terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Isabel Furini (A Disputa)


Apoiou as unhas longas e grossas sobre as grades e arranhou-as violentamente. Um chirriado agudo reverberou no lugar. A fila enorme que acompanhava as curvas das nuvens, tremeu. Alimentou-se das emoções de medo e incerteza. O arroto com odor de enxofre e a estrondosa gargalhada aumentaram o temor das almas. Depois observou esse homem magro que caminhava lentamente. Olhava-o com a voracidade de um vampiro. Uma mente brilhante, murmurou.

São Pedro, o bondoso, organizava a fila. Algumas almas estavam ansiosas e moviam suas formas feitas de matéria etérica, formas luminosas e muito semelhantes aos corpos físicos, mas sem o peso e as limitações dos verdadeiros corpos. Outras, acostumadas a esperar em filas de mercados e bancos, permaneciam quietas e resignadas. As mais impetuosas agitavam no ar as mãos quase transparentes, elas queriam entrar.

Na recepção, antes do segundo portal, o chamado Portal Definitivo, Deus, rodeado pelos seus anjos de belas asas brancas, ia julgando as almas com infinita sabedoria. Algumas podiam entrar no céu, outras caíam vítimas de suas más ações.

No momento em que esse homem idoso, calmo, aproximou-se, o próprio guardião dos portões, São Pedro disse:

– Peço perdão para ele, Senhor, ele foi um escritor brilhante.

O diabo, que permanecia em silêncio, no lado esquerdo do portão, encostado nas grades, reclamou:

– Ele é meu, Altíssimo. Brilhantes foram muitos militares e arrasaram cidades. Brilhantes foram muitos reis e massacraram o povo. Até alguns papas como Bórgia...

– Esse escritor defendeu os oprimidos! Merece seu perdão, Senhor.

– Ele é meu! Há tempos que não recebo alguém com uma mente, digamos, tão criativa, tão suculenta... Falou o diabo arrumando sua capa vermelha.

– Ele foi um bom homem.

– Não é essa a questão, Pedro - gritou enfurecido o diabo e bateu o tridente na ponta de um asteróide – A questão é que ele foi ateu, negou sua existência, Senhor.

– O lugar dele é no Céu!

– Não, Pedro. O lugar dele é no inferno.

– Céu!

– Inferno! Ateus vão ao inferno!

– Não seja preconceituoso, Satã – disse Deus. E Pedro, ao ouvir a voz de Deus, ajoelhou-se em sinal de humildade.

– Você sabe, anjo do mal, que eu amo todos os meus filhos e não tenho preconceitos contra ateus. Alguns me adoram só com os lábios, por isso eu não julgo os homens segundo suas palavras. Eu meço corações. Se julgasse os homens segundo suas palavras, o céu estaria cheio de retóricos e de políticos...

– Aproxime-se, filho.

O escritor se aproximou lentamente. Estaria sonhando?

Pedro pegou uma faca feita de luz violeta e abriu o peito do escritor. Mas ele não sentiu dor. Pedro retirou o coração e colocou-o em uma balança. Se o prato da balança desce, a alma do morto cai no abismo da culpa e da desolação. Pedro fechou os olhos e escutou um Ahhh!!! Era o diabo.

O peso do coração apontava: bondade, compaixão e fraternidade. E Pedro, triunfante, abriu os Portões para essa nobre alma. O escritor estava entrando no Céu quando Satã gritou:

– Antes de entrar, por favor, autografe este exemplar de seu último livro. Quero mostrar aos outros anjos caídos que quase, quase consegui sua alma.

Fonte:
Isabel Furini (organizadora). Passageiros do Espelho: antologia de contos. Curitiba: Íthala, 2011.

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