quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Isabel Furini (Sandoval)


Sandoval levantou a ponta da camisa vermelha, desabotoada, olorosa e limpou o suor da testa. Tocou uma música antiga no violão. As mesas  estavam vazias, menos uma. Os quatro fregueses aplaudiram com entusiasmo. O de chapéu marrom empurrou uma garrafa com o cotovelo enquanto aplaudia. A garrafa caiu no chão fazendo um estrondo. O dono do bar, que empilhava as cadeiras, parou o trabalho e disse: - “Vou fechar, senhores, voltem a noite. Abrimos as 20:00 horas.”

Sandoval guardou o violão e colocou o casaco. Havia bebido com o desespero de um beduíno depois de atravessar o deserto do Saara. Parecia um sedento. Uma verdadeira esponja jogando goela abaixo copos e mais copos de bebida  Primeiro foi a cervejinha, logo uma garrafa de vinho oferecida por amigos, e depois a caipirinha... Eram três da manhã, o bar fechou e o bêbado caminhava - entenda-se, cambaleava - para sua casa. 

Andou e andou. Passos lentos, movimentos desengonçados, ao virar a esquina tropeçou com  latas de lixo e caiu na calçada. Conseguiu levantar-se.  A Praça Rui Barbosa, pensou, estou perto de casa... Sentiu desejos de urinar. Apoiou-se numa árvore e começou a fazer xixi.

- “Ei! Você está me molhando.”

Sandoval abriu grandes os olhos. Não havia  ninguém por perto a não ser um pato. Por pura diversão começou a molhar o pato. Gritando: “Chuva, patinho! Tá chovendo,  chovendo.”

- “Seu safado, você deve estar bêbado para fazer isso!” - reclamou o pato.

– “Estou... sim.. sim...” - afirmou o Sandoval. “- Você fala, pato?”

O pato não respondeu. Começou a choramingar:

- “Ninguém gosta de mim. Assim não dá. Minha vida não vale um tostão. Eu sou um pobre pato sem família. Ninguém me ama.”

- “E eu com isso?” - perguntou o Sandoval.

- “Nada... você não tem nada com isso. Desculpe!”  - disse o pato. E começou a chorar. Era um choro de pato, mas dava para entender que estava triste. Era um choro longo, agudo, um quaaaaaac.... quaaaaaac.... entre lágrimas. 

- “Ei, camarada” - disse o Sandoval para o pato que afastava-se em pranto - “Quer uma cachacinha?” - E tirou uma garrafa pequena do casaco. - “É o que uso para apagar as mágoas.”

- “Obrigado!” disse o pato já tomando um trago, enquanto o homem segurava a garrafa – “Você é generoso...”

- “Que nada, compadre. Amigo é para essas coisas.”

- “Você é meu amigo??!!!” - gritou admirado o pato abrindo as asas e dando um pulo de alegria.

-  “Claro! Nós dois estamos na pior... temos que ser amigos” - o bêbado  parecia cuspir as palavras enquanto caminhava - “Prazer em conhecer-te, pato, eu sou o Sandoval, eu sou o rejei... rejitado. Isso. Sou rejeitado, rejeitado da sociedade. Sou um traste qualquer. Minha vida vale menos que a vida de um cachorro, de um... uau...” -  deu o nariz contra um poste de luz. Gritou. O pato riu. - “Minha vida vale menos que a vida de um... poste.”

- “Prazer. Eu sou o Patinho Feio da história de Andersen.”

- “Você é o Patinho Feio, aquele que no final da história se transforma num bonito Cisne?”

- “O mesmo.”

- “E voltou a ser Pato!” – gritou Sandoval

- “Eu me transformo em pato sempre que uma pessoa se transforma em algo feio e esquece tudo o bom que existe dentro dela.”

- “Dentro onde?” - pergunta o bêbado - “No estômago ou no coração?”

– “Não! Seu estômago só tem cachaça.” - disse o Pato  – “Eu falo de seu coração, cara. Eu falo daquele Sandoval alegre e cheio de entusiasmo. Aquele que sonhava com coisas boas, o amor, a amizade, o triunfo...”

- “Se é assim, você continuará sendo sempre um Pato, amigo, porque eu... eu sou um fracasso e dentro de mim só tenho cachaça. Eu tenho coração de cachaça. Não escutou a canção?” -  A saliva escorregava pelos cantos da boca.

- “Não! Que canção?” - perguntou o Patinho Feio.

O bêbado começou a cantar e dançar, uma mão apoiada na árvore.

“Coração de cachaça,/ Me dá um beijo, me abraça,/ Se você quer dançar,/ Só precisa escutar/ Esta música alegre./ Revolar..  revolar... /Coração de cachaça.../ Esta música arrasa/ A negona, o negão,/ A polaca também/ Todos podem dançar/ Ao som de minha canção.

Coração de cachaça...”

O bêbado parou. Cambaleou. Olhou fixamente ao pato e disse -  “Eu sei que você nunca escutou porque a inventei eu mesmo... ontem...  Eu era músico, compositor, poeta, boêmio. Todos me criticavam... todos... até minha mãe.” - deu um forte arroto.

- “Era um direito seu escolher sua vida” - disse o pato.

- “Vivia na boemia e todos me criticavam.” - enfatizou a palavra - Cri-ti-ca-vam. Minha mulher, a prefeita, a santinha, a chatinha... foi-se embora. Me abandonou. Disse que eu era um traste, que não prestava” - bebeu mais um gole de cachaça.  “Eu moro sozinho numa pensão. Quer passar a noite lá, pato?...” O pato aceitou. Não tinha mesmo onde ir.

O bêbado apertou os olhos e mexeu a cabeça, deu alguns passos para a direita e para a esquerda para equilibrar-se.

 - “Já sei! Eu moro do outro lado da praça!” - gritou. E lá foram os dois, o Sandoval e o Pato. Lado a lado. O Sandoval cambaleando, o Pato, mexendo o rabo para os lados. Os dois com esse andar desajeitado que assemelham bêbados e patos.

Sandoval colocou o Pato embaixo do casaco cinza, sujo e  desbotado para entrar na pensão. O dono não permitia animais.

Depois de várias tentativas, Sandoval conseguiu colocar a chave na fechadura e abrir a porta. Entrou no quarto. A cama estava desarrumada. Espalhadas no chão roupas, garrafas vazias. Os jornais velhos empilhados ao lado da mesa amarela, onde havia uma marmita que cheirava a podre e um prato sujo.

– “Esta é minha casa” - murmurou jogando o Pato em cima da cama.

- “Você precisa escrever essa música.”

- “Eu já não escrevo mais.” - disse o bêbado jogando-se sobre a cama.

- “Você vai voltar a escrever... pois eu estou cansado de ser o Pato Feio por sua causa. Não entende, Sandoval? Eu sou o rejeitado o marginal que vive em cada ser humano. Ou você acha que é o único marginal do mundo? Não! Homem, não. Cada vez que uma criança é rejeitada no jogo de futebol ou uma menina é chamada de feia, cada vez que uma pessoa fica desempregada ou um velho é jogado numa casa de repouso, cada vez que alguém é humilhado, cada vez que alguém erra ou se sente rejeitado... eu deixo de ser cisne e me transformo no Patinho Feio.”

- “Nesta época isso se chama falta de auto-estima.” Auto-estima... -  interrompeu o bêbado.

- “Isso mesmo!” - confirmou o Patinho Feio. - “Quando as pessoas têm pouca autoestima. Quando se deixam vencer, decidem não lutar, decidem não tentar por medo do fracasso. Quando um homem ou mulher ou criança ou velho, aceitam a rejeição ou a humilhação  ou se sentem  limitados, eu me transformo de novo em pato.” Fez uma pausa, fitou o Sandoval com olhos brilhantes e continuou: “Por favor, cansei de ser pato. Eu quero ser um cisne. Escreva essa canção..   Escreva Sandoval. Faça-o por seu amigo Pato.”

Sandoval pensou. Já  tinha  perdido seu amor próprio e o amor pela vida, o que mais poderia perder?  Começou a cantar e dançar: “Coração de cachaça, me dá um beijo, me abraça...” O Pato também começou a dançar em cima da cama. E tinha ginga. Movimentava  as alas para os lados rapidamente e depois as recolhia, deixava o corpo quieto e só mexia as penas da cauda. Era uma graça! Sandoval, entusiasmado, cantou mais alto.

Alguém que estava no quarto ao lado bateu na parede e gritou: “Silêncio!! Silêncio!!” Fez a maior barulheira. O dono da pensão bateu na porta. O Sandoval e o pato ficaram calados, olhando-se como duas crianças sapecas depois de uma brincadeira.

- “Eu vou dormir” - disse o Pato e deitou sobre o travesseiro.

Sandoval não disse nada. Sentou-se pegou um caderno e escreveu muitos poemas e compôs muitas músicas.  Músicas alegres e tristes. Música de samba e de rock.  Algumas davam esperanças, outras entristeciam, outras ainda alegravam. Toda emoção, todo sentimento, eram transformados em música e em poesia pelo Sandoval.

Dormiu quando a cidade começava a acordar e as pessoas iam para o trabalho. O ruído da rua se intensificou.  Pela janela entreaberta entrava ruído de  motores e  buzinas. Fumaça dos carros. Nada atrapalhava o sono profundo de Sandoval.

Sandoval acordou quatro da tarde. Lembrou do Pato. Procurou-o pelo quarto. Não estava. Só achou os poemas e as músicas que havia escrito na madrugada. E numa das folhas havia uma pegada...  podia-se ver claramente o pé de um pato.

Ninguém acreditou na sua história. Coisas de bêbado, “patos não falam”, disse seu amigo Joaquim. O Sandoval não se importou. Era ele quem necessitava acreditar, não os outros. Nos dias seguintes registrou sua música e levou-a para gravadoras e estações de rádio. No começo poucos se interessaram, mas ele não desistiu. E de repente as coisas começaram acontecer. Alguém gostou. Um conjunto gravou “Coração de Cachaça”. Ficou primeira nas paradas.  Sua vida mudou. Suas canções tornaram-se populares. Foi entrevistado várias vezes na Televisão. Dois meses depois mudou para um apartamento. Comprou alguns móveis, mas levou sua cama, essa cama onde o pato tinha deitado. Fez um desenho do pato, o pato branquelo, com lágrimas nos olhos e o bico para baixo, o que dava um ar de tristeza. Colou a figura parede do quarto.

Essa noite, antes de dormir,  fixou seu olhar no  pato  triste colado na parede. Percebeu uma luz dourada em forma de espiral saltitar sobre a figura. E viu o pato que havia desenhado, o pato marginalizado, o pato desprezado, o patinho feio, transformar-se num belo cisne. Num cisne  triunfante.

Fonte:

Um comentário:

Isabel Furini disse...

Parabéns pelo trabalho que realiza no Pavilhão Literário Cultural Singrando Horizontes, prezado poeta José Feldman.
E muito obrigada pela divulgação de meus contos.