sábado, 10 de agosto de 2024

Arthur Thomaz (Velho Maracanã: reminiscências)

Em uma manhã de domingo, ecoa uma voz longínqua. Começa, então, a dura missão de afastar a ressaca resultante da balada da noite anterior. 

Ninguém levanta até que se ouve a frase mágica: “vai dar praia”.

Traje regulamentar: sunga, bermuda, chinelo, uma camiseta surrada e 10 cruzeiros no bolso interno da sunga.

Para completar: pingado e pão com manteiga na padaria mais próxima. Caminhando, até que surge o local mágico, a tão almejada e ensolarada praia.

Um mergulho e a ressaca vai embora. Em instantes está formado um time de futebol de areia. Gordos, magros, jovens, idosos, mulheres e crianças, em um elenco heterogêneo e democrático.

O jogo transcorre maravilhosamente, até que do nada aparece um vendedor de cerveja. Pausa para reidratação preconizada pela FIFA.

Mais alguns minutos de jogo, até que alguém grita que é hora do Maraca. Fila para a ducha gelada, trajes recolocados e seguir para o almoço no primeiro “buteco” encontrado.

Uma cachaça antes de um PF (Prato Feito), digno dos grandes chefs. Feijão preto ao fundo, coberto com arroz, um bife que é impossível de ter sua origem determinada, e por cima, uma salada que consistia em uma equilibrada rodela de cebola sobre uma de tomate.

Tudo isso pelo módico preço de 1 cruzeiro.

Um ônibus lotado com bandeiras e cantos dos hinos de ambos os times. Fila na bilheteria, e enfim, hora de garantir um assento naquilo que poderia ser comparado ao trono da rainha da Inglaterra, o quentíssimo cimento da arquibancada.

Então, começa o espetáculo mágico de 100 mil pessoas, cantando e tremulando suas coloridas bandeiras, enquanto os jogadores desfilam majestosamente no gramado. São 90 minutos de êxtase total.

Ao final da peleja, na descida da rampa, iniciam-se debates democráticos e sadios que se estenderão pela semana inteira.

Correr para o ônibus que levará à rodoviária, e de lá, embarcar no último “Viação Valenciana”. Passar a semana estudando e sonhar com o próximo fim de semana mágico.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor

Vereda da Poesia = 80 =


Trova de Nova Friburgo/RJ

NÁDIA HUGUENIN
(Nádia Elisa Sanches Huguenin)
1946 – 2008

Foi por falta de carinho 
que errei e perdi meus passos, 
mas bendigo o “mau caminho” 
que me levou aos teus braços… 
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Poema de Canoas/RS

NELSI INÊS URNAU

Buscas 

Busquei lá fora, um dia, 
uma vida inteira... 
Busquei sem saber, 
o que mesmo eu queria... 
Busquei e corri mundos, 
travessias, desertos profundos, 
tantas realidades, tantas verdades 
não parei de procurar. 

Busquei cá dentro um coração 
e não consegui defini-lo... 
Não sei o que é a 
alma, o espírito. 
Caminhei léguas sem fim 
e me perdi de mim... 

Ainda caminho, 
navego, voo, corro, 
paro, descanso, medito... 
Contudo, 
ainda a incerteza 
de ter, um dia, 
tudo o que busco 
e que busquei.
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Trova do Rio e Janeiro/RJ

JOÃO FREIRE FILHO
(1941 – 2012)

Na tua ausência, meu fado
tornou-se eterna contenda:
corto os laços do passado,
mas a saudade os remenda!
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

ADELMAR TAVARES
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

Para o meu perdão

Eu que proclamo odiar-te, eu que proclamo
querer-te mal com fúria e com rancor,
mal sabes tu como, em segredo, te amo
o vulto pensativo e sofredor.

Quem vê o fel que em cólera derramo
no ódio que punge desesperador,
mal sabe que, se a sós me encontro,
chamo por teu amor com o mais profundo amor...

Mal sabes que se acaso, novamente,
buscasses o calor do velho ninho
de onde um capricho te fizera ausente,

eu, esquecendo a tua ingratidão,
juncaria de rosas o caminho
em que voltasses para o meu perdão . . .
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Trova Premiada em Itapema/SC, 2015

JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Neste mar de desenganos,
levado pela maré,
em tantos sonhos insanos,
minha força é sempre a fé.
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Poema de Vila Velha/ES

EDY SOARES
(Edmardo Lourenço Rodrigues)

Fim de estação

Quando acabar a guerra,
Não precisa mais munição.

Quando acabar a dor,
Não precisa mais compaixão.

Quando acabar o amor,
Os mortos estarão mortos,
Os corpos sobrepostos
E a alma sem salvação.

Quando acabar a esperança,
Terá acabado a razão.

Quando não tiver mais quem lute,
Estará dominada a nação.

Os abutres continuarão com fome,
Sem como explorar mais os homens,
Terá chegado o fim da estação.

Quem produzia fora exterminado;
Quem explorava, condenado
A não ter mais quem lhe dê o pão.

Os virtuosos foram dizimados;
Do fruto do trabalho, despojados
E destruídos por quem conduziu o mundo
À ultima estação.
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Trova Popular

Tanto limão, tanta lima,
tanta silva, tanta amora,
tanta menina bonita
e meu pai sem uma nora...
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

BASTOS TIGRE 
Recife/PE, 1882-1957, Rio de Janeiro/RJ

Definição

Amor é mal, é mal que não tem cura;
mas, sendo mal, sofre-lo nos faz bem . . .
Chora o amante, se o amor lhe dá ventura,
e ri da dor, se dele a dor lhe vem.

O amor é vida e leva a sepultura;
é doce filtro, o amor, e fel contém.
É luz, mas, entretanto, em noite escura
vive, às cegas, o alguém que ama outro alguém.

O amor é cego, e vê todo o invisível;
sendo imutável, quase sempre é vário,
é deus, e faz de um Santo um pecador !

Fraco a indefeso, é força irresistível;
sendo, pois, a si próprio tão contrário,
quem é que pode definir o amor?
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

Dentro da farsa, o sorriso
é tinta de maquiagem
que borra e torna impreciso
o traço da própria na imagem.
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Poema de São Vicente/SP

CID SILVEIRA
1910 – ????

Ofícios 

Para ganhar meu pão, basta que exista
um oficio qualquer, seja qual for:
caldeireiro, engraxate, motorista,
tecelão, alfaiate ou ferrador.

Todo trabalho é nobre quando honesto,
quando não favorece a exploração
e não provoca o mínimo protesto
de outros que também tem seu ganha-pão.

Por mais rude que for, não me intimida
nem me causa aversão nenhum mister.
Porque trabalho, não receio a vida
e espero sempre o que de pior me vier.

Nem todos os ofícios são amenos
como os que para nos sonharam nossas mães ...
Tudo serei na vida, tudo; menos
agente de policia ou laçador de cães!
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Trova Mineira 

HÉRON PATRÍCIO
Ouro Fino/MG, 1931 – 2018, Pouso Alegre/MG

A saudade é um passarinho
em teimosa migração...
vem do passado, e faz ninho
nos beirais do coração.
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Soneto Paulistano

CLEÓMENES CAMPOS 
Maroim/SE, 1897 - 1967, São Paulo/SP

Coração Distante 

Eu bem sei que a tua alma está longe da minha,
tão longe que talvez não a possa alcançar:
vela que mal se vê na amplitude marinha,
dando mais a impressão de um reflexo de luar.

Contudo, muita vez, ela se me avizinha,
que a esperança é também uma brisa de mar.
E a alegria, que em tua ausência já nem vinha,
para te receber, não sai do meu olhar.

Não percebes, porém, a minha angústia imensa.
Prefiro o teu desprezo à tua indiferença;
à tua polidez, prefiro o teu rancor!

Teu coração distante, é inútil, pois não ama,
se o inferno ele não é - porque lhe falta a chama,
o céu não pode ser - porque lhe falta o amor!
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Trova de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DE CARLI

Busquei a felicidade
e ela, sempre fugidia,
deixou atrás a saudade,
que hoje me faz companhia.
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Spina de Belo Horizonte/MG

OLEMAR MARIZ

Esses escritores 

Escrevem para mim
adentram o coração, 
extravasam o sentir...

Expressam as palavras certas, incrível!
Chamando a razão tão determinados,
bálsamo para solidão simples admitir,
palavras turvando mágoas, borram dor
fazendo-me voar, planar, viajar, refletir...
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Trova Humorística de Porto Alegre/RS

FLÁVIO ROBERTO STEFANI

Satisfazendo desejos,
o casal cortou etapas,
pois entre tapas e beijos
eles ficavam nos tapas ...
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Soneto Carioca

FILINTO DE ALMEIDA 
(Francisco Filinto de Almeida)
Porto/Portugal, 1857/ 1945, Rio de Janeiro/RJ

Chama da vida 

Dá-me a tua mão, Amiga, e vamos indo
alegremente pela estrada fora.
É já tarde, e o crepúsculo é tão lindo
como foi o dilúculo da aurora.

Vamos subindo devagar, agora;
dá-me o teu braço, assim, vamos subindo...
Repara: é o mesmo Sol de amor de outrora
que ainda no poente ao longe está fulgindo . . .

Virá depois o luar e, de seguida
clarões de estrelas com que o céu se inflama.. .
E os clarões, e o luar, e o Sol, querida,

são várias formas de uma mesma chama
que está dentro de nós, - chama da Vida
que rebenta no peito de quem ama.
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Trova Premiada em Cachoeiras de Macacu/RJ, 1989

JOSÉ RAUL VINCI 
(Pindamonhangaba/SP)

Devido a minha fraqueza
vi meu sonho se esfumar
na espuma da correnteza
que eu não soube represar.
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Poema Gaúcho

MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

Canção de um dia de vento 

O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.
As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, ancora e cruz,
Nunca a água foi tão pura...
Quem a teria abençoado?
Nunca o pão de cada dia
Teve um gosto mais sagrado.
E o vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule...
Menos um lugar na mesa
Mais um nome na oração.
Da que consigo levara.
Cruz, ancora e coração
(E o vento vinha ventando...)
Daquela de cujas penas
Só os anjos saberão !
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Como é triste o desencanto 
daquele que a duro custo 
desabafa e diz em pranto: 
– Eu me cansei de ser justo! 
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Escada de Trovas de São Paulo /SP

FILEMON MARTINS
(Filemon Francisco Martins)

A lua

NO TOPO:
"É frio, a noite descansa;
O espaço é vasto e medonho.
De repente, a lua mansa
Surge nos braços de um sonho".
Humberto Del Maestro 
(Vitória - ES)

SUBINDO:
"Surge nos braços de um sonho"
numa beleza sem fim,
e a poesia que componho
fica mais perto de mim.

"De repente, a lua mansa"
aparece sorridente
dando vivas à esperança
e sorrindo à minha frente.

"O espaço é vasto e medonho"
quase sempre me dá medo,
que às vezes fico tristonho
pensando no teu segredo.

"É frio, a noite descansa"
e eu sonho com as estrelas
tão belas, ninguém alcança,
- só é permitido vê-las.
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Trova da Princesa dos Trovadores

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Já velhinho, sonha ainda,
mantendo o brilho no olhar,
que a juventude só finda,
quando é impossível sonhar!
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Hino de Ilha Bela/SP

Minha cidade meu torrão
Meu berço amado onde nasci
Tens meu amor, meu coração
Pertenço todo, todo a ti

Com que prazer, com que alegria
Eu te saúdo neste dia
Feliz me sinto Ó terra amada
Por ver-te assim glorificada

Oh Ilhabela tão faceira
Terra de sonhos tão querida
Tuas montanhas e palmeiras
Pôr todo o mundo és preferida

Oh Ilhabela gentil
Noiva do mar de encantos mil
Valioso adorno és do diadema
Que envolve o nome Brasil.
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Trova de Lisboa/Portugal

JORGE ALARCÃO POTIER
(1954 – 2019)

Quando olho pra mim eu rio,
 embora por dentro chore...
 sou como um poço vazio,
 casa aonde ninguém more.
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Poema do Rio de Janeiro/RJ

CASSIANO RICARDO
Cassiano Ricardo Leite Machado
São José dos Campos/SP, 1894 – 1974, Rio de Janeiro/RJ
 
Café Expresso

1
Café expresso — está escrito na porta.
Entro com muita pressa. Meio tonto,
por haver acordado tão cedo. . .
E pronto! parece um brinquedo. . .
cai o café na xícara pra gente
maquinalmente.

E eu sinto o gosto, o aroma, o sangue quente de
São Paulo
nesta pequena noite líquida e cheirosa
que é a minha xícara de café.
A minha xícara de café

é o resumo de todas as coisas que vi na fazenda e me
vêm à memória apagada. . .

Na minha memória anda um carro de bois a bater as
porteiras da estrada. . .
Na minha memória pousou um pinhé a gritar: crapinhé!
E passam uns homens
que levam às costas
jacás multicores
com grãos de café.

E piscam lá dentro, no fundo do meu coração,
uns olhos negros de cabocla a olhar pra mim
com seu vestido de alecrim e pés no chão.

E uma casinha cor de luar na tarde roxo-rosa. . .
Um cuitelinho verde sussurrando enfiando o bico na
catleia cor de sol que floriu no portão. . .

E o fazendeiro, calculando a safra do espigão. . .
Mas acima de tudo
aqueles olhos de veludo da cabocla maliciosa a olhar
pra mim
como dois grandes pingos de café
que me caíram dentro da alma
e me deixaram pensativo assim. . .

2
Mas eu não tenho tempo pra pensar nessas coisas!
Estou com pressa. Muita pressa.
A manhã já desceu do trigésimo andar
daquele arranha-céu colorido onde mora.
Ouço a vida gritando lá fora!
Duzentos réis, e saio. A rua é um vozerio.

Sobe e desce de gente que vai pras fábricas.

Pra-lá, pra-cá de automóveis. Buzinas. Letreiros.
Compro um jornal. "O Estado"! "O Diário Nacional"!
Levanto a gola do sobretudo, por causa do frio.
E lá me vou pro trabalho, pensando. . .

Ó meu São Paulo!
Ó minha uiara de cabelo vermelho!
Ó cidade dos homens que acordam mais cedo no mundo!
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Trova de Curitiba/PR

NEI GARCEZ

Deus fez tudo o que quisera,
fez o céu e fez as flores,
fez mais linda a primavera
e depois, os trovadores!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

Os médicos

Certo médico, chamado
De alcunha o Tanto-melhor,
Foi visitar um doente,
Do qual o Tanto-pior
Era médico assistente.

O último, sempre funesto,
Que o doente morreria
Altamente sustentava,
E o Tanto-melhor dizia
Que o pobre enfermo escapava.

Houve sobre o curativo
Mui grande contestação;
Um aplicava calmantes,
O outro armava uma questão.
Em favor dos irritantes.

No fim de tanto debate,
O enfermo a vida perdeu,
E o Tanto-pior clamou:
«Vejam qual de nós venceu!
Se o meu cálculo falhou.»

Tornou-lhe o Tanto-melhor,
Mostrando um vivo pesar:
«Pois eu sempre afirmarei
Que morreu por não tomar
Os remédios que indiquei.»

Enquanto a mim, se os tomasse,
Morrer havia igualmente;
Mas é desgraça maior
Cair um pobre doente
Nas mãos dum Tanto-pior.

(tradução: Curvo Semedo)

Recordando Velhas Canções (Gasparzinho)


Compositor: Renato Correa

Gasparzinho, fantasminha camarada
Que só quer com as pessoas conversar
Mas coitado do Gaspar só dá mancada
Quando aparece todos correm a gritar

Noutro dia, passeando na cidade
Gasparzinho numa festa entrou
Mas quando viram nosso alegre amiguinho
Todos correram e a festa se acabou.

Então o pobre do Gaspar que é tão bonzinho
Ficou sozinho, tão tristonho a chorar
Embora seja um fantasminha camarada
Não consegue perto de ninguém chegar. }bis
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Gasparzinho: O Fantasminha Incompreendido do Trio Esperança
A música 'Gasparzinho' do Trio Esperança narra a história de um fantasma amigável que enfrenta dificuldades em se relacionar com as pessoas devido ao medo que sua aparência provoca. Gasparzinho, o fantasminha camarada, deseja apenas conversar e fazer amigos, mas sua presença assusta todos ao seu redor, levando-os a fugir e deixando-o solitário. A letra destaca a ironia de sua situação: apesar de ser bondoso e inofensivo, ele é constantemente rejeitado e mal compreendido.

A canção utiliza a figura do fantasma, um ser tradicionalmente associado ao medo e ao sobrenatural, para explorar temas de solidão e exclusão social. Gasparzinho é um personagem que, apesar de suas boas intenções, não consegue se integrar à sociedade devido a preconceitos e estereótipos. A festa mencionada na letra simboliza um espaço de socialização e alegria, mas a chegada de Gasparzinho transforma o ambiente em um cenário de pânico e dispersão, evidenciando a dificuldade que ele enfrenta em ser aceito.

O Trio Esperança, conhecido por suas harmonias vocais e letras que muitas vezes abordam temas lúdicos e infantis, utiliza essa narrativa para transmitir uma mensagem sobre aceitação e empatia. A tristeza de Gasparzinho ao final da música reflete a dor da rejeição e a necessidade de compreensão mútua. A música, embora simples, carrega uma profundidade emocional que ressoa com qualquer pessoa que já se sentiu excluída ou incompreendida.

Aparecido Raimundo de Souza (Capela Mortuária)

OLÁ, POR GENTILEZA, com todo respeito, deixem-me apresentar a todos vocês. Pelo amor de Deus, não se assustem. Venho em paz! Não tenho nome de batismo, nem certidão de nascimento. Sou conhecida por todos como Capela Mortuária. No meu caso, uma Capela Mortuária de um cemitério de periferia. Vivo incrustada aqui nesse bairro pobre e humilde, cercada de pessoas boas e gentis que sabem o valor da vida e me aceitam como se eu fosse um ser de carne e osso que algum dia ajudará na preparação da última viagem para algum lugar que não sei exatamente onde é ou para que lado fica. Acredito, para alguns, eu seja uma figura esquisita, chata, pegajosa, rabugenta e inconstante. Para outros, obviamente eu represento a paz da serenidade e o atalho para o encontro com as almas que já desencarnaram e hoje descansam nos afagos do Poderoso 

Quero que compreendam, apesar da minha aparência, muito me alegro (sim, isso mesmo, muito me alegro) com a tristeza e a desgraça das pessoas. Como assim, “me alegro”? Tal coisa é possível?! Eu explico: vamos ver a Capela como um todo, indistintamente. Vou me descrever e situar entre as pessoas que orbitam ao meu redor. A Capela Mortuária é um local solitário, triste e impregnado de lágrimas e lembranças daqueles “mais chegados” que vieram dar o último adeus à uma personalidade querida que o Pai Maior chamou para morar junto com Ele lá no distante intransponível. Em face desse particular, eu me regozijo porque é nessas horas que as pessoas (as mais soberbas e de narizes em pé) se lembram que o outro lado sombrio e misterioso existe. Ninguém aparece por aqui para me dar bom dia. Ninguém sequer vislumbra que eu passo os dias dentro de um cemitério. 

Sei que a morte é uma perda dolorida e irreparável. Um elo que as pessoas não gostariam jamais de ver se romper e sentir essa contristação se estraçalhando na própria pele. Ainda mais quando o que vai viajar é um personagem querido e admirado por todos, com uma legião imensa de amigos e admiradores. Todavia, não fosse a minha presença (ainda que para alguns “macabra”), acredito que ninguém daria as caras só para ver se eu ainda estou no mesmo lugar. Me alegro, pois, porque quando sei que vai acontecer um velório, eu me regozijo. Nessa hora, vejo gente de toda espécie. Percebo a algazarra das crianças correndo, gritando, festejando a alegria da vida plena, e isso me tira do chão, aviva o meu “eu” interior. Me perdoem por dizer certas coisas, porém, se eu não existisse, se não houvesse uma Capela Mortuária, parem e reflitam, meus amigos e amigas, não seria realizado aquele rito fúnebre, menos ainda o derradeiro tchau ao defunto. 

Ele ficaria sem significado algum em exposição solitária, ou, no pior dos mundos, simplesmente não se alegraria em rever, pela última vez, as pessoas que faziam parte do seu dia a dia. Vamos aproveitar o ensejo e entender o meu significado pelo outro lado da moeda. É aqui nas minhas dependências que as pessoas (ainda que magoadas) se respeitam, trocam olhares amedrontados e, no fim, diante do inevitável, se abraçam, se beijam, trocam palavras carinhosas e, às vezes, até se perdoam. Aqui é onde todos prestam reverência, conforto, solidariedade, tudo num pacote destinado a proporcionar um elo de contemplação em harmonia diante da austeridade do adeus de uma pessoa querida. Em muitas culturas, eu desempenho um papel crucial no centro geográfico do luto, oferecendo um ambiente onde a comunidade pode se reunir para prestar suas últimas homenagens e refletir sobre a vida que o “de cujus” viveu enquanto se fazia entre nós. 

Esses espaços, meus prezados, são projetados para acolher os enlutados com dignidade e serenidade. A minha arquitetura, se pararem para observar com mais acuidade, é frequentemente caracterizada por sua simplicidade e elegância, buscando criar uma atmosfera de ataraxia (tranquilidade) que facilite a introspecção e o consolo. A iluminação é suave e o uso de cores neutras ajuda a transmitir uma vibração de leveza, enquanto os elementos decorativos, como flores e símbolos religiosos, adicionam um toque de deferência e veneração à lembrança daquele que embarcará na viagem sem volta. Além da sua função estética e funcional, eu, Capela Mortuária, me vejo como uma reclusão momentânea de profundo simbolismo. Sou, sem dúvida alguma, o ponto de encontro onde se materializa a aquiescência coletiva e se compartilham memórias, onde amigos e familiares podem se unir em um ato de solidariedade e empatia. 

É um recinto como qualquer outro, onde os envolvidos comem, bebem, contam piadas, vigiam atentamente a viúva, ou as filhas adolescentes, falam de aconchegos, e o silêncio reverente permite que os sentimentos da perda sejam expressos de todas as formas conhecidas. Cada irmã minha espalhada mundo afora pode refletir (e de fato reflete) a diversidade cultural e religiosa da comunidade em que se encontra. Em algumas tradições, minha clausura é adornada com ícones e imagens específicas, enquanto em outras, a simplicidade bucólica e a ausência de símbolos são preferidas para permitir uma abordagem mais universal do luto. Esses detalhes, embora variados, têm o objetivo comum, sempre, de honrar a memória do extinto e proporcionar, sobretudo, um ambiente neutro que solidifique o assédio irreversível de despedida. O meu papel, como Capela Mortuária, vai além de um simples local físico. 

Por fim, considero esse refúgio como um ninho acolhedor único, agradável e sofisticado, que ajuda a transformar o que se chama de “luto pesado” em uma experiência compartilhada e significativa. Aqui, nas minhas entranhas, os rituais de despedida são executados com o cuidado de preservar a dignidade do “de cujus” e apoiar os enlutados em sua jornada para a aceitação e a cura da alma frangalhada. Em resumo, eu, a Capela Mortuária, me vejo e me sinto como um teto alvissareiro de amplidão profunda e, logicamente, de importância emocional e cultural. Não sou apenas um lugar comum onde se realizam cerimônias funestas. Em absoluto. Me vejo acima das aparências, como um habitat que proporciona a reflexão para acalentar instantes inesquecíveis e de elevada melancolia. Ao oferecer este mimo de serenidade e comunhão, eu me engrandeço – acreditem – e me sinto alegre e realizada. Por mais que falem de mim, tenho a consciência objetiva de que desempenho um papel crucial na celebração da vida e na facilitação do trajeto envolvido no embarque do seu parente amado para os confins do Além-túmulo. Em vista de tudo o que eu disse, por favor, não me desprezem. Sou, a luz da verdade, uma espécie de mal necessário.

Fonte: Texto enviado pelo autor