sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Renato Frata (Noite sonhada)

À noite, às vezes, acordo pela metade e, só com um olho aberto, vagueio pensamentos, enquanto o outro, fechado, sonha de verdade. No maior silêncio, vejo coisas na penumbra ou imagino-as enquanto lhes dou forma. Deixo-as circulares, hexagonais, poligonais, multifoliadas, espicho-as para encolhê-las depois. São sombras que a noite põe dentro do quarto e que se mexem nas paredes conforme o vento bole nas plantas, lá fora. Desenham coisas belas e outras nem tanto, mas só o fato de desenharem para apagarem em seguida, voltando a fazê-lo no seguinte instante, já me basta.

Divirto-me. Nelas e com elas passo um tempo vivendo a madrugada desprezando vozes da noite que uivam ou tossem nos passos de passantes; a isso não há incômodo quando vêm da rua, e prezo ficar no quarto em meio a girassóis e roseiras que abrigam gnomos, seres especiais na visão da insónia.

Não saberia dizer de que cores são esses grotescos senhores porque o escuro, embora tenha nuanças aqui e ali, é no todo monocromático, mas digo que, se fossem verdes, azuis e amarelos, em nada mudariam o momento porque este é só meu, com direito de lhe dar a cor que imaginar.

Possuem tachos bojudos sobre pequenas fogueiras onde fazem doces. Muitos. De frutas coletadas na floresta. Ou seria num pomar? Não sei. Ou num jardim? Apenas que saem dali os melhores e mais saborosos doces de tudo quanto é variedade, e não os fazem sozinhos como alguém poderia pensar, recebem ajuda das fadas que dividem com eles o espaço dos girassóis e roseiras, entremeados por teias como casas.

Sim, posso dizer que vivem juntos e as fadas se vestem com roupa esvoaçante quase transparente, com aventais bordados à mão presos às cinturas e cabelos amarrados em coque. São lindas. E trabalham tanto, e produzem tanto que do louco sabor desses doces descobri um segredo - sei que segredo não se conta, mas esse merece ser espalhado como cocada antes de ser cortada, porque é de um doce especial: ao invés de os adoçarem com açúcar como todos os doces que se conhece, recebem o doce gostoso do arco-íris; e por essa ninguém esperava, mas é verdade. 

O arco-íris tem gosto de um bom sonho, não desses de padaria, mas de um sonho bem sonhado quando nele se realiza e se constrói a maior felicidade, mesmo que seja com um só olho aberto em plena madrugada, a brincar com sombras. E a voltar à cama antiga de colchão farfalhento, de palha, com os espíritos da noite vadiando sonhos que nos faziam crescer. Até que o sol, dando vozes de alegria aos pássaros, botava um farolete aceso na fresta com o intuito de nos acordar.

Sonhar acordado o ontem é viver duas vezes a mesma felicidade.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Vereda da Poesia = 120 =


Trova de
PADRE NEWTON PIMENTA
Juiz de Fora/MG

Sol das almas: tarde linda;
trás os montes, o sol desce...
mais um dia que se finda
na ternura de uma prece!
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Saber da água a sede 
Saber do pensamento a fonte
Saber do amor a dor
Saber da beleza a forma
Saber do sentir a razão 
Saber de ti a emoção 
Saber do abraço o alento
Saber da vida o propósito.
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Trova Humorística de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

“Cara-metade”, em verdade,
é uma expressão... trapaceira...
- a gente quer a metade
mas tem que “engolir”... inteira…
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Soneto de
FRANCISCO NEVES MACEDO
Natal/RN, 1948 – 2012

Desistir, Jamais!

Escalava a montanha novamente…
E, alpinista de amor enlouquecido,
chegaria a um lugar desconhecido,
jamais imaginado pela mente.

Eu sentia o infinito a um batente,
e, jamais eu teria desistido!
Mas, por forças humanas, impedido…
- E a chegada tão perto, um pouco à frente.

Um grande sonhador, não fica triste,
de alcançar o ideal, jamais desiste,
quer sempre ir mais à frente, e, se cansado…

Ele tenta vencer o seu limite,
buscando o inalcançável, ele admite,
que se jamais chegar… Terá tentado!
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Trova de
PADRE HENRIQUE PERBECHE
Ponta Grossa/PR (1918 – 2011)

Trovas? Umas são quais flores
a bailar pelas campinas;
Outras, rubis multicores,
forjadas no ardor das minas.
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Poema de 
MINERVA MARGARITA VILLARREAL
Montemorelos/México, 1957 – 2019, Monterrey/México

Não Tenho Com Quem Falar

O silêncio pesa, estala
O silêncio pensa
Então falarei contigo
Tu   que és o ser mais remoto
meu doce vazio
vem   apresenta-te
mesmo que não te veja
assim a forma seja negada para ti
para meus olhos de ti
minha percepção te anuncia
como um rio
que cresce de madrugada
e se desborda
A água escorre por debaixo da cama
a água leva rostos
e correntes
lírios e cédulas
e vestidos de noiva
depois tudo é sangue
Um rio com seu ninho de lobos
e nuvens de tormenta
ramos crepitando
cervos
e esta árvore
esta árvore que também és tu
muito além da noite
Há um vulto de pé
junto de minha cama
que emerge
das águas do ar.
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Trova Popular

A árvore do amor se planta
no centro do coração;
só a pode derrubar
o golpe da ingratidão.
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Soneto de
GERSON CÉSAR SOUZA
São Leopoldo/RS

Extremos

Somos assim, estranhamente extremos,
gostos opostos, sonhos discrepantes,
somos canção de acordes dissonantes,
há divergência em tudo o que queremos…

Só defendemos pontos concordantes
até entender que não nos entendemos,
e esclarecendo aquilo que dissemos,
dizemos sempre coisas conflitantes…

Tu, me querendo, dizes que eu não presto,
e ao te querer, sempre de ti reclamo,
mas tu me chamas, disfarçando o gesto,

e entre protestos eu também te chamo,
pois, mesmo amando tudo o que eu detesto,
tu és na vida aquilo que eu mais amo!
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Trova do
CÔNEGO BENEDITO VIEIRA TELLES
Bueno Brandão/MG, 1928 – 2022, Maringá/PR

Santo Antônio, agradecida,
por ouvir minha oração.
Casei-me na Aparecida,
sou feliz com Sebastião!
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Poema de
ARTUR DA TÁVOLA
(Paulo Alberto Moretzsohn Monteiro de Barros)
Rio de Janeiro/RJ,  1936 – 2008

Manhãs

Manhãs indefinidas,
O Cisne de Tuonela
Vagueia na alma.
O vento está enigmático.

Manhãs sem sol,
Nem definição de vida,
Esparsas lembranças,
Atiçam o burlar deveres.

Manhãs molengas,
Somos todo interioridades,
Lembranças do ignoto
Sem alegria ou tristeza.

Manhãs brumosas
O céu indefinido.
Nenhuma cor predomina
Na alma estapafúrdia.

Manhãs ganho-perdidas
Na falta de vontade
E um torpor com algo de delícia
Pacifica a imposição do poema

Manhãs serenas
Nem preguiça nem ações
Espaço da alma em preparo,
Sem recados, alusões ou deveres.

Manhãs sorrateiras,
O bem e o mal em silêncio.
Uma dor que alivia
O susto de existir.
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Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Já velho o Sansão estrila:
"Minha mulher tá caduca...
Mal cochilei e a Dalila
tosou a minha peruca!?
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Soneto de 
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895 – 1926

História Antiga

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi… um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era… Não sabia…

Desde então transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente…

Nunca mais nos falamos… vai distante…
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la…
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Trova de 
ADELIR COELHO MACHADO 
São Gonçalo/RJ, 1928 - 2003, Niterói/RJ 

Se a noite chega cansada
de caminhar sempre ao léu,
Deus dá vinhos de alvorada
na taça rubra do céu.
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Poema de
ÉLBEA PRISCILA DE SOUZA E SILVA
Piquete/SP, 1942 – 2023, Caçapava/SP

Cromo

Tro – pe – ga – men – te
sobe a ladeira,
bengala em punho,
passo de rola cansada.

Estanca… é hora
de atravessar a larga avenida.

Vermelho? Verde? Olha o sinal,
o sol é forte, seus olhos fracos,
o mundo, jovem, e ela… tão velha!

Ela vacila: – Será que há tempo?
Suor frio sob o sol quente…

- Vamos, vovó?
E a mão macia
Conduz a sua.

O sol sorriu ao ver a cena,
a tarde aplaudiu
e o pano se fecha
guardando o pequeno e imenso gesto
de cordialidade…
cordial… de coração…
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Trova Funerária Cigana

Brilhava em céu azulado...
Negra nuvem me toldou...
Por perder quem me seguia,
minh'alma aflita chorou.
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Soneto de 
BENI CARVALHO
Aracati/CE, 1886 – 1959, Rio de Janeiro/RJ

O cais

Quando te vejo, velho cais, em ruínas,
perscruto a tua vida secular:
— Manhãs radiosas em que te iluminas!
— Serenas noites de encantado luar!

Viste, partindo, ao canto das matinas,
velhas naus, brancas velas, pelo mar:
— Dourados sonhos, ilusões divinas,
ânsia de descobrir e conquistar!

Hoje, todo em tristeza, te esbarrondas;
mas uma voz oculta, dentre as ondas,
te diz: "A sorte não te foi tão má:

Terás, em ti, esta legenda impressa:
— Recolheste o sorrir do que regressa
e a saudade de quem não voltará".
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Trova de
GEORGINA RAMALHO
Rio de Janeiro/RJ

Quando eu era bem pequena
nossa mesa era uma festa!
Triste ver hoje esta cena
do passado nada resta...
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Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Procura-se um Papai Noel

Procura-se um Papai Noel bem brasileiro,
Com total verde-amarelo em seu visual.
Nada de indumentária vinda do estrangeiro,
Terá que mostrar sua origem tropical.

Procura-se um Papai Noel de tez morena,
Trazendo às crianças o sabor da surpresa,
Magia que o comércio retirou de cena
Na ânsia de vender, de acumular riqueza.

Procura-se um Papai Noel que abrace forte,
Um abraço bem ao modo tupiniquim...
Um gesto sem a frieza do Polo Norte,
Bem ao estilo dos que meu pai dava em mim.

Procura-se um Papai Noel, sorriso aberto,
Que a criança possa tocar, ver e curtir.
E que seu presente só seja descoberto
No exato momento em que o "Velhinho" partir.

Procura-se um Papai Noel de nossa gente.
Viajante de trenó e renas, jamais!
Nós almejamos alguém que esteja presente.
Muito nosso, sim!... Dos Pampas aos Seringais.
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

A renúncia corresponde, 
muita vez, a muito amar; 
como quando o Sol se esconde 
para que brilhe o luar! 
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Soneto de
OVÍDIO FERNÁNDEZ RIOS
Montevidéu/Uruguai, 1883 – 1963

Elogios

Teus olhos têm momentos desiguais;
sua luz ora é plácida, ora é ardente,
é o suave fluir da água corrente
ou o relampejar de dois punhais.

Estranhos pirilampos de savanas
brilhando nos meus céus tão desolados,
são dois negros diamantes resguardados
por tuas magníficas pestanas.

Únicos olhos que hão por mim chorado,
únicos olhos que hão interpretado
toda a minha alma lutadora e forte;

quero que sejam, com sua luz querida,
os únicos a rir em minha vida,
os únicos que chorem minha morte.
(Tradução de Othon Costa)
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Trova da
Princesa dos Trovadores
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Lembrando a ternura antiga,
minha saudade se exalta...
- Bendigo a penumbra amiga
que me esconde a tua falta!
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Hino de 
Mossoró/RN

I
Nas crônicas da gente brasileira,
Queremos um lugar pra Mossoró,
Cidade centenária e pioneira,
Desbravadora do ínvio Sertão;
Sofreram os seus filhos a canseira;
Viveram na esperança a vocação:

Mas assim se fez a sorte
Com inusitado amor;
A cruel gleba gleba domaram
E fluíram seu valor

Estribilho
Mossoró de Baraúnas a terra;
heroico sítio da Virgem Luzia;
Teu nome sonoro remonta a era
De índios valentes das margens do rio
Que longe nasce no Oeste bravio.

II
Lembramos hoje teus anos de glória:
Ousada foste sempre Mossoró;
Por ti começa, a senda da vitória
Na luta ao cangaceiro lampião;
Precursora exemplar da Pátria História
Em abolir a negra escravidão:

Nem a seca já temeste
Com seu infernal calor;
Encontraste a boa linfa
Que teu povo saciou

III
Bondosa se mostrou a Natureza
Em cumular de dons a Mossoró:
Das várzeas e do sol vem a riqueza,
O Sal, precioso sal, que o mar produz;
Nas matas da Caatinga ao estio acessa,
A nívea vela do Algodão reluz;

Vem a brisa do Nordeste,
Mensageira do alto Mar,
As carnaubeiras belas,
Sussurrantes, embalar

IV
Ao povo, a seus feitos, à cidade,
Cantemos este hino de louvor,
Legado de esperança à mocidade
Em grandiosos dias no porvir;
Moldado desta forma se retrate
Como em gesso fiel nosso sentir:

Seja nosso grande lema,
Construindo pela Paz,
A conquista do Progresso
Que feliz o povo faz
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Trova Humorística de 
JOSÉ MACHADO BORGES
Belo Horizonte/MG

Do peixe, como eu dizia, 
sem pretensão de iludi-los, 
somente a fotografia 
pesava mais de oito quilos!
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Poema de 
CASSIANO RICARDO
São José dos Campos/SP (1895 – 1974) Rio de Janeiro/RJ

O acusado

Quando eu nasci, já as lágrimas que eu havia
De chorar, me vinham de outros olhos.

Já o sangue que caminha em minhas veias pro futuro
Era um rio.

Quando eu nasci já as estrelas estavam em seus lugares
Definitivamente
Sem que eu lhes pudesse, ao menos, pedir que influíssem
Desta ou daquela forma, em meu destino.

Eu era o irmão de tudo: ainda agora sinto a nostalgia
Do azul severo, dramático e unânime.
Sal - parentesco da água do oceano com a dos meus olhos,
Na explicação da minha origem.

Quando eu nasci, já havia o signo do zodíaco.

Só, o meu rosto, este meu frágil rosto é que não
Quando eu nasci.

Este rosto que é meti, mas não por causa dos retratos
Ou dos espelhos.

Este rosto que é meu, porque é nele
Que o destino me dói como uma bofetada.
Porque nele estou nu, originalmente.
Porque tudo o que faço se parece comigo.
Porque é com ele que entro no espetáculo.
Porque os pássaros fogem de mim, se o descubro
Ou vêm pousar em mim quando eu o escondo.
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Trova de 
GLADYS BRAVO CONTRERAS
Chile

Para decirnos te amo,
nos fuimos creando idiomas,
el universo en un ramo
de sonrisas y palomas.*
* * * * * * * * * * * * * * * 
* sonrisas = sorrisos.
palomas = pombas
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O faceto* e os peixes

À mesa dum fidalgo
Um faceto jantava.
Graúdos peixes servem aos convivas;
A ele, um mui pequeno.
«Esperem, que eu lhes conto!» — diz consigo;
E, pegando no peixe,
Finge baixo falar-lhe, — e de resposta
Parece estar à espera,
Pasmam todos, perguntam
Da charada o conceito.
«É que receio, —
Diz então o faceto, — que um amigo,
De infância um companheiro, naufragasse
Da Índia na carreira.
Informar-me tentei deste peixinho;
Porém diz-me que sendo ainda tão novo
Nada pode contar-me; que os mais velhos
Decerto me esclarecem.
Permitam, pois, senhores, que interrogue
Algum dos mais graúdos!»
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
* faceto = brincalhão, humorístico, folgazão

Silmar Bohrer (Croniquinha) 121

Surge no horizonte, na lonjura do mar. Fumacinha quase imperceptível rumando o continente. E corre, e avança, incontinenti . . . 

Logo parece nuvem crescendo, mais perto, chegando ao longo da costa, andança imanente, presente, sobre as ondas. 

E invade, encobre areias, árvores, casas, pássaros. Pessoas são vultos serenos, viventes ausentes flutuando em auréolas. 

Sentimentos, mimese, emanações, ouve-se sussuros de Cecília, poemas de Drummond, odes de Bandeira, fluências de Alphonsus (o Guimarães), gotículas borrifadas de poesia. 

O que seria ? 

A névoa. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Folhas ao vento)


(valsa, 1934) 

Compositor: Milton Amaral

Tão mimosa
Graciosa e angelical
Nasceu em seu jardim uma linda flor
Naquela noite santa de Natal
No momento que juramos eterno amor
No entanto você tudo esqueceu
Trocando meu coração por outro ser
E a flor, ao ver a sua ingratidão
Murchou e em prantos se desfolhou
Até morrer.

Folhas ao vento
Já que o destino assim nos transformou
Envelheci
Na lucidez da imensa provação
Num labirinto
De tristeza e saudade
Num relicário, a cruci dor da ingratidão

Folhas ao vento
Quando a bonança veio me abraçar
Num desalento
Aquele amor fui encontrar
Numa igrejinha, tendo ao colo filhos seus
Pedindo uma esmola
Pelo amor de Deus!

A Dor da Ingratidão e o Passar do Tempo em 'Folhas ao Vento'
A música 'Folhas ao Vento' é uma obra que explora profundamente os temas da ingratidão, do amor perdido e do envelhecimento. A letra começa com uma imagem poética e angelical de uma flor que nasce em um jardim na noite de Natal, simbolizando um amor puro e promissor. No entanto, essa promessa de amor eterno é quebrada quando a pessoa amada troca o coração do narrador por outro, levando a flor a murchar e morrer em um ato de ingratidão.

O refrão 'Folhas ao vento' é uma metáfora poderosa que representa a fragilidade e a transitoriedade da vida e dos sentimentos. O narrador se vê envelhecendo, preso em um labirinto de tristeza e saudade, carregando a dor da ingratidão como um fardo pesado. A imagem das folhas ao vento sugere que, assim como as folhas são levadas pelo vento sem rumo, o narrador se sente perdido e desamparado diante da traição e do abandono.

No final da música, há um encontro inesperado e doloroso. O narrador encontra seu antigo amor em uma situação de desespero, pedindo esmola com os filhos em uma igrejinha. Esse momento de desalento revela a ironia do destino e a crueldade das circunstâncias, mostrando que o amor que um dia foi puro e promissor agora se encontra em ruínas. A música, portanto, é uma reflexão melancólica sobre a passagem do tempo, a fragilidade dos sentimentos humanos e a inevitabilidade da mudança.

Fonte: 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Manoel Cavalcante (Trovas em Preto & Branco)


1
A noite sai do espetáculo,
inerme, discreta e estranha;
o sol por trás de um pináculo
eriça a luz na montanha… (…)
2
A trova levou-me aos céus,
pois entre joios e trigos
perdi pequenos troféus
mas ganhei grandes amigos.
3
A velhice, em tom sarcástico,
gosta de mostrar que sou
restos de sonhos de plástico
que o trem do tempo esmagou.
4
Covarde, pobre e mesquinho;
quem durante a caminhada
ante às pedras do caminho,
decreta o final da estrada.
5
É duro olhar para o lado
em meio ao redemoinho,
no vento mais conturbado
e ver… Eu estou sozinho!
6
– Já passaste, Primavera?!
Nenhuma flor me marcou!
Querendo ser quem eu era,
nunca mais fui quem eu sou…
7
Junta-se o poeta aos loucos;
um diário vivo em versos,
expressando como poucos
os sentimentos diversos.
8
Na madrugada sem fim,
a saudade, desvairada,
acende um confronto em mim
entre um ninguém e um nada!…
9
Na realidade, o pecado
que me faz vagar a esmo,
foi na vida ter amado
outro alguém mais que a mim mesmo!
10
No trem, a vida é mesquinha.
Pare! Não tema empecilhos.
Não há quem ande na linha
neste planeta sem trilhos.
11
Pela dor da decepção
eu já me recuperei,
só falta a devolução
de um amor que eu te entreguei!
12
Se foi feitiço ou segredo,
pra mim não adianta, é tarde!
Quando alguém ama com medo,
esculpe um amor covarde!

AS TROVAS DE MANOEL CAVALCANTE EM PRETO E BRANCO
por José Feldman

As Trovas, suas Temáticas e Relações om Poetas Brasileiros e Estrangeiros  de diversas épocas

Trova 1. A noite sai do espetáculo
Temática: Transitoriedade e Melancolia
A noite, representando o fim de um ciclo, é descrita como discreta e estranha. O sol que surge simboliza renascimento, mas a forma como é apresentado sugere um contraste entre a beleza do novo dia e a saudade da noite que se vai.

Cecília Meireles (1901 – 1964): a transitoriedade e a melancolia estão presentes em sua obra, que frequentemente explora o tempo e a passagem das coisas.

Emily Dickinson (EUA, 1830 – 1886): também aborda a dualidade entre luz e escuridão, refletindo sobre a vida e a morte em seus poemas.

Trova 2. A trova levou-me aos céus
Temática: Amizade e Alegria
Aqui, o eu lírico reflete sobre a jornada da vida, onde a busca por pequenos troféus (conquistas) é superada pela formação de grandes amizades. Isso enfatiza a importância das conexões humanas sobre as realizações materiais.

Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987): a amizade e os laços humanos são temas centrais em sua obra, especialmente em como as relações moldam nossa vida. 

Walt Whitman (EUA, 1819 – 1882): celebra a conexão humana e a amizade em sua obra, enfatizando a importância das relações na experiência humana.

Trova 3. A velhice, em tom sarcástico
Temática: Envelhecimento e Desilusão
A velhice é tratada de maneira crítica, onde o trovador se vê como restos de sonhos não realizados. A metáfora do “trem do tempo” sugere que os sonhos foram esmagados pela passagem inevitável do tempo, trazendo um tom de resignação.

Adélia Prado (1935): explora a passagem do tempo e a sabedoria que vem da experiência, muitas vezes com um tom irônico.

Robert Frost (EUA, 1874 – 1963): também aborda a inevitabilidade do envelhecimento e a reflexão sobre sonhos perdidos.

Trova 4. Covarde, pobre e mesquinho
Temática: Medo e Conformismo
Critica aqueles que, diante das dificuldades, desistem da jornada. A metáfora das “pedras do caminho” representa os obstáculos da vida, e a entrega à mediocridade é vista como uma covardia.

Alphonsus de Guimaraens (1870 – 1921): A luta contra a mediocridade e a busca por significado na vida são temas que aparecem em sua obra.

T.S. Eliot (EUA, 1888 – 1965, Inglaterra): frequentemente examina a condição humana e a luta contra o tédio e a estagnação. A passagem do tempo e suas implicações são temas centrais nas obras de ambos. Enquanto Cavalcante lida com a melancolia da transitoriedade, Eliot, em poemas como "The Love Song of J. Alfred Prufrock", reflete sobre a hesitação e o arrependimento.

Trova 5. É duro olhar para o lado
Temática: Solidão e Crise Interior
A solidão é enfatizada em um momento de turbulência. O eu lírico se sente isolado, mesmo no meio da confusão, refletindo a dificuldade de encontrar apoio ou conexão em momentos difíceis.

Augusto dos Anjos (1884 – 1914): a solidão e a crise existencial estão presentes em sua poesia, refletindo uma visão sombria da condição humana.

Franz Kafka (Tchecoslováquia, 1883 – 1924): a solidão e a alienação em meio à sociedade são temas centrais na obra de Kafka, que retrata a luta interna do indivíduo.

Trova 6. – Já passaste, Primavera?!
Temática: Perda e Nostalgia
A Primavera simboliza renovação e esperança, e a ausência de flores sugere uma perda de vitalidade e alegria. Lamenta a transformação que o afastou de sua essência, expressando um desejo de retornar ao que era.

Vinícius de Moraes (1913 – 1980): a nostalgia e a busca por momentos perdidos são temas recorrentes em sua poesia.

Pablo Neruda (Chile, 1904 – 1973): trata da perda e da saudade em sua obra, especialmente em relação ao amor e à passagem do tempo. Ambos exploram o amor com intensidade, capturando a paixão e a dor que ela pode trazer. Neruda, em sua poesia, aborda o amor de maneira épica, enquanto Cavalcante traz uma abordagem mais intimista e reflexiva.

Trova 7. Junta-se o poeta aos loucos
Temática: Criatividade e Loucura
A relação entre poesia e loucura é explorada, onde o poeta se une aos que sentem intensamente. A escrita é apresentada como uma forma de expressar sentimentos complexos, revelando a profundidade da experiência humana.

Manuel Bandeira (1886 – 1968): a relação entre loucura e poesia é explorada em sua obra, refletindo a intensidade das emoções.

Sylvia Plath (EUA, 1932 – 1963): ambos lidam com questões existenciais e a luta interna do ser humano. Plath, com sua abordagem confessional, reflete sobre a angústia e a identidade, algo que também ressoa nas trovas de Cavalcante.

Trova 8. Na madrugada sem fim
Temática: Saudade e Conflito Interior
A madrugada representa um estado de introspecção e solidão. Cavalcante enfrenta um confronto interno entre a sensação de ser “ninguém” e “nada”, refletindo um estado de desespero e busca por significado.

Clarice Lispector (1920 – 1977): a introspecção e a busca pelo sentido da vida são temas comuns em sua prosa e poesia.

Rainer Maria Rilke (Áustria, 1975 – 1926): a solidão é uma preocupação central em ambas as obras. Rilke, conhecido por suas meditações sobre a existência e a busca por significado, ecoa os sentimentos de introspecção que permeiam as trovas de Cavalcante.

Trova 9. Na realidade, o pecado
Temática: Amor e Autodescoberta
Reconhece que amar outra pessoa mais do que a si mesmo é um erro que leva à desorientação. Essa descoberta é dolorosa, enfatizando a necessidade de amor-próprio como fundamental para a felicidade.

Álvaro de Campos (Portugal, 1890 – 1935) : (heteronímia de Fernando Pessoa) a luta interna entre o amor e o amor-próprio é uma questão que aborda com complexidade em sua obra.

John Keats (Inglaterra, 1795 – 1821): explora a ideia de amor e sacrifício, refletindo sobre a busca por uma conexão profunda. A busca por significado em meio à dor e a beleza da vida são temas comuns. Keats, com sua sensibilidade romântica, compartilha essa busca existencial com Cavalcante.

Trova 10. No trem, a vida é mesquinha
Temática: Obstáculos e Perseverança
A metáfora do trem sugere que a vida tem seu caminho, mas as dificuldades são inevitáveis. O poeta encoraja a não temer os empecilhos, reconhecendo que todos enfrentam desafios em sua jornada.

Mário Quintana (1906 – 1994): reflete sobre a vida e suas dificuldades, sempre com um tom leve e filosófico. A valorização das pequenas coisas da vida e a reflexão sobre o tempo são comuns nas obras de ambos.

Bertolt Brecht (Alemanha, 1898 – 1956): aborda a luta e a resistência frente às adversidades da vida, refletindo sobre a condição humana.

Trova 11. Pela dor da decepção
Temática: Recuperação e Esperança
A dor da decepção é reconhecida, mas expressa um desejo de recuperação. A devolução do amor perdido sugere que a superação é possível, mas exige um retorno ao que foi dado.

Hilda Hilst (1930 – 2004): a dor do amor e a busca por recuperação emocional são temas centrais em sua obra intensa.

John Milton (Inglaterra, 1608 – 1674): explora temas de perda e redenção, especialmente em sua obra mais famosa, "Paraíso Perdido".

Trova 12. Se foi feitiço ou segredo
Temática: Amor e Vulnerabilidade
O trovador reflete sobre o amor vivido com medo, que resulta em uma relação covarde. A ideia de que o amor deve ser destemido é central, sugerindo que a autenticidade é essencial para um amor verdadeiro.

Lya Luft (1938 – 2021): frequentemente aborda o amor e a vulnerabilidade, refletindo sobre as complexidades das relações.

Anne Sexton (EUA, 1928 – 1974): trata do amor e da vulnerabilidade em sua poesia, explorando os medos e as inseguranças que o cercam.

CONCLUSÃO

As trovas de Manoel Cavalcante é marcada por uma riqueza temática que reflete a complexidade da experiência humana. Suas trovas abordam sentimentos universais como amor, solidão, passagem do tempo, e a busca por significado, sempre com um tom introspectivo e lírico. Essa profundidade emocional se alinha a obras de poetas brasileiros e estrangeiros que também exploram essas questões fundamentais.

Cavalcante celebra a beleza e a dor do amor, semelhante a poetas como Vinícius de Moraes, que exalta a paixão em suas várias facetas. A intersecção com Walt Whitman é notável, pois ambos valorizam a conexão humana, enfatizando a importância das relações.

A solidão é um tema recorrente nas trovas, refletindo-se em poetas como Augusto dos Anjos e Fernando Pessoa (em sua heteronímia Álvaro de Campos). Tanto o trovador quanto esses poetas exploram a alienação e a busca por identidade em um mundo muitas vezes indiferente.

A reflexão sobre o tempo e a inevitabilidade da morte permeia a obra de Cavalcante, assim como na poesia de Cecília Meireles e Adélia Prado. Essas vozes também lidam com a transitoriedade da vida, trazendo uma sensibilidade lírica que ressoa com a experiência humana.

O trovador tem um olhar atento ao cotidiano, semelhante a poetas como Mário Quintana, que encontram beleza nas pequenas coisas. Essa apreciação pela simplicidade e pela vida comum é um traço unificador entre eles.

Suas trovas muitas vezes abordam questões existenciais, alinhando-se com a obra de Hilda Hilst e Anne Sexton. Ambos exploram a condição humana e os dilemas internos, refletindo sobre a dor e a busca por significado.

As temáticas de Manoel Cavalcante estabelecem um diálogo rico com a poesia de diversos autores, tanto brasileiros quanto estrangeiros. Sua habilidade de capturar a essência da experiência humana ressoa com a obra de poetas que também buscam entender o amor, a solidão, e a passagem do tempo. Essa interconexão entre diferentes vozes poéticas enriquece a literatura, mostrando que, apesar das particularidades culturais e temporais, as emoções e questões existenciais são universais. Assim, a poesia de Cavalcante não apenas dialoga com outros poetas, mas também se torna um veículo para a reflexão sobre a condição humana, perpetuando sua relevância na tradição literária.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.