segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Gracéli Maria (A Chinesinha)


Comprei o jornal, como de costume, na banca do Sr. Juvenal. Mas, aquele dia estava apressado demais para dar uma paradinha no café. Todas as manhãs minha rotina era a mesma; comprava o jornal, trocava algumas palavras com Sr. Juvenal, acendia meu primeiro cigarro do dia, caminhava até a esquina, onde costumava tomar um cafezinho bem forte, enquanto lia as notícias e, em seguida, voltava calmamente para casa.

É bem certo que duas ou três vezes por semana, Dona Samira varria a calçada em frente ao seu velho sobrado e me dirigia algumas perguntas.

- Como vai sua menina, mandou notícias já, foi?

- Não, Dona Samira, ela não telefonou esta semana, nem a passada. Está em época de provas - respondi apressado.

- Ah! Sim! Uma sobrinha de meu marido estava a estudar na Europa, mas a pobrezinha...

- Já conheço a estória - interrompi, antes que ela continuasse. - Desculpe-me, mas tenho de ir. Preciso dar uns telefonemas - acrescentei.

Entrei o mais rápido que pude no prédio. É bem verdade que ela continuou a balbuciar algumas coisas, mas eu já me encontrava na porta do elevador.

Mal toquei no trinco e o telefone tocava. Atendi.

– Alô!

- Sr. Fernando, é da lavanderia La Maris.

- Pois não! - respondi

- A respeito do seu terno azul-marinho, ele já está pronto faz dias.

- Mas, estou sem tempo - eu disse

- O senhor passe hoje aqui faça o favor, ou daremos seu terno - disse ela, batendo o telefone na minha cara.

Acabei saindo apressado.

Chegando á lavanderia deparei com uma jovem atrás do balcão, que eu nunca vira antes. Atendia pelo nome de Dolores. Usava um penteado esquisito, mascava um chiclete estrondoso e parecia ter um imenso prazer em deixar as pessoas esperando.

A lavanderia estava cheia, pelo menos umas dez pessoas.

Ela, a tal Dolores, me chamou.

– Até que enfim o senhor apareceu - disse ela.

- Desculpe, mas eu não tive tempo de vir antes. Trabalho demais! - disse eu.

- Esta insinuando que eu não trabalho demais? - perguntou ela.

- Não, senhorita. Me referia à minha falta de tempo. - respondi - Bem, pode me trazer meu terno, por obséquio? - acrescentei.

Ela não me respondeu e arregalou os olhos para a porta. Então, virei - me para olhar.

Uma jovem de baixa estatura, olhos puxados e vestindo um traje oriental, estava parada à porta da lavanderia. Dolores correu para dentro, voltou com um embrulho e o entregou à jovem.

A figura lembrava uma frágil boneca chinesa, tinha pele de porcelana, usava um chapéu chinês. Ela pegou o embrulho, agradeceu numa espécie de reverência oriental. E saiu em movimentos rápidos.

- Sr. Fernando, vou buscar o terno - disse Dolores.

Enquanto esperava, recordava-me da figura que saíra há pouco. Olhei para fora, o tempo estava feio, parecia que ia chover. Dolores voltou e me deu o terno.

- Obrigado! - respondi.

Ao sair, pisei num envelope caído à porta, olhei para trás, Dolores havia desaparecido por detrás do balcão.

Peguei-o e resolvi correr para escapar da chuva.

Entrei no carro e abri o envelope. Era uma passagem com um nome quase ilegível. Destino: Xangai. Só então liguei as coisas, devia ser da jovem chinesinha, ela estava apressada. A data da passagem era vinte e três e estávamos no dia vinte e dois.

Olhei à volta e nem sinal dela. Desci do carro e tentei caminhar em direção ao metrô, talvez ainda pudesse encontrá-la.

Da escada rolante, olhei a multidão na plataforma e avistei-a. Pequena, ela se desviou entre as pessoas. E quando quase consegui alcançar seu braço, ela sumiu de novo, com a multidão que se apertava metrô adentro.

Pensei em como iria achá-la.

Resolvi, no maior sacrifício, voltar à lavanderia. Indaguei sobre a chinesinha com a antipática figura de Dolores. Mas a má vontade dela, quase me desanimou.

- Dolores, trata-se de uma passagem. Com data marcada e para amanhã - disse eu.

- Está bem! Mas antes tenho de dar um telefonema.

- Santo Deus! - pensei comigo.

Ela fez a tal ligação, parecia que falava com alguém muito íntimo, pois se escancarava de rir ao telefone e se não ria, estourava uma bola de chiclete enorme.

Esperei uns quatro ou cinco minutos até que ela desligasse o telefone.

Voltou. Me deu um nome. Akitami.

- Como? - repeti - Akitami?

- É surdo?

- Tem sobrenome?

- Na ficha não diz.

– É ela?

- Não sei.

- Tem um telefone?

- Só endereço: Rua Chamoios, 557.

Anotei o endereço e saí.

Voltei pra casa e olhei num mapa da cidade. O tal endereço ficava num bairro muito afastado.

Chamei Amanda, uma amiga, para me acompanhar.

Fomos com meu carro. Durante o trajeto, Amanda dormiu.

Depois de entrar em algumas ruas sem nome, desertas, e sem vermos uma pessoa sequer para dar informações, achamos o dito endereço.

Em frente à casa com o referido número havia uma placa gigante de neon onde estava escrito "Boite Lumière".

Descemos do carro, toquei a campainha. Um jovem, também oriental, abriu a porta.

- Boa tarde, procuro por Akitami - disse eu.

O jovem fechou a porta na minha cara. Mas resolvi bater novamente. Ele abriu-a outra vez dizendo: - Não conheço ninguém Akitami.

- É uma jovem de baixa estatura, traços chineses.

- Espere aqui.

Veio uma garçonete nos atender. 

- Vocês procuram uma jovem oriental?

- Sim, uma chinesinha.

– Ela saiu.

- Podemos esperar?

- Entrem! - disse a moça.

Lá dentro havia uma penumbra perturbadora, mal podíamos enxergar as mesas.

A garçonete nos ofereceu drinques, e uma mesinha num canto.

Vieram as bebidas. Os copos eram compridos, saindo deles uma estranha fumaça colorida. Ficamos ali, bebendo e conversando.

De repente, tudo começou a girar. As luzes da boate acenderam-se, um globo no centro da sala começou a rodar. Uma estranha fumaça, tomou conta do recinto. E começaram a surgir algumas figuras bizarras.

Amanda ria e se divertia, achando tudo normal.

Alguém me convidava para dançar, mas em meio à penumbra, mal vi seu rosto.

Quando olho para os lados, Amanda havia sumido!

Chamei o garçom, e indaguei sobre ela, mas ninguém a vira.

Uma dançarina aproximou-se de mim, tinha um rosto pálido e imensos olhos castanhos. Em sua boca, um batom marrom escuro.

Perguntei se ela conhecia a chinesinha.

- Somos amigas - respondeu. - O que deseja com ela? - perguntou em seguida.

- Tenho algo para entregar-lhe.

A dançarina se aproximou de meus ouvidos e disse:

– Não devia ter vindo aqui. Em seguida desapareceu.

Fiquei angustiado, solitário ali na mesa.

Comecei a gritar pelo nome de Amanda. Então, a dançarina reapareceu.

– Acalme-se - disse ela. - Há algo que o senhor precisa saber.

- Preciso entregar a passagem, a data é para amanhã, entende? Amanhã! - gritei.

- Deixe que eu entrego a passagem.

- Eu quero entregar pessoalmente!

- O senhor não sabe de nada. Não se envolva.

~ Qual o problema?

– Amanda? Akitami? Chinesinha? O senhor está louco! - disse ela, agarrando-me o braço e acrescentou: - Encontre-me agora na rua do canal. Você deve sair já daqui!

Levantei-me meio cambaleante e saí da boate. Lá fora, o luminoso estava apagado. Ninguém na rua, meu carro não estava mais ali. 

Lá na esquina, de um táxi, saltava alguém. Aproximei-me, era a chinesinha.

Gritei seu nome. Mas ela dobrou a esquina e foi em outra direção.

Eu gritava e comecei a correr... correr...

Senti o suor descendo em meu rosto. Até que tudo se apaga. Ouço um som estridente, que parece um telefone, mas não é...

Acordo! Que alívio! Não existia boate, nem chinesinha, nem lavanderia.

Levantei-me. No rádio anunciavam um dia muito quente.
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Gracéli Maria nasceu em Curitiba, bacharelou-se em letras na UFPR. Contista. Trabalhou como atriz de teatro. Apaixonada por arte, dedica-se à dança.

Fonte:
Isabel Florinda Furini (org.). 50 Contos por 14 Autores. 
Curitiba: JM, 2008.

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