sábado, 14 de maio de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 4

 

Rachel de Queiroz (Pici)

Foi em 1927. Eu estava naquela faixa de entreaberto botão entrefechada rosa, louca por desabrochar e ver o mundo. No sertão o vento nordeste já soprava violento, a folha do marmeleiro enrolava e caía, e o mormaço do verão, entre as duas e as três da tarde, era de crestar a pele do rosto e as flores no meu pequeno jardim.

E então nós iniciamos a campanha pelo sítio de veraneio; e meu pai acabou comprando o sonhado sítio: por nome Pici, com açude, pomar, baixio de cana, num vale fresco e ventilado para os lados da lagoa da Parangaba. Só que nesse tempo se dizia Porangaba.

E começou nessa época um período muito feliz. Nós éramos seis filhos — dois rapazes, dois meninos e a caçula que começava a engatinhar. O transporte era o trem suburbano que parava defronte ao Asilo e nos levava para a cidade. Meu pai começou logo a plantar o baixio, a fazer planos para o engenho. Trouxe da fazenda as melhores vacas para a vacaria. Eu me iniciava timidamente, frequentando a roda dos literatos na cidade, roda liderada pelo nosso amado guru, Antônio Sales. Júlio Ibiapina me deixava escrever as primeiras croniquinhas no jornal O Ceará. Foi quando conheci Demócrito Rocha, que me dava muita confiança literária; Djacir Meneses, amigo fraterno até hoje. Jáder de Carvalho, meu primo, já amizade velha. O ruidoso e fulgurante Antônio Furtado. Ah, tantos que ainda hoje são amigos, essa graça Deus me deu de conservar os amigos, só a Inominável os carrega.

Mas isso não são recordações literárias, quero falar no sítio Pici.

O casarão era talvez mais do que centenário, feio e mal-amanhado, o chão interno em diversos planos, cheio de camarinhas e cafuas. Assim mesmo ainda hoje me dá remorso quando recordo que promovi os planos para o reformar — e no que se iam derrubando paredes, abrindo portas, a velha estrutura ia desmoronando toda, e por fim o jeito era arrasar tudo e fazer casa nova. Mereço desculpa, tinha só dezesseis anos, não dava valor a essas obras antigas. Meu pai, sei que lhe doeu a demolição; mas afinal a casa desabou mesmo e não tinha sido erguida nem morada por gente dele, argumento forte. Pertencera à família do Padre Rodolfo Ferreira da Cunha e fora vendida depois a um industrial, José Guedes, de quem a compramos.

A casa nova fizemos imensa, um vaticano, salas largas, rodeada de alpendres como nós gostávamos. Ali escrevi meus primeiros livros; O Quinze, muito perseguida, minha mãe me obrigava a dormir cedo — essa menina acaba tísica! — e assim, quando todos se recolhiam, eu me deitava de bruços no assoalho da sala, junto ao farol de querosene que dormia aceso (ainda não chegara a eletricidade lá) e em cadernos de colegial. a lápis, escrevi o livrinho todo. Nas grandes mangueiras do pomar eu armava a minha rede e passava as tardes lendo. De noite, nós formávamos uma pequena orquestra com nosso professor de violão, Litrê, puxando no banjo; e a filha dele, Altair, muito bonitinha e afinada, e tinha um menino, Perose. Nas noites de lua vinham uns moços de Porangaba e nos faziam serenata, cantando Mi noche triste. Porque nesse tempo o chique era tango.

Mas depois fomos dispersando. Os rapazes se formavam, morreu um aos dezoito anos, e desceu uma sombra escura sobre o Pici. Veio a guerra, já então eu andava por longe, os americanos estabeleceram uma base lá perto e os blimps, os pequenos dirigíveis prateados, pousavam quase acima da nossa casa. Enquanto isso a cidade crescia, ia cercando o sítio com seus exércitos de casinholas populares. Dava ladrão na fruta, na cana, até nas galinhas e patos. Meu pai morreu. Morreu o outro rapaz. Minha mãe ainda tentou valentemente ficar — mas o cerco urbano se apertava. Vendeu-se o sítio.

Hoje, me contam que por lá mal há vestígios do que foi; aterraram o açude, onde era o engenho é agora uma igreja, abriram ruas no pomar derrubando as grandes mangueiras. Leio nos jornais a respeito do campus universitário do Pici — será na base dos americanos? Diz que o casarão é hoje uma velha casa de quintal pequeno, habitada por sucessivas famílias de estranhos.

Nunca mais fui lá. Dói demais, vai doer demais, imagino. Eu ainda escuto no coração as passadas de meu pai no ladrilho do alpendre, o sorriso de minha mãe abrindo a janela do meu quarto, manhã cedo: “Acorda, literata! Olha que sol lindo!” E as mangas, bola de ouro, que eram os cuidados dela — terão derrubado a mangueira bola de ouro?

Não, nunca mais quero ir lá. Ninguém desenterra um defunto amado para ver como é que estão os ossos.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XL

E TODA A NOITE A CHUVA VEIO

 
E toda a noite a chuva veio
E toda a noite não parou,
E toda a noite o meu anseio
No som da chuva triste e cheio
Sem repousar se demorou.

E toda a noite ouvi o vento
Por sobre a chuva irreal soprar
E toda a noite o pensamento
Não me deixou um só momento
Como uma maldição do ar.

E toda a noite não dormida
Ouvi bater meu coração
Na garganta da minha vida.
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EU
 
Sou louco e tenho por memória
Uma longínqua e infiel lembrança
De qualquer dita transitória
Que sonhei ter quando criança.

Depois, malograda trajetória
Do meu destino sem esperança,
Perdi, na névoa da noite inglória,
O saber e o ousar da aliança.

Só guardo como um anel pobre
Que a todo herdeiro só faz rico
Um frio perdido que me cobre

Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico
Da estrada certa que não sigo.
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EU AMO TUDO O QUE FOI
 
Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
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É UMA BRISA LEVE
 
É uma brisa leve
Que o ar um momento teve
E que passa sem ter
Quase por tudo ser.
Quem amo não existe.
Vivo indeciso e triste.
Quem quis ser já me esquece
Quem sou não me conhece.

E em meio disto o aroma
Que a brisa traz me assoma
Um momento à consciência
Como uma confidência.
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É UM CAMPO VERDE E VASTO
 
É um campo verde e vasto,
        Sozinho sem saber,
De vagos gados pasto,
         Sem águas a correr.

Só campo, só sossego,
        Só solidão calada.
Olho-o, e nada nego
        E não afirmo nada.

Aqui em mim me exalço
        No meu fiel torpor.
O bem é pouco e falso,
        O mal é erro e dor.

Agir é não ter casa,
        Pensar é nada Ter.
Aqui nem luzes ou asa
         Nem razão para a haver.

E um vago sono desce
        Só por não ter razão,
E o mundo alheio esquece
         À vista e ao coração.

Torpor que alastra e excede
        O campo e o gado e os ver.
A alma nada pede
         E o corpo nada quer.

Feliz sabor de nada,
         Inconsciência do mundo,
Aqui sem porto ou estrada,
         Nem horizonte no fundo.
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EU ME RESIGNO
 
Eu me resigno. Há no alto da montanha
Um penhasco saído,
Que, visto de onde toda coisa é estranha,
Deste vale escondido,
Parece posto ali para o não termos,
Para que,  vendo-o ali,
Nos contentemos só com o aí vermos
No nosso eterno aqui...

Eu me resigno. Esse penhasco agudo
Talvez alcançarão
Os que na força de irem põe m tudo.
De teu próprio silêncio nulo e mudo,
Não vás, meu coração.
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EU TENHO IDEIAS E RAZÕES
 
Eu tenho ideias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.
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EXÍGUA LÂMPADA TRANQUILA
 
Exígua lâmpada tranquila,
Quem te alumia e me dá luz,
Entre quem és e eu sou oscila.
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FALHEI. OS ASTROS SEGUEM SEU CAMINHO
 
Falhei. Os astros seguem seu caminho.
Minha alma, outrora um universo meu,
É hoje, sei, um lúgubre escaninho
De consciência sob a morte e o céu.
Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo.
O que tive por meu ou por haver
Fica sempre entre um polo e o outro polo
Do que nunca há de pertencer.

Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou,
O que é já nada, com a lenha velha
Onde, pois valho só quando me dou,
Pegarei facilmente uma centelha.
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FLOR QUE NÃO DURA
 
Flor que não dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.

Não te perdi
No que sou eu,
Só nunca mais, ó flor, te vi
Onde não sou senão a terra e o céu.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Adega de Versos 80: Dorothy Jansson Moretti

 

Irmãos Grimm (Como se repartem alegrias e sofrimentos)


Houve, uma vez, um alfaiate insuportável, que vivia a brigar com a mulher. Esta era uma criatura boa, piedosa e muito trabalhadeira, mas, por mais que fizesse, nunca conseguia satisfazê-lo; com tudo ele mostrava-se descontente, e não parava de resmungar, de gritar, de fazer escândalos, espancando, com motivo ou sem ele a pobre mulher.

Um belo dia, as coisas chegaram aos ouvidos do Juiz e o alfaiate foi intimado a depor. Depois, trancaram-no na prisão a fim de que se corrigisse.

O homenzinho ficou preso bastante tempo, a pão e água por castigo, até que foi posto novamente em liberdade; mas antes, fizeram-no jurar que nunca mais bateria na mulher nem a maltrataria, comprometendo-se a viver em harmonia com ela, pois todos os casais, para viverem bem, têm que repartir entre si alegrias e sofrimentos.

Durante algum tempo, tudo correu bem mas, em seguida, ele voltou ao seu antigo sistema de resmungar e brigar por coisas de nada. Como não podia espancá-la, em virtude do compromisso prestado perante a Justiça, tentou puxar-lhe os cabelos. A mulher, porém, logrou escapar-lhe das mãos e correu para o quintal. Com o metro de pau e a tesoura, o alfaiate saiu correndo atrás dela e foi-lhe atirando tudo quanto lhe caía nas mãos.

Sempre que conseguia atingi-la com qualquer coisa, punha-se a rir satisfeito mas, quando falhava os golpes, ficava ainda mais furioso e punha-se a insultá-la cheio de raiva.

Vendo que as coisas se prolongavam, os vizinhos correram em socorro da pobre mulher. Então o alfaiate foi, novamente, intimado a comparecer perante a Justiça, onde lhe recordaram o juramento prestado.

- Prezados senhores, - afirmou ele, - tudo o que jurei, mantive-o; não a espanquei, apenas reparti com ela minhas alegrias e meus sofrimentos.

- Como é possível, - disse o Juiz, - se ela tanto se queixa de ti?

- Não a espanquei, não; quis apenas pentear-lhe os cabelos com a mão, porque ela estava com uma cara grotesca, ela porém fugiu-me e largou-me como um dois de paus. Então corri atrás dela e, para chamá-la à ordem, atirei-lhe tudo o que me vinha às mãos. Fiz isso apenas para adverti-la. E reparti com ela as alegrias e os sofrimentos, como me mandastes, pois todas as vezes que lhe acertava alguma coisa, era motivo de alegria para mim e de sofrimento para ela e, vice-versa, quando falhavam os golpes, era motivo de alegria para ela e de sofrimento para mim.

O Juiz, porém, não acatou essa resposta e, com toda justiça, deu-lhe merecido castigo.

Baú de Trovas XLVII


Segura, peão, segura,
que a vida é um grande rodeio...
– É luta bela, mas dura,
com muitos trancos no meio!
A. A. de Assis
Maringá/PR

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Minha dívida eu não nego,
mas eu não posso pagar;
e vou deixá-la no prego
até você perdoar.
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN

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Fugir da idade é tolice,
e o difícil de entender
é que somente a velhice
que nos ensina a viver.
Alba Christina Campos Netto
São Paulo/SP

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Seja noite, seja dia,
antes, durante ou depois,
não há maior alegria
que esta festa de nós dois...
Ana Cristina de Souza
Teresópolis/RJ,  ????  – 2020, São Paulo/SP

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Quando chegaste ao portão
para saber quem batia,
batia o meu coração
que de saudades morria.
Domingos Freire Cardoso
Ilhavo/Portugal

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Por mais que eu seja refém
da pressa do teu abraço,
meu sonho não vai além
da pequenez do meu passo!
Elisabeth Souza Cruz
Nova Friburgo/RJ

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Vem, palhaço, sem tardança,
com teus trejeitos, teus chistes..
e acorda a alegre criança
que dorme nos homens tristes!
Élton Carvalho
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1994

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Pensais de mim que sou cego
e que sou doido perfeito.
Mas, eu também não vos nego
ter de vós igual conceito.
Emiliano Perneta
Curitiba/PR, 1866 – 1921

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Desta emoção incontida
não faço nenhum alarde...
E culpo apenas a vida
por te encontrar muito tarde.
Ercy Maria Marques de Faria
Bauru/SP

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No seio da madrugada,
solitário ao rês do monte,
tenho a saudade embalada
pela cantiga da fonte !
Florestan Japiassú Maia
Rio de Janeiro/RJ

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Dizer que a vida não presta
não me cabe isso afirmar.
A minha vida é uma festa
na festa do teu olhar.
Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo/RJ

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No jardim junto ao meu quarto,
o silêncio é tão profundo
que se pode ouvir o parto
das rosas chegando ao mundo.
Héron Patrício
Ouro Fino/MG, 1931 – 2018, Pouso Alegre/MG

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Ao professor muito devo,
devo ao médico também.
Mas o livro é meu enlevo,
tudo que sei dele vem.
Hildemar Cardoso Moreira
Contenda/PR

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Escolha um solo fecundo,
prepara-o com muito ardor,
e em favor bem mais profundo,
plante a semente do amor!
Jeremias Ribeiro dos Santos
Gentio do Ouro/BA, 1926 – 1999, Ipupiara/BA

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Nos meus momentos tristonhos,
quando a incerteza me alcança,
vou acalentando os sonhos
com a canção da esperança.
Jessé Nascimento
Angra dos Reis/RJ

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Ao longo da caminhada,
prevendo outonos risonhos,
quero plantar pela estrada
mil pedacinhos de sonhos!…
Joamir Medeiros
Natal/RN

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Trovador é um arquiteto
que no seu pequeno espaço,
faz das estrelas seu teto
e do céu o seu terraço!
João Batista Xavier Oliveira
Bauru/SP

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Apesar do espaço estreito
da Trova, não me limito:
- É nele que tenho feito
viagens pelo infinito!
João Freire Filho
Rio de Janeiro/RJ, 1941 – 2012

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Feliz quem desde menino,
pela boa educação,
do trabalho faz um hino
e da vida uma canção!
Jorge Fregadolli
Maringá/PR

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Ó meu livro de poesia,
eu não sei qual é teu fim,
mas te entrego a cada dia
um pedacinho de mim.
José Gilberto Gaspar
São Paulo/SP

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Refém da sua mania,
buscando o que resta, enfim,
sou a madrugada fria
que agora amanhece... em mim!
Luiz Antonio Cardoso
Taubaté/SP

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Sou como as uvas pisadas
pra fazer vinho e licor,
que mesmo sendo esmagadas
dão de presente o sabor.
Manoel Cavalcante
Pau dos Ferros/RN

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A saudade em noite fria
é um cobertor para a ausência
onde a tristeza e a alegria
são feitas da mesma essência.
Marta Maria de O. Paes de Barros
São Paulo/SP

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Eu, trabalhar desse jeito,
com a força que Deus me deu,
pra sustentar um sujeito
vagabundo que nem eu?
Orlando Brito
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA

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A mãe que embala o filhinho
com seu carinho profundo,
embala, com seu carinho,
um pedacinho do mundo.
Orlando Woczikosky
Curitiba/PR, 1927 – 2019

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Segui teus passos... No entanto
foi ferindo os pés, na estrada,
que vi no teu rastro, o quanto
sofreste na caminhada!
Professor Garcia
Caicó/RN

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Sinto a dor de quem confessa
que minha vida pequena
foi o ensaio de uma peça
que jamais entrou em cena...
Renata Paccola
São Paulo/SP

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A vida é "fogo de palha"
e o tempo se mostra algoz;
mais parece uma fornalha
onde a palha    somos nós!
Roberto Tchepelentyky
São Paulo/SP

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Vamos brincar de mãos dadas,
crianças pretas e brancas...
- O Sol de nossas calçadas
não tem porteiras nem trancas!…
Rodolpho Abbud
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013

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Nas noites de nossas vidas,
quis apagar madrugadas…
não aquelas mal dormidas,
mas aquelas mal sonhadas.
Romilton Faria
Juiz de Fora/MG

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Da bela fonte que passa
em perfeito burburinho
colho saudades passadas,
migalhas do seu carinho!
Sá de Carvalho
Angra dos Reis/RJ

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Detalhes, quantos e quantos
vão nossas vidas marcando!
Mas nenhum em meio a tantos,
dói mais que um lenço acenando.
Sandro Pereira Rebel
Niterói/RJ

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Saudade... circo às escuras,
onde um palhaço, a ilusão,
faz trejeitos e mesuras
para o nada e a solidão!
Sara Mariany Kanter
São Paulo/SP
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Tremo ainda de paixão,
sozinha na madrugada.
No meu pobre coração,
o tudo, tornou-se o nada.
Solange Colombara
São Paulo/SP

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Nos mistérios deste outono,
as folhas caindo ao chão
tecem colchas de abandono
que eu choro na solidão.
Sônia Maria Ditzel Martelo
Ponta Grossa/PR, 1943 – 2016

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Se eu conseguisse estender
o meu braço ao infinito,
eu só iria colher
do universo, o mais bonito.
Talita Batista
Campos dos Goytacazes/RJ

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Quando pediste o retrato
onde dizes:- "Sempre teu"
eu percebi que, de fato,
nem o retrato era meu!
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Versejando 111


 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Xodó do Dr. Hermann

Faz já não sei quantos anos. Passando em frente ao escritório da Companhia Melhoramentos (esquina da Duque de Caxias com a Joubert de Carvalho), resolvi entrar para dar um abraço no amigo Luiz Bolotta. Por acaso lá estava, em uma de suas frequentes visitas à cidade, o Dr. Hermann Moraes Barros, diretor-superintendente da colonizadora. Ao me ver, ele me puxou pelo braço e convidou para um cafezinho em sua sala.

Já o havia entrevistado algumas vezes, desde as primeiras décadas de Maringá, daí haver entre nós um bom grau de intimidade e cordialidade, mas naquele dia ele começou a conversa dizendo logo de cara que estava bravo comigo. Tinha lido na revista “Aqui” um texto em que eu fazia referências simpáticas aos dois primeiros prefeitos do município, Inocente Villanova Júnior e Américo Dias Ferraz, cujo relacionamento com a Companhia não fora nada ameno. Fácil, portanto, entender por que o Dr. Hermann não podia nem ouvir o nome deles.

Feito o desabafo, dei um tempinho até ele abrandar o humor, depois brinquei: “O senhor fala como um sogro com ciúme da filha que nos primeiros casamentos lhe deu dois genros rebeldes, com os quais o senhor manteve longos e apimentados entreveros”.

A provocação serviu para descontrair. Ele deu uma risadinha meio com jeito de deixa-pra-lá, me ofereceu outro cafezinho e mudou de assunto, passando a recordar algumas de suas muitas histórias de desbravador. Antes, porém, confirmou que Maringá era para ele como se de fato fosse uma linda filha, à qual amava de paixão.

Hoje ainda fico pensando quão doloroso terá sido para o Dr. Hermann, e para todo o pessoal ligado à CMNP, ver a cidade que eles criaram, e da qual cuidaram com tanto carinho nos primeiros anos, passar de repente às mãos de novos cuidadores.

Dr. Hermann me contou que na primeira vez em que sobrevoou a região a área onde Maringá seria construída era ainda uma enorme floresta virgem. Da janela do avião ele contemplava a paisagem e adivinhava o que haveria de ver no mesmo local alguns anos após.

Deve ter sido mesmo uma aventura fantástica. A abertura da mata; o traçado das ruas, praças e avenidas; a chegada das famílias pioneiras; a construção das primeiras casas...

Em 1942 o lançamento da pedra fundamental. Em 1947 a inauguração oficial de Maringá como distrito de Mandaguari. Em 1952, a posse do primeiro prefeito. A partir daí a Companhia Melhoramentos deixava de ser a responsável pela jovem urbe. A “noiva”, agora emancipada, saía do colo dos “pais” para confiar-se aos braços do primeiro “marido”.

Dr. Hermann ajudou a fundar uma penca de cidades, todavia jamais escondeu o xodó especial que sentia por Maringá. Algo tão forte que ele até deixou em testamento um comovente pedido: queria que, quando morresse, suas cinzas fossem trazidas num avião e lançadas sobre as nossas ruas. E assim se fez.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 5-5-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 4

BUMBA-MEU-B0I

(Auto nordestino)


O Tio Mateus... Catirina...
o Rei... Doutor... e o Vaqueiro,
três violas em surdina:
- Bumba meu Boi - no terreiro!

Capas amplas, fino pano,
saias, calções, cores vivas,
para alegrar o Fim do Ano,
atraem muitos convivas!

As Damas, de longas tranças,
fitas, espelhos brilhantes,
cantam, capricham nas danças,
acompanhando os Galantes.

Espadas de pau cruzadas...
entrechocam-se as figuras!
E as coroas prateadas
nas cabeças, bem seguras!

Fumo e bebida, o Caipora
implora aos espectadores.
E a tristeza vai-se embora,
entre brilhos, sons e cores!

O Boi cansa... arqueja... morre!
E o Doutor o ressuscita...
recomeça o corre-corre,
mais e mais, o povo o incita!

E o Boi pula... e chifra... e dança...
de flor e fita enfeitado.
De medo, chora a criança
e o Boi acaba queimado!

O povo aplaude contente,
mas a música... não cessa!
- Novo Ano vem pela frente...
E um novo ensaio começa!
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A HISTÓRIA QUE A FONTE CONTOU
(Iara - Mãe-d'Água - Folclore amazonense)

A noite, se escutas murmúrios da fonte,
atenta a essa voz cristalina e sonora...
Talvez muita coisa singela te conte,
da Iara que foge, com medo da aurora.

É nívea e formosa! Ninguém pode vê-la
banhar-se na águas prateadas de lua.
Seus olhos fulguram com chispas de estrela,
num brilho que a noite ressalta e acentua!

Os longos cabelos, da cor da esmeralda,
em ondas profusas lhe moldam os ombros,
descendo em cascata de luz pela espalda!
E canta a Mãe-d'Água!... Suspensa em assombros,

Aquieta-se a mata, ao seu canto dolente!
Da Iara... o cantar um soluço parece,
pois, sempre sozinha, tão triste se sente,
que a excelsa beleza parece que esquece!

O Ipê que a observa, grandioso, galhardo,
- qual Príncipe altivo, solícito e louro -
a odiar a raiz que o retém como um fardo,
olvida a altivez... chora lágrimas de ouro!

E quando a alvorada ilumina a floresta,
a Iara mergulha nas águas sombrias...
Só flores do Ipê lacrimoso é o que resta,
flutuando nas águas silentes... macias...

Silêncio!... Ouve atento o murmúrio da fonte
à noite a cantar cristalina e sonora...
- Como esta, quem sabe, outra história ela conte,
das tantas que findam... ao claro da aurora!...
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SER EMÍLIA

Ah! Lobato, bom amigo,
que minha infância enfeitaste...
Os caminhos que hoje sigo,
sem querer, delineaste!

Eu já fui menina arteira,
que brincava com boneca.
- Narizinho reinadeira -
cheia de sonhos!... Moleca!

Tal qual "Pedrinho", eu, também,
pelos campos cavalgava!
Sem caçadas!... Sou do bem...
E amiga da bicharada!

Sem "Pó de Pirlimpimpim",
fiz muita viagem gostosa!
Da cultura sempre afim,
conquistou-me o "Sabugosa"!

Lobato, só coisa linda,
de ti me veio! Portanto,
guardo com ternura infinda,
saudades por todo canto!

E tive um Príncipe, sim!
Lindo "Príncipe Encantado"!
Hoje... tão longe de mim...
para os céus arrebatado...

Já fritei muitos bolinhos,
como "Anastácia" fazia...
E rodeada de netinhos,
agora, com alegria,

sou qual feliz "Dona Benta",
entre anjos vindos do céu,
mas... a paz nenhum alenta,
ao correr de déu-em-déu!...

Lobato... Os teus personagens
- Rabicó, a Cuca, o Anjinho,
a Emília a contar vantagens -
floriram o meu caminho!

E ao ver gente perturbando
os rumos da Pátria nossa,
tal qual Saci "sacizando",
lembro os Pererês da roça!

Os daqui... duas pernas têm...
os da roça têm só uma!
Mas diabruras de ambos vêm...
E... coisa boa?! - Nenhuma!

Ah!... queria ser agora
essa Emília irreverente!
- Bonequinha que não chora,
mas pensa... E diz o que sente!
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CANÇÃO DO SERTANEJO
 
Essa gente da cidade
que respira poluição,
num cunhece a amenidade
desta vida do sertão!

Acordá di manhãzinha,
ouvindo os galo cantá
e o ciscado das galinha
o terrêro a beliscá!

Lavá os óio na bica,
cum água pura, gelada...
e enxugá na luz tão rica
do sol... a cara lavada!

Bebê café adoçado
cum raspa de rapadura,
mais dôce pruquê o roçado
é qui deu a cana pura!

E ao pô a enxada nos ombro,
assoviando alegria,
i buscá cum disassombro,
leite i pão... de cada dia!

Ponhá as semente na cova,
aninhada cum carinho,
"cumo a sabiá desova
suas semente no ninho!"

E, adispois de um tempo, vê,
rasgando a terra, verdinha,
uma esperança de tê
tudo o que a casa num tinha!

Regá cum sangue e suó
tanta esperança querida,
inté que acabe no pó
a foguêra desta vida!

Os boi mascando no pasto,
faiz a nossa inconomia,
trocando o dinhêro gasto,
pur alimento e energia!

Mió que dinhêro atoa,
bâo é tê mantêga i quejo,
carne e pão, linguiça boa,
maió que o nosso desejo!

No fim do dia... a viola,
ponteada cum munto amô,
discansa... cura e consola,
os calo que as mão ganhô!

Ah! Cumo as noite du campo
são cheia de encantamento!
Inté a luiz dos pirilampo
lembra a luiz do firmamento!

De lá, a lua redonda
estendendo um véu de prata,
vai ninando, em sua ronda,
os sonhos verde da mata!

A oiá os fio que cresce...
e a muié qui nois qué bem...
a gente inté que agardece
o qui tem... i o qui nem tem!

Cumo é bom... vê a mininada
correndo em roda, contente!...
E, intão... juro à minha amada:
- Gente da roça... É mais gente!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.

terça-feira, 10 de maio de 2022

Daniel Maurício (Poética) 29

 

Paulo Mendes Campos (A cesta)

Quando a cesta chegou, o dono não estava. Embevecida,  a  mulher recebeu o presente. Procurou logo o cartão, leu a dedicatória  destinada ao marido, uma frase ao mesmo tempo amável e respeitosa.

Quem seria? Que amigo seria aquele que estimava tanto  o  marido dela? Aquela cesta, sem dúvida nenhuma, mesmo a "uma olhada  de relance", custava um dinheirão. Como é que ela nunca tivera notícia daquele  nome?

Ricos presentes só as  pessoas  ricas  recebem.  Eles  eram  remediados, viviam de salários, sempre  inferiores  ao  custo  das  coisas.  Sim,  o marido, com o protesto dela, gostava de bons vinhos e boa mesa, mas isso com o sacrifício das verbas reservadas a outras utilidades.

De qualquer forma, aquela cesta monumental chegava  em  cima  da hora. E se fosse um engano? Não, felizmente o  nome  e  o  sobrenome  do marido estavam escritos com toda a clareza e o endereço estava certo.

Alvoroçada, examinou uma a uma as peças  envoltas  em  flores  e serpentinas de papel colorido. Garrafas  de  uísque  escocês,  champanha francês, conhaque,  vinhos  europeus,  patê,  licores,  caviar,  salmão, champignon, uma lata de caranguejos japoneses... Tudo do melhor. Mulher prudente, surrupiou umas garrafas e escondeu-as nas gavetas femininas do armário. Conhecia de sobra a generosidade do  marido:  à  vista  daquela cesta farta, iria convidar todo o mundo  para  um  devastador  banquete. Isto não tinha nem conversa, era  tão  certo  quanto  dois  e  dois  são quatro. Mas quem seria o amigo? Esperou o regresso do  marido,  morrendo de curiosidade.

E ei-lo que chega, ao cair da noite,  cansado,  sobraçando  duas garrafas de vinho espanhol, uma garrafa de uísque engarrafado no Brasil, um modesto  embrulho  de  salgadinhos.  Caiu  das nuvens ao deparar com a gigantesca cesta. Pálido de espanto,  não  tanto pelo valor material do presente (era um  sentimental),  mas  pelo  valor afetivo que o mesmo significava, começou a ler o cartão que a mulher lhe estendia. Houve um longo  minuto  de  densa  expectativa,  quando, terminada a leitura, ele enrugou a testa e  se  concentrou  no  esforço  de recordar. A mulher perguntava aflita:

- Quem é?

Mais  da  metade  da  esperança  dela  desabou  com  a  desolada resposta:

- Esta cesta não é para mim.

- Como assim? Você anda ultimamente precisando de fósforo.

- Não é minha.

- Mas olhe o endereço: é o nosso! O nome é o seu.

- O meu nome não é só meu.  Há  um  banqueiro  que  tem  o  nome igualzinho. Está na cara que isto é cesta pra banqueiro.

- Mas, o endereço?

- Deve ter sido procurado na lista telefônica.

Ela  não  queria,  nem  podia,  acreditar  na  possibilidade  do equívoco.

- Mas faça um esforço.

- Não conheço quem mandou a cesta.

- Talvez um amigo que você não vê há muito tempo.

- Não adianta.

- Você não teve um colega que era muito rico?

- O nome dele é completamente diferente. E ficou pobre!

- Pense um pouco mais, meu bem.

Novo esforço foi feito, mas a recordação não  veio.  Ela  apelou para a hipótese de um admirador. Afinal, ele  era  um  grande  escritor, autor de um romance que fizera sucesso e de um livro para crianças, que comovera leitores grandes e pequenos.

- Um fã, quem sabe é um fã?

- Mulher, deixa de bobagens... Que fã coisa nenhuma!

- Pode  ser sim! Você é muito querido pelos leitores.

A ideia o afagou. Bem, era possível. Mas, em  hipótese  nenhuma, ficaria com aquela cesta, caso não estivesse absolutamente certo de  que o presente lhe pertencia.

- Sou um homem de bem!

Era um homem de bem. Pegou o catálogo, procurou  o  telefone  do homônimo banqueiro, falou diretamente com ele depois de  alguma  demora: não é muito fácil um desconhecido falar a um banqueiro.

Aí, a mulher ouviu com os olhos arregalados e marejados:

- Pode mandar buscar a  cesta  imediatamente.  O  senhor  queira desculpar se minha mulher desarrumou um pouco a decoração. Mas não falta nada.

A mulher foi lá  dentro,  quase  chorando,  e  voltou  com  umas garrafas nas mãos.

- Eu já tinha escondido estas.

- Você é de morte. Coloque as garrafas na cesta.

Vinte minutos depois, um carro enorme parava à porta, subindo um motorista de uniforme. A cesta engalanada cruzou a rua e sumiu dentro do automóvel. Ele sorria, filosoficamente. Dos olhos  da  mulher  já  agora corriam lágrimas francas. Quando o carro  desapareceu  na  esquina,  ele passou o braço em torno do pescoço da mulher:

- Que papelão, meu bem! Você ficou  olhando  para  aquela  cesta como se estivesse assistindo à saída de meu enterro.

E ela, passando um lenço nos olhos:

- Às vezes é duro ser casada com um homem de bem.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Supermercado. RJ: Tecnoprint, 1976.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 6

A maior vitória, dentre,
um povo cheio de glória,
foi quando um bebê no ventre
mudou a face da história!
= = = = = = = = = = =

A maldade humana é tanta,
que ao curtir a ave canora...
Presa, eu não sei se ela canta,
solta, eu não sei se ela chora!
= = = = = = = = = = =

A noviça entre os seus véus,
confessa os pecados seus;
e, entrega o destino aos céus,
abraçada às mãos de Deus!
= = = = = = = = = = =

Bem-vinda a chuva que encerra
a seca triste, inclemente,
e rega o ventre da terra
para brotar a semente!
= = = = = = = = = = =

Disseste adeus, sem revés;
e, entre os grandes desafios,
conservo o pó de teus pés
nos teus chinelos vazios!
= = = = = = = = = = =

Do lar que nasci um dia,
guardo ensinos naturais,
da riqueza que existia
na pobreza de meus pais!
= = = = = = = = = = =

Em silêncio, a tarde morta,
no arrebol muda de cor;
e, o rubro que desconforta,
compõe a essência do amor!
= = = = = = = = = = =

Em sonhos, volto cantando,
ao lar, que foi meu descanso!...
E, há uma sombra me acenando
na cadeira de balanço!
= = = = = = = = = = =

Jangada, que vais ao mar,
na proa, sonhos imensos...
És lenço branco a acenar
a um cais, repleto de lenços!
= = = = = = = = = = =

Lembro nas noites sem sono,
da infância pobre e tão boa!...
Mamãe, rainha sem trono,
papai, um rei sem coroa!
= = = = = = = = = = =

Meu rancho, é um ninho de afetos;
e, entre os afetos, sou eu...
Um brinquedo entre os meus netos,
no rancho que Deus me deu!
= = = = = = = = = = =

Nas tuas cartas guardadas,
que escondi por ser preciso,
há muitas letras manchadas
com o batom do teu sorriso!
= = = = = = = = = = =

Nessa paixão desmedida,
de sonhos vãos e emoções,
há sonhos cheios de vida
e outros, cheios de ilusões!
= = = = = = = = = = =

Ninguém escapa da cruz!...
E, essa cruz é tão fatal,
que, até no terço de luz,
há uma cruz em seu final!
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Num rancho de palha antigo,
o chão forrado de palha,
e, entre as palhas desse abrigo,
um grande amor se agasalha!
= = = = = = = = = = =

Olhando a velha candeia,
acesa, mantendo a calma,
nem se apaga nem se alteia,
parece até que tem alma!
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Os mistérios e exigências
que a vida, às vezes, traduz...
São pontos de reticências
cheios de treva e de luz!
= = = = = = = = = = =

O sino na tarde calma,
à distância, até parece,
que a voz do sino tem alma
tocando na alma da prece!
= = = = = = = = = = =

O sonho de um moribundo,
somado aos sonhos que eu tive,
já posso dizer ao mundo:
– De ilusões também se vive!
= = = = = = = = = = =

O teu canto, ó, ave presa
tão plangente, é o acalanto
e os arrulhos da tristeza
que tens na dor do teu pranto!
= = = = = = = = = = =

Quando a miséria se ajeita,
na ausência d'água e de pão,
faminta, a fome se deita,
na esteira que forra o chão!
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Saudade - sobras da infância,
dos idos da mocidade!...
E a sobra dessa distância,
mede os pés dessa saudade!
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Teus olhos, cheios de luz,
tochas de luzes pagãs,
brilham nos braços da cruz
do sol de minhas manhãs!
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Um lenço da cor de neve,
ao longe, acenando ao cais,
como quem diz, até breve,
ou mesmo, até nunca mais!!!
= = = = = = = = = = =

Velho mar não me disponho
a seguir teus tristes ais!...
Segue os ritos do teu sonho
que eu sigo os meus rituais!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Malba Tahan (O estratagema de Takla)


Conta primeiro os teus inimigos e poderás calcular, depois, as tuas inquietações.
Al-Harini (1054-1122)


Corria o terceiro mês do ano de 698. Na velha cidade de Damasco vivia, nesse tempo, um homem de meia-idade, de ar retraído e modesto, que se chamava Mosab Ali Hosbã. A vida de Mosab, acorrentada à pobreza e à vulgaridade, retalhada pelos desenganos, muito longe estava de ser considerada feliz. Quando moço, em Medina (sua cidade natal), exercera a árdua profissão de falcoeiro e fizera-se muito destro na falcoaria.

Três vezes viajara pelo Iraque, e tendo ido, em caravana de peregrinos, até a Pérsia, a convite de um príncipe caçador, aprendera contas, cálculos, geometria e todos os estranhos segredos da astrologia, com dois sábios sacerdotes de Khorassã. Em consequência de uma queda desastrada (durante uma caçada no Iêmen), o falcoeiro Mosab ficou capenga. Impossibilitado de continuar em trabalhos de falcoaria, vendeu sua rica falcoada e mudou-se para Damasco, altamente prestigiada em todo o Oriente por ser a capital do califado.

Sob o céu damasceno conheceu Mosab a jovem Takla, filha de Mekoul (o escriba), com a qual se casou. A profissão adotada por Mosab, em Damasco, não era das mais rendosas. Impelido por gênio simplório e acanhado, fizera-se talebe, isto é, professor. O seu feitio calmo e paciente tornara-o muito estimado. Ensinava cálculos, música, astrologia e noções de geometria. As lições eram mal pagas e, com o minguado salário que recebia, mal podia Mosab manter Takla, sua esposa, e Laila, sua filha. É bem verdade que Takla, diligente e hábil, colaborava para a economia do lar, bordando pequenos tapetes com legendas do Alcorão. Esses tapetes (chamados “os tapetes de Takla”), enriquecidos com figuras geométricas, eram vendidos aos ricos damascenos e aos mercadores de Alepo.

Ora, aconteceu — Maktub!* — que certa manhã (como de costume) preparava-se o bom talebe para sair (já se achava, aliás, na porta de sua casa) quando dele se acercou um desconhecido de turbante claro e albornoz de seda. Tinha a fisionomia de um adolescente e os seus olhos eram claros. Presa à cintura, uma adaga finíssima, ornada de cornalinas. Trocadas as saudações habituais, disse o visitante do albornoz de seda, com ar compenetrado:

— Chamo-me Nhamã Yaussef, e sou um dos oficiais do califa. Venho procurá-lo por ordem expressa do nosso glorioso soberano Abd al-Malik bin Marwan, emir dos árabes. O rei deseja receber, em audiência, o talebe Mosab Ali Hosbã. É urgente!

O frio da palidez cobriu o rosto de Mosab. O rei mandava-o chamar? Exprimiria aquele espantoso e inesperado convite uma honra excepcional. Aparecia com o esplendor lendário de um tapete mágico capaz de arrancar o talebe da realidade triste da vida e levá-lo ao país encantado dos sonhos.

Mosab tremia, emocionado. Que poderia prever de tudo aquilo? Sentiu gotas de suor riscando arabescos em sua testa.

— Permiti, nobre capitão — gaguejou, arredondando os olhos de espanto —, que eu possa me vestir com mais apuro! Não seria correto aparecer em trajes tão rudes na presença do nosso incomparável emir. Voltarei dentro de poucos instantes.

E Mosab, no nervosismo em que se achava, deixou o oficial do califa na porta e correu para os aposentos internos de sua casa.

— Takla! — gritou ele, já no harém, chamando a esposa. — Quero o meu turbante novo e os meus trajes de festa! O rei quer falar comigo!

— Falar contigo? O rei? — duvidou Takla, com desabrimento, receosa de que o marido, envenenado pelas complicações geométricas e astrológicas, tivesse perdido a luz da razão.

— Sim — confirmou Mosab. — Apressa-te, mulher! Vai o califa receber-me, agora mesmo, em audiência especial. Não é sonho, nem delírio! Um capitão da guarda está à minha espera, na porta. Que será?

— Sim, que será?

A dúvida, numa inquietação sem limites, cintilava nos olhos negros e expressivos de Takla.

E, quando Mosab vestia seus trajes mais novos, enfiava a djallaba* mais fina e enrolava na cabeça vistoso turbante cinza, tentava adivinhar a razão daquele honroso chamado.

— Desejará o rei colher alguma informação sobre astrologia? — arriscou Mosab, ansioso por ouvir a opinião da esposa.

Takla não aceitava esse palpite. Nada de astrologia. O ambicioso Abd alMalik, filho de Marwan, não olhava para as estrelas do céu, nem acreditava nos adivinhos da Terra. Recebera, certamente, algum documento secreto da Pérsia e queria que Mosab (apontado como verdadeiro Koodjha) traduzisse as letras e revelasse o segredo. Era isso, com certeza, e nada mais, Inch’ allah!*

O fato é que Mosab Ali Hosbã, o talebe medinense, sempre capengando, com todas as inquietações da incerteza, foi levado à presença do grande monarca Abd al-Malik, filho de Marwan, comendador dos crentes. Os nobres muçulmanos que viram o talebe atravessar, com passos arrancados, os amplos e luxuosos salões do palácio, indagavam entre cochichos e sorrisos desdenhosos:

— Que pretenderá o rei ouvir desse astrólogo da perna torta?

A verdade do caso não transpareceu, pois a audiência, por determinação do califa, foi cercada do maior sigilo. No divã ficaram, apenas, o emir dos árabes, o prestigioso Abd al-Malik, e o talebe Mosab, seu convidado. Todos os secretários, guardas e servos se retiraram.

Depois de convidar o astrólogo a sentar-se a seu lado (pondo-lhe democraticamente a mão espalmada sobre o ombro), o rei assim falou, sem preâmbulos, em tom amistoso:

— Tenho recebido de ti, ó talebe, ótimas e fidedignas informações. Latif, minha atual favorita, amiga de tua esposa Takla, falou-me várias vezes, com muito interesse, a teu respeito. E estou resolvido (para agradar à sedutora Latif) a nomear-te para o cargo de grão-vizir.

— Grão-vizir? — repetiu Mosab, a alma arrastada por um simum de espanto. — Grão-vizir?

— Exatamente — confirmou o califa, com absoluta naturalidade, anediando a barba. — Quero que exerças as funções de chefe do meu governo. És um homem pobre, bem sei, mas honesto e trabalhador. Conheces os altos segredos da geometria de Euclides e da astrologia; sabes fazer as contas mais complicadas com os números. Escreves com facilidade e correção. Estou certo de que poderás desenhar, a qualquer momento, a marcha dos sete planetas pelo céu. Informaram-me, também, da tua impecável lealdade. Ninguém põe em dúvida a tua sabedoria naquilo que diz respeito ao Livro de Alá. Julgo-te, portanto, perfeitamente capaz de controlar os meus vizires, vigiar as despesas do tesouro e dirigir a administração do califado.

Vivia Mosab o momento culminante de sua vida; sentia-se estonteado, quase vertiginoso; batia-lhe descompassadamente o coração; procurava dominar-se e ouvir com o máximo respeito as palavras do rei.

O califa, reclinando-se sobre as largas almofadas, olhos semicerrados, enclavinhando os dedos, prosseguiu:

— Só poderei, entretanto, lavrar a tua nomeação depois que tiveres respondido a duas perguntas muito sérias que vou formular a teu respeito.

— Aguardo a vossa inquirição, ó comendador dos crentes! — acudiu Mosab, com lenta mesura, sinceramente emocionado. — Direi a verdade, quaisquer que sejam as consequências. Iallah!*

— Está bem — retorquiu Abd al-Malik num olhar vago. — Sinto-me confortado com a segurança de tua palavra. A primeira pergunta (a mais simples talvez) é a seguinte: Tens amigos entre os damascenos?

— Ora, ora, por Alá! — respondeu Mosab com um sorriso de intenso orgulho. — Tenho amigos, e bons amigos, por toda parte. Desde a mesquita até o mercado. Entre ricos e pobres, sábios e ignorantes, conto com centenas e centenas de legítimos e verdadeiros amigos! Ainda ontem, ao cair da tarde…

— Muito bem — acudiu o rei, interrompendo-o, naqueles rodeios, com bom humor. — As boas amizades formam os alicerces da verdadeira felicidade. Já ouvi, de um poeta do deserto, esta sentença: “Se os amigos me fugirem, é bem certo, de mim fugirão todos os tesouros.” Passemos, agora, à segunda pergunta, que reputo muito grave: Tens, meu caro talebe, inimigos entre os muçulmanos?

— Oh, não! — protestou Mosab, com veemência, esforçando-se por ser claro e decidido. — Desconheço o que seja um desafeto. Inimigos? Creio que nunca os tive. Esforço-me por desfazer as intrigas, os mal-entendidos; não me incomodo com os mexericos e sou surdo às insinuações malévolas. Tenho, por norma, esquecer as ofensas e perdoar as injúrias. Assim procedendo, transformo as malquerenças em afeições; os ódios, em indiferenças; as aversões, em estimas. Eis a minha confissão: não tenho inimigos, ó rei do tempo!

— Se assim é — declarou, sem detença, com reprovadora frieza, o califa —, lamento muito, mas não poderás ser nomeado grão-vizir. Seria realmente absurdo que o chefe do meu governo, o primeiro-ministro do Islã, fosse um homem neutro na vida, sem o menor traço de caráter, destituído de qualquer paixão política, sem fibra, sem partido, aviltado pela fraqueza, falho de sentimentos. Todo aquele que possui uma parcela diminuta de personalidade vê logo aparecer, a seu lado, a sombra tortuosa de um inimigo.

E como o bom e ingênuo talebe, olhos em terra, se mostrasse sucumbido diante daquele inesperado desfecho, o califa retornou, num gesto largo, indefinido, tornando-se taciturno:

— Observa, ilustre Mosab, o meu caso, por exemplo. Sou o rei, o sucessor de Marwan, o glorioso (que o Eterno o tenha em sua paz!). Pois bem, tenho inimigos cruéis, impiedosos, dentro e fora das terras árabes! Mas vamos adiante: Maomé, o Clarividente Profeta, o Enviado de Deus, teve inimigos rancorosos, muitos dos quais tentaram, por todos os meios e com todas as armas, arruiná-lo, vencê-lo e matá-lo! Mais ainda: Alá, que é Único, Onipotente, Misericordioso, também não está isento de inimigos. Que são os ateus e os hereges, senão inimigos irreconciliáveis de Deus?

Não sabia Mosab disfarçar o desapontamento que o esmagava. Sentia-se perdido, aniquilado, naquela tempestade de objeções. Vendo-o triste e sucumbido, resolveu o rei, num gesto magnânimo, abrir a porta para novas esperanças. E disse-lhe:

— Não desisto, apesar de tudo, da ideia de aproveitar a cooperação de meu caro Mosab, de Medina, e por isso vou fazer, ao ilustre geômetra, especial concessão: dentro de 24 horas terás de arranjar, no mínimo, sete inimigos damascenos. Inimigos de verdade. Pessoas desejosas da tua desgraça. Espero-te amanhã, neste mesmo divã, depois da terceira prece. Habilita-te com sete inimigos e volta. Serás nomeado grão-vizir! Palavra de rei!

Ao retornar do palácio de Abd al-Malik, capengando pelas ruas estreitas e tortuosas de Damasco, sentia-se o bom Mosab confuso, estonteado, como um ébrio. Estivera a dois passos da glória, da riqueza, e tudo parecia fugir diante de seus olhos! Perdia aquela oportunidade rara, raríssima, de ser o grão-vizir de Damasco! E isso por quê? Porque era um homem simples, pacato, inofensivo, sem inimigos!

O califa exigira dele sete inimigos! Como fazer, em poucas horas, sete inimigos, ele, que em quarenta e cinco anos de vida, pelo Iraque e pela Pérsia, adestrando falcões pelo deserto, formulando horóscopos, não fizera nenhum?

Ao cruzar a rua dos Tecelões, ao lado da loja de Simão Mureb, avistou Mosab um velho aguadeiro, magro, esfarrapado, que puxava pela rédea de um burrinho. O homem repetia com voz dolente: “Água! Água fresca! Água da fonte!” Estranho pensamento assaltou o talebe. Para iniciar a conta dos sete (refletiu) vou agredir aquele miserável aguadeiro. Será fácil segurá-lo pelo ganzuz*; com dois ou três socos atiro-o no chão, espanto o burrinho, derramo a água… Arrependeu-se logo dessa ideia. A agressão seria, além de estúpida, covarde. Que culpa tinha o aguadeiro do fracasso de sua vida?

Mais acertado (prosseguiu Mosab em suas intempestivas reflexões) será procurar o xeque Ismahil Mukbel e fazê-lo sabedor das insinuações malévolas que circulam a respeito de sua primeira mulher, Rahif. O honrado Ismahil fará um escândalo. Os irmãos de Rahif ficarão furiosos. E ganharei, com a indiscrição, vários inimigos (quatro, cinco, talvez).

A lembrança da intriga sórdida repugnava-o. O xeque Ismahil era homem bom, cordato, sempre o acolhera com generosa amizade. Grande indignidade seria golpeá-lo daquele modo.

O mais prático (considerou Mosab, seguindo a trilha incerta de seus pensamentos) seria procurar os poetas Nacif, Zogaib e Amin (que se tinham na conta de talentosos) e declarar, sem rebuços, em voz alta, na presença de várias pessoas: “Os versos que vocês escrevem são tolices, baboseiras sem nexo, desconchavos sem métrica!” E feita essa crítica (verdadeira, aliás), a conta dos sete inimigos estaria iniciada com três nomes: Nacif, Zogaib, Amin… Ficariam faltando apenas quatro.

Essa extravagância, de criticar poetas, foi logo rejeitada. Mosab sentia-se bem em companhia dos poetas. Não o agradava ferir os homens de pensamento.

E, naquele entrechoque de pensamentos, entrou Mosab em sua casa, aturdido, desolado; esbarrava nas paredes; apoiava-se nos móveis como um bebedor de haxixe. Takla, sua esposa, correu ao seu encontro e interpelou-o, aflita. Por Alá! Que havia ocorrido no palácio? Que pretendia o califa? Por que voltava ele assim abatido, estonteado?

Narrou Mosab tudo o que ocorrera durante a audiência, e a fez ciente da exigência inominável do califa: ele, Mosab, seria nomeado grão-vizir se arranjasse (até a terceira prece do dia seguinte) sete inimigos, inimigos verdadeiros!

— Mas isto é facílimo — declarou Takla, alçando para ele os grandes olhos pretos. — Nada poderá impedir a tua nomeação. Os inimigos surgirão, às dúzias, pelas ruas, pelas praças, pelas mesquitas…

— Inimigos? — protestou Mosab, com recalcada melancolia, encolhendo tristemente os ombros. — Como arranjar sete inimigos no meio dessa gente simples, hospitaleira, que me acolhe com tanta simpatia?

— Deixa o caso por minha conta — tranquilizou-o Takla em tom de meia sinceridade, a abanar-se com seu grande leque. — Senta-te ali, naquela almofada, lê duas ou três suratas* do Livro, enquanto eu vou providenciar. A exigência do rei será atendida, hoje mesmo, de modo espetacular. Amanhã (queira Alá!) serás o grão-vizir!

Preparou Takla, em dois instantes, o narguilé do marido. Colocou o fumo, trocou a água e avivou a brasa. E, deixando tudo em ordem, afastou-se rápido e, ato contínuo, subiu para o terraço de sua casa.

Mosab, na inquietação em que se achava, não conseguia ler. As letras do Alcorão dançavam diante de seus olhos. As palavras de Alá confundiam-se em seu pensamento.

Ele, Mosab, o talebe medinense, chegaria ao triunfo supremo do grãoviziriato? Caminhando pelas veredas sem fim do pensamento, imaginava-se na corte damascena, ao lado do rei, revestido do manto de honra, recebendo homenagens dos xeques, dos nobres muçulmanos e dos oficiais. Elevado ao alto cargo de grão-vizir, deixaria aquela casa modesta, úmida e triste e iria viver em suntuoso palácio com pátios floridos e janelas abertas para o jardim: teria mais de vinte servos, escravos e auxiliares. Muitas festas poderia oferecer aos amigos e aos poetas. Festas com jantares e músicas. De quando em quando, uma cantora egípcia, uma dançarina cristã. Sua filha Laila seria pedida em casamento por um nobre, dono de cinco mil tamareiras. Ele, Mosab, o talebe, nomearia os cádis; designaria os funcionários; e por sua indicação seriam escolhidos os governadores. Os generais mais arrogantes viveriam a bajulá-lo. Teria, à sua disposição, verbas imensas; as gratificações só seriam pagas com o seu “visto”; o ouro incontável do Tesouro Público rolaria, dia e noite, por suas mãos.

E tudo isso perdido. A miragem desaparecia como se ele (pobre talebe!) fosse um beduíno perdido no deserto de Roba-el-Kali! Como engendrar, em poucas horas, sete inimigos?

— Que estás aí a malucar, a falar sozinho? — perguntou Takla, reaparecendo, risonha, na porta do harém. — Anima-te, meu marido! Já está tudo providenciado. Amanhã serás nomeado grão-vizir do califa Abd alMalik. Querias sete inimigos? Arranjei-te setecentos, sem sair deste bairro em que moramos!

— Por Alá, ó filha de meu tio! — exclamou Mosab, trêmulo de espanto e com inquietação na voz. — Que loucura foi essa? Ouvi teus passos quando subias para o terraço. Que fizeste aos nossos vizinhos?

— Tranquiliza-te — chalaceou Takla, com a maior fleuma, tendo nos lábios um riso superior. — Nada fiz que pudesse ferir o teu nome, ou macular a tua reputação de talebe. Chamei, apenas, as minhas amigas mais íntimas e disse-lhes a verdade: “Quero comunicar a todas que meu marido vai ser, amanhã, depois da audiência, nomeado grão-vizir do rei.” Todas elas estão bem a par das minhas relações com Latif, a favorita do califa. Sabem que Latif aprendeu a bordar comigo; os pratos saborosos que Latif prepara foram inventados por mim. Mas, mesmo assim, a surpresa foi geral. A formosa Rihana, esposa do teu amigo Hussein, não quis acreditar. Vi-me obrigada a jurar pelas barbas de Mafoma e pela felicidade de Laila. Oadad, sobrinha de Tufik Jaouad, rosnou furiosa: “O califa está louco! Como poderá um capenga exercer as funções de grão-vizir?” E sabes qual a observação de Jolikha, filha de Danho Murad? Disse apenas, com momices na voz: “Não dou sete dias de vida para o governo desse califa imbecil!”

— E Rahif? — indagou Mosab. — Qual foi a opinião da primeira esposa do xeque Ismahil Mukbel?

Takla sorriu novamente. Luzia-lhe nas pupilas um fulgor de intensa satisfação. Respondeu:

— A delicada Rahif, sempre de cabelos bem pintados, fitou-me com ironia e comentou com certo desfastio, fazendo uma careta enjoada: “Meu marido tinha razão. Esse califa não sabe escolher seus auxiliares.”

— Mas tudo isso, minha querida Takla — lamentou Mosab meio embaraçado, com nervosa firmeza —, nada significa para os nossos planos. Essas aleivosias assacadas por suas amigas perdem-se ao vento; ficarão sobre a areia da minha indiferença. E a situação para mim continua insolúvel: sem inimigos, impossibilitado de servir ao rei!

— Aí é que estás enganado — acudiu Takla, com certa excitação jubilosa. — O teu erro é completo. Essas quatro contarão a novidade a vinte ou trinta; essas vinte ou trinta transmitirão a notícia a mais de cem. De cem o salto será para mil. Todos os maridos serão devidamente informados do caso. Antes que o nurezin chame os fiéis para a prece da noite, mais de cinco mil damascenos estarão a par da escolha do novo grão-vizir. Cada um deles dirá, com surdo rancor: “Fui preterido pelo capenga!” Julgar-se-ão todos roubados, esbulhados, ludibriados. Trezentos invejosos ficarão, esta noite, remoendo as suas cruas decepções. O ódio, inspirado pela inveja, irá se aninhar no coração dos ambiciosos. E amanhã, ao soar da terceira prece, terás não sete, mas setecentos inimigos rancorosos em Damasco!

Ao cair da tarde, na hora em que o Sol rasava o horizonte, o talebe foi reconduzido ao divã do califa.

Abd al-Malik parecia aprazer-se com aquela visita; recebeu-o com simpatia e interpelou-o, risonho, com um leve traço de ironia na voz:

— Por Alá, ó talebe! Conseguiste, dentro do prazo, atingir a conta de sete, por mim fixada? Ou continuas com a vida livre das flechas da inimizade?

— Rei dos árabes! — arriscou timidamente Mosab, inclinando-se, respeitosamente. — Minha esposa Takla assegura que devo ter mais de setecentos inimigos nesta opulenta cidade de Damasco.

E o talebe relatou ao rei o estratagema de Takla e o resultado que obtivera reunindo as amigas (e só as mais íntimas) no terraço de sua casa.

— Ouahyat-en-nebi!* — exclamou o califa. — É então verdade que Takla, tua esposa, fez correr pela cidade, como certo, coisa resolvida, a notícia de tua nomeação? Só agora encontro justificativa para a estranha atitude de vários vizires e xeques durante a audiência desta manhã. Muitos deles fizeram, assinaladamente, péssimas referências ao teu nome e revelaram tremendas infâmias a teu respeito. O xeque Tufik Jaouad, que pretende governar o Iraque, chegou a insinuar que o meu amigo Mosab tem cúmplices no Egito, com os quais se corresponde em dialeto, revelando segredos do Estado; Hassen Rahmi, o jurista, contou-me que já viu o “talebe capenga, ex-falcoeiro” (a expressão é dele), preparando sortilégios para matar pessoas da família real. Assegurou-me o velho Ismahil Mukbel, em tom de chalaça, que não passas de um astrólogo ignorante e confuso. Ao ouvir aquelas acusações que sabia serem falsas, infames, caluniosas, disse de mim para comigo: “O talebe Mosab julga-se livre dos inimigos, mas, na realidade, tem mais inimigos em Damasco do que um ladrão de camelos.” Mas agora está tudo explicado. Creio estar bem a par do ocorrido. Todos esses rancorosos inimigos foram inspirados pela inveja, e surgiram, de ontem para hoje, graças ao estratagema de Takla.

Ao ouvir aquelas palavras, o bom Mosab rejubilou-se em seu íntimo. Inolvidável lição recebera de sua esposa. A inveja é a grande inspiradora de malquerenças, inimizades e ódios.

O califa Abd al-Malik, depois de refletir alguns momentos, declarou, aprumando-se severo e hirto entre as almofadas:

— Amanhã, sem falta, na presença dos xeques, com todas as honras, tomarás posse do cargo de grão-vizir. Espero, de hoje em diante, conduzir com mais eficiência os negócios públicos, e conto com tua sábia e judiciosa colaboração.

E rematou, com um olhar malicioso:

— Peço-te apenas uma coisa: quando tiveres qualquer dúvida sobre algum problema do califado, consulta a inteligente e prestimosa Takla. Feliz o marido que pode ser inspirado e esclarecido por uma boa esposa.
- - - - - - - - - - - - - - - -  
* Notas:
Djallaba = espécie de túnica.
Ganzuz = raspada a cabeça do árabe, fica no alto um montículo de cabelos que é denominado ganzuz.
Iallah! = Por Deus! Exaltado seja Deus!
Inch’ allah! = expressão traduzida por: “Queira Deus!”
Maktub! = Estava escrito!
Ouahyat-en-nebi! = “Pela vida do Profeta!”
Suratas = são denominadas suratas os capítulos do Alcorão, em número de 114.


Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.

Estante de Livros (Gargântua e Pantagruel, de François Rabelais)

Obra-prima de François Rabelais, propõe o entretenimento dos leitores cultos através da folia e do exagero da época.

Série de cinco livros de Rabelais narra a vida e as aventuras dos gigantes Gargântua e seu filho Pantagruel, satirizando os costumes da França do século XVI. O texto é escrito numa veia humorosa, extravagante e satírica, e apresenta muita crueza, humor negro e violência (listas de insultos explícitos ou vulgares preenchem vários capítulos). Os censores da Universidade de Sorbonne tacharam a obra de obscena, e no clima social de opressão religiosa que prevalecia, era tratada com desconfiança. De acordo com Rabelais, a filosofia de seu gigante Pantagruel, o "Pantagruelismo", se baseava numa "certa alegria de espírito, confeitada no desprezo pelas coisas fortuitas". Rabelais estudara grego antigo e o aplicara na invenção de centenas de palavras novas na obra, algumas das quais tornaram-se parte da língua francesa.

Pantagruel

O título completo da obra comumente conhecida pelo nome de Pantagruel é "Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, Rei dos Dipsodos, filho do Grande Gigante Gargântua". Embora muitas edições modernas dos trabalhos de Rabelais ponham Pantagruel como o segundo volume da série, ele na verdade foi o primeiro a ser publicado, em cerca de 1532 sob o pseudônimo de "Alcofribas Nasier", um anagrama de François Rabelais. Pantagruel era a continuação de um livro anônimo intitulado As Grandes Crônicas do Grande e Enorme Gigante Gargântua. Este texto inicial de Gargântua desfrutava de grande popularidade, apesar da sua estrutura fraca. Os gigantes de Rabelais não são descritos como tendo qualquer altura fixa, como nos dois primeiros livros de As Viagens de Gulliver, mas variam de tamanho de capítulo em capítulo para tornar possível uma série de imagens espantosas, como se fossem histórias inventadas. Por exemplo, num capítulo Pantagruel é capaz de caber numa sala de tribunal para defender uma causa, mas noutro o narrador reside na boca de Pantagruel por seis meses e descobre uma nação inteira vivendo ao redor de seus dentes.

No começo do livro, a esposa de Gargântua morre durante o parto de Pantagruel, que acaba por se tornar tão gigante e erudito quanto seu pai. Rabelais disponibiliza um catálogo dos seus itens de leitura, que consiste em sua maioria de livros com títulos engraçados e decisões proferidas em processos judiciais absurdos. Ele torna-se amigo do festeiro piadista Panurgo e, junto a um grupo de amigos, eles embebedam um exército invasor de gigantes, incendiam seu acampamento, e afogam os sobreviventes em urina. Epistemão, decapitado na luta, se recupera quando Panurgo costura sua cabeça de volta no pescoço. Ele relata que as almas no inferno são mal pagas e trabalham em empregos ruins, mas que essa é a extensão máxima de seus tormentos. Outra batalha é ignorada pelo narrador, que estava ocupado explorando a civilização na boca de Pantagruel naquela hora.

Gargântua

Após o sucesso de Pantagruel, Rabelais revisou seu material original e produziu uma narrativa aprimorada da vida e feitos do pai de Pantagruel n'A vida mui horrífica do grande Gargântua, pai de Pantagruel, mais conhecida pelo nome abreviado de Gargântua. Este volume começa com o nascimento miraculoso de Gargântua após uma gestação de onze meses. O parto é tão difícil que sua mãe ameaça castrar seu pai, o Sr. Grandgousier. O gigante Gargântua nasce pedindo cerveja. Depois de uma educação indiferente em casa, ele é enviado para Paris, onde as multidões o irritam tanto que ele afoga milhares de civis numa enchente de urina (os sobreviventes riem tanto que a cidade é renomeada "Par Ris"). Ele rouba os sinos de Santo Antônio, mas os devolve depois de um sofista fazer apelos ridiculamente egocêntricos para o seu regresso. Enquanto ele estuda diligentemente em Paris, os padeiros do vizinho Sr. Picrochole insultam os viticultores de Grandgousier, e consequentemente são atacados por eles. Um ataque maciço de retaliação contra as terras de Grandgousier finalmente é parado em Sevilha pelo impiedoso Frei João. Grandgousier clama pela paz, mas Picrochole rechaça suas tentativas. Gargântua e o Frei João reúnem as tropas e (depois de Gargantua quase engolir seis peregrinos que haviam caído acidentalmente em sua salada) vencem uma grande batalha, fazem Picrochole recuar para a sua cidade e o derrubam. Como recompensa, o Frei João recebe fundos para estabelecer a "anti-igreja" conhecida como a Abadia de Thelema, que se tornou uma das parábolas mais notáveis da filosofia ocidental.

Pode ser considerada uma crítica às práticas educacionais da época, um clamor pela escolaridade gratuita, ou uma defesa de todos os tipos de noções sobre a natureza humana.

O Terceiro Livro

Rabelais voltou à história do próprio Pantagruel nos três últimos livros. No Terceiro Livro de Pantagruel, o estilo narrativo torna-se uma paródia do debate filosófico, onde o grosseiro Panurgo tem a última palavra. Ele dá sermões contra as restrições morais e a favor da dívida, mas aceita a oferta de Pantagruel de pagar todos os seus credores. Vendo-se financeiramente estável pela primeira vez, Panurgo procura conselhos sobre com quem deve se casar.

Vários augúrios (abrir um livro de Virgílio numa página aleatória, induzir um sonho profético por meio de jejum) e conselheiros (uma Sibila de Panzoust, o mudo Nariz-de-Cabra, o velho poeta Raminagrobis, Frei João, um grupo de sábios doutores e advogados e um tolo) todos concordam que, se ele se casar, sua esposa irá traí-lo, bater nele e roubá-lo; mas ele interpreta suas profecias numa luz mais favorável. Num breve interlúdio, Pantagruel defende o juiz Brindlegoose, que tem pronunciado sentenças baseando-se no lançar de dados por 40 anos, com o argumento de que ele é um velho idiota e que portanto é favorecido pela Fortuna. Como uma última tentativa de resolver a questão do casamento, Pantagruel e Panurgo fazem uma viagem pelos mares para consultar o Oráculo de Bacbuc (a "garrafa divina").

O Quarto Livro

A viagem continua. O livro pode ser visto como uma releitura cômica da Odisseia, ou da história de Jasão e os Argonautas. No Quarto Livro, talvez o mais satírico, Rabelais critica o que entende como a arrogância e opulência da Igreja Católica, das figuras políticas da época e superstições populares, e ele aborda várias questões religiosas, políticas, linguísticas e filosóficas.

O grupo vai à Ásia Oriental e compra muitos animais exóticos. Panurgo briga com o comerciante de ovelhas Dingdong, e vinga-se dele afogando a ele e seu rebanho. Eles passam pelas ilhas dos Meirinhos, cujos camponeses cobram para os outros baterem neles. Durante uma terrível tempestade, Panurgo está paralisado de medo, mas finge bravura depois. Após matarem um monstro marinho e serem informados da morte do gigante Quaresma, eles chegam à Ilha Selvagem, cujos habitantes homens-salsichas confundem Pantagruel com seu inimigo Quaresma, e o atacam. A batalha é interrompida por um porco divino voador, que lança mostarda no campo de batalha. Eles vão à Ilha do Vento, cujo povo se alimenta de ar, a uma terra estéril onde um camponês e sua esposa enganam o diabo, e à arrogantemente católica Papimania, onde o povo venera o Papa e seus decretos. Após passarem por uma nuvem de palavras e sons congelados, chegam a uma ilha que venera Gáster, o deus da comida. O livro termina quando Pantagruel dispara uma saudação na ilha das Musas, e Panurgo se borra de susto por causa do som, e de medo do "gato célebre Rodilardo".

O Quinto Livro

Foi publicado postumamente em cerca de 1564, e narra as novas jornadas de Pantagruel e seus amigos. Numa ilha, o grupo encontra pássaros vivendo na mesma hierarquia da Igreja Católica. Noutra, o povo é tão obeso que costumeiramente se corta a pele para fazer com que a gordura vaze. Na próxima ilha, eles são aprisionados pelos temíveis Gatos-Forrados, e só são capazes de escapar respondendo a uma charada. Mais além, encontram uma ilha de advogados que se alimentam de processos judiciais prolongados. No Reino dos Chorões, eles sem saber assistem a uma partida de xadrez com peças humanas ao lado da milagreira e prolixa Rainha Quintessência. Passando pela abadia das sexualmente prolíficas Semicolcheias, pelos elefantes e pela Ilha de Cetim, eles chegam aos domínios da escuridão. Conduzidos por um guia da Terra das Lanternas, eles vão pelas profundezas da terra até o Oráculo de Bacbuc. Depois de muito admirar a arquitetura e as muitas cerimônias religiosas, eles chegam à própria garrafa sagrada. Ela profere uma única palavra: "bebei". Após beber o texto líquido de um livro de interpretação, Panurgo conclui que o vinho lhe inspira à ação correta, e imediatamente promete se casar tão rapidamente e tão frequentemente quanto possível.

Embora algumas partes do livro 5 sejam verdadeiramente dignas de Rabelais, a atribuição do último volume a ele é discutível. O livro cinco não foi publicado até nove anos após a morte de Rabelais e inclui muito material que é claramente emprestado (como de Luciano: História verdadeira; e de Francisco Colono: Sonho de Polífilo) ou de menor qualidade do que os livros anteriores. Nas notas à sua tradução de Gargântua e Pantagruel , Donald M. Frame propõe que o livro 5 pode ter sido formado a partir de material inacabado que uma editora mais tarde teria remendado num livro.

Temas

Pantagruel e Gargântua não são ogros cruéis, mas sim gigantes bondosos e glutões. Este gigantismo lhes permite descrever cenas de festas burlescas. A infinita gula dos gigantes abre as portas a numerosos episódios cômicos. Assim, por exemplo, o primeiro grito de Gargântua ao nascer é: "A beber, a beber!". O recurso aos gigantes permite também alterar a percepção normal da realidade; sob esta ótica, a obra de Rabelais se escreve no estilo grotesco, que pertence à cultura popular e carnavalesca.

As últimas intenções de Rabelais são enigmáticas. No "Aviso ao leitor" de Gargântua, diz querer antes de tudo fazer rir. Depois, no "Prólogo", com uma comparação aos silenos de Sócrates, sugere uma intenção séria e um sentido mais profundo oculto atrás do aspecto grotesco e fantástico. Na segunda metade do prólogo, porém, critica os comentaristas que buscam sentidos ocultos nas obras. Conclui-se que Rabelais quer deixar o leitor perplexo e procura a ambiguidade para perturbá-lo.

Análise de Bakhtin

Um exemplo da mudança de tamanho corporal dos gigantes. Acima, as pessoas são do tamanho do pé de Pantagruel, enquanto abaixo, Gargântua mal chega ao dobro da altura de um humano.

Mikhail Bakhtin, em seu livro Rabelais e seu mundo, explora Gargântua e Pantagruel e é considerado um clássico dos estudos renascentistas. Bakhtin dizia que, por séculos, o livro de Rabelais fora mal-interpretado. Ao longo do livro, Bakhtin tenta fazer duas coisas: primeiro, recuperar seções de Gargântua e Pantagruel que no passado teriam sido ignoradas ou reprimidas; e, em segundo, fazer uma análise da estrutura social da Renascença com o objetivo de encontrar o equilíbrio entre a linguagem que era permitida e a que não era. Por meio desta análise, Bakhtin aponta dois subtextos na obra: o primeiro é a "cultura de carnaval", que Bakhtin descreve como uma instituição social, e o segundo é o realismo grotesco, que é definido como um modo literário. Assim, em Rabelais e seu mundo, Bakhtin estuda a interação entre o social e o literário, assim como o significado do corpo.

Bakhtin explica que carnaval na época de Rabelais é associado com a coletividade; pois aqueles que comparecem a um carnaval não constituem apenas uma multidão mas são vistos como um todo, organizados numa forma que desafia a organização sócio-político-econômica. De acordo com Bakhtin, “Todos eram considerados iguais durante o carnaval. Aqui, na praça principal da cidade, uma forma especial de contato livre e familiar reinava entre pessoas costumeiramente divididas pelas barreiras da casta, propriedade, profissão e idade”. No carnaval, o sentido único do tempo e espaço faz com que o indivíduo se sinta parte de um coletivo, a tal ponto de deixar de ser ele mesmo. É nesse ponto que, por uso da fantasia e máscara, um indivíduo troca de corpo e se renova. Ao mesmo tempo, surge uma consciência ampliada da unidade e comunidade sensual, material e corporal do grupo.

Também diz que em Rabelais a noção do carnaval está conectada à do grotesco. A coletividade que participa do carnaval está consciente de sua unidade no tempo assim como de sua imortalidade histórica associada à sua morte e renovação contínua. De acordo com Bakhtin, o corpo precisa de um tipo de relógio para ficar ciente de sua atemporalidade.

Influência cultural

O adjetivo "pantagruélico" deriva-se de Pantagruel, relativo a refeições fartas em alegre companhia; típica é a expressão "banquete pantagruélico" ou "almoço pantagruélico". Similarmente de Gargântua deriva "gargantuano", que significa enorme, insaciável, e que por sua vez deriva do substantivo garganta.

Rabelais, ao capítulo 51 do terceiro livro de Pantagruel, atribui a descoberta da cannabis a Pantagruel, derivando-lhe o nome Pantagruelião.

São apelidadas de "Dedo de Gargântua", do nome do gigante inventado por Rabelais, duas formações geológicas:

A morena lateral da geleira da bacia do morro de Pila (Gressan), na área da microbacia do córrego Gressan no Vale de Aosta, onde hoje existe a reserva natural Côte-de-Gargantua; O menir do Fort-la-Latte, na Bretanha.

É chamado Gargântua também o buraco negro do filme Interstellar, em torno do qual se desenrola boa parte dos eventos narrativos.

Ilustrações

As ilustrações mais famosas e reproduzidas de Gargântua e Pantagruel foram feitas pelo artista francês Gustave Doré e publicadas em 1854. Mais de 400 desenhos adicionais foram feitos por Doré para a segunda edição (1873) do livro. Uma edição publicada em 1904 foi ilustrada por W. Heath Robinson.[14] Outro conjunto de ilustrações foi feito pelo artista francês Joseph Hémard e publicado em 1922.

Esta obra é uma sátira escolástica e engloba frades, a Corte de Roma, os reis, a magistratura e a justiça.