segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Isabel Furini (Mini-Contos)


ARTE

Enlouqueceu depois de muitas exposições sem êxito. Seu trabalho não repercutia na mídia. Abandonou a casa. Começou a morar na rua. Continuou pintando compulsivamente. Era alto, elegante e belo. Meu irmão e eu o observamos enquanto comia. Não parecia um indigente. Tinha a postura de um príncipe. No Natal pintou barcos carregados de presentes nos muros de uma fábrica. Os adultos nem paravam para olhar, mas meu irmão, eu e outras crianças do bairro de operários, admirados, aplaudíamos o artista louco.
_________________________________________

JUSTIÇA

– Deus abrirá as portas do Céu para eles? – perguntavam-se os Anjos enquanto pesavam os corações de dois homens.

Para o ateu compassivo, de coração bondoso, Deus abriu as portas do Céu. Fechou-a para o fanático religioso, que, cheio de arrogância e sem compaixão,  julgava-se superior ao ateu e o condenava.

“Ele prosseguiu: Atendei ao que ouvis: com a medida com que medirdes, vos medirão a vós, e ainda se vos acrescentará”. Marcos, 4-24.
_________________________________________

O CACHORRO DE MINHA AMIGA

- Os cachorros merecem respeito - falou minha amiga. E  é verdade. Mas, e os humanos?

Há alguns anos Irene me convidou para almoçar. Entrei na casa e o cachorro - enorme -  começou a latir. Minha amiga me aconselhou sentar-me à mesa e não me mexer, porque o cachorro era perigoso. Eu nem consegui comer porque estava com muito medo. Depois soube que não fui a única. Rosa e Betty passaram pela mesma situação. Resultado: Ninguém aceita almoçar na casa da Irene. Se ela gosta de ter o cão solto pela casa enquanto almoça com as amigas,  então que troque esse enorme cachorro por um Chihuahua.
_________________________________________

O CIRCO

Estava na cozinha esquentando o café do dia anterior. Sua esposa o havia deixado. Abandonara-o meses antes, quando um circo passava pela cidade. Ela aprendeu a voar junto com o trapezista. Nada tão belo quanto um salto mortal! – comentou Vera. Ele a viu voar no trapézio junto com o trapezista. Mas quando Vera o abandonou, suspeitou do palhaço.

Martim viu quando o palhaço se aproximou de sua esposa e murmurou algo no seu ouvido. Ela sorriu. Abraçou-o. Uma semana depois, o circo foi embora e sua esposa também. Tudo culpa do palhaço! Esse palhaço de sorriso falso! Era isto: ela havia fugido com um palhaço! E agora os dois iam com o circo de cidade em cidade fazendo palhaçadas.

Um ano depois o circo voltou à cidade, e ele soube o segredo que Vera havia guardado durante muitos anos. Vera engravidara quando era adolescente e havia dado seu filho a um casal de palhaços que trabalhava em um circo.
_________________________________________

O VESTIDO

Rosana abriu a porta do guarda-roupa e observou o vestido azul. Ela o havia usado na festa do Natal da empresa, no final dos anos 70. Foi quando conheceu Daniel, o seu grande amor. Daniel casou com a secretária. Rosana guardou o vestido como testemunha de sua juventude. Nesse momento observando o vestido azul tamanho 40, percebeu que sua roupa nova era 48.

– Não posso usar esse vestido e não posso continuar vivendo no passado – murmurou.

Decidiu doar o vestido para a filha da diarista. E se sentiu livre - como se houvesse doado toda a sua amargura.
_________________________________________

SURPRESA

Viajar pelos Andes sozinha! Natal maravilhoso!
 
Desci do avião em Lima, peguei um táxi até o hotel. Deixei as malas e fui conhecer a cidade. De repente, um homem vestindo um sobretudo preto. Apressei o passo, ele também.  Atravessei a rua, ele também. Nervosa, fingi olhar vitrines. Despistei-o.

Continuei caminhando. Na esquina o vi encostado numa porta. Olhou-me, colocou as mãos nas bordas do sobretudo e o abriu abruptamente. Fechei os olhos. Gritei. Ele disse: – Senhora, vendo canetas, chaveiros, brincos, pulseiras... Abri os olhos, vi objetos pendurados na parte interna do sobretudo. Um vendedor! Respirei aliviada e comprei várias pulseiras.
_________________________________________

VIVER

Doroteia, sempre recatada, começou a mudar. Aos cinquenta e oito anos, idade em que outras mulheres abandonam a vaidade e deixam crescer a barriga, a Doroteia, pelo contrário, começou a comprar roupas mais modernas, coloridas, alguns decotes, bijuteria. Ficou muito vaidosa. Passava horas no shopping. Queria dançar. Decidiu viajar ao Havaí no Natal para dançar hula-hula. Suas amigas acharam sua atitude estranha, criticavam-na. Mas Doroteia não desistiu. Ela fez a sua viagem, voltou com um namorado dez anos mais jovem do que ela, de cabelo grisalho, homem muito charmoso.

As amigas deixaram de criticá-la e começaram a imitar o seu comportamento. Como bem dizem os americanos, nada tem tanto êxito quanto o êxito.

Fonte:
Blog de Isabel Furini

Nenhum comentário: