sábado, 22 de dezembro de 2018

Euclides da Cunha (Poemas Escolhidos) III



A CRUZ DA ESTRADA
A meu amigo E. Jary Monteiro

Se vagares um dia nos sertões,
Como hei vagado — pálido, dolente,
Em procura de Deus — da fé ardente
Em meio das soidões...

Se fores, como eu fui, lá onde a flor
Tem do perfume a alma inebriante,
Lá onde brilha mais que o diamante
A lágrima da dor...

Se sondares da selva e entranha fria
Aonde dos cipós na relva extensa
Noss'alma embala a crença.

Se nos sertões vagares algum dia...
Companheiro! Hás de vê-la.
Hás de sentir a dor que ela derrama
Tendo um mistério, aos pés, de um negro drama,
Tendo na fronte o raio de uma estrela!...

Que vezes a encontrei!... Medrando calma
A Deus, entre os espaços
No desgraçado, ali tombado, a alma
Que tirita, quem sabe? Entre os seus braços.

Se a onça vê, lhe oculta a asp'ra, ferrenha
Garra, estremece, pára, fita-a, roja-se,
Recua trêmula, e fascinada arroja-se,
Entre as sombras da brenha!...

E a noite, a treva, quando aos céus ascende
E acorda lá a luz,
Sobre os seus braços frios, frios, nus,
— Tecido de astros em brial estende...

Nos gélidos lugares
Em que ela se ergue, nunca o raio estala,
Nem pragueja o tufão... Hás de encontrá-la
Se acaso um dia nos sertões vagares...

A FLOR DO CÁRCERE 

Nascera ali — no limo viridente
Dos muros da prisão — como uma esmola
Da natureza a um coração que estiola —
Aquela flor imaculada e olente...

E 'ele' que fora um bruto, e vil descrente,
Quanta vez, numa prece, ungido, cola
O lábio seco, na úmida corola
Daquela flor alvíssima e silente!...

E — ele — que sofre e para a dor existe —
Quantas vezes no peito o pranto estanca!...
Quantas vezes na veia a febre acalma,

Fitando aquela flor tão pura e triste!...
— Aquela estrela perfumada e branca,
Que cintila na noite de sua alma...

AMOR ALGÉBRICO 
(Título anterior: "Álgebra lírica")

Acabo de estudar — da ciência fria e vã,
O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,
Acabo de arrancar a fronte minha ardente
Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente
Que este Saara atroz — sem aura, sem manhã,
A Álgebra criou — a mente, a alma mais sã
Nela vacila e cai, sem um sonho virente.

Acabo de estudar e pálido, cansado,
Dumas dez equações os véus hei arrancado,
Estou cheio de 'spleen', cheio de tédio e giz.

É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso,
Ir dela descansar no seio venturoso
E achar do seu olhar o luminoso X

SONETO
Dedicado a Anna da Cunha

"Ontem, quanto, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão, louca, suprema,
E no teu lábio, essa rosa da algema,
A minha vida, gélida prendias...

Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
— Como engastar tua alma num poema?
E eu não chorava quando tu te rias...

Hoje, que vives desse amor ansioso
E és minha, só minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste, sendo tão ditoso!

E tremo e choro, pressentindo, forte
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida, que é a morte..."

D. QUIXOTE

Assim à aldeia volta o da "triste figura"
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcabouço dobrado — um grande desalento,
No entristecido olhar — uns laivos de loucura...

Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da Fé, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.

Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da Ilusão do espírito doente;

Porque há coisa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões — e não se ficar louco!

Fonte:
Euclides da Cunha. Onda e outros poemas esparsos. RJ, 1883.

Herman Hesse (O Jovem Apaixonado: Uma Lenda)


Esta história aconteceu no tempo de Santo Hilário. Na terra natal deste santo, em Gaza, vivia um casal humilde e crente, a quem o Senhor abençoara com uma linda e esperta menina. Para alegria de todos, a menina cresceu em recato, modéstia e temor a Deus, guiada pelos pais para a prática do Bem. Tanta pudicícia e suavidade de modos eram comparáveis às de um anjo do Senhor. Os cabelos escuros e sedosos esvoaçando em torno dos ombros, os olhos modestamente baixos, que longas pestanas sombreavam, caminhava ela sob as palmeiras com movimentos graciosos, esbelta e leve como uma gazela. Não tinha olhos para homem algum, pois aos catorze anos de idade, após grave doença, foi prometida por seus pais, no caso de salvar-se, como noiva de Deus. E Deus aceitara a oferenda.

Foi por essa moça pura que um jovem da mesma terra se apaixonou. Também ele era formoso e  esbelto, filho de pais abastados que o haviam criado e educado com esmero. Mas desde que se apaixonara pela linda donzela não pensava em outra coisa senão buscar oportunidades para vê-la e dirigir-lhe olhares ansiosos. Mas nos dias em que não lograva encontrá-la ficava triste e pálido, recusando alimentos e passando horas a fio entre suspiros e lamentos.

O jovem recebera uma boa educação cristã, era de índole delicada e religiosa, mas essa paixão avassaladora tornara-se dona absoluta de sua alma. Já não conseguia rezar e, em vez de elevar o pensamento para as coisas santas, recordava apenas, obsessivamente, os longos cabelos pretos da donzela, seus belos e tranquilos olhos pestanudos, a cor e os contornos delicados de seu rosto e lábios, o alvo e fino colo, os pequenos e ágeis pés. Temia, porém, comunicar seu grande amor, pois bem sabia que ela não tencionava aceitar homem algum e pretendia devotar seu amor somente aos pais e a Deus.

Por fim, consumindo-se de desejo dirigiu-lhe extensa e fervorosa carta, na qual falava de seu grande amor e lhe implorava encarecidamente que o aceitasse para que, num futuro não muito distante, pudessem gozar uma vida conjugai feliz e abençoada por Deus. Perfumara essa missiva com finos pós da Pérsia, enrolara-a com um cordão de seda e ordenara que a entregassem à donzela, em segredo, por intermédio de uma velha criada.

Quando ela leu a carta, seu rosto fez-se escarlate, como se tivesse sofrido um ataque de rubéola. Em sua confusão inicial, inclinara-se a rasgar a carta ou mostrá-la imediatamente à mãe. Não o fez, porém, não só por conhecer o jovem desde criança e gostar dele mas também por notar que suas palavras eram repassadas de delicadeza e bondade. Decidiu então devolver a carta à velha, com as seguintes palavras:

— Devolve esta carta àquele que a escreveu e diz-lhe que nunca mais me dirija semelhantes palavras. Diz-lhe também que fui prometida a Deus por meus pais, não podendo jamais dar minha mão a um homem, e que devo e quero permanecer em meu estado virginal para servir e honrar a Deus, cujo amor é infinitamente superior e mais valioso do que qualquer afeto humano. E diz-lhe ainda que, enquanto eu não encontrar alguém cujo amor seja superior e mais valioso do que o amor a Deus, permanecerei fiel aos meus votos de castidade. A ele, porém, que escreveu esta carta, desejo que viva na paz do Senhor. E agora vai, e faz-lhe saber que nunca mais aceitarei mensagem alguma.

A criada, surpreendida por tanta firmeza, voltou a seu amo com a carta e lhe pôs a par de tudo o que a donzela lhe dissera. Apesar das palavras de consolo da velha, o moço apaixonado entregou-se a ruidosas lamentações, rasgando as roupas e espalhando cinza e terra sobre a cabeça. Não se atrevia mais a procurar a donzela, em seus passeios, limitando-se a segui-la com olhares à distância. À noite, em sua alcova, não conciliava o sono, murmurava o nome da amada e dirigia-lhe milhares de carinhosas e doces palavras, chamando-a de sua luz, sua estrela, sua gazela, sua palmeira, sua pérola e seu consolo... e quando despertava de tais fantasias, e via-se só em sua alcova, tinha acessos de raiva, maldizia o nome de Deus, rangia os dentes e batia com a cabeça nas paredes.

Por causa dessa paixão terrena, o temor a Deus toldara-se e acabara por se extinguir de seu coração, onde apenas o demônio tinha agora acesso, dominando o jovem ao sabor de seus desígnios tenebrosos. Foi assim que, certo dia, o tresloucado rapaz jurou que possuiria a donzela, nem que para tanto tivesse que recorrer à força. Viajou para Mênfis e ingressou na escola do sacerdote pagão Asclépio, tomando com ele lições de feitiçaria. Dedicou-se com afinco, durante um ano, a tais estudos e voltou em seguida a Gaza.

Começou então a gravar signos mágicos e palavras de sortilégio em placas de cobre com infalíveis poderes de feitiço. Durante a noite, ia furtivamente colocar essas placas sob a soleira da porta onde morava a donzela. Já no dia seguinte à aparição da primeira placa a donzela parecia mudada: seu recatado olhar cabisbaixo tornou-se mais franco, mais animado; soltou os cabelos, deixando-os ondear ao vento; desleixou as orações e serviços religiosos; e ouviram-na cantar uma serenata de amor que ninguém lhe ensinara. Esta conduta tornava-se mais escandalosa com o passar dos dias, e de noite, remexia-se nas almofadas do leito, gritando o nome do jovem, chamando-o de seu bem-amado e confessando desejos carnais.

Essa mudança na donzela enfeitiçada não podia, evidentemente, passar despercebida a seus pais. Cientes de tão estranhos modos e palavras, ficaram vigilantes, espiavam-na discretamente e tanto se apavoraram com o que ouviram uma noite que o indignado pai logo quis expulsar de casa a depravada filha. A mãe, contudo, implorou paciência; era preciso examinar bem o caso e reconhecer que a filha fora levada a tão estranho comportamento certamente por algum feitiço.

Como a donzela continuasse possessa, proferindo até blasfêmias e gritando cm altas vozes que desejava seu amado, lembraram-se os pais de um santo eremita, Hilário, que vivia há longos anos fora da cidade, em pleno deserto, e tão perto de Deus que todas suas preces eram ouvidas. Curara tantos enfermos e exorcizara tantos demônios que bem podia ser tido na conta — ao lado de Santo Antônio — do mais poderoso agente de Deus daqueles recuados tempos. 

A donzela foi então  levada por seus pais a Hilário, a quem contaram tudo o que estava acontecendo e imploraram ajuda. Hilário acercou-se da donzela e assim falou:

— Quem fez de ti , serva de Deus, um receptáculo de maus desejos?

A moça, encarando aquele que tinha o corpo esquálido e a pele queimada, começou ridicularizando-o, chamando-o de espantalho sarnento e entoando em voz dolente:

— Vede minha pele branca e macia, meu corpo liso, meus apetitosos seios!

Aterrorizados, os pais caíram de joelhos e esconderam a cabeça entre as mãos, tomados de vergonha. Mas Hilário sorriu, e reconhecendo o Diabo que se apossara da donzela, fustigou-o tanto que, sentindo-se acossado por uma força superior à sua, acabou dizendo seu nome e confessando todas as suas artimanhas. O santo expulsou violentamente o demônio, que opunha a maior resistência na alma da donzela, e esta acabou tombando sem sentidos. Quando acordou, como de um sono febril, reconheceu e saudou os pais, que choravam, pediu a Hilário sua bênção e, dessa hora em diante, voltou a ser a boa serva de Deus.

Entrementes, o jovem esperava que os feitiços de amor fizessem efeito na donzela e a levassem a seus braços ávidos. Passava os dias acalentando essa esperança, certo de um desfecho propicio, ao mesmo tempo ern que a donzela, depois das provações acima narradas, reencontrava o caminho da virtude e, curada, voltava à cidade. O jovem, ao passar por uma rua, viu-a surgir ao longe e encaminhar-se na sua direção. Quando já estavam perto um do outro, ele viu que no rosto da donzela refulgia a antiga pureza e que toda ela irradiava uma beleza tranquila, como se tivesse acabado de descer do Paraíso. Surpreendido, o jovem estacou e, envergonhado de sua malfeitoria, teve um súbito impulso de afastar-se. Mas dominou-se e, como ela se acercasse bastante, presumiu que o feitiço tivera algum efeito. Chegou perto da donzela e, tomando-lhe as mãos, disse:

— É certo, pois, que me tendes amor?

A donzela, sem enrubescer, ergueu os olhos para que ele pudesse contemplá-los como se contempla uma estrela pura e distante. Uma indescritível bondade resplandecia em seu rosto suave. Reteve entre as suas mãos a mão do jovem e respondeu:

— Sim, meu irmão, eu vos amo. Amo a vossa pobre alma e vos rogo que a liberteis do Mal. Entregai-a a Deus para que readquira a pureza e a formosura de outrora.

Uma mão invisível tocou o coração do jovem. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ele exclamou:

— Ah, devo então renunciar ao vosso amor para sempre? Pois ordenai-me que o faça. Quero unicamente fazer aquilo que for de vosso agrado.

Ela sorriu como um anjo e disse:

— Não deveis renunciar a mim para sempre. Chegará o dia em que todos estaremos irmanados diante do trono de Deus. Tratemos pois de proceder de modo a que possamos olhá-lo sem temor e passar em Seu Juízo. Quero ser vossa amiga. Será por pouco tempo que vivereis separado de mim.

Soltou lentamente suas mãos e, sorrindo, prosseguiu em seu caminho. O jovem ficou imóvel, como que fascinado. Depois dirigiu-se para casa, fechou-a e foi para o deserto servir a Deus. Sua formosura dissipou-se, emagreceu, a pele escureceu; dividia seu tugúrio com os animais do campo. Quando se sentia exausto e dúvidas o assaltavam, seu único consolo era repetir centenas de vezes as palavras da donzela: "Será por pouco tempo..."

Embora o tempo se alongasse, os cabelos encanecessem e ele ficasse neste mundo até à idade de oitenta anos, o eremita pensava: Que são oitenta anos? Os anos vêm e morrem como se tivessem as asas de um pássaro. A Eternidade me espera, após este voo breve pelo mundo. 

Desde os recuados tempos em que viveu esse jovem, muitas centenas de anos já transcorreram e com que rapidez serão também esquecidos os nossos atos e os nossos nomes, e não ficará outro vestígio de nossa vida senão, talvez, uma pequena e incerta lenda...

Fonte:
Herman Hesse. O Livro das Fábulas. 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Mário Quintana em Prosa e Verso 3


DO IMPOSSÍVEL CONVÍVIO

O mais trágico dessas reuniões sociais é que elas são compostas unicamente de terceiros.

A ESFINGE

Na volta da esquina encontrei a Esfinge.

Petrifiquei-me. Ela me disse então, olhando-me nos olhos:

- Devora-me ou decifro-te!

ELA

Mas que haverá com a Lua, que, sempre que a gente a olha, é com um novo espanto?

SEU VERDADEIRO CRIME

O que eles jamais perdoaram a Oscar Wilde é que ele era profundo sem ser chato.

FATALIDADE

O que mais enfurece o vento são esses poetas inveterados que o fazem rimar com lamento.

CAMUFLAGEM

A esperança é um urubu pintado de verde.

SER E NÃO SER

Para algo existir mesmo - um deus, um bicho, um universo, um anjo... - é preciso que alguém tenha consciência dele. Ou simplesmente que o tenha inventado.

A ESCRITA

Um trouxe a mirra, o outro o incenso, o terceiro o ouro.

Incenso e mirra evaporaram-se... Mas e o ouro?

Os textos nada dizem quanto à aplicação do ouro.

NA SOLIDÃO DA NOITE

Os velhos espelhos adoram ficar no escuro das salas desertas. Porque todo o seu problema, que até parece humano, é apenas o seguinte: - reflexos? ou reflexões?

A MESTRA E OS ALUNOS

Dizem que a História é a mestra da vida. Mas como é que os seus protagonistas incorrem sempre nos mesmos erros? Não lhes aproveitou em nada o exemplo dos antecessores reprovados.

PEQUENA TRAGÉDIA BRASILEIRA

A Bem-Amada queria devorar o coração do Poeta.

- Não, - disse ele - só terás um pedacinho... Porque noventa por cento pertence aos Editores.

ÓPERA

"Diz isso cantando!" Lembram-se desse ditado? A Ópera levou esse ditado a sério.

EXAME DE CONSCIÊNCIA

Se eu amo a meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?

DOS LIVROS

Há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.

Fonte:
Mário Quintana. Caderno H. Porto Alegre/RS: Globo, 1973.

Lima Barreto (Cinco mulheres) IV - Carlota e Hortência


Uma fila de cinquenta carros com um coche fúnebre à frente dirigia-se para um dos cemitérios da capital.

O carro funerário conduzia o cadáver de Carlota Durval, senhora de vinte e oito anos, morta no esplendor da beleza.

Os que acompanhavam o enterro, apenas dois o faziam por estima à finada: eram Luís Patrício e Valadares.

Os mais iam por satisfazer a vaidade do viúvo, um José Durval, homem de trinta e seis anos, dono de cinco prédios e de uma dose de fatuidade sem igual.

Valadares e Patrício, na qualidade de amigos da finada, eram os únicos que traduziam no rosto a profunda tristeza do coração. Os outros levavam uma cara de tristeza oficial.

Valadares e Patrício iam no mesmo carro.

- Até que morreu a pobre senhora, disse o primeiro ao fim de algum silêncio.

- Coitada! murmurou o outro.

- Na flor da idade, acrescentava o primeiro, mãe de duas crianças tão bonitas, amadas por todos... Deus perdoe aos culpados!

- Ao culpado, que foi só ele. Quanto à outra, essa se não fora desinquietada...

- Tens razão!

- Mas ele deve ter remorsos.

- Quais remorsos! É incapaz de os ter. Não o conheces, como eu? Ri e zomba de tudo. Isto para ele foi apenas um acidente; não lhe dá maior importância, acredita.

Este pequeno diálogo dá já ao leitor uma idéia dos acontecimentos que precederam à morte de Carlota.

Como esses acontecimentos são o objeto destas linhas destinadas a apresentar o perfil desta quarta mulher, passo a narrá-los mui sucintamente.

Carlota casara com vinte e dois anos. Não sei por que se apaixonara por José Durval, e menos ainda no tempo de solteira, de que depois de casada. O marido era para Carlota um ídolo. Só a ideia de uma infidelidade da parte dele bastava para matá-la.

Viveram algum tempo no meio da mais perfeita paz, não que ele não desse à mulher motivos de desgosto, mas porque eram estes tão encobertos que nunca haviam chegado aos ouvidos da pobre moça.

Um ano antes Hortência B., amiga de Carlota, separava-se do marido. Dizia-se que era por motivos de infidelidade conjugal da parte dele; mas ainda que o não fosse, Carlota receberia a amiga em sua casa, tão amiga era dela.

Carlota compreendia as dores que podiam trazer a uma mulher as infidelidades do marido; por isso recebeu Hortência com os braços abertos e entusiasmo no coração.

Era o mesmo que se uma rosa abrisse o seio confiante a um inseto venenoso.

Daí a seis meses Carlota reconhecia o mal que tinha feito. Mas era tarde.

Hortência era amante de José Durval.

Quando Carlota descobriu qual era a situação de Hortência em relação a ela, sufocou um grito. Era a um tempo, ciúme, desprezo, vergonha. Se alguma coisa podia atenuar a dor que ela sentia, era a covardia do ato de Hortência, que tão mal pagava a hospitalidade que obtivera de Carlota.

Mas o marido? Não era igualmente culpado? Carlota avaliou de um relance toda a hediondez do proceder de ambos, e resolveu romper um dia.

A frieza que começou a manifestar a Hortência, mais do que isso, a repugnância e o desdém com que a tratava, despertou no espírito desta a ideia de que era preciso sair de uma situação tão falsa.

Todavia, retirar-se simplesmente seria confessar o crime. Hortência dissimulou e um dia recriminou a Carlota os seus modos recentes de tratamento.

Então tudo se clareou.

Carlota, com uma cólera sufocada, lançou em rosto à amiga o procedimento que tivera em casa dela. Hortência negou, mas era negar confessando, pois que nenhum tom de sinceridade tinha a sua voz.

Depois disso era necessário sair. Hortência, negando sempre o crime de que era acusada, declarou que sairia de casa.

- Mas isso não desmente, nem remedia nada, disse Carlota com os lábios trêmulos. É simplesmente mudar o teatro das suas loucuras.

Esta cena abalou a saúde de Carlota. No dia seguinte amanheceu doente. Hortência apareceu para falar-lhe, mas ela voltou o rosto para a parede. Hortência não voltou ao quarto, mas também não saiu da casa. José Durval impôs essa condição.

- Que dirá o mundo? perguntava ele.

A pobre mulher foi obrigada a sofrer mais essa humilhação.

A doença foi rápida e benéfica, porque no fim de quinze dias Carlota expirava.

Os leitores já assistiram ao enterro dela.

Quanto a Hortência, continuou a viver em casa de José Durval, até que se passassem os primeiros seis meses do luto, no fim dos quais casaram-se perante um concurso numeroso de amigos, ou pessoas que se davam por isso.

Supondo que os leitores terão curiosidade de saber o que sucedeu depois, aqui termino com uma carta escrita, depois de dois anos da morte de Carlota, por Valadares a L. Patrício.

"Meu amigo. Corte, 12 de... -- Vou dar-te algumas notícias que te hão de alegrar, como a mim, posto que a caridade evangélica nos manda lastimar as desgraças alheias. Mas há certas desgraças que parecem um castigo do céu e a alma sente-se satisfeita quando vê o crime punido.

Lembras-te ainda da pobre Carlota Durval, morta de desgosto pela traição do marido e de Hortência? Sabes que esta ficou a viver em casa do viúvo, e que no fim de seis meses casaram-se à face da Igreja, como duas criaturas abençoadas do céu? Pois bem, ninguém as faça que as não pague; Durval está mais do que nunca arrependido do passo que deu.

Primeiramente, ao passo que a pobre Carlota era uma pomba sem fel, Hortência é um dragão de saias, que não deixa o marido pôr pé em ramo verde. São exigências de toda a casta, exigências de luxo, exigências de honra, porque a fortuna de Durval não podendo resistir aos ataques de Hortência, foi-se desmoronando a pouco e pouco.

Os desgostos envelheceram o pobre José Durval. Mas se fosse apenas isso, era de agradecer a Deus. O caso, porém, tornou-se pior; Hortência, que traíra a amiga, não teve dúvida em trair o marido: Hortência tem hoje um amante!

É realmente triste semelhante coisa, mas eu não sei por que esfreguei as mãos de contente quando soube da infidelidade de Hortência. Parece que as cinzas da Carlota deviam estremecer de alegria debaixo da terra... Perdoe-me Deus a blasfêmia, se acaso o é.

Julguei que estas notícias te seriam agradáveis, a ti que estimastes aquela pobre mártir.

Ia acabando sem contar a cena que houve entre Durval e a mulher.

Um bilhete mandado por H. (o amante) caiu nas mãos de José Durval, não sei por que terrível acaso. Houve explosão da parte do marido; mas o infeliz não tinha forças para manter-se na sua posição; dois gritos e dois sorrisos da mulher puseram-lhe água fria na cólera.

Daí em diante, Durval anda triste, cabisbaixo, taciturno. Emagrece a olhos vistos. Pobre homem! afinal de contas começo a ter pena... 

Adeus, meu caro, vai cultivando, etc..."

Esta carta era dirigida a Campos, onde se achava L. Patrício. A resposta deste foi a seguinte:

"Muito me contas, meu amigo Valadares, acerca dos algozes da Carlota. É uma pagã, não deixes de crê-lo, mas no que fazes mal, é em mostrares alegria por essa desgraça. Nem devemos tê-la, nem as cinzas de Carlota se regozijaram no outro mundo. Os maus, no fim de conta, são dignos de lástima, por serem tão fracos que não possam ser bons. E basta a punição para ficarmos já condoídos do pobre homem.

Falemos de outra coisa. Sabes que os cafezais..."

Não interessa aos leitores saber dos cafezais de L. Patrício. O que interessa saber é que Durval morreu de desgosto dentro de pouco tempo, e que Hortência procurou na devoção de uma velhice prematura a expiação dos erros passados.

Fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1865.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Amilton Maciel Monteiro (Poemas Recolhidos) IV



COR DE BRASA

Num canto do jardim de minha casa
duas roseiras crescem, majestosas,
com flores rubras, lindas, cor de brasa
e aveludadas pétalas cheirosas.

Quem as plantou, não sei, mas bem me apraza
exaltar o valor das laboriosas 
mãos que, com amor e jeito, deram asa
a que vingassem  em formas primorosas.

Pois aprecio muito a mão que planta
e só por isso a entendo como santa,
merecedora de me abençoar!

Plantar é um beijo dado à Natureza,
que fica à nossa espera, com certeza,
para o mundo crescer e embelezar!
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ESTADO D´ALMA

O que reflete o meu estado d´alma, 
de tudo quanto vi e já conheço,
é a poesia amiga, quando espalma 
tão bem a dor do amor, no qual padeço

Quem lê meu verso com bastante calma,
por certo me conhece até no avesso, 
pois minha inspiração jamais empalma 
tudo que às outras almas ofereço.

Quem lê meu verso sabe, num instante,
se estou tristonho, ou até feliz bastante.
- Mais claro ainda?  -  Olhe nos  meus olhos!

As minhas vistas são também janelas,
bastando apenas ver através delas,
se tenho um grande amor... ou só abrolhos!
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FELIZ NATAL

Natal me traz a mais doce lembrança
de todas quantas trago no meu peito;
recordações do tempo de criança,
que não se apagam mais de nenhum jeito...

Natal me traz também muita esperança
de que na Terra surja mais respeito
com a sacra vida humana e, sem tardança,
Jesus-menino encontre um Lar perfeito!

Natal, portanto, encanta a minha vida,
mormente se a família está reunida
e, junto a nós, amigos de verdade.

Do bem que isso me faz eu dou sinal
em meu sincero abraço de amizade
que a todos quer dizer: Feliz Natal!
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FINAL DE ANO

Final de ano... É chegada a hora 
de fazer um balanço em minha vida. 
De início de janeiro, até agora,  
será que progredi nesta corrida?

Advento vem aí..., já não demora  
e é Natal, Ano-novo... e eu só na lida...
Ao meu irmão, que fiz de bom? Por ora,  
eu nada vejo e estou é sem saída!

Vergonhoso chegar ao fim do ano 
com minhas duas mãos assim vazias, 
sem nada para dar... É desumano!

Nem basta só não praticar o mal...
E com amor, que fiz? Foi só poesias? 
Basta agora rezar? -  “Feliz Natal”?!
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NÃO TENHA INVEJA!

O voo do urubu tão silencioso
e, na aparência, sem esforço algum,
nos lembra um parapente fabuloso,
cujo piloto tem risco comum....

O nosso pobre abutre é bem feioso,
mas seu voar supera qualquer um;
enquanto o voo à vela é majestoso,
perigo o urubu não tem nenhum!

A lei protege até sua existência,
por sua importante excelência,
limpando sem cansar a Natureza!

Vendo o urubu no céu, não tenha inveja,
(como de quem com risco é que veleja),
já que o manjar do abutre é a impureza!
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SE DEUS QUISER!

Sonho muito voar. Mas de avião
fabricado aqui mesmo, na Embraer;
e quase sempre tenho a sensação
de que vou conseguir, se Deus quiser!

O fato não me dá qualquer razão,
mas o vou contá-lo, por achar mister
narrar de onde partiu minha ambição
de inda cumprir meu sonho, se eu puder... 

Estava eu no CTA, presente,
vendo o primeiro voo surpreendente,
do mais que decantado “Bandeirante”.

E ao ver o então Major, seus criadores...
Mariotto e Michel, aviadores...
meus amigos... sonhei voar bastante!
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SERVIDOR

São as rimas que ditam meus poemas;
quem manda em meu sentir é sempre o amor...
O coração resolve os meus dilemas,
e o meu cantar persegue a minha dor...

Meus gostos estão presos em algemas;
e a minha opinião não ouso expor...
Espero que resolvam meus problemas,
tal qual age na guerra um desertor!...

Assim, meus versos nunca foram meus;
são dos que mandam em mim, porque meu Deus,
além de Pai, é meu consolador...

Em termos de poesia não sou nada;
além de pobre alma apaixonada,
sou só, do alheio estro, servidor!

Fonte:
O poeta

Lima Barreto (Cinco mulheres) III - Carolina



- Pois quê! vais casar-te?

- É verdade.

- Com o Mendonça?

- Com o Mendonça.

- Isso é impossível! Tu, Carolina, tu formosa e moça, mulher de um homem como aquele, sem nada que possa inspirar amor? Ama-o acaso?

- Hei de estimá-lo.

- Não o amas, já vejo.

- É meu dever. Que queres, Lúcia? Meu pai assim o quer, devo obedecer-lhe. Pobre pai! Ele cuida de fazer a minha felicidade. A fortuna de Mendonça parece-lhe uma garantia de paz e de ventura da minha vida. Como se engana!

- Mas não deves consentir nisso... Vou falar-lhe.

- É inútil, nem eu quero.

- Mas então...

- Olha, há talvez outra razão: creio que meu pai deve favores ao Mendonça; este apaixonou-se por mim, pediu-me; meu pai não teve ânimo de recusar-me.

- Pobre amiga!

Sem conhecer ainda as nossas heroínas, já o leitor começa a lamentar a sorte da futura mulher de Mendonça. É mais uma vítima, dirá o leitor, imolada ao capricho ou à necessidade. Assim é. Carolina devia casar-se daí a alguns dias com Mendonça, e era isso o que lamentava a amiga Lúcia.

- Pobre Carolina!

- Boa Lúcia!

Carolina é uma moça de vinte anos, alta, formosa, refeita. Era uma dessas belezas que seduzem os olhos lascivos, e já por aqui ficam os leitores sabendo que Mendonça é um desses, com a circunstância agravante de ter meios com que lisonjear os seus caprichos.

Bem vejo como me poderia levar longe este último ponto da minha história; mas eu desisto de fazer agora uma sátira contra o vil metal (por que metal?); e bem assim não me dou ao trabalho de descrever a figura da amiga de Carolina.

Direi somente que as duas amigas conversavam no quarto de dormir da prometida noiva de Mendonça.

Depois das lamentações feitas por Lúcia à sorte de Carolina, houve um momento de silêncio. Carolina empregou algumas lágrimas; Lúcia continuou:

- E ele?

- Quem?

- Fernando.

- Ah! esse que me perdoe e me esqueça; é tudo quanto posso fazer por ele. Não quis Deus que fôssemos felizes; paciência!

- Por isso o vi triste lá na sala!

- Triste? ele não sabe nada. Há de ser por outra coisa.

- O Mendonça virá?

- Deve vir.

As duas moças saíram para a sala. Lá se achava Mendonça em conversa com o pai de Carolina, Fernando a uma janela de costas para a rua, uma tia de Carolina conversando com o pai de Lúcia. Ninguém mais havia. Esperava-se a hora do chá.

Quando as duas moças apareceram todos voltaram-se para elas. O pai de Carolina foi buscá-las e levou-as a um sofá.

Depois, no meio do silêncio geral, o velho anunciou o casamento próximo de Carolina e Mendonça.

Ouviu-se um grito sufocado do lado da janela. Ouviu-se, digo mal - não se ouviu; Carolina foi a única que ouviu ou antes adivinhou. Quando voltou os olhos para a janela, Fernando estava de costas para a sala e tinha a cabeça entre mãos.

O chá foi tomado no meio de geral acanhamento. Parece que ninguém, além do noivo e do pai de Carolina, aprovava semelhante consórcio.

Mas, quer aprovasse, quer não, ele devia efetuar-se daí a vinte dias.

"Entro no teto conjugal como num túmulo, escrevia Carolina na manhã do casamento à amiga Lúcia; deixo as minhas ilusões à porta, e peço a Deus que não perca só isso."

Quanto a Fernando, a quem ela não pôde ver mais depois da noite da declaração do casamento, eis a carta que ele mandou a Carolina, na véspera de realizar-se o consórcio:

"Quis acreditar até hoje que fosse uma ilusão, ou um sonho mau semelhante casamento; agora sei que não é possível duvidar da verdade. Pois quê! tudo te esqueceu, o amor, as promessas, os castelos de felicidade, tudo, por amor de um velho ridículo, mas opulento, isto é, dono desse vil metal, etc., etc..."

O leitor sagaz suprirá o resto da carta, acrescentando qualquer período tirado de qualquer romance da moda.

Isto que aí fica escrito não muda em nada a situação da pobre Carolina; condenada a receber recriminações quando ia dar a mão de esposa com o luto no coração.

A única resposta dada por ela à carta de Fernando foi esta:

"Esqueça-se de mim."

Fernando não assistiu ao casamento. Lúcia assistiu triste como se fora um enterro. Em geral perguntava-se que amor estranho era aquele que levava Carolina a desfolhar a sua mocidade tão viçosa nos braços de semelhante homem. Ninguém atinava com a resposta.

Como eu não quero entreter os leitores com episódios inúteis e narrações fastidiosas, salto aqui uns seis meses e vou levá-los à casa do Mendonça, numa manhã de inverno.

Lúcia, solteira ainda, está com Carolina, onde costuma ir passar alguns dias. Não se fala na pessoa de Mendonça; Carolina é a primeira a respeitá-lo; a amiga respeita esses sentimentos.

É verdade que os seis primeiros meses de casamento foram para Carolina seis séculos de lágrimas, de angústia, de desespero. De longe a desgraça parecia-lhe menor; mas desde que ela pôde tocar com o dedo o deserto árido e seco em que entrou, então não pôde resistir e chorou amargamente.

Era o único recurso que lhe restava: chorar. Uma porta de bronze separava-a para sempre da felicidade que sonhara nas suas ambições de donzela. Ninguém sabia dessa odisséia íntima, menos Lúcia, que ainda assim sabia mais por adivinhar e por surpreender as torturas menores da companheira dos primeiros anos.

Estavam, pois, as duas em conversa, quando às mãos de Carolina chegou uma carta assinada por Fernando.

Pintava-lhe o antigo namorado o estado em que tinha o coração, as dores que sofrera, as mortes de que escapara. Nessa série de padecimentos, dizia ele, nunca perdera a coragem de viver para amá-la, embora de longe.

A carta era abundante em comentários, mas eu julgo melhor conservar somente a substância dela.

Leu-a Carolina, trêmula e confusa; esteve alguns minutos calada; depois
rasgando a carta em tiras muito miúdas:

- Pobre rapaz!

- Que é? perguntou Lúcia.

- É uma carta de Fernando.

Lúcia não insistiu. Carolina indagou do escravo que lhe trouxera a carta o modo por que lhe havia chegado às mãos. O escravo respondeu que um moleque lhe entregara à porta. Lúcia deu ordem para que não recebesse cartas que viessem pelo mesmo portador.

Mas no dia seguinte uma nova carta de Fernando chegou às mãos de Carolina. Outro portador a entregara.

Nessa carta Fernando pintava com cores negras a situação em que se achava e pedia dois minutos de entrevista com Carolina.

Carolina hesitou, mas releu a carta; ela parecia tão desesperada e dolorosa, que a pobre moça, em quem falava um resto de amor por Fernando, respondeu afirmativamente.

Ia mandar a resposta, mas de novo hesitou e rasgou o bilhete, protestando fazer o mesmo a quantas cartas chegassem.

Durante os cinco dias seguintes vieram cinco cartas, uma por dia, mas todas ficaram sem resposta, como as anteriores.

Enfim, na noite do quinto dia, Carolina achava-se no gabinete de trabalho, quando assomou à janela que dava para o jardim a figura de Fernando.

A moça deu um grito e recuou.

- Não grite! disse o moço em voz baixa, podem ouvir...

- Mas, fuja! fuja!

- Não! Quis vir de propósito, a fim de saber se deveras não me amas, se
esqueceste aqueles juramentos...

- Não devo amá-lo!...

- Não deve! Que tem o dever conosco?

- Vou chamar alguém! Fuja! Fuja!

Fernando saltou para o quarto.

- Não, não hás de chamar!

A moça correu para a porta. Fernando travou-lhe do braço.

- Que é isso? disse ele; amo-te tanto, e tu foges de mim? Quem impede a nossa felicidade?

- Quem? Meu marido!

- Seu marido! Que temos nós com ele? Ele...

Carolina pareceu adivinhar um pensamento sinistro em Fernando e tapou os ouvidos. Nesse momento abriu-se a porta e apareceu Lúcia.

Fernando não pôde afrontar a presença da moça. Correu para a janela e saltou para o jardim.

Lúcia, que ouvira as últimas palavras dos dois, correu a abraçar a amiga, exclamando:

- Muito bem! muito bem!

Dias depois Mendonça e Carolina saíram para uma viagem de um ano. Carolina escrevia o seguinte a Lúcia:

"Deixo-te, minha Lúcia, mas assim é preciso. Amei Fernando, e não sei se o amo agora, apesar do ato covarde que praticou. Mas eu não quero expor-me a um crime. Se o meu casamento é um túmulo, nem por isso posso deixar de respeitá- lo. Reza por mim e pede a Deus que te faça feliz."

Foi para estas almas corajosas e honradas que se fez a bem-aventurança.
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continua... IV - Carlota e Hortência

Fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1865.