. Doutor. Que belas flores. Agradeço-lhe muito a sua gentileza!

Dr. Roger: -  Bem, agora que tanto a filha como os pais, já estão mais serenos, vamos lá fazer o exame. Antes de tudo, deixe-me vê-la andar. Ora faça favor de ir até àquela porta e voltar. Devagarzinho e bem direita; vamos, mais uma voltinha...

A mocinha obedeceu, enquanto o cirurgião se transformava de homem da Sociedade, em homem de Ciência. Os olhos fixos como se a tivesse a fuzilar, não querendo perder o mais insignificante pormenor, que lhe fosse fornecido pelos movimentos da rapariga, e foi com voz algo rude, lhe disse:

Dr. Roger: -  Basta! ... Fratura da bacia na região exterior e fratura da tíbia e do perônio, com encurtamento por solidificação errada; além de esmagamento de alguns ossos: o tarso e o metatarso, não foi isso?

Sandra: -  Exatamente, Sr. Doutor!

Dr. Roger:  -  Bem, passemos a um quarto, onde eu possa examinar diretamente, os locais das fraturas, e mais exatamente, os locais das solidificações.

Emília: -  Então, por aqui, Sr. Doutor. Se faz favor...

Dr. Roger: -  A sua filha coxeia pela forma como deixaram solidificar as fraturas que apresenta. Hoje em dia, não têm qualquer importância, quando tratadas convenientemente. Foi uma pena, direi mesmo que foi um crime! Bem, preciso da senhora junto de mim...

O exame foi demorado. Quando terminou, o médico voltou à saleta, sentou e pediu:

Dr. Roger: -  Senhor André Mendes, por acaso não tem aqui em casa uma garrafa de vinho do Porto? É que gostaria muito que bebessemos, ao êxito da operação que vou fazer à sua filha!

Emília -  Oh Sr. Doutor, nem pode calcular o bem que me faz as suas palavras !

André: -  Senhor doutor, eu, como mãe da Sandra Cristina... Nem sei como hei de agradecer-lhe.

Atarantados e chorosos, o pai e a mãe de Sandra abriram uma garrafa do precioso vinho do Porto, que estava guardado para uma qualquer ocasião especial.

Os cristais, os belos cristais da Marinha Grande - tocaram-se e o Dr. Roger Richter, esclareceu:

Dr. Roger: -   Ao contrário do que possam pensar isto não quer dizer que eu esteja seguro da minha intervenção. Compreendam por favor.

André: -  Mas só a sua boa vontade, nem sabemos como havemos de lhe agradecer!

Dr. Roger: -  Prevejo que a idade da nossa doentinha, me ajudará decisivamente. Se fosse mais velha, já nada havia a tentar, mas assim e com a ajuda de Deus, vamos a ver o que podemos fazer.

Conforme ficara estabelecido em Lisboa, a senhora Jodie Richter não acompanhara nessa manhã o marido a São Pedro de Moel, para a primeira consulta a Sandra Cristina, para assim poder escrever uma longa carta a Luís Carlos, pondo-o minuciosamente ao corrente do que ia acontecendo em São Pedro. Mas não fechou a carta antes de o marido regressar, para poder juntar o seu diagnóstico. Feito isso, acrescentou que partiriam no dia seguinte para Lisboa, já acompanhados de Sandra Cristina e de seus pais.

Tal como Luís Carlos combinara, todas as despesas inerentes à operação, seriam pagas por ele, e no fim, o doutor Roger Richter lhe diria esse montante.

Quando na manhã seguinte, o pintor recebeu a carta, o seu rosto distendeu-se num sorriso feliz. As frases em que ela falava da excitação e do alvoroço da pequena, bem como da impressão que lhe produzira a ela, e ao marido, e estonteante beleza da jovem, fizeram um imenso bem à alma de homem amargurado, cujo amor tinha sido (julgava ele...) ostensivamente escarnecido e desrespeitado.

E nada lhe dizia que confirmasse a sua suspeita de que Sandra Cristina tivesse casado. Bem pelo contrário, pela forma como Jodie Richter lhe escrevia, depreendia-se que a mocinha vivia em casa dos pais, como uma filha solteira.

Quem seria então, aquele rapaz que a acompanhava tão naturalmente, no dia em que ele fora espiá-la a São Pedro de Moel?

Luís Carlos interrompeu as suas meditações, para rapidamente fazer as suas malas. Ainda não sabia para onde iria, pois ainda não tinha pensado nisso. Só sabia que não queria permanecer em Lisboa, sabendo que Sandra Cristina e seus pais, ali estavam também. Estava certo de que não teria coragem necessária para se fazer encontrado com eles, e não queria voltar a vê-la, nunca mais!

Foi no avião que o transportava a Paris, que se interrogou sobre aquela sua estranha atitude. Então, se a rapariga já não lhe interessava se nunca mais a queria encontrar, porque é que se teria empenhado em que ela ficasse curada do seu defeito físico? E como se arriscava a não ganhar somas fabulosas, que decerto ganharia com a venda do seu quadro "A Deusa e o Mar"?

Mas, Luís Carlos era um temperamental fora do comum, e chegou a aceitar que o seu amor por ela, e o seu consequente desejo que ela vivesse feliz, sem qualquer complexo, tinham sido suficientes para que tomasse aquela atitude...

Agora, vê-la outra vez, encará-la e ouvir-lhe a voz, é que nunca, nunca mais!

Em Paris, exatamente para se convencer daquele violento "nunca mais", andou por todos os cabarés, boates e discotecas, procurando afogar em prazeres fáceis e bem pagos, o grande amor da sua vida, de homem e de artista.

De lá, recebeu o primeiro relatório do Dr. Roger Richter, redigido depois da primeira intervenção cirúrgica, a que sujeitara Sandra Cristina. Mas o médico não se mostrava otimista, antes pelo contrário, o prevenira para a hipótese muito provável, de um fracasso.

Eram necessárias ainda mais duas ou três operações, mas em qualquer caso, só depois da segunda, se poderia prever exatamente, o estado em que poderia ficar a doente.

Teimosamente, porém, Luís Carlos aceitava como certa a cura da rapariga. Nem por momentos lhe passou pela cabeça, que fosse possível vir a sofrer uma desilusão, e saber que se desfizera do seu precioso quadro, para nada.

Para nada?...

Pior que nada, pois teria sido preferível que Sandra Cristina, não se tivesse sujeitado ao tormento operatório, nem tivesse passado aquele alvoroço de esperanças, que tudo isso acontecesse sem qualquer proveito! Luís Carlos interrogou-se sobre se teria tido alguma vez de estabelecer, com o famoso cirurgião, o espantoso contrato que estabelecera.

Verdadeiramente, ele não tinha qualquer direito de intervir na vida de Sandra, e uma vez que decidira, nunca mais devia de procurá-la, ou mais ainda: nunca mais a ver, tendo até por vontade própria de desaparecer de Lisboa, no mesmo dia, em que ela chegasse à Capital.

Parecia-lhe agora, perante o velado pessimismo do médico, que a sua intervenção, na vida de Sandra Cristina, ultrapassara os limites do que era aceitável.

Se, depois de todo o martírio que passou, e depois do traumatismo psíquico, que fatalmente estaria passando, se ela não melhorasse aquela intervenção cirúrgica, apesar de gratuita, teria efeitos devastadores, na moral da rapariga.

Este pensamento transtornou-o e deixou-o preocupado.

Ele sabia que fora o mais puro e o mais desinteressado dos sentimentos, que o levara a fazer aquela proposta ao Dr. Roger Richter. E, toda a gente que pudesse saber do caso, o felicitaria se a operação viesse a ter êxito. Mas, se fosse um fracasso, ninguém deixaria de lhe dizer que não tinha tido o direito de se intrometer, numa vida que lhe era em tudo estranha à sua, e que não queria, de modo algum, ligar-se.

Mas não queria, não queria, realmente ligar-se a Sandra Cristina?...

Amedrontado com a resposta que a sua consciência lhe ditasse, Luís Carlos, bebeu mais um Whisky e mais outro ...

continua…

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