quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

António Gedeão (1906 - 1997)


(Rómulo Vasco da Gama de Carvalho), nasceu em Lisboa em 1906. Criança precoce, aos 5 anos escreveu os seus primeiros poemas e aos 10 decidiu completar "Os Lusíadas" de Camões. A par desta inclinação para as letras, ao entrar para o liceu Gil Vicente, tomou contacto com as ciências e foi aí que despertou nele um novo interesse.

Em 1931 licenciou se em Ciências Físico Químicas pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e em 1932 conclui o curso de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras do Porto, prenunciando assim qual seria a sua atividade principal daí para a frente e durante 40 anos: professor e pedagogo. Exigente e comunicador por excelência, para Rómulo de Carvalho ensinar era uma paixão e uma dedicação. E assim, além da colaboração como co-diretor da "Gazeta de Física" a partir de 1946, concentrou durante muitos anos, os seus esforços no ensino, dedicando se, inclusive, à elaboração de compêndios escolares, inovadores pelo grafismo e forma de abordar matérias tão complexas como a física e a química. Dedicação estendida, a partir de 1952, à difusão científica a um nível mais amplo através da coleção "Ciência Para Gente Nova" e muitos outros títulos, entre os quais "Física para o Povo", cujas edições acompanham os leigos interessados pela ciência até meados da década de 1970.

Apesar da intensa atividade científica, Rómulo de Carvalho nunca esqueceu a arte das palavras e continuou sempre a escrever poesia. Porém, não a considerando de qualidade e pensando que nunca seria útil a ninguém, nunca tentou publicá-la, preferindo destruí-la. Só em 1956, após ter participado num concurso de poesia de que tomou conhecimento no jornal, publicou, aos 50 anos, o primeiro livro de poemas "Movimento Perpétuo" com o pseudônimo António Gedeão.
Continuou depois a publicar poesia, aventurando se, anos mais tarde, no teatro, no ensaio e na ficção.

Nos seus poemas há uma simbiose perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança. Aí reside a sua originalidade, difícil de catalogar, originada por uma vida em que sempre coexistiram esses dois interesses totalmente distintos.

A poesia de Gedeão é bastante comunicativa e marca toda uma geração que, reprimida por um regime ditatorial e atormentada por uma guerra, cujo fim não se adivinhava, se sentia profundamente tocada pelos valores expressos pelo poeta e assim se atrevia a acreditar que, através do sonho, era possível encontrar o caminho para a liberdade. É deste modo que "Pedra Filosofal", musicada por Manuel Freire, se torna num hino à liberdade e ao sonho. Mais tarde, em 1972, José Nisa compõe doze músicas com base em poemas de Gedeão e produz o álbum "Fala do Homem Nascido".

Nos anos seguintes dedicou se por inteiro à investigação, publicando numerosos livros, tanto de divulgação científica, como de história da ciência. Gedeão também continuou a sonhar, mas o fim aproximava se e o desejo da morrer determinou, em 1984, a publicação de Poemas Póstumos.

Em 1990, já com 83 anos, Rómulo de Carvalho assumiu a direção do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, sete anos depois de se ter tornado sócio correspondente da Academia de Ciências, função que desempenharia até ao fim dos seus dias.

Quando completou 90 anos de idade, a sua vida foi alvo de uma homenagem a nível nacional. O professor, investigador, pedagogo e historiador da ciência, bem como o poeta, foi reconhecido publicamente por personalidades da política, da ciência, das letras e da música. Faleceu em 1997.

Obra Literária:
Poesia: "Movimento Perpétuo", 1956;
"Teatro do Mundo", 1958;
"Declaração de Amor", 1959;
"Máquina de Fogo", 1961;
"Poesias Completas", 1964;
"Linhas de Força", 1967;
"Soneto", 1980;
"Poema para Galileu", 1982;
"Poemas Póstumos",1984;
"Poemas dos textos", 1985;
"Novos Poemas Póstumos", 1990

Ficção:
"A poltrona e outras novelas", 1973

Teatro:
"RTX 78/24", 1978;
"História Breve da Lua", 1981

Ensaio:
"O Sentimento Científico em Bocage", 1965;
"Ay Flores, Ay flores do verde pino", 1975

Obra Científica:
"Ciência Hermética", 1947;
"Embalsamento Egípcio", 1948;
"Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII", 1979;
"A Atividade Pedagógica da Academia das Ciências da Lisboa nos Séculos XVIII e XIX", 1981;
"A Astronomia em Portugal no Século XVIII", 1985;
"História do Ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar Caetano", 1986;
"O Texto Poético Como Documento Social", 1994
Diversos Livros de física e química em geral.

Fonte:
http://www.truca.pt/ouro/biografias1/antoniio_gedeao.html

Antonio Gedeão (Poesias)

Real Bordalo (Arco do Marques do Alegrete)
Certezas, precisam-se

Preciso urgentemente de adquirir meia dúzia de valores absolutos,
inexpugnáveis e impenetráveis,
firmes e surdos como rochedos.

Preciso urgentemente de adquirir certezas,
certezas inabaláveis, imensas certezas, montes de certezas,
certezas a propósito de tudo e de nada,
afirmadas com autoridade, em voz alta para que todos ouçam,
com desassombro, com ênfase, com dignidade,
acompanhadas de perfurantes censuras no olhar carregado, oblíquo.

Preciso urgentemente de ter razão,
de ter imensas razões, montes de razões,
de eu próprio me instituir em razão.
Ser razão!
Dar um soco furibundo e convicto no tampo da mesa
e espadanar razões nas ventas da assistência.

Preciso urgentemente de ter convicções profundas,
argumentos decisivos,
idéias feitas à altura das circunstâncias.
Preciso de correr convictamente ao encontro de qualquer coisa,
de gritar, de berrar, de ter apoplexias sagradas
em defesa dessa coisa.
Preciso de considerar imbecis todos os que tiverem opiniões diferentes

da minha,
de os mandar, sem rebuço, para o diabo que os carregue,
de os prejudicar, sem remorsos, de todas as maneiras possíveis,
de lhes tapar a boca,
de lhes cortar as frases no meio,
de lhes virar as costas ostensivamente.
Preciso de ter amigos da mesma cor, caras unhacas,
que me dêem palmadinhas nas costas,
que me chamem pá e me façam brindes
em almoços de camaradagem.
Preciso de me acocorar à volta da mesa do café,
e resolver os problemas sociais
entre ruidosos alívios de expectoração.
Preciso de encher o peito e cantar loas,
e enrouquecer a dar vivas,
de atirar o chapéu ao ar,
de saber de cor as frequências dos emissores.
O que tudo são símbolos e sinais de certezas.
Certezas!
Imensas certezas! Montes de certezas!
Pirineus, Urais, Himalaias de certezas!
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Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de Sódio.
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A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e ouça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.
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Máquina do Tempo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chama-lo e te-lo, ergue-lo e defronta-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
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Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e ouro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
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Aurora boreal

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
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Dez reis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingênuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aquarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras seletas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,

roia as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
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Amor sem tréguas

É necessário amar,
qualquer coisa ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.

Não importa de quem,
não importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não se vê.

Pode ser uma mulher,
uma pedra, uma flor,
uma coisa qualquer,
seja lá o que for.

Pode até nem ser nada
que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
que a sonhar se precise.

Amar por claridade,
sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.

Amar como um homem forte
só ele o sabe e pode-o;
amar até à morte,
amar até ao ódio.

Que o ódio, infelizmente,
quando o clima é de horror,
é forma inteligente
de se morrer de amor.
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Todo o tempo é de poesia

Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.
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Saudades da Terra

Uns olhos que me olharam com demora,
não sei se por amor se caridade,
fizeram me pensar na morte, e na saudade
que eu sentiria se morresse agora.

E pensei que da vida não teria
nem saudade nem pena de a perder,
mas que em meus olhos mortos guardaria
certas imagens do que pude ver.

Gostei muito da luz. Gostei de vê la
de todas as maneiras,
da luz do pirilampo à fria luz da estrela,
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras.
Gostei muito de a ver quando cintila
na face de um cristal,
quando trespassa, em lâmina tranquila,
a poeirenta névoa de um pinhal,
quando salta, nas águas, em contorções de cobra,
desfeita em pedrarias de lapidado cetro,
quando incide num prisma e se desdobra
nas sete cores do espectro.

Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria
quando galga lambendo o dorso dos navios,
quando afaga em blandícias de cândida luxúria
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.

E também gostei muito do Jardim da Estrela
com os velhos sentados nos bancos ao sol
e a mãe da pequenita a aconchega-la no carrinho e a adormece-la
e as meninas a correrem atrás das pombas e os meninos a jogarem ao futebol.

À porta do Jardim, no inverno, ao entardecer,
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas,
gostei muito de ver
erguer se a névoa azul do fumo das castanhas.

Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente,
e se amam com os dedos aflitos, entrecruzados,
de olhos postos nos olhos, angustiadamente.

E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados,
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes caminhões pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem se nas pernas das peixeiras.

Mas... saudade, saudade propriamente,
essa tenaz que aperta o coração
e deixa na garganta um travo adstringente,
essa, não.

Saudade, se a tivesse, só de Aquela
que nas flores se anunciou,
se uma saudade alguém pudesse te-la
do que não se passou.
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer – quem sabe? – ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.

Triste de quem não tem,
na hora que se esfuma,
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.
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Fala do Homem Nascido

(chega à boca da cena, e diz:)

Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no ato de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se faz ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.
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Autobiografia

Enquanto comia
num gesto tranquilo,
comia e ouvia
falar se daquilo.

Dormia e ouvia
solicitamente,
como se presente
presente estaria.

E enquanto comia,
comia e ouvia,
a frágil menina
que no fundo habita,
que chora e que grita
saía de mim.

Saía de mim
correndo e chorando
num gesto revolto,
cabelinho solto,
roupa esvoaçando.

Ia como louca,
chorava e corria,
enquanto eu metia
comida na boca.

Fugia lhe a estrada
debaixo dos pés,
a estrada pisada
que o luzeiro doura,
serpentina loura
que vai ter ao mar.

Corria a menina
de braços erguidos,
seus brancos vestidos
pareciam luar.

Por dentro ia a noite,
por fora ia o dia.
A vida estuava,
a maré subia.

Caiu a menina
na praia amarela,
logo um modelo de algas
se apoderaram dela.

Se apoderou dela
carinhosamente,
que as algas são gestos
mas não são de gente.

Caiu e ficou se
deitada de bruços,
desfeita em soluços
sem forma nem lei.

Ò minha águazinha
faz com que eu não sinta,
faz com que eu não minta,
faz com que eu não odeie!

Águazinha querida,
compromisso antigo,
dissolve me a vida,
leva-me contigo.

Leva-me contigo
no berço das algas;
que o sal com que salgas
seja o meu vestido.

Ficou-se a menina
desfeita em soluços,
seu corpo, de bruços,
com o mar a cobri-lo,
enquanto eu, sentado,
sentado comia,
comia e ouvia,
falar-se daquilo.
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terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Academia Passo-Fundense de Letras (Concurso Machado de Assis - 100 Anos de História)

Segundo Paulo Monteiro (Presidente da Academia Passo-Fundense de Letras), o sucesso desse concurso deve-se ao empenho de todos, mas absolutamente todos os acadêmicos; à colaboração da 7ª Coordenadoria Regional de Educação, também como um todo, e da direção, professores, funcionários e alunos de Ensino Médio das escolas envolvidas. A contribuição dos meios de comunicação social de Passo Fundo foi indispensável. Essa conjugação de esforços foi a responsável maior para que o concurso tivesse chegado a bom termo.

Orgulho Nacional, de Júlia Luvisa Gauer foi classificado como um dos melhores trabalhos do concurso “MACHADO DE ASSIS - 100 ANOS DE HISTÓRIA”.

Confira a resenha denominada de “Orgulho Nacional” da aluna Júlia Luvisa Gauer

Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro”. Este fragmento de Senhora, de José de Alencar, encaixa-se plenamente ao surgimento do mais notável escritor brasileiro: Joaquim Maria Machado de Assis. E foi em 21 de junho de 1839 que essa estrela nasceu. Filho de pai mestiço e mãe lavadeira açoriana, parecia não haver chance para o menino de saúde frágil, mulato, epilético e gago. Ele, porém, veio a surpreender a todos com seu singular talento.

Machadinho, para os íntimos, aos 12 anos de idade torna-se órfão de pai e mãe, sendo criado por Maria Inês, sua madrasta. Ela então, o matricula em uma escola pública, única que freqüentou. Autodidata e sedento por conhecimento, aprende francês e publica seu primeiro trabalho literário aos 16 anos, o poema “Ela”. Com 17, passa a trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional. É onde conhece Manuel Antônio de Almeida, diretor da tipografia e pessoa que incentivou Machado à carreira literária. Em 1858, passa a trabalhar como revisor e colaborador da revista Marmota Fluminense, onde cria seu mais influente círculo de amizades, do qual fazem parte Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, Gonçalves Dias e, é claro, Manoel Antônio de Almeida. Desde então, passa a publicar obras românticas, sendo Crisálidas a primeira. Em 1869 casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, durando o matrimônio 35 anos, que apesar de feliz, não gera nenhum herdeiro. É ela quem lhe apresenta os clássicos portugueses e a vários autores ingleses. Nesse ponto, o escritor já era considerado bem sucedido na literatura e possuidor de um seguro cargo público. Em 1887, Machado funda e se torna primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, permanecendo no cargo até sua morte.

Sua obra pode ser dividida em dois momentos. A primeira é onde ele publica suas obras de influência romântica: romances, contos e poesias. Apesar das aparências, Machado não se sentia satisfeito, pois sua lucidez, mente fervilhante e questionamento do mundo o deixavam inquieto. Intoxicado pela desilusão e o pessimismo europeus, passa a escrever com ironia e humor inteligentes, iniciando a segunda fase, de caráter realista, a qual o consagra o gênio da literatura brasileira. Publica em 1881 uma obra completamente original e diferente dos padrões da época: Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde um defunto narra sua história e vangloria-se por não ter deixado filhos. Em seguida, publica Quincas Borba e Dom Casmurro, outras famosas obras suas. Essa, mostra a ingenuidade do homem quando se apaixona, e, ironiza as teorias da época, principalmente o positivismo. Aquela, talvez seja a mais instigante. Até hoje não se sabe se Capitu, uma das protagonistas, traiu seu marido Bentinho com o melhor amigo, Escobar. Nem mesmo estudiosos de Machado de Assis conseguem desvendar esse mistério, apenas confirmando sua genialidade. Aliás, as mulheres de Machado possuem uma área de mistério e dissimulação. Conscientes de seus poderes sobre os homens, seduzem-nos para conseguir o que querem: fugir de suas tediosas rotinas ou de matrimônios arruinados. Isso pode ser notado explicitamente em D. Conceição, de Missa do Galo; D. Severina, de Uns braços, e em Sofia, de Quincas Borba. No geral, o casamento em si representa uma instituição falida em suas histórias.

Cosmopolita, reservado e cínico, o escritor preferiu escrever realizando uma análise profunda do ser humano, salientando suas vontades, defeitos e vaidades. Assim como em seu conto O Espelho, o gênio parecia possuir duas almas, a externa e a interna. A externa gostava do júbilo que recebia por sua fama e o fazia parecer sereno e pacato. Porém, sua alma interna era como lava incandescente, fazendo-o questionar o ser humano e o mundo a sua volta. Acostumado a disfarçar suas emoções desde jovem, utiliza tal característica em suas obras, não deixando o leitor se envolver ou criar laços afetivos com seus personagens através de sua narrativa. A todo o momento interrompe a história para falar e instigar seu leitor. Também trata dos temas universais em suas histórias, como a confusão de sentimentos, jogos de interesses, inveja, ciúmes e hipocrisia.

Machado de Assis morre de câncer no Rio de Janeiro em 1908, deixando muitos admiradores. Sua história ainda contraria a tese defendida pelo naturalismo, que afirmava o homem estar submetido ao meio. O gênio é um grande exemplo de vida, pois sua origem humilde não o impediu de ganhar o mundo e tornar-se uma das mais brilhantes estrelas da Literatura Mundial
."
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Sobre a autora:
Júlia Luvisa Gauer, tem 16 anos, e cursa o 3º ano do Ensino Médio, na Escola de Ensino Médio Garra, sendo orientada pelo professor Fábio Aroque Candaten.

Fonte:
http://www.escolagarra.com.br/

Academia Passo-Fundense de Letras (RS)

(Foto de Natália Monteiro)
Acadêmicos presentes à sessão de encerramento cultural do ano acadêmico de 2008.
Da direita para a esquerda: Jurema Carpes do Valle, Elisabeth Souza Ferreira, Craci Dinarte, Helena Rotta de Camargo e Dilce Piccin Corteze (sentadas).
Em pé: Marco Antonio Damian, Gilberto R. Cunha, Xiko Garcia, Rogério Sikora, Osvandré Lech, Paulo Monteiro, Getúlio Vargas Zauza, Darcy Pinheiro da Silva (de Cruz Alta), Santo Verzeleti e Alberto Rebonato.

A Academia Passo-Fundense de Letras, antes denominada “Grêmio Passo-Fundense de Letras”, surgiu no dia 7 de abril de 1938. O termo inicial de fundação foi assinado pelas 25 pessoas presentes ao ato. Conforme o que foi decidido na reunião preliminar de 31/03/1938, teve lugar na Prefeitura Municipal de Passo Fundo, no dia 7 de abril de 1938, às 20h 30min, a sessão de fundação do Grêmio Passo-Fundense de Letras.

Sante Umberto Barbieri, bispo da Igreja Metodista, deu início à reunião, usando da palavra, na qualidade de delegado da Academia Rio-Grandense de Letras, propôs que fosse aclamado presidente da solenidade que ora se iniciava o sr. Arthur Ferreira Filho. Para secretariar os trabalhos, foi convidado o dr. Verdi De Césaro, que redigiu extensa ata relatando o histórico acontecimento.

A primeira diretoria eleita e empossada, ficou assim constituída: Arthur Ferreira Filho, presidente; Gabriel Bastos, vice-presidente; Sante Uberto Barbieri, secretário geral; Verdi De Césaro, 1º secretário; Lucila Schleder (Ronchi), 2º secretário; Daniel Dipp, tesoureiro e Antônio Athos Branco da Rosa, bibliotecário.

No dia 29/04/1939, às 20h 30min, conforme ata nº 04, foram aprovados os estatutos da entidade.

O Grêmio Passo-Fundense de Letras, no dia 16/09/1939, foi reorganizado, começando, assim, a sua segunda fase de atividade, que culminou com a transformação do Grêmio em Academia, por iniciativa do acadêmico Celso da Cunha Fiori. Esse fato ocorreu no dia 20/05/1960, em sessão presidida pelo confrade José Gomes, presidente do Sodalício.

A Academia Passo-Fundense de Letras foi instalada em 07/04/1961 conforme ata nº 01, livro 045 estando na presidência o acadêmico Celso da Cunha Fiori. Sua diretoria estava assim constituída: Celso da Cunha Fiori, presidente; Túlio Fontoura, vice-presidente; Mário Braga Júnior, 2º vice-presidente; Arthur Sussembach, secretário geral; Paulo Giongo, sub secretário; Verdi De Césaro, tesoureiro; Rômulo Cardoso Teixeira, 2º tesoureiro e Gomercindo dos Reis, bibliotecário.

Em 1961, a Academia Passo-Fundense de Letras foi declarada de utilidade pública, conforme projeto de lei nº 1/61, no governo do prefeito Benoni Rosado e Centenário Amaral, presidente da Câmara de Vereadores.

Presidentes da APL (1938 a 2008)
01 - António Augusto Meirelles Duarte (sete mandatos)
02 - Antônio C. Oliveira (dois mandatos)
03 - Arthur Ferreira Filho
04 - Aurélio Amaral
05-Benedito Hespanha (cinco mandatos)
06 - Celso da Cunha Fiori (seis mandatos)
07 - César José dos Santos
08 - Delma Rosendo Gehm
09 - Francisco Antonino Xavier e Oliveira
10 - Gelásio Maria
11 - Irineu Gehlen (seis mandatos)
12 - Ironi G. Andrade
13 - José Gomes
14 - José Pedro Pinheiro
15 - Mário Daniel Hoppe
16 - Nídia Bolner Weingartner
17 - Octacílio de Moura Escobar
18 - Paulo Renato Ceratti (quatro mandatos)
19 – Paulo Monteiro (atual)
20 - Ricardo José Stolfo
21- Romeu G. S. Pithan
22 - Rômulo Cardoso Teixeira
23 - Sabino Ribas Santos
24 - Sady Machado da Silva
25 - Santina Rodrigues Dal Paz
26 - Saul Sperry Cézar
27 - Túlio Fontoura
28 - Umberto Lucca (três mandatos)
29 - Verdi De Césaro (dez mandatos)
30 - Welci Nascimento

Academia Passo-Fundense de Letras se localiza na Av. Brasil Oeste, 792 – CEP: 99010-001 – Passo Fundo – RS - Brasil

Fontes:
http://jornaltelescopio.blogspot.com/2008/12/academia-passo-fundense-de-letras.html
http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=9295&cat=Ensaios&vinda=S

Tarcísio Costa (A Poesia do Grande Poeta)

Como qualquer poeta,
Fico perplexo com a poesia dos grandes poetas,
Eles nos trazem os seus sentimentos
e o seu pensar

Com inflência no nossos comportamento.
Ninguém consegue esquecer a sua poesia,
Ela permanece na nossa lembrança
Por toda a vida...

Se ela fala de amor,
Sentimo-nos figura central do poema,
Ressuscitam as nossas paixões...

Se fala de saudade,
O faz de forma comovente,
Fica comprovada a junção da dor e do prazer.

A saudade é, realmente, uma dor
Que só é sentida por quem ama.

Os grande poetas
Quando, na sua poesia, mostram desilusão,
Nos deixam caídos, até com medo....

O grande poeta cria na sua imaginação,
Aquilo que sente o os corações,
O cerne de suas palavras nos atingem.

Assim, é a poesia do grande poeta,
Encanto e magia.

Silvino Potêncio (... O Beco da Lama!)

José Barcelos (Sexta à noite)
Ali no Beco da lama,...
Onde eu passo todo o dia.
Tem mau-cheiro e muita má fama,
mas também muita folia!...

Ali no Beco da lama,
tem pagode, tem seresta, tem lá muita cantoria.
...tem noites de dor e cama!
- E tardes de estrepolia.

Ali no Beco da Lama,
Onde vive a boemia...
Muita birita, muita cana!
Corre o verso e a poesia...
Solta ao som da viola, do pandeiro, e o cavaquinho,...
Ali no Beco da Lama, o tempo passa devagarinho.

Por lá passo todo o dia,
É p'ra cumprir minha promessa.
De tirar o pé da lama e viver sem muita pressa!

Ali no Beco da Lama, em tardes ensolaradas,
Fecha a rua o tempo todo!...
Quem passa por lá não passa,
... sem escutar o som do lodo.

Ali no Beco da Lama... não existe mordomia,
Todo mundo bebe e canta, ao som de algum violão.
Tem cadeira e tamborete, tem até gente no chão
A dormir pela calçada, depois de muita cachaça...
Ali no Beco da Lama, a tristeza não tem graça!

Ali no Beco da Lama, onde eu passo todo o dia,...
Muito folião ali passa, em dias de muita alegria.
- Tem poetas, escritores, pichadores da agonia,
Pensadores e muitos cantores, das coisas da boémia.

Imitantes, intrujões da voz do Nelson Gonçalves,
Outros tantos são os figurões da politica como os "Alves".
Dos <> e dos outros tipos, ali todos se consagram.
Ali no Beco da Lama, vozes roucas não se apagam.

...depois da primeira lapada,
Ali no Beco da Lama,
onde eu passo todo o dia
tem café quente, e até caldo!,... de Cana p'ra boemia!

Ali no Beco da Lama,
A rua fica entulhada.
De mesa em mesa ela chama
Ó garçom!...sai mais uma!, e bem gelada!

Traz mais uma rapidinho!,...
- aqui p'ro amigo cantor.
Ele não bebe cachaça,
- mais, mais... ele me faz versos de amor.

Cá por mim só bebo Cana,
Nem que seja da quinta cabeça!...
Canto o meu verso a quem ama,...
Que de mim jamais se esqueça!!!.

Que ali no Beco da Lama,
- onde eu passo todo o dia,
Me vejo a sumir no cansaço,
... de viver a poesia!
*******************
Fonte:
Colaboração do autor Silvino Potêncio - Emigrante Transmontano em Terras Potiguares

Arlene de Lima (Maria-Fumaça)

José Barcelos (Maria Fumaça)
"Café-com-pão, café-com-pão, café-com-pão"... Era o barulho da valente maria-fumaça, que ainda guardo na memória.

Ziguezagueara, desde tempos remotos, rompendo belas paisagens envolvidas por nuvem de vapor, em fantásticos cenários. Rolava sobre trilhos, parecia um arremate faiscante da saia verdejante das matas que atravessava.

Luzindo com as ferragens de cobre brilhando ao sol sobre rodas e eixos, rodando, girando. Nos trilhos deslizava sem parar, comendo os dormentes. Píu!... Píu!... Apitando, nos chacoalhando, lá ia a maria-fumaça às estações; gente embarcava e desembarcava, pessoas cansadas a caminho do lar.

As novas gerações das décadas recentes não experimentaram a sensação de uma viagem em maria-fumaça.

Tinha uns 10 anos; coloquei meu vestido novo, lindo, para uma pequena viagem de trem. Meu coração palpitava de emoção com o "café-com-pão, café-com-pão", que meus ouvidos docemente ouviam. Lá veio o garçom vendendo chocolates... Admirava as paisagens, de repente uma faísca caiu e queimou-me o vestido novo. A sensação foi ruim, mas não chegou a tirar minha alegria, pois a maria-fumaça fazia parte da minha vida.

Margeava os rios, indo em paz. Muito fogo... muita fumaça... espantava rebanhos e levava o progresso a muitos rincões.

O trem está na alma brasileira. Quantas histórias sobre os seus trilhos foram presenciadas. Gente do sítio e da cidade aglomerava-se nas estações, nos finais de semana, para ver o trem chegar e partir.

Eram tantos vagões puxados pela potente e espalhafatosa maria-fumaça. Hoje temos a pioneira 800, estacionada, adormecida, à entrada do Parque do Ingá. Ali está: bonitinha, bem reformada, quase novinha, essa linda lembrança que tanta alegria me deu na infância e à cidade de Maringá.

Os trens tinham um vagão exclusivo para bagagens, alguns carros de segunda classe, outros de primeira, destinados aos mais ricos, e vagões com leitos, que, geralmente, eram os últimos. O carro-restaurante servia comida saborosa, por isso estava sempre lotado.

Mais tarde, chegam as locomotivas a diesel, os comboios aumentaram de tamanho: acopladas, duas ou três possantes máquinas arrastavam sem dificuldade incontáveis vagões.

Às vezes, partiam com centenas de cabeças de gado, café, madeira e cereais. Os trens da época, no entanto, carregavam muito mais: animais, arados, mudanças, carros, máquinas, todo tipo de material de construção.

A maria-fumaça também guarda a memória das histórias de amor, os lenços acenantes de um adeus.

O apito do trem, o "café-com-pão, café-com-pão"... ficaram-me gravados na mente, deixando-me na alma saudades.

Hoje há trens confortáveis, rápidos. Em países desenvolvidos, são sinônimo de solução, segurança, eficiência, modernidade. O Brasil precisa recuperar o seu tempo perdido.

Lá vai rodando, girando...
Adeus “Maria-Fumaça”.
Píu... píu... píu... píu... apitando,
e a saudade é uma graça!
Maria-fumaça, lembrança dos meus lindos sonhos, repousantes no coração, pois me leva a viagens e traz-me recordações.
===============
Sobre a Autora
Arlene de Lima (1937)
Cadeira nº. 15 da Academia de Letras de Maringá – Patrono: Fagundes Varela
Assistente social. Foi vereadora, fundadora e presidente do Lar Betânia por 29 anos. Nasceu em São Sebastião do Paraíso – MG, no dia 16 de julho de 1937. Autora de Vida que ensina viver, Estrelas do meu chão, Estrelas do meu caminho, Flores que cultivei, Estréia, Pérolas da alma e Mosaico de ternuras.

Fontes:
Academia de Letras de Maringá.
http://www.afacci.com.br/
Pintura =
http://www.josebarcelos.com.br/

Antonio Facci (Alento)


Acordava

Com a ponta dos dedos,
tocava, de manhã,
suavemente,
os cabelos de meu peito.
Eu acordava.
Simplesmente
acordava.
E ela sorria.
Simplesmente
sorria.
     

Almas Gêmeas

Sinto como se estivesse
flutuando, leve como
um pássaro a voar.
Os campos são verdes.
As colinas azuis.
Levito suavemente sobre as
nuvens.
Vislumbro a distância um vulto
de mulher toda vestida de
verde-esmeralda. Meu coração não
descompassa,
apenas se alegra.
Meus olhos sorriem.
Minhas mãos se estendem.
Vejo-a aproximar-se
suavemente sobre as nuvens
de algodão.
Sorri.
Estende as mãos.
Não nos tocamos.
Sentimos apenas a leveza do
momento.
     

Sorriso de Mulher

Mais belo que a flor,
apenas o sorriso da mulher
que a admira.
     

Fonte:
FACCI, Antonio. Alento. Disponivel em
http://www.afacci.com.br/

Antonio Facci (Alípio e Isabel)

Vindo do distante Portugal, juntamente com tantos outros imigrantes, aportou no Brasil ainda jovem, de compleição física avantajada, disposto a, nestas paragens, mesmo que enfrentando as maiores dificuldades que se lhe apresentassem, vencer na vida. Não importava que, para isso, tivesse que exaurir-se fisicamente.

Aqui chegando, levado por amigos e companheiros, foi logo agregar-se aos mais vigorosos e, mercê de sua força física e disposição de luta, encontrou trabalho como madeireiro. Trabalho duro. O trançador, empunhado inicialmente meio sem jeito, a ser empurrado de lá para cá com rapidez e energia, provocava uma transpiração exagerada, regando o chão com seu suor. Outras vezes, empunhando o machado, sangrando árvores, deitando ao chão perobas, cedros, pau-d' alhos, alecrins e tantas outras, que tombavam vencidas pela força daquele jovem português, disposto a vencer sem reclamar e nem em sonho fraquejar.

Passados os tempos, já com algumas pequenas economias, pensou: "Ora, pois, não está na hora de encontrar uma rapariga que me faça companhia?"

Assim pensando, encontrou, na vila próxima ao seu trabalho, uma formosa jovem brasileira, filha de espanhóis, que lhe agradava os olhos. Procurou conhecê-la melhor. Percebeu que não apenas "lhe agradava aos olhos", mas enchia também seu coração endurecido pela labuta diária. Aproximou-se, conheceu sua família.

A cada dia mais se apaixonava.

Ela, moça simples, embora brasileira, falava com o sotaque próprio de filhos de imigrantes que conservavam a tradição de, em casa, manter o idioma de sua pátria. Ela gostou muito do português. A família se afeiçoou a ele. Era trabalhador, dedicado e, acima de tudo, honesto. Ah, sim, honesto. Essa era a condição primordial para ser recebido naquela família.

Casaram-se. Com o passar dos anos, vieram os filhos. Foram quatro. Todos educado na forma rude que o ambiente cultural impunha. Mas o desenvolvimento na região veio trazendo escolas, comércio, energia elétrica, estradas, enfim o progresso chegou de mansinho, mudando a vida e os costumes daquele casal. Os filhos cresceram. Tornaram-se adultos. Um novo ambiente cultural fizera-se presente e, às vezes mesmo a contra gosto, os filhos encaminharam-se para outras profissões. Mais modernos, estudados, cada um buscando a realização pessoal, mas sempre ouvindo, obedecendo, procurando aplicar nas suas novas áreas de atuação os ensinamentos daquele rude casal que lhes dera a vida.
Os filho também encontraram seus companheiros e companheiras, formando novos lares. Os netos apareceram.

O português, antes forte e ativo, agora já via encanecer seus cabelos. A espanholita, outrora alegre e falante, sentia o peso dos anos. Não tinha mais as faces rosadas, o corpo perfeito, os cabelos sedosos. Mantinha, isto sim, a fé inabalável e a certeza de ter cumprido e seu dever e, principalmente, a missão de mulher, mãe, esposa e agora avó. Dura sim, às vezes. Mas, mesmo quando ralhava com os filhos e consciência fazia que aplicasse os castigos, mas o coração sangrava. O tempo, inexorável, marcava aqueles corpos.

Ela, de vez em quando, sentia algumas dores nas pernas. Algumas tonturas. Ele, embora sempre atencioso, poucas palavras de amor pronunciava. Nada de gestos carinhosos na presença de outras pessoas, mesmo que estas fossem as mais íntimas. Jamais um beijo em público. Jamais um afago, por mais simples na presença dos filhos. Agora velho, mantinha a tradição cultural em que fora educado. "Beijo é sinal de amor? Ora, lembre-se que Judas também beijou".

Já septugenário, o português ouviu da companheira:

-Não estou me sentindo bem. Minhas pernas doem muito.

-Ele, rapidamente, procurou um médico, internou-a no melhor hospital da cidade. Acompanhou todos os exames. Não entendia nada do que estava escrito naqueles papéis, mas ouvia dos médicos, estes seus amigos, as explicações para o terrível drama que se avizinhava. A conselho médico, transferiu a esposa para um hospital onde os recursos eram maiores em uma cidade vizinha. Não entendia bem o que estava acontecendo, mas assinou uns papéis que autorizavam a cirurgia.

Alguns dias depois, veio a alta médica. Finalmente voltaram para casa. Todos estavam bem? Sim. Tudo como antes, a não ser que a formosa espanholinha chegava de volta a casa, rodeada por todos os filhos e amigos, amparada pelo marido, com uma das pernas amputada!

Passaram-se os dias, meses. O português sempre à cabeceira da companheira, cuidava a seu modo de tudo. Ia buscar alimentos na cozinha, ministrava medicamentos, mudava as roupas do leito.

Para atender necessidades comerciais, viajou. Distante, sofreu um acidente de automóvel. Ganhou algumas fraturas, escoriações diversas. Foi internado. Na cama, perguntava sempre:

- Avisaram minha mulher?

Informado de que não, ficava satisfeito. Era preciso evitar que qualquer notícia desagradável viesse a perturbar a pessoa que o acompanhara por toda a vida. Melhorou, voltou para casa. Lá estava, no mesmo leito, a companheira.

Certa noite, fortes dores na outra perna da companheira. Os mesmos hospitais. Os mesmos médicos. O mesmo resultado. A mesma volta. Os mesmos amigos. Os mesmos familiares. Apenas uma pequena diferença: não tinha mais a perna que restava. Mais uma amputação se concretizara.

O português continuou ali, o pensamento em Deus. Os filhos iam e vinham amorosos. Os amigos diariamente a lhes prestar solidariedade. Ele ali, ao lado da companheira.

Certo dia, apenas para a regularização de documentos, foram visitados por um notário público. Este velho amigo da família, encontrou o encanecido português sentado à sala. Trocaram cumprimentos. Falaram sobre tudo, problemas econômicos, filhos, saúde. Jamais qualquer alusão ao sofrimento foi ouvido pelo notário, vindo dos lábios do rude português. Mais tarde adentraram o quarto onde permanecia, onde permanecia a espanholinha. Explicaram o motivo da visita. Ela sentou-se auxiliada pelo companheiro, que, solícito, improvisou uma mesa, onde foi apoiado o livro. Algumas palavras simples foram trocadas. Depois, naturalmente tendo já acomodado docilmente a companheira em seu leito, dirigiram-se ao companheiro e o notário à sala. Ele sentou-se à mesa. Apanhou uma caneta da mão do visitante. Debruçou-se sobre o livro. Demorou-se muito além do tempo necessário para apor a assinatura.

O notário percebeu que ele já havia assinado, mas silencioso e respeitoso, nada disse. Sabia que aquele ato agora firmado, nada continha que se referisse à situação da saúde da companheira. Mas ela entenderia? Por isso, o silêncio e a demora. A dor interior pe;a possibilidade de estar fazendo sofrer a companheira estava, naquele momento, simbolizada na figura encanecida e septuagenária que, de cabeça baixa, demorava-se sobre o livro.

Levantou-se, não limpou os olhos. Nenhuma lágrima aparecia. O notário apanhou o livro e, ao fechá-lo, encontrou duas gotas d'água no rodapé da página, ao lado das assinaturas de Alípio e Isabel. Sutilmente, apanhou o lenço, enxugou-as; porque tinha documento. Mas seu desejo era deixá-las ali. Conservá-las para sempre. Derramadas pelo anteriormente rude português , forte e destemido, chefe de família, pai e avô extremoso, estava ali a mais sublime prova de amor que jamais presenciara.

Não era o amor externado por gestos estudados, novelescos. Era o amor marcado pelo sentimento puro. Do homem que se debruça ao lado da companheira mutilada e, mesmo não fazendo carinho em seus cabelos brancos ou lhe osculando as faces com seus rudes lábios, olha-a com firmeza e pureza de coração e alma. E ela retribui o olhar com a mesma intensidade, emoção e pureza.

É o verdadeiro amor.

Naquele momento, esquecem-se da dor física. Não percebem nem mesmo que os anos se passaram. Voltam a ser os jovens que pela primeira vez se encontraram na festa da roça, quando seus olhos se cruzaram e nunca mais seus corações deixaram de transmitir um ao outro a esperança, o respeito, a emoção e o verdadeiro amor dos que têm almas gêmeas e pensamentos absolutamente puros.

Aquelas lágrimas. Aquele olhar. Aquele ambiente. Tudo faz transformar o que seria um quarto de dor em exemplo de amor e fé para qualquer pessoa que tenha a ventura de aproximar-se dali.

Por certo, quando Deus os chamar para o seu reino, os anjos bons os farão novamente se encontrar para a continuidade desse dílio tão terno e puro.

Fonte:
FACCI, Antonio. Do Cio ao Sombrio. Disponivel em http://www.afacci.com.br/

Gianfrancesco Guarnieri (Murié e as alturas)



Acionaram o elevadorzinho de madeira e Murié fechou os olhos, segurando firmemente a tábua que servia de balaústre. Uma subida de nunca mais se acabar. Mas era um prédio pequeno, atingiria oito andares somente. Chegando ao topo, de um salto, ganhou a plataforma de concreto e, não conseguindo dominar-se, deixou-se cair sentado. Agarrou os joelhos com força, procurando conter o tremor que lhe sacudia o corpo. O sol já ia alto e abrasava a plataforma imensa de onde brotavam, hirtos, grupos de arames em ponta. Olhou para o alto semicerrando os olhos, reforçando-lhes as rugas. O suor escorria-lhe pelo peito nu. Deslumbrado, escondeu a cabeça entre os braços e deixou-se ficar, clarões vermelhos explodindo na escuridão, coração aos pulos e aquele tremor convulsivo. A mão de alguém pesou-lhe nos ombros. Levantou a cabeça com susto, temendo fosse o mestre-de-obras. Era Pedro. Sorriu contrafeito e tentou uma explicação:

- Vertigem. Tá me dando agora quase todo dia. Mariana diz que deve ser da vista. Eu já não. Acho que é do estômago. Me dá um vazio por dentro cada vez que subo…

- Tá é precisando de descanso, velho!

- É! Também pode ser.

Tentou erguer-se. As pernas continuavam trêmulas. Ao ver, lá embaixo, apequenados pela altura, os companheiros trabalhando, os automóveis cruzando-se na rua, agarrou-se com força ao braço de Pedro e chorou igual criança. Procurando acalmá-lo, Pedro levou-o, devagarinho, até o centro da plataforma. Murié soluçava, lágrimas rolando pelo rosto tisnado. A cada sacudir do corpo curvo do pedreiro, o amigo batia-lhe nos ombros, palmadinhas de consolo, numa solidariedade muda, pois palavras não cabiam. E se Murié chorava estava no seu direito que jeito mais nenhum não tinha. Pedreiro velho e acabado, com vertigem e tonturas; pedreiro com raiva do espaço é pedreiro findo, já sem forças e sem armas para o trabalho. Que é dado ao homem escolher um momento para desabafo. Depois, quando Murié - mais calmo e já no térreo - mastigava o conteúdo parco da marmita, ponderou Pedro com siso:

- Talvez, o melhor seja mesmo procurar outro modo de sustento. Trabalho mais calmo. Quem sabe, um emprego de vigia. Na construtora mesmo pode se encontrar colocação…

Era um fato. Murié murmurou um assentimento. Não via também outra solução. Solução a meio, insatisfatória. Que Murié tinha vida difícil como a de todo pobre, é claro e limpo para quem olhe o mundo com olho honesto. Mas com esforço e às custas da saúde, conseguira manter em nível de vida mínimo: uma mulher mãe de quatro filhos. Três do primeiro casamento. Um, seu. Tratava os quatro sem distinção. O que comia um comia outro. E mais, vestia o pequeno com a sobra dos maiores. As roupas do caçula, tendo passado de corpo em corpo neles se mantendo enquanto cabiam, eram remendos só. Remendos limpos, bem lavados e até recendendo a capim-cheiroso, que a mulher era de capricho e trabalhadeira.

E Murié tinha lá seus orgulhos: de Mariana, do aprumo dos filhos, dos edifícios. Trabalhara num sem número de construções. Mesmo nas grandes. Tinha satisfação contemplando a obra feita. Ele e os outros. Erguendo aquelas estruturas enormes, onde gente morava, onde carros entravam, carros bonitos, de todas as cores. E as pessoas também eram bonitas. Existia um prédio que era o que Murié mais gostava, Gigante de vinte andares, envidraçado, forte. E, à saída do trabalho, não poucas vezes Murié se deixava parado, olhando, entusiasmado com a obra feita. Depois, voltava para a casinha alugada, minúscula e distante, mas bem melhor que o barraco em que começara a vida.

Deixar o emprego, procurar outra colocação. Retrocesso que desgostava Murié. Não poderia admitir a diminuição da entrada mensal. Logo agora que pensava em aumento. Cada tostão, todo contadinho, organizado, aluguel, comida e as doídas prestações consumindo tudo. Não. Mariana estava com a razão. Aquelas vertigens deviam ser causadas pela vista. Os olhos não iam bem. Iria ao Instituto. Resolveria a coisa. Óculos, eis tudo…

Comeu a banana, que Mariana se lembrara da sobremesa e, resolvido, voltou para o elevador, subiu e caiu.
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Fontes:
GUARNIERI, Gianfrancesco. (Organização: Worney Almeida de Souza). Crônicas de 1964. Ed. Xamã, 2008.
Imagem = http://www.senai.fieb.org.br

Obra dramática de Guarnieri resgata coletividade



A convicção de que a realização do homem só se completa por meio do resgate da coletividade não se desgastou sequer sob o sucessivo impacto de golpes que a História recente desfechou sobre os projetos e as práticas socialistas

Cristãos e marxistas partilham pelo menos um artigo de fé: ninguém se salva sozinho. Na obra dramática de Gianfrancesco Guarnieri, construída peça a peça por mais de quatro décadas, a convicção de que a realização do homem só se completa por meio do resgate da coletividade não se desgastou sequer sob o sucessivo impacto de golpes que a História recente desfechou sobre os projetos e as práticas socialistas. Em Eles Não Usam Black-Tie, primeira peça de um jovem autor de 24 anos que estreou com grande impacto no Teatro de Arena de São Paulo em 1958, entrava em cena, pela primeira vez nos palcos brasileiros profissionais, um coletivo de trabalhadores brasileiros cujo dilema ético era a solidariedade de classe. O operário Tião, filho de um líder da classe trabalhadora, trai os companheiros ao furar uma greve e é, ao final, exilado do morro onde vivem a família e a moça com quem pretende se casar. Renuncia, enfim, ao seu lugar de classe em nome do bem-estar individual.

A repercussão dessa primeira peça entre a crítica e o público fez dela o marco inaugural de uma nova etapa do teatro brasileiro. Assim como para os trabalhadores, não haveria salvação individual para os artistas e intelectuais. Era imperioso, portanto, encontrar alternativas para a expressão estética do ideário coletivista. Essa primeira peça questionava a um só tempo os cânones da dramaturgia e da encenação do teatro burguês. Para encená-la, o Teatro de Arena de São Paulo criou um espetáculo em que a escassez de materiais e a mobilidade da vida da população operária se reproduziam nos artefatos em cena, na disposição circular do espaço e na interpretação que procurava, nos gestos e na voz, a reprodução das características culturais da comunidade da favela. O que se impunha como valor, ao mesmo tempo dramatúrgico e cênico, era a autenticidade.

Fenômeno aos 25 anos

Sábato Magaldi observaria mais tarde que o conjunto, dirigido por José Renato, “não seguiu também a pista falsa do pitoresco do morro, despreocupando-se da tarefa, quase impossível na arena, de mostrar a cor local”. Com esse despojamento material e essa tônica no valor testemunhal da expressão, o espetáculo peregrinou por diversas capitais brasileiras, foi apresentado em locais inusitados como circos e sindicatos, e tornou-se pioneiro de uma estratégia que se tornaria em breve usual entre os grupos de arte militante: ir à procura da classe social que protagonizava o drama.

Alguns desses procedimentos de concepção e produção da obra dramática estão gravados como marca de origem nas peças subseqüentes de Guarnieri. Em primeiro lugar o foco concentrado sobre a situação de classe das personagens e do drama que protagonizam. As situações, as opções morais, o ser das suas criaturas, só se concretiza dramaticamente na interação social. Gimba, que estreou em 1959 em uma produção do Teatro Popular de Arte dirigida por Flávio Rangel, era um experimento no palco italiano que iluminava a vida da comunidade da favela carioca sob outro ângulo, o da marginalidade. A mitificação do transgressor, uma constante na experiência das comunidades pobres que até hoje intriga a sociologia bem-pensante, servia de pretexto para exaltar a potência criadora de uma comunidade excluída da riqueza e confinada nas encostas dos morros. Com essas duas peças o dramaturgo é, com apenas 25 anos, um fenômeno, como nota Décio de Almeida Prado: “Em menos de um ano e meio de atividade pública como autor, Guarnieri já teve certamente mais espectadores do que a maioria dos nossos dramaturgos em toda uma existência dedicada ao teatro”.

O ponto de equilíbrio com A Semente

Com A Semente, peça que estreou em 1961 no Teatro Brasileiro de Comédia sinalizando uma alteração nos rumos de um conjunto até então de perfil culturalista, também dirigida por Flávio Rangel, a fase de caracterização, de namoro um tanto quanto idílico com as virtudes de proletariado, cedia lugar a uma impiedosa análise das virtudes e dos vícios da militância comunista junto ao operariado. Em perfeito equilíbrio, os dois pratos da balança se ofereciam à apreciação do público. No protagonista Agileu Carraro, um sofrido militante curtido por 20 anos de luta, é notável a entrega ao bem-estar coletivo, o desprezo pela felicidade pessoal e a confiança inquebrantável no futuro. Mas são também traços inalienáveis dessa integridade entre teoria e prática a insensibilidade, a incapacidade para a relação afetiva e a argúcia do aproveitador que, em nome da “oportunidade política”, explora a dor dos seus companheiros de fábrica. “Política é incompatível com sossego!” - afirma Agileu em uma reunião - “E pouco me importa que sua mulher esteja doente ou que seus filhos comam terra. Há muitas mulheres doentes e muitos filhos comendo terra. Muitos filhos mortos - e a hora é de ação.”

As crises internas do Partido Comunista, nessa ocasião disciplinado por uma orientação internacionalista nem sempre adequada à realidade brasileira, eram representadas por cenas que criticavam agudamente a burocratização. Por outro lado, a selvageria do comportamento patronal permanecia fiel ao realismo, mostrando que o simples cumprimento da legislação trabalhista em vigor (bem menos do que luta revolucionária) demandava dos trabalhadores uma luta permanente. Pelo equilíbrio de forças e pelo perspectivismo consciente, que abordava a luta proletária pelo ângulo do afeto, incluía o ponto de vista das mulheres, detalhava a desvalorização do valor do trabalho e estabelecia, a partir desse patamar concreto, a discussão política, essa peça permanece até hoje como uma das mais complexas e perfeitas realizações do corpo da dramaturgia brasileira. Seus aspectos contingentes, ligados à existência de uma militância comunista, contribuíram para alijá-la do repertório contemporâneo. Relida e reencenada hoje, no entanto, parece-nos de um vigor trágico e pode-se dizer que atualiza o conflito grego entre as exigências da polis e a necessidade individual. De qualquer forma, seus contemporâneos souberam reconhecer de imediato a importância da peça. De um lado da trincheira política o Estado e a Igreja se obstinaram em condenar a peça enquanto, do outro, artistas, intelectuais e jornalistas se uniram para defendê-la.

Desafio com a camisa-de-força da repressão

Falar abertamente sobre a atuação dos comunistas sob a batuta conservadora de Jânio Quadros e no interior da atmosfera fanática e dualista da Guerra Fria era, já nessa ocasião, um desafio considerável aos poderes estabelecidos. Em 1964, quando o Arena apresentava no seu repertório O Filho do Cão, uma peça que dava continuidade à investigação da realidade brasileira enfocando a exploração do misticismo em uma comunidade de agricultores miseráveis, a situação política do país se radicalizava institucionalmente por meio de um golpe militar. A temporada, interrompida por uma medida cautelar enquanto o grupo esperava para ver quais os riscos que efetivamente corria, não foi retomada. Para um autor em evidente processo de verticalização temática - a peça enfrentava o aspecto auto-destrutivo da miséria cultural dramatizando um episódio de infanticídio - impunha-se o freio inelutável de novas condições históricas.

Para Guarnieri, como de resto para todos os artistas e intelectuais da sua geração, os 20 anos da ditadura militar significaram ao mesmo tempo uma camisa-de-força imposta aos seus projetos originais e um estímulo para propor formas de comunicação que, de alguma forma, conseguissem driblar a mordaça. Os musicais do Arena, obras em colaboração onde é possível distinguir a sua marca nas tônicas da poesia e na ênfase dada à esperança, abandonavam a trilha do realismo documental e enveredavam por narrativas de valor analógico. Arena conta Zumbi (1965), Tempo de Guerra (1965) e Arena conta Tiradentes (1967) consolidaram um novo tipo de musical brasileiro, com uma estrutura fluida e uma lírica combativa inspirada no modelo brechtiano, exortando à resistência (no caso dos dois primeiros espetáculos) e encontrando uma forma original para a autocrítica dissimulada da atuação da esquerda no caso de Arena conta Tiradentes.

Galeria de papéis

De 1964 a 1970, data em que a prisão e o exílio de Augusto Boal determinam o fim do núcleo ideológico do Arena, o dramaturgo Guarnieri praticamente se dissolve nesse empreendimento coletivo de resistência cultural. Escreve em conjunto as peças, compõe músicas em parceria e se responsabiliza pela interpretação de personagens com um talento que lhe garante até hoje um lugar incontestado na galeria dos grandes intérpretes do teatro brasileiro. Quem já teve o privilégio de ver no palco o ator Gianfrancesco Guarnieri, não o esquecerá.

Talvez se deva a esse trânsito simultâneo entre o palco e a escrita - e não só ao treino forçado para driblar a repressão - a ênfase no simbólico das suas peças escritas após o fechamento do Teatro de Arena de São Paulo. Escreve peças menores, curtas e nitidamente circunstanciais, para expressar de modo direto os efeitos da opressão sobre a consciência e os hábitos de uma população mantida deliberadamente na irresponsabilidade política ou para retratar, sob a forma de vinheta, aspectos da experiência militante. São desse teor duas peças curtas escritas para as “feiras de opinião”, espetáculos compostos de peças de diferentes dramaturgos.

Mas além da opinião, da reiteração do credo político e ideológico, dá continuidade a um projeto pessoal de fazer incidir o foco dramatúrgico sobre a realidade que lhe é contemporânea, prescindindo cada vez mais do instrumento do realismo e incorporando ao texto aberturas para a música, para a expressão poética e para a inventividade plástica da encenação.

Um Grito Parado no Ar

Castro Alves Pede Passagem estreou em 1971 com uma estrutura semelhante à dos musicais do Arena. A narrativa da biografia e dos feitos do poeta do povo inseria-se dentro da moldura pervertida de um programa televisivo populista. Apropriado pelo reino da mercadoria, o idealismo tornava-se também um produto inócuo, enfraquecido na sua potência mobilizadora e transformadora. Com Um Grito Parado no Ar, inversamente, o meio de comunicação adotado pelas personagens - neste caso o teatro - era capaz, por si só, de extrair água de pedra. Considerado quase unanimemente um dos pontos mais altos do teatro brasileiro dos anos 70, o texto dispensava as minúcias narrativas para concentrar-se em um único ato simbólico.

Uma trupe de artistas ensaia, por meio de improvisações, um espetáculo que entrará em cena em um prazo máximo de dez dias. Não há dinheiro para o espetáculo, o reduzido equipamento vai sumindo durante a ação porque os credores vêm retirá-lo e, por fim, até a luz do teatro é cortada. No entanto, durante a improvisação, a alquimia do teatro se completa e, à luz de velas, os artistas cumprem a dupla missão de transformar-se e transformar a realidade porque, apoiando-se em documentos, constrói personagens de valor universal. Ao cândido simbolismo da representação que se mantém viva sob a chama de uma vela associa-se a complexidade da transformação da matéria histórica - indicada no texto pelo depoimento de populares - em signos de profunda significação para os indivíduos e para a sociedade.

Essa linguagem meio cifrada, que oculta para estimular a atividade analógica do público e, em grande parte, para preservar a comunicação emocional das obras, mantém-se até hoje como um traço característico dos textos de Guarnieri. Botequim, Ponto de Partida, Pegando Fogo Lá Fora, Anjo na Contramão e A Luta Secreta de Maria da Encarnação, que estreou em 2001, são, vistas como um conjunto, alegorias não só dos acontecimentos que moldaram a vida do País no último quartel do século 20, mas também a história íntima de todas as lutas travadas pela redenção dos oprimidos. Não são 20 ou mesmo 40 anos que estas peças simbolizam, mas “Séculos de luta, mulher! Séculos de luta que ninguém desfaz!

Fonte:
Mariangela Alves de Lima. Obra dramática de Guarnieri resgata coletividade. Jornal O Estado de São Paulo. Caderno Arte & Lazer. Variedades. Sabado, 22 de julho de 2006.

Gianfrancesco Guarnieri (Eu e o teatro: uma vida em seis atos)

Guarnieri afirma: “Para chegar ao povo, não é necessária uma nova arte no teatro brasileiro, mas sim uma nova cultura.”

Primeiro ato - De calças curtas

Cheguei da Itália com dois anos e fomos para o Rio de Janeiro. Meus pais eram músicos. Meu pai, maestro; minha mãe, harpista. Estive pouco com eles. Convivi muito, desde a infância, com empregada. Uma delas chegou à minha casa quando eu tinha sete para oito anos. Ficou muito tempo com a gente, uns 12 anos.

Boa moça a Margarida, ensinou coisas importantes para o menino Gianfrancesco. Os pais trabalhavam o dia inteiro, ensaiando ou dando concertos.

Ela me mostrou um lado da vida que, em outras circunstâncias, eu não teria visto. Falo com certa familiaridade de pessoas, convivências com outras classes e os jovens de hoje ficam espantados. Morei em subúrbio e conheço favela. Era um meio de trabalhadores. Mas andei roçando pelo marginalismo mesmo.

A vida do menino Gianfrancesco: brincar na rua, tinha suas turmas, patotas. Jogava futebol, com bola de meia, ou de papel, amarrada com arame. Quando uma bola destas rebentou, ele levou uma aramada no rosto. Até hoje tem uma marca. Era isso. Brincadeiras de escola. A parte mais chata mesmo era o estudo.

Até hoje tenho inveja dos meus filhos, porque esse tal de sistema pedagógico mudou muito. Durante minha infância o bom era não ir à aula. Juntava-se uma turma de gazeteiros e se jogava bola”.

Ele aprendia mais na rua. Até com as figuras típicas do bairro, as diversas Chicas Malucas que existem em todo canto. Aquele tipo miserável que perdeu tudo, que ficou sozinha, com quem todo mundo goza, brinca e também tem medo. O menino vai guardar lembranças importantes. Esses personagens vão aparecer mais tarde, em suas peças. Até os nomes são verdadeiros. A Romana, em Eles não usam black-tie. Ela existiu. Era a mãe da Margarida

Romana, uma mulher de muita sabedoria. Ignorante, não sabia ler nem escrever. Não ouvia rádio porque não gostava. E ficava em um canto, pitando e sabendo de tudo. Mulher que a gente não sabia a idade. Nem Margarida sabia. Essa mulher teve os filhos à beira do rio. Falava-se que a avó tinha sido escrava. Povão brasileiro, típico. Saiu do campo e ficou na cidade. Criou os filhos, uns oito ou nove. Morava todo mundo entulhado num quarto. Eu gostava muito de papear com ela, ouvir coisas do campo e da vida”.

A favela. Também existiu. O Morro do Chico, uma favela muito pequena. Ali mandava Gimba, que não era realmente um malandro. Era mais guarda-costas de bicheiro. Muito forte, forte e brigador. Desses de brigar com duas equipes de policiais e bater nos oito. Parece que despinguelou depois, bateu lá por cima e sumiu. Ficou sete dias sem aparecer.

Ele era muito respeitado. E eu podia, com dez anos, andar numa barra pesada, porque era amigo do Gimba. Depois soube que esse Gimba, respeitado e tal, abandonou o negócio de bicho e deve estar ainda como salva-vidas, vivendo de turista americano”.

1944 – fim da guerra, bem antes da queda de Getúlio. Época diferente, bem diferente desse clima de banditismo de agora.

Feijoada no morro, comida na mão, que é muito gostoso, até com aquele bolinho na mão. Gianfrancesco teve mulher em puxado de barraco. E a sábia da dona Romana fechando a janelinha que ele tinha deixado aberta, para deixar o casal à vontade.

Mulher genial. Eu tinha 14 anos e acreditava que tinha arranjado minha primeira mulher na vida. Não era assim. A Margarida tinha arrumado tudo. Fiquei muito chateado, pensei que era precoce e não. Era a Margarida que tinha acertado tudo, planificado. Sei disso, porque ao voltar para casa ela estava me esperando com uma gemada e brincando muito comigo”.

No teatro. Desde os cinco anos acompanhando as temporadas líricas, de pé, do poço da orquestra, ouviu Wagner inteiro. Gostava daquele negócio de palco. Uma mágica extraordinária, refletores, cenários, maquinaria. Conhecia o regisseur. Ópera ainda era muito conservadora. E o regisseur falava da cenografia, da direção. Também não lhe passava pela cabeça ser dessa profissão. Fazer faculdade, ter diploma de médico ou dentista, uma profissão liberal. Qualquer coisa assim lhe passava vagamente pela cabeça. E os pais não forçavam a herança artística. Achavam muito duro. Exigiam talento, talento.

Eles tiveram muito sucesso, mas foi uma briga. Nunca estavam satisfeitos com as condições de trabalho. Perfeccionistas. Quase todo músico sério é. Meu pai reclamava de tudo – ‘Não tá legal’. Meu pai era um cara que, depois do concerto, se cuspia no espelho. Ele achava que um artista, se fosse realmente um artista, passaria por um enorme sofrimento”.

No colégio de padres a primeira experiência de teatro, amador. Colégio de padres porque a patota da rua estava lá. Na parede do colégio o nome de Mário Brasini, o homem que começou a fazer teatro na escola, no ginásio Santo Antônio Maria Zacharias. E, no recreio, Gianfrancesco descobre que o rapaz que faz o “ponto” está faltando para o ensaio. E também está faltando alguém para representar o personagem de um velhinho, na peça Honrarás Pai e Mãe, uma dessas peças educativas dos salesianos, de fundo moral edificante.

O castelo pega fogo e o velhinho escapa do calabouço. Entra no salão do castelo e ele, o velhinho, que perdeu o filho, lê em voz alta o que está escrito em um quadro: ‘Honrarás Pai e Mãe’. Eu empolguei meus companheiros”.

Gianfrancesco se torna comediante. Passa a fazer chanchadas. E escreve sua primeira peça, satírica, alegórica, metafórica, uma parábola. Sombras do Passado. Esse negócio de alegoria não é de hoje. Gianfrancesco não suportava o vice–reitor do colégio, um sujeito que obrigava todos os alunos a andar em forma junto à parede, e o primeiro da fila tinha uma régua de vinte centímetros. Ninguém podia andar nem mais nem menos distante da parede do que isso. Gianfrancesco representava na fila: simulava desmaios, mentia que estava se sentindo mal. E o vice-reitor era gago: “segunda Aa”, “segunda Bb”.

Em Sombras do Passado, várias pessoas vão comprar uma casa. Mas eram dominados por uma pessoa prepotente. A peça só passou porque o padre que tomava conta do teatro era muito bom, até largou a batina mais tarde. E os estudantes logo viram que o personagem prepotente era muito parecido com o vice-reitor. Começaram a gritar seu nome durante a representação. Gianfrancesco representou muito bem, foi aplaudido e recebeu congratulações, junto com uma cartinha pedindo que se retirasse do colégio. Ficou então conhecendo a censura.

Voltei para outro colégio, o Franco Brasileiro, onde comecei a ter um súbito interesse pelo movimento estudantil, quando tinha 15 anos, e levei o negócio muito a sério mesmo. Vi que, se eu não gostava da escola, é porque algo estava errado nela. Percebi a importância da educação para o país e a pouca importância que ele dava a ela. Começou a me vir na cabeça o problema da dependência cultural, da colônia sempre colônia”.

Nesse processo Gianfrancesco Guarnieri chega a ser presidente da Associação Metropolitana de Estudantes Secundários, em 1953, e secretário-geral da União Nacional dos Estudantes Secundários. Por causa do movimento estudantil fica marcando passo no curso colegial.

Secundarista não era igual a universitário. A gente sentia que precisava pegar essa moçada e dar um pau na máquina”.

Apesar dos dogmatismos próprios do meio, Gianfrancesco vai abrindo sua cabeça, enfiando algumas idéias nela e mudando por outras antes que fiquem muito endurecidas. Porque, todo mundo sabe, quando uma idéia toma conta da cabeça, depois é muito difícil abandoná-la.

E mais uma mudança. A família decide se mudar para São Paulo. Os pais são contratados pela Sinfônica de São Paulo. Ficar no Rio de Janeiro já não era possível. E Gianfrancesco estava ganhando muito pouco nessa época, trabalhando para uma construtora, fazendo o pagamento dos operários, ouvindo todas aquelas reclamações na hora de entregar o envelope. Ao menos, em São Paulo, teria casa de graça. Mas aquelas coisas que tomam uma vida não vão desaparecer de repente. Continua a ligação, em São Paulo, com o movimento estudantil, um movimento que tinha expressão, com participação intensa nas organizações estudantis.

Foi aí que nós sentimos a falta de um trabalho de ordem cultural. Ninguém pensava nisso. Resolvemos, muito acanhadamente, montar alguns showzinhos na UPES, bem mambembes, e com aquela necessidade típica de interessar, de abrir, de fazer as pessoas acordarem”.

Assim, o menino Gianfrancesco Guarnieri, filho de artistas italianos, homem do povo, amigo no morro, fraterno com sua empregada Margarida, completa sua educação básica e parte para a conquista da parte do mundo que deve lhe pertencer. Começa o segundo ato desta existência.

Segundo ato - O estopim


Em 1948 começa uma revolução no teatro brasileiro. Ela não é acompanhada pelo nosso personagem. Mas ele vai descobrir isso mais tarde. Em 1948 começa realmente uma renovação, mas é mais uma importação do teatro que é feito nos grandes centros, no Exterior. Os paradigmas: a Comédie Française, Old Vic. Então se forma o TBC – Teatro Brasileiro de Comédias.

A elite paulista está fazendo seu teatro e chamando diretores estrangeiros importantes. Eles darão uma contribuição inestimável e irão se esgotar. Mas, se não houvesse este movimento do TBC, iria demorar bem mais o encontro do caminho pelas pessoas do teatro brasileiro. Esses homens, esses estrangeiros, vinham com um desconhecimento completo do país, trazendo o que tinham aprendido, por exemplo, na Academia de Roma. Este era Ruggero Jacobbi. E até que ele era um pouco diferente. Conseguiu descobrir Gonçalves Dias. E escrevia para teatro. E tinha uma peça muito boa, chamada Leonor de Mendonça. Bom Ruggero, de uma cultura extraordinária, uma memória incrível, lia a noite inteira, tinha insônia. Sempre, sempre. O TBC é um estopim. Surgem outras companhias. A de Maria Della Costa, por exemplo.

E, em 1952, a primeira turma de formandos da EAD – Escola de Artes Dramáticas – forma o Teatro de Arena. Não havia sede: só o entusiasmo de Zé Renato, Geraldo Matheus, Xandó Batista. E a turma se reunia em um barzinho da rua Teodoro Baima. Principal problema dos rapazes: enfrentar os problemas de produção. Ninguém tinha dinheiro. Portanto, todos tinham que descobrir uma forma de teatro viável, que pudesse se deslocar com facilidade, atingir o público sem depender das tradicionais casas de espetáculo.

Se não fossem estudantes, qualquer um poderia dizer: gente pretensiosa essa. Mas eram estudantes, e resolveriam seus problemas: fazer teatro realmente para estudante. O que tinha na época? O teatro de Paschoal Carlos Magno, o Teatro Douze, de doze. Todos tinham dado muita gente boa. Mas não era isso que os estudantes queriam.

E surge o cérebro, na forma de um estudante de arquitetura: o Vianinha. Gianfrancesco ainda é um estudante secundarista. Nesse processo, nesses encontros, resolve-se formar um teatro dos estudantes, com universitários e secundaristas. O pessoal se interessa muito e lá, no meio, estão Vianinha e Flávio Império. As citações desses nomes não são gratuitas. São os dois que conseguiram levar a situação até isto.

O primeiro espetáculo do teatro dos estudantes se transforma em uma festinha, um negócio para a “sociedade”, um “tebecezinho” de jovens, com a montagem de uma peça de Lennox Holmes.

Ambiente da época: fofoquinhas, dissenções internas, o teatro dos estudantes começava viciado, com todos os defeitos que se conhece.

Ah, as vanguardas! Em teatro se é de vanguarda só porque se alugou uma garagem e se resolveu montar ali um teatro? Não. Vianinha, Ruggero e os estudantes terão uma conversa a sério. Não, absolutamente, não é isso que eles querem fazer. Montam uma plataforma. Primeiro ponto: ir para as escolas, com um repertório diferente.

Também é necessário promover a iniciativa. E tudo fica um pouco confuso ainda. Outra peça de autor conhecido é montada, uma de Labiche. Parece que os rapazes não sabem como fugir do repertório tradicional, do interessante, do muito engraçado, do puro divertimento.

O TBC fazia isso muito melhor, mas os estudantes vão participar do festival com a peça Está lá fora o inspetor, de Priesley. Há uma badalação na época. O público gosta. Gianfrancesco ganha o primeiro prêmio de interpretação.

Na televisão a “grande dama” Cacilda Becker tem um programa, na TV Record, A Chance na TV. E o prêmio se acumulando, está em 15 mil cruzeiros, e o TPE não tem dinheiro, não tem dinheiro para comprar refletores. Todos se inscrevem: Gianfrancesco, Vianinha, Mariúsa Viana, Raul Cortez e até Pedro Paulo Uzeda Moreira, mais tarde um dos introdutores do psicodrama em São Paulo. Gianfrancesco tira o primeiro prêmio e não fica sequer com dez por cento dele. E está duro. Com esse dinheirinho já podia pensar em fazer algo na vida.

Surge mais uma vez Zé Renato, do Teatro de Arena, fazendo uma proposta para o TPE, para o pessoal do TPE funcionar como support cast nos espetáculos. E o Arena cederia material e assistência técnica. Já é 1955 e o Arena acaba de inaugurar o teatro da Teodoro Baima, que ainda cheira a tinta.

Aparecem os descontentamentos, principalmente entre o pessoal do Arena. Zé Renato era o que mais defendia essa turma jovem, identificada com os interesses do Arena e ainda representando um bom negócio, um grupo de talento à disposição e que não pesava na folha de pagamentos. Montagens seguidas. Em primeiro A Escola de Maridos, de Molière; logo depois uma peça classe B, Dias Felizes, Vianinha e Gianfrancesco decidem: teatro é mesmo o que querem fazer e o que não sabem fazer. Precisam estudar, fazer um curso intensivo, ler o que nunca tinham lido, dedicação full time. E passam o TPE para Beatriz Segall.

Velha mania de estudante. Eles chamam todo o pessoal da Escola de Artes Dramáticas, os críticos, eles levantam a questão e lá está montado, no Arena, um curso intensivo, e duzentas pessoas ficam acompanhando aquilo. Aulas sobre história do teatro, estética, interpretação, direção. Pela primeira vez alguns ouvem falar de Brecht, com Júlio Gouveia. Todo mundo discute muito, há uma intensiva troca de bibliografia.

Zé Renato era o diretor e colocava as coisas na prática. Mas não podia assumir sozinho a continuidade do trabalho. Sábato Magaldi sugere o nome de Augusto Boal. Para o pessoal o nome era afrancesado mesmo: August Boá. Ninguém o conhecia. Um sujeito que vinha dos Estados Unidos. E como todo mundo gostava dos Estados Unidos naquela época! Mas Sábato foi o passaporte para Boal, porque se interessava pelo teatro nacional, pela dramaturgia nacional. Augusto Boal, nada disso. Apenas um descendente de portugueses, nascido no Rio de Janeiro. É que ele tinha ficado algum tempo na Colômbia, estudando dramaturgia, e chegou querendo utilizar a turma nova, riscando a antiga, e ainda acrescendo gente, como Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio e José Serber.

Actor´s Studio: uma preocupação nova para o pessoal, através do cinema. Boal surge com essa idéia de pesquisar interpretação. Porque todos sabiam o que não queriam, mas não sabiam ainda o que queriam. Certamente não era o estilo do TBC, esse estilo do Sérgio Cardoso em Hamlet, da Maria Della Costa. Não, vamos estudar um comportamento nosso, que tenha mais a ver com a nossa cultura. E ainda assim persistia o problema da dramaturgia. Todos os rapazes estão cheios de coisas a dizer neste momento, só ainda não sabem o quê. Então, a elaboração de Ratos e Homens se torna muito importante. Muitas discussões, 24 horas passadas dentro do teatro. Logo a seguir, Juno e o Pavão. Esta fase se chama de pré-fase do Teatro de Arena, e vai de 1952 a 1955.

Ratos e Homens. Um marco. Sucesso de público e bilheteria. Ninguém estava acostumado com aquela forma de atuar, largada, os atores relaxados, não na cara, no nariz. Um espetáculo elaborado de dentro para fora. Não era para se aboletar em uma forma e fazer daquela forma. A forma realmente existia porque havia algo concreto a ser formalizado. Os passos seguintes do Teatro de Arena são alguns retrocessos. Zé Renato resolve voltar ao repertório estrangeiro classe B. A única peça nacional desta época, no repertório, é uma que Boal não gosta sequer de ouvir o nome: Marido magro e mulher chata. Um pecadilho de Boal. Mas deu lucro. Depois vem Esta noite é nossa. A burguesia paulista adora e a peça faz enorme sucesso.

E o pessoal ali, sem uma democracia interna, sem muita discussão. A ação correndo lá no palco e todo mundo lá no alto, na cabine de luz, lendo Lima Barreto, Machado de Assis. Esse todo mundo é mais Gianfrancesco e Vianinha.

Aqui ocorre algo de especial com Gianfrancesco Guarnieri. Por puro divertimento, ou seja por que for, ele resolve escrever uma peça nessa época: Eles não usam black-tie. O texto é lido para o pessoal do TPE, na casa de Beatriz Segall. O crítico Sábato Magaldi está lá. E o Arena estava a ponto de abrir falência. Vianinha tinha se mandado para o Rio de Janeiro. Boal, sem ter o que fazer, foi dirigir outra companhia. Aliás, foi dirigir Dercy Gonçalves. Grandes discussões. Ninguém aceitava isto. Só restaram o Zé Renato e o Flávio Império para ser diretor de teatro. E já que estava nesta situação, toca a montar Eles não usam black-tie.

Olha, mas que coisa bem sacada. Um grande sucesso, algo que deu realmente certo. Eles não usam black-tie: Lélia Abramo no papel principal; Eugênio Kusnet fazia o pai; Gianfrancesco, o Tião; Miriam Mehler, a namorada do Tião; Celeste Lima, Tezinha, Riva Nimitz, Chico de Assis, Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio é Chiquinho, sob protesto, porque tinha que representar um garoto de dez anos. Esta peça tem um mérito: ser a primeira encenação da dramaturgia nacional atual com temática urbana.

E se completa assim o ciclo que chega ao começo da idade do compromisso de Gianfrancesco Guarnieri, garoto imigrado, brasileiro por paixão, irremediavelmente comprometido.

Terceiro ato - De black-tie

Mil a mil e duzentas pessoas acompanham cada representação de Eles não usam black-tie. A conclusão é simples: é a isso que o pessoal deve se dedicar. Quem tinha se afastado, volta. Nessa época também começam a acontecer as manifestações novas na música, o cinema começa a dar seus primeiros e bem decididos passos. Jorge de Andrade volta a escrever. Época do presidente Juscelino. Há um ambiente nacional em que todo mundo parece respirar. Debate aberto em todo lugar, nas TVs, rádios, jornais. Ninguém conseguia ficar parado, não tinha silêncio, não tinha fossa.

Quarto ato - O Arena

Chapetuba F. C., de Vianinha, já é um passo seguinte, acompanhado por outras representações de autores novos. E eles estão se apresentando até através do Seminário de Dramaturgia. Gimba viaja em 1959. Gianfrancesco Guarnieri volta da Europa, em 1960. Em 1961, mais um passo. O TBC está em crise, por fechar. A classe teatral se mobiliza, vai para a porta do teatro para impedir que isto aconteça. E começa a nova fase do TBC. Só são montados textos de autores nacionais: A Semente, de Guarnieri; O pagador de Promessas, de Dias Gomes, A Estrada, Vereda da Salvação, A Escada e Os Ossos do Barão, todas de Jorge de Andrade. O TBC é assumido pelo governo. E tudo isto muda no ano seguinte. O novo governo já não apóia o TBC, que poderia ter sido nosso Teatro Nacional.

Zé Renato resolve vender o Arena. Boal, Gianfrancesco, Milton, Paulo José, Flávio Império e Juca de Oliveira resolvem comprar o teatro. E tem início nova fase: autores clássicos e nacionais. As remontagens de Eles não usam black-tie, A Mandrágora, O melhor juiz e, o rei (que excursiona pelo nordeste). Em 1963, Gianfrancesco Guarnieri escreve O Filho do cão. A peça fica em cartaz até fins de março de 1964. Mudanças políticas, clima instável, teatro parado. Há um recesso. O Arena retorna à atividade com O Tartufo, de Molière.

Frente à nova realidade política do País, a reação surge em Arena conta Zumbi. E, pela primeira vez no Brasil, é utilizado o sistema do “coringa”, com todos os atores se revezando em todos os papéis. Na mesma linha, a montagem de Arena conta Tiradentes. A última manifestação é a Feira Paulista de Opinião. Em 1968, surge o AI-5.

Quinto ato - A diferença

Existe um teatro tradicional, que é político; existe um teatro chamado de vanguarda, que pode ser descaracterizado politicamente. Acho que não há uma ligação entre tradicionalismo e outras formas, entre o fato de ser político ou não. Se o autor procura tratar do seu mundo, da sua realidade, se ele quiser realmente se aprofundar, dificilmente vai deixar de ser político. Todas as peças têm o seu posicionamento.

O que não gosto mesmo é das peças de tese, peça de propaganda. Em geral, elas acabam tendo o efeito contrário. Não se pode esquecer que teatro é arte. É indiscutível que, em determinadas situações do processo histórico de um país, o teatro, a forma teatral, pode ser usada em campanhas, discussões. O teatro pode ser usado para a alfabetização, por exemplo. Mas aí já é uma utilização da forma dramática para se ganhar em expressão na busca de um objetivo prático. E isso não quer dizer que estará havendo uma elaboração artística. Essa é a distinção que precisamos fazer, do teatro como uma obra de arte e a forma dramática usada em outro sentido.

Há uma diferença entre fazer política com o teatro e fazer teatro como a forma de expressão de um artista filtrando a realidade. Por teatro político entendo quando um autor não desvincula os seus personagens de uma sociedade igual à dele e procura refletir esse processo em todos os campos, inclusive no campo político
.

Essa foi uma grande discussão, em torno do trabalho do CPC no Rio de Janeiro que tinha diferenças bem acentuadas de outras iniciativas, como o Movimento de Cultura Popular, no Recife. O que seria um teatro popular? Seria aquele que procurasse aprofundar sua realidade, procurasse o máximo de eficiência estética para maior comunicação com um público sem qualquer tradição de teatro. O público, por mais ignorante, sabe perceber ao primeiro contato se o autor está querendo lhe impingir algo ou se está lhe apresentando alguma coisa que ele sinta como resultado de uma experiência aprofundada, autêntica, verdadeira e sincera. O teatro popular, que sai do povo e vai encontrar esse mesmo povo, é essencialmente um teatro político.

Essa problemática toda tem que desabrochar em coisas práticas. Todos os problemas têm que ser solucionados na base da terra. Existe um tipo de teatro que escamoteia isso, levando a solução dos problemas para a alienação, querendo demonstrar que na terra é impossível a solução de uma tragédia. Uma visão mais objetiva prova o contrário. É aqui, unicamente, que se pode dar soluções aos problemas e o homem deve agir politicamente, deve chegar a essa consciência.

Desde 1950 temos um teatro de inspiração popular. Digo de inspiração para evitar essa confusão de que teatro popular só pode ser feito para as grandes massas.

É importante distinguir se o teatro se coloca na perspectiva do povo ou se se coloca na perspectiva de determinadas camadas dominantes. Na década de 50 tivemos a procura de um Teatro Nacional Popular, com raízes na nossa cultura, na nossa maneira de ser e nas perspectivas de quem sofre mais agudamente. Foi quando os personagens do nosso teatro deixaram de ser burguesia e os grandes personagens foram figuras do povo. Foi a primeira vez que se apresentou o operariado em cena, não mais servindo como contraponto ao desenvolvimento de uma temática do senhor da terra, mas como temática do próprio homem do campo ou da cidade. Esse teatro que fizemos através de alguns piques isolados de grupos, chegou a atingir uma parcela do que a gente pode chamar de povo.

Em três peças, especificamente, tivemos uma experiência mais profunda de ligação com o povo: Eles não usam black-tie, Revolução na América Latina e O melhor juiz e, o rei. Na medida em que se fale claramente, que não se intelectualize, que não se faça abstrações a ponto de se cair em um papo só para eleitos, então mesmo uma peça feita em redondilhas é entendida e perfeitamente aceita pelo povo. No Norte, o povo dava nota para o que se estava representando. Durante a apresentação de O melhor juiz e, o rei, de Lope da Vega, em uma adaptação minha e de Boal, o público, às vezes, dava nota cem para o lavrador que se opunha às vontades do senhor feudal.

Experiências foram feitas, porém sempre isoladas e sem continuidade. Este não é um trabalho só do teatro. É uma questão de orientação da cultura. Mas acho que é muito importante o trabalho dos grupos periféricos que lidam com teatro popular. É preciso que essas pessoas não se conformem. Sei que há muita dificuldade com o problema do repertório, porque não há qualquer apoio. Esse pessoal realmente trabalha por teimosia. Não são necessários cinqüenta mil refletores para se fazer teatro. Pode-se fazer ainda com um mínimo de recursos precários.

Nosso teatro de espetáculo, em geral, é muito elitista, inclusive na linguagem, o que faz com que o povo sinta que não é coisa dele. Nosso teatro está num compasso de espera. O que precisa reencontrar é a linguagem descoberta já na década de 50. Precisamos estudar os problemas do país e nos aprofundarmos neles. Não se queira esperar também que, com todas as dificuldades atuais, surja um artista importante. Só vai aparecer esse artista quando surgir uma nova realidade. Não estamos exigindo uma nova arte no teatro brasileiro, mas sim uma nova cultura
”.

Sexto ato - O circo

O último ato: a criação, a reflexão, cinema, teatro, TV; circo. O que podem as frases diante da vida? Mas as frases existem e são parte da vida.

Quando Roberto Santos me chamou para fazer cinema no Grande Momento, minha vida mudou. Meu papel era de um cara do povão, eletricista, corredor de bicicleta, que vai casar. O filme é de 1957 e continua sendo exibido até hoje. O cinema tem um caráter de documentação: pode arquivar no tempo manifestações que iriam desaparecer. Outra questão importante no cinema é a relação de trabalho: você está diretamente em contato com o trabalhador. Isto também existe na TV: o contato com a turma da pesada, como eu digo. O teatro tem o perigo de isolar o ator em igrejinhas. No cinema, este contato ajuda a desalienar.

Há muito tempo não nego a TV. Estou dentro da TV. Mas ando meio afastado. Não é um repúdio. Prefiro me dedicar mais ao cinema e ao teatro, porque estão contribuindo mais para o desenvolvimento da dramaturgia do que ela. A TV obriga o indivíduo a exorcizar suas necessidades primeiras e ficar completamente robotizado e colonizado culturalmente. Em alguns casos, existe uma quebra circunstancial desse esquema. Por exemplo: o esforço que o Bráulio Pedroso está fazendo no Casarão, que é uma tentativa de mostrar ao espectador seu país e sua história... Mas entre cada capítulo tem aquele montão de anúncios... e para que o espectador perceba isso, tem que ter visão crítica.

Para elaborar uma peça, sempre faço de conta que não estou trabalhando nela. É deixar correr e esquecer o trabalho. Fico procurando juntar as coisas que mais me tocam e me afetam. Procurando ampliar, entender e generalizar as coisas que acontecem. É um processo interior, com muito de cabeça e de coração. Não anoto qualquer coisa. É nessa hora que começo a discutir com as pessoas sobre o que estou fazendo. É nessa hora em que leio sobre o tema e investigo tudo, ou quase tudo, sobre minha futura peça. E... de repente, vem a vontade e a necessidade de sentar e escrever. Escrever é só o trabalho de bater à máquina, pouco tempo. O que mais me atrapalha é quando eu me detenho e começo a pensar que estou elaborando alguma coisa. O negócio todo precisa vir quase como um vôo. Se eu vejo a coisa como trabalho, então complica tudo
”.

Última peça: Ponto de partida

O fundamental em Ponto de Partida é a eterna luta do velho contra o novo. A ação se passa numa aldeia imaginária afastada no tempo. Essa aldeia entra em crise por causa de uma morte. Esse acontecimento será o centro da luta que vai se processar e demonstrar o choque do poderoso e do fraco. Ele será o gerador do elemento novo que se produz nessa crise.

Fonte:
Por Rui Veiga, Ana Maria de Cerqueira Leite, Hélio Goldsztejn e Vitor Vieira
Revista Versus 6 • outubro de 1976 - http://www.versus.jor.br/