sábado, 21 de dezembro de 2024

José Feldman (O sol dentro de mim)

Texto construído tendo por base a trova de Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)

Se vejo o mundo às escuras,
embarco em meu sonho...e assim,
subo a escada e, nas alturas,
acendo um sol para mim!

Em uma manhã nublada, na pequena cidade de Luzemar, onde o céu parecia sempre um pouco mais cinza do que o desejado, um homem chamado Vicente caminhava pelas ruas, refletindo sobre a vida. Ele sempre fora um sonhador, alguém que via o mundo através de uma lente cheia de cores, mesmo quando tudo ao seu redor parecia desbotado. Vicente acreditava que, por trás das nuvens, havia sempre um sol esperando para brilhar.

Aquela manhã, como muitas outras, começou com uma sensação de opressão no peito. O dia estava triste, e os habitantes da cidade pareciam carregar um peso invisível. As crianças brincavam, mas suas risadas não tinham o mesmo brilho de antes. Os adultos passavam apressados, os rostos fechados e os olhos perdidos em suas preocupações. 

Vicente, porém, tinha um talento especial: ele conseguia transformar a escuridão em luz. E foi assim que, ao passar por uma escada que levava ao parque da cidade, decidiu que era hora de acender seu próprio sol.

Ele subiu os degraus com a determinação de quem sabe que há algo maior à sua espera. A escada, antiga e cheia de histórias, parecia resistir ao tempo. Cada passo era como uma pequena vitória contra a melancolia que o cercava. 

Chegando ao topo, Vicente olhou ao redor: o parque, mesmo sob o céu nublado, tinha uma beleza particular. As árvores dançavam suavemente ao vento e as flores, apesar da falta de sol, exalavam um perfume doce.

Vicente respirou fundo e fechou os olhos. Ele se lembrou da trova que costumava de sua mãe: “Se vejo o mundo às escuras, embarco em meu sonho... e assim, subo a escada e, nas alturas, acendo um sol para mim!” Essas palavras ressoaram em sua mente, como um mantra que o encorajava a buscar a luz dentro de si.

Decidido a espalhar essa luz, Vicente começou a cantar. A princípio, sua voz era suave, quase como um sussurro. Mas, à medida que se sentia mais à vontade, sua canção se transformou em um hino de alegria. 

Ele cantava sobre sonhos, sobre a beleza do mundo e sobre a esperança que sempre renasce, mesmo nas horas mais sombrias. A melodia flutuava pelo ar, como uma brisa leve, e aos poucos, começou a atrair a atenção dos passantes.

As pessoas pararam e começaram a olhar. Um a um, foram se juntando a Vicente. Algumas crianças, curiosas, se aproximaram e começaram a dançar. Os adultos, inicialmente hesitantes, não demoraram a se deixar levar pela música. A atmosfera pesada que envolvia Luzemar começou a dissipar-se. Os rostos, antes fechados, foram se iluminando, e os olhos ganharam um brilho que há muito não se via.

Vicente percebeu que havia acendido algo muito maior do que um simples sol. Ele havia reacendido a chama da comunidade. As pessoas começaram a compartilhar histórias, risadas e até mesmo suas preocupações. O parque, que antes parecia um lugar esquecido, transformou-se em um espaço de união.

Enquanto a tarde avançava, o céu nublado começou a se abrir. Raios de sol começaram a penetrar as nuvens, como se o próprio universo estivesse respondendo àquela explosão de alegria. Vicente, com um sorriso no rosto, olhou para cima e viu que, embora o mundo estivesse às escuras, havia sempre uma luz a ser encontrada, mesmo que fosse dentro de nós mesmos.

O dia que começou triste se transformou em uma celebração da vida. Vicente, com sua voz e seu sonho, acendeu um sol que não só iluminou seu coração, mas também trouxe calor e vida a todos ao seu redor. Naquele momento, ele percebeu que a verdadeira magia não estava em mudar o mundo, mas em inspirar outros a encontrar a luz que já existia dentro deles.

Ao final da tarde, enquanto o sol se punha no horizonte, Vicente desceu a escada com um novo propósito. Ele sabia que as nuvens poderiam voltar, que os dias sombrios fariam parte da vida. Mas, com a experiência daquela tarde, ele também aprendeu que, mesmo nas horas mais difíceis, sempre poderia subir a escada do sonho e acender um sol para si e para os outros.

E assim, entre risos e canções, Luzemar voltou a brilhar, não apenas com a luz do sol físico, mas com a luz da esperança e da união. Vicente, agora mais do que um sonhador, tornou-se um verdadeiro farol para sua comunidade, mostrando que, às vezes, tudo o que precisamos é de coragem para subir as escadas e acender nossos próprios sóis.

Fonte:s 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
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Arthur Thomaz (Filosofando com Cronos)


Durante minha habitual conversa com as plantas e animais, eis que, surpreendentemente, surge Cronos.

O que poderia trazer um Deus tão poderoso ao convívio de um simples mortal? 

Perguntei-me.

Antes que eu o saudasse foi logo dizendo que tinha lido meu livro e percebera muitas incertezas minhas sobre determinados temas. 

Como se movimentava incessantemente, cometi o equívoco em pedir para ele parar um pouco, a fim de que eu pudesse prescrutar seu olhar.

Sorrindo, me alertou que o tempo aos humanos só para com a morte.

Pedi-lhe, então, que continuasse a movimentar-se sem cessar.

Para me redimir da tolice comentei que a meu ver, ele era o maior dos deuses por ter existido desde os primórdios. 

Retrucou, mansamente, dizendo que os gregos erraram em afirmar que ele só começara a existir depois do Caos. Obviamente, o tempo também existira durante esse período.

Concordei e disse a ele que agradecia o fato de ter vindo sem a assustadora foice com que era retratado.

Ignorou meu comentário e prosseguiu dizendo que os mortais, desde o início, tentaram rotulá-lo, aplicando fórmulas e mensurando-o em século, ano, mês, dia, hora, minuto e até segundos, numa clara tentativa de imputar a ele o conceito de transitoriedade. Ou seja, impondo-me um início, meio e fim. 

Completou ele afirmando que ninguém aprisiona o tempo.

Com um tom debochado, disse que eu enumerasse a quantidade de filósofos e pensadores que tentaram defini-lo sem sucesso elaborando muitas fantasias a respeito.

Eu disse que algumas vezes também havia tentado infrutiferamente, materializá-lo. 

Riu e continuou contando que durante muito tempo no planeta Terra vagara sozinho, sem nenhuma forma de vida como companhia, o que o levou quase à loucura, e que hoje procura seres excêntricos para dialogar.

Tomei isso como um elogio e perguntei como ele se definia.

“Amigo, eu sou exatamente o seu pensamento a meu respeito, conceito este que só perdurará enquanto você viver”, respondeu-me, com muita convicção. 

Pedi que comentasse a expressão muito usada entre os humanos "até o fim dos tempos". Sorriu e classificou-a de esdrúxula. Não houve início nem haverá fim, os que tentam me conter ou modificar, passarão e eu continuarei .

Ainda havia mais algumas dúvidas, mas brincou citando outra frase muito utilizada "o tempo voa". Sorriu, envolveu-me em um abraço e partiu, prometendo voltar assim que tivesse um "tempinho".

Desapareceu com uma demorada gargalhada.

Passei mais alguns momentos com as plantas e levei muito tempo refletindo a respeito do que conversamos.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, úblicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes: 
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Volume 2. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. Enviado pelo autor 
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Geraldo Pereira (Comadre Fulozinha)

Tenho me ocupado, ultimamente, em refletir a propósito do que se vem chamando qualidade de vida, sobretudo a respeito do esforço de certos setores em oferecer à criatura um desejado bem-estar, cuja expressão envolve a saúde física e a tranquilidade de espírito. Indago-me, especialmente, se a classe média, tão exigente com o consumo, sente-se melhor que a gente simples, a qual nos interiores do País, por exemplo, pode ter acesso ao mínimo necessário à sobrevivência e até que ponto se deve, realmente, intervir na vida de quem se sente em paz, acenando com bens materiais e outros ganhos próprios daqueles que Gilberto Dupas considera os “incluídos” ou mesmo os “ainda incluídos”. A televisão faz isso!

Cuido em observar os modos de vida dos que no dia-a-dia do existir humano não ostentam: os modestos ou os singelos. Não me refiro aos paupérrimos e aos miseráveis, aos “excluídos”, afinal. Ora, será que o Sr. Zezinho, lá de Chã de Cruz, tem uma qualidade de vida inferior aos habitantes urbanos, postos em moradias verticais e trancafiados o tempo todo? Creio que não! Tenho visto a sua satisfação d’alma em sair de casa e de bicicleta chegar ao condomínio da pequena burguesia, em Aldeia, atendendo um aqui e outro acolá, juntando essa féria extra ao que percebe por mês como salário! Não deixa de sorrir e de comentar com humor os fatos corriqueiros. Joga futebol e toma a sua caipirinha, de leve!

Ignoro os seus horizontes de futuro, mas nunca ouvi dele palavra que fosse assemelhada àquelas dos interesses dos meus convivas. Um carro novo ou uma bicicleta do último modelo, um equipamento de vídeo, uma viagem pra fora de seus domínios, mesmo que seja à Carpina. Não enjeita, porém, um piquenique a Natal, pelo passeio ou pela bagunça no ônibus de aluguel. Por certo, nunca ouviu falar nas excursões à Europa, para ver os museus de Paris e os parques de Londres. Vive assim, pra lá e pra cá, entre a Chã e o condomínio. 

Quase nunca vai a Vera Cruz ou a Tabatinga. Assistiu ao espetáculo do circo, porque a trupe instalou-se nas cercanias de sua casa e a entrada custava um real, nada mais.

Assim com a Dona Cecília, vizinha, quase, do Zezinho, que fez do terreiro de casa uma sementeira e vive do cultivo das flores, das orquídeas bem cuidadas e dos girassóis viçosos, de bromélias imunes ao Aedes aegypti e das avencas verdes e pendentes. Aprendeu tudo isso no colégio de freiras em que estudou e se vai a Garanhuns, vez ou outra, é para comprar novas mudas, diferentes, que se acrescentam ao seu jardim. Sustenta a família, mas já tem os filhos empregados, trabalhando para os que passam os finais de semana fazendo um churrasco com carne importada e tomando o whisky das bandas escocesas. Não suporta o inteiramente urbano e detesta, como expressou, a avenida Agamenon Magalhães.

Compare o leitor a vida dessa gente com a dos remediados pela sorte, entregues ao labor mal o sol desponta, voltando ou não voltando para almoçar e retomando jornadas, de trabalho e mais trabalho. Recepções e formalidades, no trajar e no tratar, cumprimentos forçados e vênias inúteis. Quando a semana finda, uma ida ao “shopping”, às compras ou a passeio, para admirar vitrines ou se empanturrar nas praças de alimentação. Mas, há os que se contaminam com os males da civilização, como aquela dedicada secretária dos afazeres domésticos. Máquina de lavar roupas e vídeo, conjunto estofado bem forrado e celular. Resultado, carnês e mais carnês a juros de mercado! Agiotas e assemelhados na porta!

E o Sr. Zezinho, quando disse que um computador poderia ser posto à sua disposição na portaria do conjunto habitacional, conformou-se com a justificativa de que a sua cultura seria esmagada.

Um homem crente nas coisas da natureza, cuja crença ultrapassa a flora e a fauna, para chegar às lendas, como a da “Comadre Fulozinha”, não pode e não deve ocupar-se de um teclado ou mexer num mouse! O que seria de Dona Cecília, com um banco de dados informatizado das plantas de seu quintal?

Entende-se que há limites que não podem e não devem ser transpostos e há horizontes diferentes para uns e para outros. Mas, compreende-se que muitos estão largados pela sociedade e é preciso integrar essa massa desprezada ao exercício mavioso da vida, do existir humano.
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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fonte:
Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

Célio Simões* (O nosso português de cada dia) “Pensando com meus botões”

Você já deve ter ouvido diversas frases envolvendo esta expressão, como por exemplo, quando está conjeturando alguma ação ou providência para evitar, remediar, solucionar ou encaminhar determinado assunto ou situação familiar preocupante. Como disse o artista popular, “de repente, eu estava aqui, refletindo, pensando com meus botões, quando reparei que estava só de bermuda e camiseta, sem nenhum botão”. O que foi que aconteceu? Parei de pensar…

Na prática não é bem assim, pois ninguém fica obliterado mentalmente, por falta de botões em sua indumentária. O festejado cantor e compositor Gilberto Gil tangenciou o tema na música “Cérebro Eletrônico”, cuja letra dá claro indício da associação de ideias que instintivamente é feita por quem pensa ou vê outrem pensando: “O cérebro eletrônico faz tudo/Faz quase tudo/Faz quase tudo/ Mas ele é mudo // O cérebro eletrônico comanda/ Manda e desmanda/ Ele é quem manda/ Mas ele não anda // Só eu posso pensar/ Se Deus existe/ Só eu posso chorar/ Quando estou triste/ Só eu cá com meus botões/ De carne e osso/ Eu falo e ouço. Hum…”

Sem eiva de dúvidas, “PENSAR COM MEUS BOTÕES”, no Brasil e em Portugal, significa um momento de introspecção, o ato de pensar consigo próprio, que envolve sentimentos da própria mente de quem pensa. Logicamente, os botões não pensam nem possuem a faculdade de aconselhar alguém, sendo essa figura de linguagem representativa do estado d’alma de cada qual, em determinado momento imerso em seus mais recônditos pensamentos. No dizer do genial ficcionista e escritor paraense Ildefonso Guimarães, saudoso membro da Academia Paraense de Letras, isso ocorre quando o indivíduo está entregue às suas próprias “cavaqueações”.

Sabemos assim que a expressão “PENSANDO COM MEUS BOTÕES” significa refletir, pensar sozinho. Ou seja, indica que você está raciocinando ou, o que não é raro ser constatado, falando consigo próprio até em locais públicos, se bem que atualmente a cena pode ser vista com frequência de vez que uns e outros andam falando em qualquer lugar, não propriamente consigo, mas com terceiros através dos inseparáveis celulares, escondido nas vestes para escapar das abordagens dos “amigos do alheio”. Mas afinal, de onde surgiu essa expressão? No território livre da Internet, encontramos algumas possíveis explicações, embora nem todas façam muito sentido.

Uma delas alude que “pensar com meus botões” significa que é a própria pessoa olhando para dentro de si, para finalmente escolher a solução que lhe parece acertada para determinado caso. Outra diz que “pensando com meus botões” originou-se do fato de que os botões servem para fechar e esconder a intimidade das pessoas, ou seja, o seu íntimo. Então, pensar com os botões seria pensar sozinho, sem expor ou compartilhar seus pensamentos com ninguém, sem submeter ao escrutínio alheio sua privacidade.

Por fim, uma explicação mais histórica diz que, antigamente, as roupas eram recheadas de botões. Desde que Catarina de Médici, nobre italiana que se tornou rainha consorte em França de 1547 até 1559, como esposa do rei Henrique II inventou a calcinha, o Século XVIII encontrou as mulheres usando suas peças íntimas ainda de algodão, fechadas lateralmente com muitos botões, sendo que em lugares remotos eles eram fabricados de ossos de animais, que graças ao tirocínio das modistas, evoluíram até os dias atuais para o sensual fio dental, agora encontrado em qualquer lugar onde exista um comércio de roupa feminina. Daí presumir-se que antigamente, estando elas sozinhas em seus aposentos, abrindo ou fechando os botões de seu vestuário mais íntimo, aproveitavam aquele momento para pensar, entregando-se às suas mais profundas, secretas e preciosas reflexões sobre suas vidas.
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(*) Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
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sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

José Feldman (O lamento da terra)

Texto construído tendo por base a trova de José Lucas de Barros (Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN)

Viram cinza os verdes braços
de árvores tão bem formadas
e a terra morre aos pedaços
por onde vão as queimadas!

Na pequena cidade de Verdeluz, onde a natureza sempre foi a protagonista, o verde das árvores e o canto dos pássaros formavam uma sinfonia que encantava a todos. As colinas eram cobertas por florestas densas, e os rios serpenteavam alegremente, trazendo vida e frescor ao ambiente. No entanto, nos últimos anos, algo sombrio começou a se espalhar por aquelas terras outrora vibrantes.

Os moradores de Verdeluz, sempre em harmonia com a natureza, notaram que as árvores, antes exuberantes e saudáveis, começaram a perder seu brilho. “Viram cinza os verdes braços de árvores tão bem formadas”, murmuravam os mais velhos, enquanto as crianças, sem entender a profundidade da tristeza, brincavam entre os troncos que começavam a se tornar estéreis. A terra, que um dia parecia pulsar com vida, agora mostrava sinais de cansaço e desespero.

O responsável por essa transformação drástica era a prática das queimadas. A busca desenfreada por terras para cultivo e pastagem levou muitos a incendiar áreas florestais, sem considerar as consequências. As chamas consumiam tudo em seu caminho, deixando atrás de si uma paisagem desoladora, uma cicatriz permanente na terra que nutria a vida. 

“A terra morre aos pedaços por onde vão as queimadas”, pensava Ana, uma jovem ativista local que sempre se preocupou com o meio ambiente.

Ana cresceu em Verdeluz e tinha uma conexão profunda com a natureza. Desde criança, costumava passar horas explorando as florestas, aprendendo sobre plantas e animais, e sonhando em um dia se tornar uma defensora da Terra. Ao ver a devastação ao seu redor, ela sentiu que precisava agir. Com o apoio de alguns amigos, decidiu organizar uma campanha de conscientização sobre a preservação da floresta.

Com cartazes coloridos, encontros comunitários e palestras, Ana e seu grupo começaram a mobilizar a população. Eles contavam histórias sobre a importância das árvores, não apenas como provedores de madeira e sombra, mas como guardiãs de um ecossistema que sustentava a vida. A cada reunião, mais pessoas se juntavam à causa, unindo forças para tentar reverter o cenário trágico.

Certa tarde, enquanto caminhava pela floresta, Ana encontrou um velho sábio, conhecido por todos como o Guardião da Floresta. Ele estava sentado sob uma árvore imponente, cujos galhos pareciam tocar o céu. 

“Você trouxe um peso grande em seu coração, minha jovem”, ele disse, olhando nos olhos dela. 

Ana se sentou ao seu lado e desabafou sobre suas preocupações. “Sinto que estamos perdendo nossa casa. As queimadas estão destruindo tudo e ninguém parece se importar.”

O velho sorriu, mas havia tristeza em seu olhar. 

“A natureza sempre encontrará uma forma de se regenerar, mas precisamos cuidar dela com amor e respeito. As árvores têm uma sabedoria que muitas vezes ignoramos”, respondeu ele. “Viram cinza os verdes braços, mas se você reacender a esperança, pode fazer com que voltem a florescer.”

Inspirada pelas palavras do Guardião, Ana decidiu que era hora de agir de forma mais intensa. Com a ajuda da comunidade, organizaram um grande evento: o Festival da Reflorestação. Seria um dia de celebração, conscientização e, principalmente, plantio de árvores. O evento atraiu a atenção de muitos, e pessoas de várias partes da cidade se uniram à causa.

No dia do festival, a atmosfera era mágica. Músicos tocavam, crianças corriam com sorrisos iluminados, e os adultos se preparavam para plantar novas árvores. Ana sentiu que a esperança estava renascendo naquelas pequenas mãos que seguravam mudas de árvores. Ela viu ali uma nova geração disposta a lutar pelo que é certo.

Com cada árvore plantada, Ana sentiu que a conexão com a terra se fortalecia. As raízes que se entranhavam na terra eram como promessas de um futuro mais verde. “Juntos, podemos mudar o curso da história”, ela dizia para todos os que se reuniam ao seu redor. “Cada árvore que plantamos é um passo em direção à cura da nossa terra.”

Os meses se passaram, e o que começou como um pequeno movimento cresceu. As árvores plantadas começaram a brotar, e a vida retornou lentamente às áreas que haviam sido devastadas. As pessoas começaram a perceber a importância de cuidar da natureza, e a consciência coletiva despertou para a necessidade de preservar o que restava.

Certa manhã, ao acordar e olhar pela janela, Ana viu que a floresta estava mais vibrante do que nunca. As árvores, que antes pareciam tristes e cinzentas, agora exibiam uma nova folhagem, como se dançassem ao vento, agradecendo por terem sido resgatadas. 

“A terra não morre, ela se transforma”, pensou Ana, sentindo uma onda de gratidão.

O Guardião da Floresta apareceu novamente, e Ana correu até ele. 

“Olhe para o que conseguimos fazer!”, exclamou, cheia de alegria. 

O velho sorriu, seus olhos brilhando. “Vocês reacenderam a luz que havia se apagado. Mas lembre-se, a luta é contínua. A proteção da natureza é uma jornada, não um destino.”

E assim, em Verdeluz, a luta pela preservação se tornou uma parte da vida cotidiana. As queimadas diminuíram, e a floresta começou a se recuperar. A comunidade aprendeu que a beleza da natureza não é apenas um presente, mas uma responsabilidade. Pois onde a sombra cobre e embaça, ainda há esperança, e cada gesto de cuidado pode reacender a luz que ilumina a vida da Terra.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
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Ione Russo (Carona)

Eles se queriam muito. Naquele fim de semana resolveram sair para viajar, aproveitando para comemorar a data do nascimento dela.

Não tinham destino. O que importava era estarem juntos; logo, qualquer lugar servia.

Quando Miguel lhe disse que queria passar numa igreja, ela estranhou, pois isso não costumava ser um hábito do casal, embora tivessem formação católica.

Foram rindo e conversando, estrada afora, e, quando viram, tinham saído do Estado.

Ele insistia na tal igreja; queria agradecer a Deus por tanta felicidade e rezar pelo aniversário dela.

Já em Santa Catarina, almoçaram e seguiram viagem. Quando anoitecesse parariam para dormir. Enveredaram por uma cidade que se chama Gaspar, onde avistaram suntuosa escada que os levava a um santuário.

Naquele instante, o padre realizava um casamento e perguntava se o noivo aceitava a noiva como sua mulher, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, e coisa e tal.

Aproveitando a situação, Miguel foi logo dizendo que sim, que aceitava Maria como sua mulher; ato contínuo, o padre também fez a pergunta à noiva. Miguel apertou o braço dela, repetindo a mesma interrogação.

- Sim, respondeu ela, rindo da brincadeira.

Ele tirou uma caixinha do bolso e uma aliança linda foi colocada em seu dedo.

Também lhe foi entregue outro anel para ser posto no dedo dele. Maria não entendia como a surpresa se misturava com a coincidência, e ele explicava que não havia planejado tanto, mas que a sorte tinha ajudado.

Entre abraços e beijos, concretizaram o que já vinham pensando há muito tempo.

Maria e Miguel sempre contam que se casaram de carona.

Fontes: 
Alda Paulina Borges et al. Contos contemporâneos. (Oficina de Criação Literária Alcy Cheuiche). Porto Alegre/RS: AGE, 2016.
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Vereda da Poesia = 182


Trova de
OLYMPIO COUTINHO
Belo Horizonte/MG

Olhando o escorregador,
palco da infância sem pressa,
filosofa o trovador:
- "Os anos passam depressa..."
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Poema do Folclore Brasileiro de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Cobra Grande

Nas águas profundas um mito se manifesta,
Cobra Grande, guardiã dos rios a bradar,
com escamas reluzentes, um poder na floresta,
nos contos do povo sua lenda a ecoar.

Dizem que em seu ventre há um tesouro brilhante,
mas cuidado, viajante, ao lhe desafiar,
pois sua fúria é vasta, e a fome bastante,
aquele que ignora o seu reino, sem respeitar.

No espelho da água seu olhar a brilhar,
protege a natureza, o lar preservando,
e em cada sussurro, um aviso a soar,
que no seio das matas, há vida pulsando.

Cobra Grande, a sombra, um eterno mistério,
entre lendas e medos, um poder etéreo.
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Trova de
PAULO WALBACH PRESTES
Curitiba/PR, 1945 – 2021

Sou pura saudade quando,
vejo na fotografia,
a minha mãe me abraçando
na mais total alegria!
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Soneto de
EUCLIDES DA CUNHA
Cantagalo/RJ, 1866 – 1909, Rio de Janeiro/RJ

Amor algébrico

Acabo de estudar — da ciência fria e vã,
O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,
Acabo de arrancar a fronte minha ardente
Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente
Que este Saara atroz — sem aura, sem manhã,
A Álgebra criou — a mente, a alma mais sã
Nela vacila e cai, sem um sonho virente.

Acabo de estudar e pálido, cansado,
Dumas dez equações os véus hei arrancado,
Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz.

É tempo, é tempo pois de, trêmulo e amoroso,
Ir dela descansar no seio venturoso
E achar do seu olhar o luminoso X.
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Trova de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Tem Poeta nesta terra
que seus versos dão prazer
de lê-los, pois ele encerra
numa Trova o seu dizer!
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Soneto de
THALMA TAVARES
São Simão/SP

Pecados

Eu tenho pecados, e muitos, não nego.
Só Deus é quem sabe das culpas que expio,
dos erros, das faltas que eu triste carrego,
que o sono me roubam, por noites a fio.

Porque aos teus braços me atiro, me entrego,
minha alma anda triste qual planta no estio.
Mas Deus é culpado, se não me fez cego
à rara beleza do teu corpo esguio.

Não sei de pecados, mais doces, mais quentes
que a luz de teus olhos, teus lábios ardentes,
que enchem minha alma de sol e calor.

Mas tenho certeza que os nossos pecados,
por muitos que sejam, já estão perdoados,
pois não é pecado pecar por amor.
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Como quem faz uma prece,
braços erguidos se abrindo,
a borboleta parece
um anjo da paz dormindo!
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Soneto de
MANUEL BANDEIRA
Recife/PE (1886 – 1968) Rio de Janeiro/RJ

Peregrinação

    Quando olhada de face, era um abril.
    Quando olhada de lado, era um agosto.
    Duas mulheres numa: tinha o rosto
    Gordo de frente, magro de perfil.

    Fazia as sobrancelhas como um til;
    A boca, como um o (quase). Isto posto,
    Não vou dizer o quanto a amei. Nem gosto
    De me lembrar, que são tristezas mil.

    Eis senão quando um dia... Mas, caluda!
    Não me vai bem fazer uma canção
    Desesperada, como fez Neruda.

    Amor total e falho... Puro e impuro...
    Amor de velho adolescente... E tão
    Sabendo a cinza e a pêssego maduro...
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Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

A “solidão” me parece,
ser um conforto sem fim…
quando um grande amor me esquece;
“Ela” se lembra de mim.
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Soneto de 
ANTÔNIO OLIVEIRA PENA
Volta Redonda/RJ

Em dias de um abril

Andar contente, em dias de um abril,
pelas campinas verdes recendendo;
olhar-lhes as flores e as ir colhendo,
debaixo deste claro céu de anil...

Beber da água fresca de um cantil;
provar frutos silvestres, revivendo
a infância mágica; e ir percorrendo
caminhos que se perdem, pueril.

Descansar de um arbusto à sombra amena;
sentir no vento o cheiro da açucena;
e assim ficar, despreocupado, em paz —

enquanto brilha, arde o sol, a pino,
e alegre canta o riacho cristalino
à sombra destas matas tropicais!
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/ RS, 1932 – 2013, São Paulo/ SP

Assim que começa o dia,
envolto em profundo enlevo,
sinto o cheiro da poesia
em cada verso que escrevo.
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Hino de
ANGICOS/RN

Salve Angicos cidade pioneira
Cujos nomes de heróis se proclamou
O teu solo regado com o sangue
Dos teus filhos que aqui os procriou.

(bis)
Angicanos predestinados
Coração e alma varonil
Conquistaste a glória
Cantarás vitória
Sempre de pé pelo Brasil.

Angicanos soldados centro norte
Artilheiros cidade cidadãos
Para nós o teu nome
É uma bandeira
A bandeira da nossa redenção
Deus bem quis que marcada tu ficastes
Grandes nomes ilustres no Brasil
Caminhai e cantai com alegria
Aos teus filhos que aqui te consagrou
Juventude forte e varonil.

(bis)
Angicanos predestinados
Coração e alma varonil
Conquistaste a glória
Cantarás vitória
Sempre de pé pelo Brasil.

Agricultores, operários e doutores
Batalharam com coragem e amor
Nós que queremos neste dia exaltar
Todos eles que lutaram com fervor.

(bis)
Angicanos predestinados
Coração e alma varonil
Conquistaste a glória
Cantarás vitória
Sempre de pé pelo Brasil.
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/ SP

Com ousadia me olhaste,
ousada eu correspondi.
Com loucura me abraçaste
e o resto eu juro, nem vi!
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Soneto de 
HEGEL PONTES
Juiz de Fora/MG (1932 – 2012)

Duas chamas

Qual monge recolhido em sua cela,
Rezando a derradeira Ave-Maria,
Estava só e apenas uma vela
Velava a minha noite de agonia.

Eu contemplava a ardente sentinela
Que em vigília também se consumia,
E percebia uma oração singela,
No declínio da chama fugidia…

… Agora é madrugada e, por um fio,
Duas chamas de vida em decadência
Vacilam e se apagam no vazio.

E apenas uma, ao fim da claridade,
Caindo no vazio da existência,
Ressurge no esplendor da eternidade.
= = = = = = = = =  

Trova de
ANTONIETA BORGES ALVES
São Paulo/SP

- Renda? Imposto? - Está brincando!
Sou pobre, sou trovador...
Eu faço, de quando em quando,
só declaração de amor!
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Figueiredo Pimentel* (A velha feiticeira)

Tendo adoecido gravemente o lavrador Bernardo, foi preciso que alguém fosse à cidade procurar um remédio receitado pelo médico. Na única botica da vila não havia aquela droga, difícil e cara, que só se encontrava nas mais importantes drogarias.

Bernardo morava afastado da vila, e longe, muito longe da capital. Para se ir até lá, era mister atravessar extensa floresta, onde costumavam reunir-se vários salteadores, e povoada de animais ferozes.

Vendo que só o tal medicamento poderia salvar o pobre velho, seu filho Heitor, que tinha apenas quinze anos, resolveu buscá-lo.

Era cedo, escuro ainda, quando saiu de casa, em companhia do seu cachorro Leão – um animal fiel e dedicado.

Caminhou o dia inteiro, sem parar. Ia anoitecendo, mas ainda o dia não morrera de todo, quando avistou no meio da floresta uma pequena choupana. Resolvido a passar a noite aí, bateu à porta. Abriu-se uma janela, aparecendo uma velhinha, feia e magra, devendo ter mais de oitenta anos.

Pediu-lhe hospitalidade, e ela mandou-o entrar, recomendando primeiro:

— Amarre o seu cachorro, moço, que parece um animal muito bravo, e eu tenho medo de cães.

— Nada receie, minha velha, respondeu Heitor, porque Leão me obedece cegamente, e só ataca a quem me quiser fazer mal.

— Pode ser que seja verdade, replicou a velha, mas é que eu já fui mordida uma vez, e não o quero ser segunda. Amarre-o, senão ficará de fora.

— Mas é que eu também não tenho com que amarrá-lo.

— Isso não seja a dúvida. Basta que lhe passe ao pescoço um fio de cabelo meu...

A velhinha arrancou um fio branco, e deu-o ao moço, que se riu daquela corda de nova espécie.

Quando viu o cão amarrado, a dona da choupana mais que depressa atirou-se sobre Heitor. Ninguém diria ao ver aquela criatura já prestes a morrer, que tinha tanta força como qualquer ferreiro.

O mancebo, meio admirado, tentou lutar com ela, e sentindo-se fraquejar, chamou o auxílio do cachorro, bradando:

— Avança! Avança, meu Leão!...

— Engrossa bem, meu cabelão!... gritou a velha.

O fio de cabelo que prendia o animal engrossou àquelas palavras, tornando-se pesada e forte corrente de ferro.

Tendo subjugado Heitor, a feiticeira amarrou-o solidamente, encerrando-o num quarto a fim de engordá-lo e comê-lo mais tarde.
***

Passados três dias, vendo que Heitor não regressava, Lauro, seu irmão, segundo filho do velho Bernardo, planejou ir em busca do remédio, e ao mesmo tempo procurar saber o que sucedera ao outro.

Saiu de casa, levando por companheiro único um valente cachorro que possuía, e ao qual denominara Capitão.

Seguindo o mesmo trajeto de Heitor, foi parar na mesma choupana, onde a velhinha o recebeu como recebera o primeiro, recomendando que amarrasse o cão com o fio de cabelo.

Lauro, vendo-se ameaçado por ela, chamou em seu auxílio o fiel companheiro, que por mais de uma vez experimentara:

— Avança! avança! Capitão...

Do mesmo modo que procedera quando prendeu Heitor, a megera berrou:

— Engrossa, engrossa, cabelão!...

O pobre animal, ligado por uma corrente grossa, não pode desta vez socorrer seu amo.

A velha feiticeira prendeu Lauro num quartinho escuro, até que chegasse a sua vez de ser comido.
***

Só restava no sítio do bom e digno Bernardo sua mulher e seu terceiro filho Raul.

Não obstante ter somente onze anos, Raul era um menino animado e ousado. Quis ir buscar o medicamento receitado, que devia salvar o velho, e procurar os irmãos, e foi.

Pela madrugada saiu de casa, despediu-se de seus pais, e partiu resolutamente. Também ele chegou à cabana da velhinha, e pediu pousada naquela noite.

Ao ouvir a recomendação para prender o cachorro que levava, disse consigo mesmo:

— Para que quer esta mulher ver o meu fiel Plutão amarrado? Um fio de cabelo não é corda, e se ela na verdade tem tanto medo dos cães, como diz, dar-me-ia outra corda. Aqui há algum mistério.

Fingiu, todavia, que amarrava o animal, mas apenas pousou o cabelo no pescoço, sem dar nó.

A feiticeira, julgando o cão preso, segurou Raul pelo braço, e disse:

— Tu ainda és muito pequeno para eu estar com cerimônias. Vamos para o quarto escuro, até que chegue a vez de te comer ensopado.

— Não, minha velhinha, disse-lhe Raul, dando-lhe um sopapo.

A bruxa correu para pegá-lo, e o menino gritou:

— Avança! avança! Bom Plutão!

— Engrossa bem, meu cabelão!... bradou a velha.

 O cabelo transformou-se em uma corrente, mas como não se achava amarrado, caiu no chão.

O fiel cachorro de um salto atirou-se ao pescoço da velhinha, e estraçalhou-a.

Raul percorreu a cabana, e encontrou seus irmãos, bem como muitos outros viajantes, que haviam caído sob as garras da miserável feiticeira.

Soltou toda a gente, e ateou fogo à choupana.

Os presos, agradecidos, deram-lhe dinheiro, e os três irmãos tiveram tempo de ir à cidade e comprar a droga que salvou o velho Bernardo.
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*Alberto Figueiredo Pimentel nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.
Biografia =https://pt.wikipedia.org/wiki/Figueiredo_Pimentel
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