sábado, 25 de fevereiro de 2023
Irmãos Grimm (O ouriço do mar)
Era uma vez uma princesa que tinha, no último andar do seu palácio, um salão com doze janelas que davam para todos os pontos do horizonte e de onde podia enxergar todo o seu reino. Da primeira janela via tudo melhor que qualquer outra pessoa; da segunda, com mais nitidez ainda e, assim por diante, em crescente perfeição, até à duodécima, de onde não lhe escapava nada de quanto havia em seus domínios, na superfície ou embaixo da terra.
Como fosse muito orgulhosa e não quisesse submeter-se a ninguém, desejava conservar para si todo o poder. Mandou apregoar que só casaria com o homem capaz de ocultar-se de tal maneira que ela não o pudesse descobrir. Aquele, porém, que se arriscasse à prova e perdesse, seria decapitado e sua cabeça cravada num poste. O resultado disso é que à frente do palácio já havia noventa e sete postes com outras tantas cabeças neles espetadas.
Passou-se, então, muito tempo, sem que aparecessem mais pretendentes. A princesa sentia-se satisfeita e pensava: " Agora estarei livre toda a minha vida."
Acontece, no entanto, que surgiram três irmãos dispostos a fazer a experiência. O mais velho acreditava estar seguro metendo-se num poço de cal, mas a princesa o descobriu, já da primeira janela, e ordenou que o tirassem do esconderijo e o degolassem. O segundo escondeu-se no porão do palácio, mas também foi descoberto através da mesma janela e sua cabeça foi parar no poste número noventa e nove. Apresentou-se, então, o mais moço ante a princesa e pediu que lhe concedesse um dia para pensar e mais a graça de repetir a prova por três vezes. Caso fracassasse na terceira, renunciaria à vida. Como era um jovem muito bonito e soube pedir de modo amável, disse-lhe a princesa:
- Bem! Concedo o que me pedes, mas previno-te de que não terás sorte.
No dia seguinte o rapaz pôs-se a pensar num lugar onde esconder-se, mas foi inútil. Sem chegar a uma conclusão, apanhou a espingarda e saiu à caça. Ao ver um corvo, apontou-lhe a arma. No momento, porém, em que ia atirar, a ave gritou:
- Não atires! Eu saberei recompensar-te.
O jovem baixou a espingarda e continuou a andar. Chegou à margem de um lago, onde surpreendeu um peixe grande que subira do fundo à superfície da água. Apontava-lhe a arma quando o peixe exclamou:
- Não dispares! Eu saberei recompensar-te.
O rapaz permitiu que o peixe mergulhasse de novo e continuou seu caminho até que encontrou uma raposa , a qual caminhava rengueando. Disparou a arma contra ela, mas errou o tiro. O animal, então, lhe disse:
- É melhor que tires o espinho que tenho no pé.
O rapaz atendeu-a, mas depois quis matá-la para tirar-lhe a pele. A raposinha, porém, implorou:
- Solta-me e eu te recompensarei!
Compadecido, o jovem devolveu-lhe a liberdade , como já anoitecia, regressou à sua casa.
No dia seguinte deveria esconder-se, mas por muito que se esforçasse para descobrir um bom lugar, nada encontrou. Foi, então, ao bosque à procura do corvo e lhe disse:
- Poupei-te a vida; dize-me, agora, onde devo esconder-me para a princesa não me descubra.
O corvo baixou a cabeça e ficou pensativo, por algum tempo. Depois grasnou:
- Já sei!
Trouxe um ovo do seu ninho, partiu-o em duas metades e meteu o rapaz dentro. Em seguida voltou a unir as partes e sentou-se em cima.
Quando a princesa chegou à primeira janela, não pode descobri-lo, e tampouco nas seguintes. Já estava começando a preocupar-se quando, afinal, o avistou da undécima janela. Mandou matar o corvo com um tiro, trazer o ovo e quebrá-lo. O rapaz teve, então, de sair do seu esconderijo.
- Desta vez perdoo-o, mas se amanhã não fizeres melhor, estarás perdido.
No dia seguinte o jovem foi até a margem do lago chamando o peixe, lhe disse:
- Poupei a tua vida; agora, dizer-me onde devo me ocultar para que a princesa não me descubra.
O peixe pensou um pouco e falou:
- Já sei!
Disto isto, engoliu o jovem e depois baixou ao fundo do lago.
A princesa olhou pelas janelas sem poder descobri-lo e, mesmo na undécima não o avistou. Já estava desanimada quando, ao olhar pela última janela, conseguiu localizá-lo. Mandou pegar o peixe e matá-lo. Quando o abriram, o jovem saiu de seu ventre. Não é difícil imaginar como ele se sentiu naquele momento. Disse-lhe a princesa:
- Pela segunda vez te pouparei a vida, mas não resta dúvida que a tua cabeça irá parar no poste número cem.
No último dia o rapaz saiu para o campo, com o coração cheio de tristeza e ali encontrou a raposa.
- Tu que conheces todos os esconderijos, - disse-lhe ele, - indica-me, já que te poupei a vida, onde devo ocultar-me para que a princesa não me encontre.
- É difícil, - respondeu a raposa com ar pensativo. Depois exclamou:
- Já sei!
Foi com ele a uma fonte, onde ela se banhou e, quando saiu das águas, tinha a figura de um mercador. Depois o rapaz teve de banhar-se, também e reapareceu transformado em ouriço do mar.
O comerciante foi à cidade onde exibiu o gracioso animalzinho e muita gente reuniu-se para vê-lo. Até a princesa apareceu e, encantada com ele, comprou-o do comerciante por bom dinheiro. Antes de entregá-lo, o homem disse ao ouriço:
- Quando a princesa for à janela, esconde-te embaixo de suas tranças.
Ao chegar a hora de procurá-lo, a jovem foi a todas as janelas, uma após outra, sem poder descobri-lo e, desta vez, nem na duodécima conseguiu avistá-lo. Ficou, então, amedrontada e furiosa ao mesmo tempo. Bateu de tal forma com a janela que os vidros de todas elas se partiram em mil pedaços. Em seguida saiu da sala e, notando de repente a presença do ouriço do mar embaixo de suas tranças, arremessou-o ao chão, gritando:
- Sai das minhas vistas!
O animalzinho saiu correndo a procurar o mercador e, juntos , voltaram à fonte. Banharam-se de novo nas águas e recuperaram sua antiga aparência. O jovem agradeceu à raposa, dizendo:
- O corvo e o peixe, coitados, foram uns bobos comparados contigo. Não resta dúvida que és a mais esperta.
O jovem, então, apresentou-se no palácio, onde a princesa o aguardava, já resignada com a sua sorte. Celebrou-se o casamento e ele passou a ser o rei e senhor de todo o reino. Nunca, porém, revelou à esposa onde se havia escondido na terceira vez, nem quem o ajudara. E assim ela viveu sempre na crença de que tudo fora resultado da inteligência do marido. Isso contribuiu para que lhe tivesse muito respeito e pensasse: " De fato, ele é mais esperto do que eu.”
Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.
Conto em Domínio Público.
Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 8
Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.
A pitanga é fruta doce,
mais doce é jaboticaba;
quem toma amores contigo,
começa, mas não acaba.
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As ondas brincam de amores,
correm à terra beijar...
Sê tu a terra, querida,
e deixa qu'eu seja o mar.
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Chuva que tem de chover,
porque é que está peneirando?
Amor que tem de ser meu,
porque está negaciando?
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Coração vai visitar
o mimo da formosura,
pergunta, quero saber,
se nosso amor ainda dura.
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Dizes que bem me queres,
que meu é teu coração;
Malmequeres que desfolho
dizem-me todos que nâo…
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Duvidar de quem se adora,
não é decerto viver,
vida assim tão desgraçada
é pior do que morrer.
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Estrela do céu brilhante,
raio de sol encarnado,
se tens amores com outro,
não me tragas enganado.
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Eu sofri e fiz sofrer,
amei e me fiz amar,
Se a partida fosse errada,
que gosto principiar!
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Eu sofri por ter de amar,
e sofri por ser amado,
mas tudo quanto sofri,
eu dou por bem empregado.
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Fui à fonte ver Maria,
encontrei com Isabel.
Isto mesmo é qu'eu queria,
caiu-me a sopa no mel.
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Fui fraca, facilitei,
cuidei que amor n'era nada.
Amor é mal sem remédio,
hoje estou desenganada!
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Lá dentro desse teu peito
eu desejava morar,
não estorvando a quem mora,
dizei-me se tem lugar.
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Manjericão rajadinho,
rajadinho pelo pé,
o meu coração é teu,
o teu não sei de quem é.
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Marília, se não me amas,
não me digas a verdade,
finge amor, tem compaixão,
mente, ingrata, por piedade.
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Na galera dos amores,
todos se embarcam cantando,
porém no fim da viagem,
todos se apartam chorando.
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Não tenho onde me esconder
Do meu amor inimigo:
Perto, estou fora de mim,
longe, está dentro comigo!
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Oh bela, porque me matas,
mas a vida me estás dando?
Se tens de ser meu amor,
não andes vira-virando.
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0 marmelo é boa fruta,
enquanto não apodrece;
assim são amores novos
enquanto não se aborrece.
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0 meu amor mais o teu
pesei na mesma balança,
o meu pesou direitinho,
só no teu achei mudança.
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0 vento que veio hoje
levou palha e deixou trigo,
eu quero te perguntar
se essa carranca é comigo.
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Papagaio come milho,
periquito leva a fama...
Vai fazer teu fingimento
com aquele que te ama.
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Se eu soubesse com certeza
que tu me querias bem,
eu te faria um carinho
que nunca te fez ninguém.
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Se queres de mim que te ame,
como sempre já te amei,
bota fora do sentido
certa gentinha que eu sei…
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Você diz que me quer bem,
eu também quero a você,
onde há fogo há fumaça,
quem quer bem logo se vê.
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Você diz que me quer bem,
que me traz dentro do peito,
isso não, não acredito,
quem quer bem tem outro jeito.
Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.
Disponível no Portal de Domínio Público
Sammis Reachers (Situando os quiprocós)
Toponímia é aquela área de estudo que se ocupa dos nomes próprios de lugares. Iniciemos este relato esclarecendo alguns embaraços toponímicos, sem os quais o leitor talvez não consiga se situar no teatro dos eventos.
A região aqui em geral referida pertence “legalmente” ao bairro de Tribobó; sim, o bairro com um dos nomes mais divertidos – ou ridículos – do Brasil. Situado no município fluminense de São Gonçalo, o extenso Tribobó é composto pelo que se chama de sub-bairros, que, oficiais ou não, são pequenas repartições ou regionalizações adotadas principalmente pelos moradores desses lugares.
Ao trecho de Tribobó em que fui criado chamamos de Jardim Nazaré, também grafado Jardim Nazareth, ou o termo que hoje o faz, não com justiça, conhecido alhures: Palha Seca. Evito em geral o termo Palha Seca pois ele hoje refere uma ampla área, que, tendo visto nascer nos últimos trinta anos algumas favelas em seu corpo, agora recebe até a designação de complexo, o “Complexo do Palha Seca”.
Assim, com Jardim Nazaré busco definir uma área delimitada dentro disso que se chama Palha Seca; sim, um pequeno trecho composto por três ruas principais e mais umas quatro paralelas.
Levantado nosso cercadinho, vamos fundamentar os relatos.
Boa parte de minha infância e primeira adolescência foi passada na favelinha Beira do Rio ou Beira Rio, pequeno bocado de chão do já pequeno Jardim Nazaré. Ela recebe esse nome, você já pode imaginar, por margear trecho de um rio – neste caso, o Rio Alcântara, que nasce no município niteroiense de Pendotiba, alguns quilômetros acima de nosso ponto, e percorre quase meia São Gonçalo (mudando de quando em quando ou de trecho em trecho de nome, como um fugitivo) em sua peregrinação soturna em busca da Baía de Guanabara.
Morando numa rua de acesso à movimentada Beira Rio, sua influência, como um ímã, não poderia me deixar escapar, estando eu a tão poucos metros de sua fervura. Muitas aventuras foram vividas ali – ou não exatamente nela, mas em andanças a partir dela – andanças em que eu e os companheiros de ocasião percorríamos quilômetros que, hoje, me defenestrariam as pernas, caso eu tentasse encará-los.
Um desses companheiros de ocasião era na verdade um companheiro de muitas ocasiões, um amigo, na medida em que este termo se aplicava às relações sempre algo hostis que eram mantidas naqueles tempos, naquele lugar. Seu nome era Renato. Renato Batista dos Santos. Irmão de quatro irmãos, paupérrimos – moravam todos quase amontoados num barraco de um único cômodo.
Minha situação era bem mais favorável, embora eu fosse, claro, perfeitamente pobre. Devo a Renato muito de minhas iniciações no mundo real, iniciações que, a duras penas, conseguiram romper o perfeito inapto ou inocente que eu era. As lições de “malandragem” eram aplicadas
diariamente, sem muita cerimônia.
Uma de nossas maiores ocupações era, quase que todos os dias, catar ferro-velho – reciclagem, cobre, alumínio, garrafas e até ferro, ferro depois abandonado pois o lucro não compensava o sacrifício de, franzinos moleques que éramos, carregar todo aquele peso. Ocupados em nosso ofício – cujo objetivo era conseguir dinheiro para comprar picolés e sorvetes da Kibon, pão com mortadela, refrigerantes, doces, jogar fliperamas e, ao menos no meu caso, comprar figurinhas variadas – como dito, andavamos quilômetros, a cada dia traçando uma rota.
Na época não havia coleta de lixo na região, lixo que era então despejado em “pequenos” lixões (terrenos baldios) que abundavam em cada bairro e sub-bairro. Renato me ensinava nessas andanças a primeira lição da vida ou daquela vida – cada um por si, nada de catar em conjunto. E ele, claro, sempre conseguia mais materiais de valor que eu. O bicho enxergava como uma águia! Com o tempo, fui melhorando.
Outra lição – essa vergonhosa e perfeitamente dispensável – que Renato me ensinou foi a roubar. Mas calma lá, leitor, que não lhe quero escandalizar logo neste início de livrete: Não eram furtos dignos do risco ou talvez da fama, eram apenas surrupios de pequenos pedaços de cobre, que jaziam amarrando canos e cercas; garrafas de cerveja e garrafões de vinho largados em algum depósito de fundo de quintal; panelas velhas que eram utilizadas como vasos de planta – ah, quantas plantas eu deitei fora, eu que depois aprendi a amá-las! Quando podia, removia cautelosamente a planta e sua touceira de terra da panela, depositando a touceira gentilmente a um canto. Quem sabe a madame não conseguisse um outro vaso para reacondicioná-la?
Esses pequenos furtos também foram uma severa escola – em geral, nos quintais mais “arriscados”, eu, mais lerdo e ainda por cima mais “visível” pela minha pele amarelona, ficava de vigia, enquanto Renato lá ia tentar aliviar... LIXO, mas era roubo pois o “lixo” tinha dono, e trazia na corcunda seu risco.
Há quem diga que éramos pueris ecovisionários promovendo ou ao menos “adiantando” a reciclagem de materiais que, largados como estavam na “natureza”, levariam séculos e oh!, quiçá milênios para se decomporem, comprometendo ecossistemas locais e globais. Para esses, fomos paladinos da sustentabilidade, arautos de um futuro eco-responsável (particularmente, gosto bastante desta versão).
A mesma tática utilizávamos para afanar frutas, ciência esta universal, e atividade que exercíamos com alguma perícia e grande prazer. Embora antes pedíssemos ao dono, humildemente, para nos deixar arrancar algumas frutas – mangas, goiabas e quetais. Em caso de negativa, bem...
Fonte:
Enviado pelo autor.
In Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Estante de Livros (“Tartufo”, de Molière)
Tartufo (em francês Le Tartuffe) é uma comédia de Molière, e uma das mais famosas da língua francesa em todos os tempos. Sua primeira encenação data de 1664 e foi quase que imediatamente censurada pelos devotos religiosos que, no texto, foram retratados na personagem-título como hipócritas e dissimulados.
Por meio de um diálogo de enorme sutileza e força cômica, o autor apresenta a figura de um homem sensual e lascivo que, sob a aparência de asceta virtuoso, consegue aproveitar-se da confiança de seu protetor, inclusive voltá-lo contra a família, e só é desmascarado quando tenta seduzir a dona-de-casa.
O livro todo se apresenta com uma homogeneidade perfeita de Alexandrinos de rimas ricas, conservando de Molière a graça e seus métodos de criação e as suas virtudes de autor.
ENREDO:
Orgon, pessoa muito importante da sociedade parisiense, havia caído sob a influência de Tartufo, um religioso bastante hipócrita, além de ser extremamente inescrupuloso. Na verdade, os únicos que não se dão conta do verdadeiro caráter do espertalhão são Orgon e sua mãe, madame Pernelle.
Tartufo exagera em sua devoção religiosa, chegando mesmo a ser o diretor espiritual de Orgon. Desde que o vilão passara a residir em sua casa que Orgon segue-lhe todos os conselhos, chegando ao ponto de prometer-lhe a filha em casamento, apesar de a mesma estar noiva de Valério. A jovem Mariana fica bastante infeliz com a decisão paterna, e sua madrasta Elmira tenta desencorajar o embusteiro de suas pretensões matrimoniais. Durante este diálogo, Tartufo tenta seduzir a jovem esposa do velho Orgon, cena esta testemunhada por Damis, filho de Orgon.
Damis relata ao pai o que vira, mas este, longe de acreditar, deserda Damis e decide passar a própria casa para o nome do caloteiro – uma forma de assim forçar o casamento contra o qual todos pareciam tramar. Aumenta a tristeza de Mariana, e Elmira adia a sua assinatura do contrato feito pelo marido. Ela então propõe ao marido que, escondendo-se sob uma mesa, seja ele próprio testemunha do verdadeiro caráter de Tartufo.
Orgon concorda com o estratagema, e ante as palavras de Tartufo para sua mulher, descobre finalmente qual o verdadeiro caráter daquele hipócrita a que tanto confiara, e que sua família sempre tivera razão. Colocando Tartufo para fora da casa, este porém impõe-se como seu novo proprietário. E Orgon dá-se conta de que depositara com o falso devoto documentos de um amigo, cuja fuga ocultara, comprometendo-o.
A mãe de Orgon vem lhe visitar. Pernelle tem ainda grande admiração por Tartufo, e não se deixa convencer sobre o real caráter dele. Surge então o Sr. Loyal, policial enviado por Tartufo, a fim de avisar que a família tem até o dia seguinte para desocupar o imóvel. Só depois disso, Pernelle reconhece que ele é mesmo um caloteiro.
Enquanto a família reunida discute como safar-se daquela situação vexatória, chega Valério, informando que Tartufo entregara ao Rei os documentos que incriminavam Orgon, e este deveria ser preso. Planejam rapidamente uma fuga, mas Tartufo reaparece, desta feita acompanhado por um policial.
Autoritário, o falso amigo expede a ordem para que Orgon seja preso. Mas este, para surpresa de todos, prende o próprio Tartufo: ele era um caloteiro conhecido, tendo já aplicado outros golpes. A doação feita é anulada, e finalmente Orgon permite o casamento de Valério e Mariana.
REAÇÕES À OBRA:
A obra foi apresentada perante o Rei em maio de 1664, antes de sua estreia e numa versão inacabada, com apenas três atos. Apesar disto, conseguiu indignar os devotos, por seu conteúdo. A Companhia do Santo Sacramento utilizou de sua influência para conseguir que a obra fosse proibida: viam nela um ataque frontal à religião e aos valores que ela propunha. O certo é que, por trás das críticas à hipocrisia, que é o tema principal da obra, se vê um ataque ao papel demasiado influente que tinham alguns devotos que se passavam por guias espirituais, quando na verdade eram saqueadores de heranças.
Após algumas apresentações particulares, Molière tratou de representar sua obra com o título de "Panulfo, ou o Impostor", em agosto de 1667. Mas depois da primeira apresentação, o responsável pela polícia proibiu novamente a obra, com o argumento de que "não é o teatro o local para se pregar o Evangelho". O Arcebispo de Paris, Hardouin de Péréfixe, chega a ameaçar com a excomunhão todo aquele que represente ou assista tal obra, que acusa ser um violento ataque à religião.
Foi mister esperar até fevereiro de 1669 para que Louis XIV autorize a Molière a representar sua peça, que além disso recupera o título original de Tartufo.
INTENÇÕES DE MOLIÈRE:
Ao escrever sua obra, o autor ataca um grupo muito influente: os devotos. Entre estes se contavam homens cuja religiosidade era sincera, mas a maioria era de manipuladores conscientes do poder que poderiam obter com a falsa devoção. Foi a este segundo tipo que Molière atacou.
Mas também descreve uma rica família da alta burguesia. Orgon, uma vez tendo consolidado sua posição financeira, busca uma espécie de legitimidade religiosa. Como todos os altos burgueses descritos por Molière, mostra uma certa ingenuidade. Exerce um tipo de ditadura sobre seus filhos. O tema do matrimônio de conveniência, algo que Molière não aceitava, também se acha nesta obra.
A peça se insere na realidade histórica com alusão à revolta da Fronda que se deslanchara em França, quinze anos antes. O Rei aparece como símbolo do bom senso.
Em torno de Orgon e Tartufo (que somente surge quando a peça está bastante avançada) aparecem outros personagens frequentes em Molière: os jovens ingênuos e impetuosos (Damis, Mariana e Valerio), os sábios e razoáveis (Elmira e Cleanto), a serviçal com senso vulgar e linguagem curta e direta (Dorina), a velha fora do tempo e da razão (Mme. Pernelle).
CURIOSIDADE:
Na língua portuguesa, o termo tartufo, como em outro idiomas, passou a ter a acepção de pessoa hipócrita ou falso religioso, originando ainda uma série de derivados como tartufice, tartúfico ou ainda o verbo tartuficar - significando enganar, ludibriar com atos de tartufice.
Fonte:
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023
Nelson Maia Schocair (Nas areias da poesia)
O jardineiro planta a palavra,
semente efêmera;
rega o jardim morfológico
e lava as cicatrizes de suas desventuras;
A seiva esverdeada e culta
escorre ao vento lúdico de seu fazer;
Cada novo fruto entorpece
o pássaro de luz
que faz seu ninho no galho
da árvore poética.
Pronto!
O machado crítico se agiganta,
zune no ar
e destrói-lhe a raiz:
Sua obra jaz morta numa folha de papel…
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DÊIXIS
Não pretendo compor anáforas:
remissões são fraquezas contumazes;
Tampouco entendo as catáforas:
o futuro é inexorável surpresa;
Faço êxodo de mim!
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JURAS
Jurei amar, e não cumpri;
Jurei falar, e não calei;
Jurei gerar, e não pari;
Jurei viver, e não nasci…
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NOSSOS SUORES…
Fomos feitos da argila que reveste o campo,
somos revestidos da ramagem que recobre os morros,
estamos recobertos da umidade que brota da nascente,
brotamos dos suores que escorrem das grutas magistrais!
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O MENESTREL E A DONZELA
Bom dia, Santa Donzela,
folgo ver-te com saúde,
airosa, cheirosa e bela,
no dedilhar do alaúde.
Permita-me o atrevimento
de postar-me assim tão perto:
não rogo pranto ou lamento,
mas paixão, de peito aberto.
Trago a ti, em verso, um canto
da amiga cotovia
– perdão, se te causo espanto –
almejo alegrar teu dia:
“Ama a lua o pôr-do-sol
a dor da tristeza errante:
no trinar de um rouxinol,
surge o amor, anjo inconstante…”
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RESPOSTA DA DONZELA AO MENESTREL
Não suporto a tua ausência,
Anjo bom, amor candente,
vivo presa à vil demência
de um pátrio poder ausente.
Rego a flor, e ela morre
– talvez de tédio padeça –
leva-me, presto, socorre,
antes que o jardim feneça…
Sonhei tuas mãos nas minhas,
misto de dor e delícias,
chorei saber que não vinhas
inundar-me de carícias.
Juro aos pés da Santa Cruz
calar o alaúde e o berro:
Ó Senhor, devolve a luz,
ou nas trevas me desterro!
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O PADRE SE APIEDA DA DONZELA
Ouve um conselho, menina:
no inverno morrem as flores…
sofrem poetas a sina…
choram donzelas amores…
Teu pecado Deus perdoa,
não cabe a mim julgamento;
tua dor, no vale, ecoa,
já te escutam o lamento…
Minha filha, faz a prece,
pede aos Anjos proteção;
esse amor que te enriquece,
pode ser-te a perdição.
Se essa estrada é perigosa,
trilha com fé teu caminho:
“Felicidade é uma rosa
que, sem regar, vira espinho!”
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A DONZELA SE CONFESSA AO PADRE DO CONDADO
Santo Padre, hei amado,
sãos instantes de ternura:
por que desejo é o pecado…
minha dor… minha loucura?
De nuvens o sol se cobre,
não muda as fases a lua,
divido o amor entre um nobre
e um plebeu que me ama nua!
Assim gira o carrossel,
todo o tempo, aventureiro:
choro por um menestrel…
durmo com um cavaleiro…
Rezo doze Ave-marias,
jamais finda essa novena:
entorpece as alegrias
o veneno da falena!
Fonte:
Adriana Regina Tozzi Pontoni (Antônia)
Era uma vez Antônia, uma garota que morava em uma bela casa, nem muito grande nem muito pequena, de tijolos à vista, que abrigava muito bem toda a sua família. Tinha um quintal imenso com um grande chorão plantado, com seus galhos e folhas caídas que abrigavam perfeitamente ela e os irmãos nos dias de muito sol, Na base do chorão, um passarinho havia sido enterrado no inverno passado. Antônia o havia encontrado na rua, caído e tentara de todas as maneiras salvar a sua vida. Falecido no mesmo dia, o animal agora morava nas raízes do chorão, o que havia rendido uma história sobre o maravilhoso pássaro que vivia no subterrâneo.
Antônia se considerava uma inventora de histórias. Tudo que pudesse ser imaginado criava vida no papel. Seus irmãos eram seus dois melhores amigos ec chamavam-se Joaquim e Damião. Os três juntos formavam uma sociedade secreta, onde campeonatos de carros de papel eram disputados, árvores eram escaladas e músicas eram criadas para torcer pela escola de samba preferida. As pernas de Antônia estavam constantemente machucadas, mas ela não se incomodava, já que o melhor amigo da escola a achava linda de qualquer jeito.
O pai era o homem mais inteligente do mundo, a mãe a mulher mais bonita dentre todas e o avô o mais bondoso. Antônia almoçava todos os domingos na casa do avô, apelidado carinhosamente de "vô Nenê". Tinha um sorriso inconfundível, falava pouco e compreendia as crianças como ninguém. Sua casa era grande e cheia de segredos. Antônia secretamente vasculhava as gavetas dos armários da casa era busca de tesouros, como talcos e perfumes que tinham cheiro de coisa velha.
O quintal da casa do avô era repleto de árvores e mudas de plantas, guardado por um pequeno cachorro preto, de dentes esquisitos e raça sem definição. Seu nome era Sucupira. Ele tossia e pigarreava como se fosse um ser humano. Algo extremamente perturbador para as crianças.
O vô Nenê adorava sentar-se na varanda da casa. Os três irmãos sentavam-se na escada, aos pés do avô, e escutavam as histórias que ele tinha para contar, quando ele decidia falar alguma coisa. Na verdade, ele não era muito contador de histórias e sempre ria em partes que, para Antônia, não tinham a menor graça. Sucupira ficava de longe, só observando.
Um dia, o vô contou uma história sobre quatro mundos, que existiam dentro de todas as pessoas, O primeiro mundo, segundo ele, era o da infância. Era o mundo mais difícil de deixar para trás, mas, mais cedo ou mais tarde, todos saiam dele para entrar no mundo dos jovens. Ainda existia o mundo dos adultos e o mundo dos velhos. O avô contava que logo após encerrar sua fase no mundo dos adultos, havia descoberto que o mundo dos velhos era bem parecido com o das crianças, e era por isso que eles se entendiam tão bem.
Uma das crianças perguntou: "Mas vô, como a gente sabe que saiu de um mundo e passou pro outro?". E ele respondeu: "Você sabe que algo chegou ao fim quando existe um recomeço. Neste momento ele deu risada e, como de costume, ninguém entendeu nada. Mais tarde, Antônia ficou pensando quando saberia que havia deixado o mundo da infância, e escreveu uma história sobre quatro planetas diferentes.
Os dias passaram com certa lentidão naquele ano. Antônia havia contraído hepatite, Joaquim havia quebrado o braço e Damião, semanalmente, aparecia com a testa enfeitada com machucados terríveis, resultado da vontade do irmão em ser o menino mais forte, mais veloz e mais ágil de todos os tempos,
Ainda naquele outono, uma tempestade forte devastou muitas casas frágeis e arrancou de vez o grande chorão do quintal, com raiz e tudo. No outro dia, Antônia correu para ver se encontrava o túmulo do passarinho, mas não havia mais nada ali. Correu para o quarto e escreveu sobre o passarinho que trocou as asas por uma capa de invisibilidade.
Na metade daquele ano, os pais avisaram Antônia que ela sairia da escola para uma outra, muito melhor, mas ela não recebeu muito bem a notícia. Chorou por dias e noites e escreveu uma nova história, sobre um casal de namorados que havia sido afastado por uma grande fenda no planeta.
Em agosto, Sucupira não conseguiu vencer o grande cão do vizinho numa briga de rua e deixou o avô sozinho. No final da primavera, o avô faleceu.
A dor era tanta que Antônia passou a sentir-se solitária, mesmo com os irmãos ao seu lado. Seu pai já não parecia mais tão inteligente, e as modelos das revistas eram bem mais bonitas que sua mãe. Que mundo horrível era aquele! As meninas da escola achavam sua saia vermelha fora de moda e os meninos tiravam sarro de suas pernas finas e machucadas. E de repente Antônia não conseguia escrever mais nada.
Quando a casa do avô foi posta à venda, ela entrou em desespero. Queria ao menos guardar um talco. Um cheiro. Um tesouro secreto. E, numa tarde, colocou a mochila nas costas, fugiu de casa e caminhou até lá. Sem a chave, começou a procurar algum tesouro no quintal. Apoiada na ponta dos pés, tentava observar pelas brechas da veneziana alguma imagem familiar. Pela janela do quarto, viu a cama antiga. O armário fedido, Uma foto do avô em cima da cômoda.
Tomada por um sentimento de amor profundo, decidiu que precisava da foto. Pegou um banquinho velho e uma pedra do jardim. Subiu no banco, quebrou o vidro da janela e, com cuidado, colocou seu braço por entre os estilhaços para conseguir destravá-la. Feito isso, pôs-se a empurrar com toda força a veneziana que abriu de supetão quando então o alarme disparou.
Entrou no quarto, pegou a foto, colocou na mochila e saiu correndo, como se algo pudesse alcançá-la e lhe roubar o avô para sempre.
Em casa, entrou no quarto apressada, fechou a porta, sentou na cama e abriu a mochila. O avô sorria para ela. Foi quando ela escreveu a história sobre o dia em que Antônia deixou o mundo da infância.
Fonte:
Enviado por Luiz Hélio Friedrich.
In Ney Fernando Perracini de Azevedo (org). Safira Paranaense. Curitiba: ABRAEE/PR, 2015.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023
George Abrão (O pomar da minha infância)
Era um pequeno pomar, mas a mim parecia enorme, um mundo de cores e de sabores. Havia nele um grande abacateiro, a árvore-rainha, pelo seu porte e magnitude; várias laranjeiras que produziam frutos pequenos e muito doces denominados laranja feijão-cru, nome que nunca entendi, pois se era laranja, como poderia ser feijão? Nunca mais vi esse tipo de laranja por mais que procurasse; uma mangueira que nunca frutificava e onde, certa vez, encontrei uma única manga, bem no alto, e lembro-me que a escondi para mim; um pessegueiro salta caroço cujos frutos, quando maduros, ficavam da cor de mel, deliciosos; e a goiabeira com seu tronco liso, difícil de subir, mas que eu escalava para tirar as goiabas maduras e olorosas. Às vezes, ao mordê-las, eu encontrava meio bicho de goiaba, onde fora parar a outra metade? E a pereira que quando carregava com seus enormes frutos de casca enferrujada e muito duros, chamados de pera d’água. Outra controvérsia nominal, pois se eram d’água deveriam ser moles. Serviam para doce, que minha mãe fazia, assim como de pêssego e goiaba, e guardava em caixetas - pequenas caixas de madeira com tampa de correr.
Mas do que eu gostava mais mesmo era de dois cafeeiros que ficavam um ao lado do outro formando uma espécie de muralha verde, cujas folhas iam até o chão. Certo dia, resolvi passar pela parede de folhas e me deparei com um belo espaço, parecendo uma pequena gruta. A partir daquele dia ali ficou sendo o meu refúgio quando eu queria ficar só ou para me esconder do chinelo da minha mãe. E dentro dele eu me sentia como numa casamata, imune à guerra que imaginava sendo travada do lado de fora. Na minha fértil imaginação ouvia o ronco dos aviões bombardeiros, as bombas explodindo, os tiros de canhão e de morteiro, o ra-ta-tá das metralhadoras, e eu ali, a salvo. Mas do lado de fora se ouvia somente o barulho da algazarra dos sabiás - de peito roxo, de peito branco, coleira -, dos sanhaços –verde e bandeira – no abacateiro; os piados das coleirinhas comendo semente de capim; e o tiziu, pequeno pássaro preto que pousado na cerca saltava verticalmente, batendo as asas e emitindo seu canto característico: “tiziu”.
Mas como tudo o que bom acaba logo, tivemos que nos mudar, sem alternativa. E eu, no dia da mudança, corri até o meu pomar, abracei cada árvore em forma de despedida. Entrei no meu refúgio sob os cafeeiros e reguei o solo com as minhas lágrimas.
Parti, sem olhar pata trás!
Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.
Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos) XI
Obs. do blog: O primeiro verso e título de cada poema é do poeta colocado abaixo do título, com a página e livro onde se encontra.
QUANDO EU VOLTAR À TERRA DE ONDE VIM
Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 19
Quando eu voltar à terra de onde vim
Não chorem que essas lágrimas não trazem
O meu olhar ao chão onde se fazem
As rosas que incendeiam um jardim.
Nem rezem, nesse já morto Latim
Ladainhas que em nada satisfazem
As pálidas lembranças em que jazem
Os restos do melhor que havia em mim.
Entreguem o meu corpo ao fogo santo
Que o limpe do pecado e do quebranto
Até que dele sobre apenas pó.
E o meu penar talvez não seja em vão
Vendo que o trigo, antes de ser pão
Primeiro há de passar por qualquer mó.
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VEM TER COMIGO, À NOITE, À MINHA CAMA
Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 21
Vem ter comigo, à noite, à minha cama
Falar-me das saudades que sentiste
Que eu envolvo o teu corpo que despiste
Em lençóis com o nosso monograma.
No calor do aconchego é que se inflama
O excelso dom da vida que consiste
Em fazer singular tudo o que existe
E ao apagado círio dar a chama.
Vem afogar em mim os teus cansaços
Molda-te ao travesseiro dos meus braços
Que a cama é doce, quente e hospitaleira.
Dorme que o maior bem que pode haver
É o de numa só noite alguém viver
Os sonhos todos de uma vida inteira.
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TUDO O QUE SOU É MENOS DO QUE EU QUERO
José Carlos Ary dos Santos in "Cem Sonetos Portugueses", p. 146
Tudo o que sou é menos do que eu quero
Para matar a sede em que me afogo
E acabrunhado aos pés da vida eu rogo
O fim da pequenez que não tolero.
Amarrado a um corpo que é severo
Nas margens do impossível em que eu vogo
Perplexo, pobre e puro eu me interrogo
Do modo como ser mais do que um zero.
Tem razões para estar insatisfeito
O coração que trago no meu peito
Vestindo a sua estranha condição:
Com asas de voar para se erguer
O destino o condena a padecer
E a morder esse pó que há pelo chão.
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O TEU ROSTO DE SAL NA PRAIA VÃ
José Charles González in "Cem Sonetos Portugueses", p. 148
O teu rosto de sal na praia vã
Filtrava a luz do sol nesse cristal
E lá do sul, subindo o areal
Vinha a lua dizer que é tua irmã.
Sendo a razão de ser desta manhã
Silhueta esculpida num vitral
Serias Virgem numa catedral
Se não tivesses já coroa de romã.
És sereia que o mar azul trouxesse
Uma rosa de orvalho que amanhece
E, por milagre, a Terra iluminasse.
És aragem lembrando borboleta
Vestida de amarelo, azul, violeta
E que ao bater das asas nos deixasse.
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DEBAIXO DA MESA GUARDAS OS JOELHOS
Manuel António Pina in "Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974-2011)", p. 50
Debaixo da mesa guardas os joelhos
Nesse ponto preciso do ângulo reto
Das pernas que, descendo, são cateto
Que morre aos pés de uns chinelos vermelhos.
Esta cor não constava entre os conselhos
Do que era bom, prudente e tão correto
Numa donzela de berço e de teto
Que tanto se privava dos espelhos.
A barra da toalha ajuda a saia
A esconder a tez branca de cambraia
Que aos meus olhos traz louca tentação.
Esquecendo a moral e o pudor
Sinto saudades tais do teu calor
Que entre os dois vai subindo a minha mão…
Fonte:
Enviado pelo poeta.
Disponível em Domingos Freire Cardoso. Por entre poetas. Ilhavo/Portugal, 2016.
Machado de Assis (O Lapso)
E disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita a nossa súplica na tua presença.
JEREM. XLII, 1, 2.
Não me perguntem pela família do Dr. Jeremias Halma, nem o que e que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o Conde de Azambuja, que a principio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. Veio, ficou e morreu com o século. Posso afirmar que era médico e holandês. Viajara muito, sabia toda a química do tempo, e mais alguma; falava correntemente cinco ou seis línguas vivas e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou uma teoria da formação dos diamantes. Não conto os melhoramentos terapêuticos, e outras muitas coisas, que o recomendam á nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem orgulhoso. Ao contrario, a vida e a pessoa dele eram como a casa que um patrício lhe arranjou na rua do Piolho, casa singelíssima, onde ele morreu pelo natal de 1799. Sim, o Dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão modesto que... Mas isto seria transtornar a ordem do conto. Vamos ao princípio.
No fim da rua do Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos pobres, perto da antiga rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal Thomé Gonçalves, homem abastado, e, segundo algumas induções, vereador da câmara. Vereador ou não, este Thomé Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha também dividas, não poucas, nem todas recentes. O descuido podia explicar os seus atrasos, a velhacaria também; mas quem opinasse por uma ou outra dessas interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não valia a pena dar-se ninguém a tarefa de escrever algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins do século passado, um homem que, por velhacaria ou desleixo, deixava de pagar aos credores. A tradição afirma que este nosso concidadão era exato em todas as coisas, pontual nas obrigações mais vulgares, severo e até meticuloso. A verdade é que as ordens terceiras e irmandades que tinham a fortuna de o possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que usava pagar), não lhe regateavam provas de afeição e apreço: e, se é certo que foi vereador, como tudo faz crer, pode-se jurar que o foi a contento da cidade.
Mas então...? La vou; nem é outra a matéria do escrito, senão esse curioso fenômeno, cuja causa, se a conhecemos, foi porque a descobriu o Dr. Jeremias. Em uma tarde de procissão, Thomé Gonçalves, trajado com o hábito de uma ordem terceira, ia segurando uma das varas do pálio, e caminhando com a placidez de um homem que não faz mal a ninguém. Nas janelas e ruas estavam muitos dos seus credores; dois, entretanto, na esquina do beco das Cancelas (a procissão descia a rua do Hospício), depois de ajoelhados, rezados, persignados e levantados, perguntaram um ao outro, se não era tempo de recorrer á justiça.
— Que é que me pode acontecer? dizia um deles. Se brigar comigo, melhor; não me levará mais nada de graça. Não brigando, não lhe posso negar o que me pedir, e na esperança de receber os atrasados, vou fiando... Não, senhor; não pode continuar assim.
— Pela minha parte, acudiu o outro, se ainda não fiz nada, é por causa da minha dona, que é medrosa, e entende que não devo brigar com pessoa tão importante... Mas eu como ou bebo da importância dos outros? E as minhas cabeleiras?
Este era um cabeleireiro da rua da Vala defronte da Sé, que vendera ao Thomé Gonçalves dez cabeleiras, em cinco anos, sem lhe haver nunca um real. O outro era alfaiate, e ainda maior credor que o primeiro. A procissão passara inteiramente; eles ficaram na esquina, ajustando o plano de mandar os meirinhos ao Thomé Gonçalves. O cabeleireiro advertiu que outros muitos credores só esperavam um sinal para cair em cima do devedor remisso; e o alfaiate lembrou a conveniência de meter na conjuração o Mata-sapateiro, que vivia desesperado. Só a ele devia o Thomé Gonçalves mais de oitenta mil reis. Nisso estavam, quando por traz deles ouviram uma voz, com sotaque estrangeiro, perguntando porque motivo conspiravam contra um homem doente. Voltaram-se, e, dando com o Dr. Jeremias, desbarretaram-se os dois credores, tornados de profunda veneração; em seguida disseram que tanto não era doente o devedor, que lá ia andando na procissão, muito teso, pegando uma das varas do pálio.
— Que tem isso? interrompeu o médico; ninguém lhes diz que está doente dos braços, nem das pernas...
— Do coração? do estômago?
— Nem coração, nem estômago, respondeu o Dr. Jeremias. E continuou, com muita doçura, que se tratava de negócios altamente especulativos, que não podia dizer ali, na rua, nem sabia mesmo se eles chegariam a entende-lo. Se eu tiver de pentear uma cabeleira ou talhar um calção — acrescentou para os não afligir, — é provável que não alcance as regras dos seus ofícios tão luteis, tão necessários ao Estado... Eh! eh! eh!
Rindo assim, amigavelmente cortejou-os e foi andando. Os dois credores ficaram embasbacados. O cabeleireiro foi o primeiro que falou, dizendo que a noticia do Dr. Jeremias não era tal que os devesse afrouxar no proposto de cobrar as dividas. Se até os mortos pagam, ou alguém por eles, reflexionou o cabeleireiro, não é muito exigir aos doentes igual obrigação. O alfaiate, invejoso da pilhéria, fel-a sua cosendo-lhe este babado: — Pague e cure-se.
Não foi dessa opinião o Mata-sapateiro, que entendeu haver alguma razão secreta nas palavras do doutor Jeremias, e propôs que primeiro se examinasse bem o que era, e depois se resolvesse o mais idôneo. Convidaram então outros credores a um conciliábulo, no domingo próximo, em casa de uma D. Aninha, para as bandas do Rócio, a pretexto de um batizado. A precaução era discreta, para não fazer supor ao intendente da policia que se tratava de alguma tenebrosa maquinação contra o Estado. Mal anoiteceu, começaram a entrar os credores, embuçados em capotes, e, como a iluminação publica só veio a principiar com o vice-reinado do conde de Rezende, levava cada qual uma lanterna na mão, ao uso do tempo, dando assim ao conciliábulo um rasgo pitoresco e teatral. Eram trinta e tantos, perto de quarenta— e não eram todos.
A teoria de Chá. Lama acerca da divisão do gênero humano em duas grandes raças, é posterior ao conciliábulo do Rócio; mas nenhum outro exemplo a demonstraria melhor. Com efeito, o ar abatido ou aflito daqueles homens, o desespero de alguns, a preocupação de todos, estavam de antemão provando que a teoria do fino ensaísta é verdadeira, e que das duas grandes raças humanas, — a dos homens que emprestam, e a dos que pedem emprestado,— a primeira contrasta pela tristeza do gesto com as maneiras rasgadas e francas da segunda, “the open, trusting, generous manners of the other”. Assim que, naquela mesma hora, o Thomé Gonçalves, tendo voltado da procissão, regalava alguns amigos com os vinhos e galinhas que comprara fiado; ao passo que os credores estudavam ás escondidas, com um ar desenganado e amarelo, algum meio de reaver o dinheiro perdido.
Logo foi o debate; nenhuma opinião chegava a concertar os espíritos. Uns inclinavam-se á demanda, outros á espera, não poucos aceitavam o alvitre de consultar o Dr. Jeremias. Cinco ou seis partidários deste parecer não o defendiam senão com a intenção secreta e disfarçada de não fazer coisa nenhuma; eram os servos do medo e da esperança. O cabeleireiro opunha-se-lhe, e perguntava que moléstia haveria que impedisse um homem de pagar o que deve. Mas o Mata-sapateiro:— “Sr. compadre, nós não entendemos desses negócios; lembre-se que o doutor é estrangeiro, e que nas terras estrangeiras sabem coisas que nunca lembraram ao diabo. Em todo caso, só perdemos algum tempo e nada mais.” Venceu este parecer; elegeram o sapateiro, o alfaiate e o cabeleireiro para entenderem-se com o Dr. Jeremias, em nome de todos, e o conciliábulo dissolveu-se na patuscada. Terpsícore bracejou e perneou diante deles as suas graças jocundas, e tanto bastou para que alguns esquecessem a ulcera secreta que os roía. “Eheu! Fugazes...” Nem mesmo a dor é constante.
No dia seguinte o Dr. Jeremias recebeu os três credores, entre sete e oito horas da manha. “Entrem, entrem...” E com o seu largo carão holandês, e o riso derramado pela boca fora, como um vinho generoso de pipa que se rompeu, o grande médico veio em pessoa abrir-lhes a porta. Estudava nesse momento uma cobra, morta de véspera, no morro de Santo Antônio; mas a humanidade, costumava ele dizer, é anterior à ciência. Convidou os três a sentarem-se nas três únicas cadeiras devolutas; a quarta era a dele; as outras, umas cinco ou seis, estavam atulhadas de objetos de toda a casta.
Foi o Mata-sapateiro quem expôs a questão; era dos três o que reunia maior cópia de talentos diplomáticos. Começou dizendo que o engenho do Sr. doutor ia salvar da miséria uma porção de famílias, e não seria a primeira nem a última grande obra de um médico que, não desfazendo nos da terra, era o mais sábio de quantos cá havia desde o governo de Gomes Freire. Os credores de Thomé Gonçalves não tinham outra esperança. Sabendo que o Sr. doutor atribuía os atrasos daquele cidadão a uma doença, tinham assentado que primeiro se tentasse a cura, antes de qualquer recurso à justiça. A justiça ficaria para o caso de desespero. Era isto o que vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores; desejavam saber se era verdade que, além de outros achaques humanos, havia o de não pagar as dívidas, se era mal incurável, e, não o sendo, se as lágrimas de tantas famílias...
— Há uma doença especial, interrompeu o Dr. Jeremias, visivelmente comovido, um lapso da memória; o Thomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se-lhe da cabeça. Conheci isto há dois meses, estando em casa dele, quando ali foi o prior do Carmo, dizendo que ia «pagar-lhe a fineza de uma visita». Thomé Gonçalves, apenas o prior se despediu, perguntou-me o que era “pagar”; acrescentou que, alguns dias antes, um boticário lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro esclarecimento, parecendo-lhe até que já a ouvira a outras pessoas; por ouvi-la da boca do prior, supunha ser latim. Compreendi tudo; tinha estudado a moléstia em várias partes do mundo, e compreendi que ele estava atacado do lapso. Foi por isso que disse outro dia a estes dois senhores que não demandassem um homem doente.
— Mas então, aventurou o Mata, pálido, o nosso dinheiro está completamente perdido...
— A moléstia não é incurável, disse o médico
— Ah!
— Não é; conheço e possuo a droga curativa, e já a empreguei em dois grandes casos: um barbeiro, que perdera a noção do espaço, e, à noite estendia a mão para arrancar as estrelas do céu, e uma senhora da Catalunha, que perdera a noção do marido. O barbeiro arriscou muitas vezes a vida, querendo sair pelas janelas mais altas das casas, como se estivesse ao rés do chão...
— Santo Deus! – exclamaram os três credores.
— É o que lhes digo, continuou placidamente o médico. Quanto á dama catalã, a princípio confundia o marido com um licenciado Matias, alto e fino, quando o marido era grosso e baixo; depois com um capitão, D. Hermógenes, e, no tempo em que comecei a trata-la com um clérigo. Em três meses ficou boa. Chamava-se D. Agostinha.
Realmente, era uma droga miraculosa. Os três credores estavam radiantes de esperança; tudo fazia crer que o Thomé Gonçalves padecia do lapso, e, uma vez que a droga existia, e o médico a tinha em casa... Ah! mas aqui pegou o carro. O Dr. Jeremias não era familiar da casa do enfermo, embora entretivesse relações com ele; não podia ir oferecer-lhe os seus préstimos. Thomé Gonçalves não tinha parentes que tomassem a responsabilidade de convidar o médico, nem os credores podiam toma-la a si.
Mudos, perplexos, consultaram-se com os olhos. Os do alfaiate, como os do cabeleireiro, exprimiram este alvitre desesperado; cotisarem-se os credores, e, mediante uma quantia grossa e apetitosa, convidarem o Dr. Jeremias à cura; talvez o interesse... Mas o ilustre Mata via o perigo de um tal propósito, porque o doente podia não ficar bom, e a perda seria dobrada. Grande era a angústia; tudo parecia perdido. O médico rolava entre os dedos a caixa de rapé, esperando que eles se fossem embora, não impaciente, mas risonho. Foi então que o Mata, como um capitão dos grandes dias, viu o ponto fraco do inimigo; advertiu que as suas primeiras palavras tinham comovido o médico, e tornou às lágrimas das famílias, aos filhos sem pão, porque eles não eram senão uns tristes oficiais de ofício ou mercadores de pouca fazenda, ao passo que o Thomé Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes, cabeleiras, tudo o que lhes custava dinheiro, tempo e saúde... Saúde, sim, senhor; os calos de suas mãos mostravam bem que o ofício era duro; e o alfaiate, seu amigo, que ali estava presente, e que entisicava, ás noites, à luz de uma candeia, zas-que-darás, puxando a agulha...
Magnânimo Jeremias! Não o deixou acabar; tinha os olhos úmidos de lágrimas. O acanho de suas maneiras era compensado pelas expansões de um coração pio e humano. Pois, sim; ia tentar o curativo, ia pôr a ciência ao serviço de uma causa justa. Demais, a vantagem era também e principalmente do próprio Thomé Gonçalves, cuja fama andava abocanhada, por um motivo em que ele tinha tanta culpa como o doido que pratica uma iniquidade. Naturalmente, a alegria dos deputados traduziu-se em rapapés infindos e grandes louvores aos insígnes merecimentos do médico. Este cortou-lhes modestamente o discurso, convidando-os a almoçar, obséquio que eles não aceitaram, mas agradeceram com palavras cordialíssimas. E, na rua quando ele já os não podia ouvir, não se fartavam de elogiar-lhe a ciência, a bondade, a generosidade, a delicadeza, os modos tão simples! Tão naturais!
Desde esse dia começou Thomé Gonçalves a notar a assiduidade do médico, e, não desejando outra coisa, porque lhe queria muito, fez tudo o que lhe lembrou por ata-lo de vez aos seus penates. O lapso do infeliz era completo; tanto a ideia de “pagar”, como as ideias correlatas de “credor”, “dívida”, “saldo”, e outras tinham-se-lhe apagado da memória, constituindo-lhe assim um largo furo no espirito. Temo que se me argua de comparações extraordinárias, mas o abismo de Pascal é o que mais prontamente veio ao bico da pena. Thomé Gonçalves tinha o abismo de Pascal, não ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam nele mais de sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger de dentes da Escritura. Urgia extrair todos esses infelizes e entulhar o buraco.
Jeremias fez crer ao doente que andava abatido, e, para retempera-lo, começou a aplicar-lhe a droga. Não bastava a droga; era mister um tratamento subsidiário, porque a cura operava-se de dois modos: — o modo geral e abstrato, restauração da ideia de pagar, com todas as noções correlatas — era a parte confiada á droga; e o modo particular e concreto, insinuação ou designação de uma certa dívida e de um certo credor — era a parte do médico. Suponhamos que o credor escolhido era o sapateiro. O médico levava o doente ás lojas de sapatos, para assistir á compra e venda da mercadoria, e ver uma e muitas vezes a ação de pagar; falava da fabricação e venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os preços do calçado naquele ano de 1768 com o que tinha trinta ou quarenta anos antes; fazia com que o sapateiro fosse dez, vinte vezes a casa de Thomé Gonçalves levar a conta e pedir o dinheiro, e cem outros estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabeleireiro, o segeiro, o boticário, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão natural de estar a doença mais arraigada, e lucrando os últimos com o trabalho anterior, donde lhes vinha a compensação da demora.
Tudo foi pago. Não se descreve a alegria dos credores, não se transcrevem as bênçãos com que eles encheram o nome do Dr. Jeremias. Sim, senhor, é um grande homem, bradavam em toda a parte. Parece coisa de feitiçaria, aventuravam as mulheres. Quanto ao Thomé Gonçalves, asmado de tantas dívidas velhas, não se fartava de elogiar a longanimidade dos credores, censurando-os ao mesmo tempo pela acumulação.
— Agora, dizia-lhes, não quero contas de mais de oito dias.
— Nós é que lhe marcaremos o tempo, respondiam generosamente os credores.
Restava entretanto, um credor. Esse era o mais recente, o próprio Dr. Jeremias, pelos honorários daquele serviço relevantes. Mas, ai dele! A modéstia atou-lhe a língua. Tão expansivo era de coração, como acanhado de maneiras; e planeou três, cinco investidas, sem chegar a executar nada. E aliás era fácil; bastava insinuar-lhe a dívida pelo método usado em relação à dos outros; mas seria bonito? perguntava a si mesmo; seria decente? etc., etc. E esperava, ia esperando. Para não parecer que se lhe metia à cara, entrou a rarear as visitas; mas o Thomé Gonçalves ia ao casebre da rua do Piolho, e trazia-o a jantar, a cear, a falar de coisas estrangeiras, em que era muito curioso. Nada de pagar. Jeremias chegou a imaginar que os credores... Mas os credores, ainda quando pudesse passar-lhes pela cabeça a ideia de ir lembrar a dívida, não chegariam a fazê-lo, porque a supunham paga antes de todas. Era o que diziam uns aos outros, entre muitas fórmulas da sabedoria popular: — Matheus, primeiro os teus; — A boa justiça começa por casa; — Quem é tolo pede a Deus que o mate, etc. Tudo falso; a verdade é que o Thomé Gonçalves, no dia em que falecera, tinha um só credor no mundo:— o Dr. Jeremias.
Este, nos fins do século, chegara à canonização.
— “Adeus, grande homem!” dizia-lhe o Mata, ex-sapateiro, em 1798, de dentro da sege, que o levava á missa dos carmelitas. E o outro, curvo de velhice, melancolicamente, olhando para os bicos dos pés:
— Grande homem, mas pobre diabo.
Fonte:
Machado de Assis. Histórias sem data. 1884. Originalmente publicado na Gazeta de Notícias, em 1883. Disponível em Domínio Público.