segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 07

     
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Luiz Gilberto de Barros, registrado como Luiz Poeta, nasceu em 1950, no Rio de Janeiro/RJ. Escritor, Poeta, Contista, Cronista, Ensaísta, Trovador, Aldravianista, Sonetista, Músico, Compositor, Produtor Musical, Artista Plástico, Gestor Educacional e Docente Aposentado  de Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Portuguesa. Destacou-se no meio artístico como produtor fonográfico, violonista, guitarrista, compositor, poeta e artista plástico. Acadêmico da AVLBL membro da UBT, é Verbete do Dicionário de Música Popular Brasileira Antônio Houaiss e detentor de  relevantes títulos acadêmicos. Fundador de diversas entidades culturais Nacionais e internacionais. Autor premiadíssimo em inúmeros concursos no Brasil e no Exterior. Foi Presidente da Academia Pan-Americana de Letras e Artes; do Centro Cultural Leopoldina de Souza Marques, da Faculdade Souza Marques, e Diretor Presidente do Jornal “O Coruja“, de circulação universitária. Membro da Confraria Brasileira de Letras, Academia Luso-Brasileira de Letras; Academia Paulista de Letras; Cerc Universal des Ambasssadeurs de la Paix; Divine Academie Française de Letters y Arts; Associação dos Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras; Diretor Cultural da Associação Cultural Encontros Musicais; Inbrasci (Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais, entre outros. Sua obra artística é eclética e engloba mais de 10.000 trabalhos (músicas, poesias, ensaios contos, novelas, textos dramáticos e crônicas – além de telas e trabalhos artesanais ). Tem CDs e DVDs gravados, tendo publicado mais de 100 obras publicadas entre livros-solo, antologias, CDs, DVDs, jornais e revistas.

Renato Frata (Depois da chuva)

A chuva caía fininha, fininha, que parecia não molhar de tão fina, e era tão silenciosa e sorrateira a lamber folhas e flores que nem parecia chuva, mas névoa que o sol recém-nascido, ainda não amornara. E o chão, com a garganta aberta a recebia como esponja, a ponto de não formar enxurrada como nas outras chuvas ásperas e volumosas em que, não suportando seus espessos volumes, escorrem fazendo buracos, enchem os rios que invadem as margens, alagam ruas e casas. Um desespero.
  
Caiu e caiu tanto durante a noite que nem os ponteiros do relógio que só giravam buscando o sol, conseguiram fazê-la parar, e ficaram só acompanhando sua caída. Até que um vento, não sei saído de onde, soprou a nuvem que já devia estar magrinha de chover e a levou para longe e, se abrindo, possibilitou a que o sol aparecesse.

E aí aconteceu algo especial: o sol, feliz por poder olhar para baixo, desenhou no céu com seus lápis de cor um arco-íris tão grande, mas tão grande, que as pernas dele abraçaram o mundo. E ficou assim, desenhado com sete cores enfeitando o dia.

Uma lindeza de ver e de sentir, até que o girassol que se abrira e olhava bem na cara do sol para se esquentar, pediu:

- Ei sol, me passe ao menos uma dessas cores do arco-íris aí, qualquer uma, olha, pode ser o vermelho, o laranja, o verde, o azul, o anil, o violeta... menos o amarelo que esse eu já tenho... - e complementou: - Não acha que é muita cor para um só arco-íris?

Então, o arco-íris ouvindo o despropósito, respondeu antes que o sol falasse:

- Qual é, cara, tem vergonha não? Pensa que minhas cores são figurinhas que se podem dar, vender ou trocar? Fazem parte de mim, como as suas pétalas. Se eu pedisse essas suas pétalas para me cobrir, você daria?

- Acho que não... ia me sentir pelado!

- Comigo é assim, também. Como sou apenas um arco luminoso de luz refletida em gotículas na atmosfera e tenho uma vida efêmera de pouco mais de uma hora, e você, uma planta enraizada que nasceu de semente, cresceu, floriu, que amanhã virará outras sementes e adubo e tem vida de mais de cem dias, que tal me dar a lindeza desse amarelo forte que tem nas pétalas? Pode ser apenas a cor, para que eu possa enfeitar um outro arco. Veja, você poderá ficar com as pétalas para que não se sinta nu, mas me passe sua cor. O que acha dessa proposta?

- Por que faria isso? Sem cor eu ficaria desmilinguido e ninguém me reconheceria como girassol. Eu perderia a identidade; afinal, a cor faz a flor, sabe desse ditado?

- Tá vendo? Nem tudo que é bom para um pode sê-lo para outro, razão de não poder lhe dar qualquer das minhas... Eu deixaria de ser arco-íris, se não tivesse sete cores, entendeu?

- Ah, bom! Desculpe-me: confesso que quando o vi radiante, resplandecendo no céu e chamando à atenção de tanta gente que se deslumbrava com sua beleza, senti uma pontinha de inveja...

- Sim, pensa que não percebi? Quando eu ouvi você pedir ao sol, já pressenti que se tratava disso... a inveja castiga! Ela é arma dos fracos e você, amigo girassol, não é fraco e, se permitir, gostaria de lhe explicar. Posso?

- Claro, ouvirei com atenção.

- Isso só acontece quando nos deixamos levar por sentimentos impuros e não nos damos o real valor que temos. Julgamo-nos menos inteligentes, menos bonitos, ou menos felizes que os demais. Sim, mas é uma questão fácil de resolver. Basta que nos amemos e nos respeitemos pelo que e do jeito que somos, porque pode alguém ser até mais alto que nós, ou mais magro, ou mais cabeludo, ou ter mais coisas, que nada disso nos obriga a sentir inveja dele. Sabe por quê? Porque ele também terá suas fraquezas... Esse mal que nos leva a nos menosprezar é reflexo de que não avaliamos bem o nosso valor, a nossa autoestima e o nosso autorrespeito, e acabamos por ficar nos sentindo diminuídos perante qualquer coisa que sintamos ou achemos bonita, mas que pertence a outro.

– Rapaz, você tem razão...

 Mais uma coisa, amigo; temos nossa vida para cuidar, não é? Para isso, basta que nos esforcemos. Olhemos para a abelha, por exemplo, que aerodinamicamente não foi feita para voar, mas por inspiração, voa para todos os lugares e produz o que você conhece, um dos melhores alimentos que é o mel.

- É...

-Aproveite a vida, girassol, porque eu estou aproveitando a minha. Entre outras coisas belas que enxergo, essa vista linda da terra molhada pela chuva fininha, por exemplo, cuja umidade lhe dá força para germinar sementes, criar beleza e conforto. Precisa de outros? Olhe, daqui a pouco eu desaparecerei; afinal, não passo de um simples reflexo em gotículas, mas só o encantamento que consegui colocar nos olhos das pessoas que me olharam e se gratificaram com a visão, a ponto de lhes arrancar suspiros de alma e de agradecimento pela oportunidade, posso dizer que o quanto de tempo que vivi, valeu pela minha vida precoce.

- Você é espetacular...

- Estou a aproveitar o que a Natureza me deu, só isso. Então, viva! Aja com coragem e destemor, realce-se com a beleza também da plantação que o acolhe, você está entre irmãos aí, veja ao seu lado quantos outros pés de girassol a lhe fazer companhia. Sugiro que se dê bem com quem. o cultiva e trate de produzir boas semente para a posteridade, e se guarde, girassol, para que a massa de sua carne sirva de bom adubo a terra que ora lhe dá vida, ajude-a para que produza outros girassóis tão lindos e esbeltos como você. Aproveite! Enquanto minha vida é tão efêmera e a sua é de mais de cem dias, faça como eu, dê aos olhos humanos a beleza que possui, eles irão agradecer por tê-lo visto. Esse é o segredo para fazer da vida, o melhor!

- Espere...

- Tchau, amigo, não tenho mais tempo, já vou apagar... e não se esqueça, faça das suas dificuldades o seu sucesssssssoooooooooo!

- Tchau... Ué, cadê o Arco-íris? Ah! Ele se foi. Que pena que não teve tempo de conversar mais, esperarei a próxima chuva quando ela nascerá de novo... para lhe dizer que sim, que tem razão; a vida vale por sua intensidade, não pela sua extensão.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Vereda da Poesia = 200

Poema de
MACHADO DE ASSIS 
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

O desfecho

Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilhão,
Uns cingidos de luz, outros ensanguentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a águia em cima os olhos espantados.

Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.

Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Texturas

Aconchega-se
À toalha de seda lilás
Ao bule branco,
Mesclam-se luz e sombra
Em dobras,
Tecidas na delicada seda -
Um labirinto...
Ao toque da porcelana
A sensação
De uma atemporal imagem,
Uma tala, um devaneio -
Saudade.
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

A existência é definida
não por azar, mas por sorte:
quanto mais cheios da vida,
mais perto estamos da morte.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Quando as lágrimas caírem do rosto das estátuas
(Narciso Alves Pires, in “Para além do adeus”, p.48)

Quando as lágrimas caírem do rosto
Sereno das estátuas da mansão
Já o tempo terá feito uma invasão
E os dourados umbrais terá transposto.

Decadente, o jardim esteve exposto
Às ervagens da vil degradação
E o teto, na capela e no salão
Tem as rugas abertas de um desgosto,

De pé inda as estátuas permanecem
Velando o pó e a mágoa que adormecem
Vencidos por tão trágica vigília.

O breu vai caindo sobre a memória
Do que resta de alguma ida glória
Que morreu no brasão desta família.
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Poetrix de
AILA MAGALHÃES
Belém/PA

indigestão

A boca da noite
Mastigou meus sonhos
Sem digerir os pesadelos…
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Poema de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

O cavaleiro pobre
(Pouchkine)

Ninguém soube quem era o Cavaleiro Pobre,
Que viveu solitário, e morreu sem falar:
Era simples e sóbrio, era valente e nobre,
E pálido como o luar.

Antes de se entregar às fadigas da guerra,
Dizem que um dia viu qualquer coisa do céu:
E achou tudo vazio... e pareceu-lhe a terra
Um vasto e inútil mausoléu.

Desde então, uma atroz devoradora chama
Calcinou-lhe o desejo, e o reduziu a pó.
E nunca mais o Pobre olhou uma só dama,
Nem uma só! nem uma só!

Conservou, desde então, a viseira abaixada:
E, fiel à Visão, e ao seu amor fiel,
Trazia uma inscrição de três letras, gravada
A fogo e sangue no broquel.

Foi aos prélios da Fé. Na Palestina, quando,
No ardor do seu guerreiro e piedoso mister,
Cada filho da Cruz se batia, invocando
Um nome caro de mulher,

Ela rouco, brandindo o pique no ar, clamava:
“Lumen coeli Regina!” e, ao clamor dessa voz,
Nas hostes dos incréus como uma tromba entrava,
Irresistível e feroz.

Mil vezes sem morrer viu a morte de perto,
E negou-lhe o destino outra vida melhor:
Foi viver no deserto... E era imenso o deserto!
Mas o seu Sonho era maior!

E um dia, a se estorcer, aos saltos, desgrenhado,
Louco, velho, feroz, - naquela solidão
Morreu: - mudo, rilhando os dentes, devorado
Pelo seu próprio coração.
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Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Lembranças deixam feridas 
que nascem na alma da gente. 
Que tenham elas nascidas
no passado… ou no presente!
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Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Canção Anã

Essa abstração me
acarreta
acanhos e
acabrunhamentos!
Açambarca
anseios,
açoda instintos e
acossa
o CORAÇÃO.

Assalta e açoita a
Inocência
existente em mim...
adultera sonhos,
alucina emoções,
angaria debilidades,
aquece a ilusão, na
amplidão dessa
SAUDADE.

Aquém, vivo e padeço,
apressando os dias,
acelerando as horas,
apregoando frases mortas!
Azedo, arraso o corpo inteiro,
arrefeço o sangue quente, na
agonia de 
amoldar o
amor e a FELICIDADE!...
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Se a gente fosse dar crédito 
ao que diz a maioria,
só de "autor de livro inédito" 
tinha uns mil na Academia!...
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Poema de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Um dia acordarás

Um dia acordarás num quarto novo
sem saber como fosse para lá
e as vestes que acharás ao pé do leito
de tão estranhas te farão pasmar,

a janela abrirás, devagarinho:
fará nevoeiro e tu nada verás...
Hás de tocar, a medo, a campainha
e, silenciosa, a porta se abrirá.

E um ser, que nunca viste, em um sorriso
triste, te abraçará com seu maior carinho
e há de dizer-te para o teu assombro:

— Não te assustes de mim, que sofro há tanto!
Quero chorar — apenas — no teu ombro
e devorar teus olhos, meu amor...
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Hino de
AMAPORÃ/ PR

Foi a fibra do valente pioneiro 
Que lutando com audácia e destemor 
Fez surgir neste recanto hospitaleiro 
Esta terra de Paz e Esplendor
Já nascestes com destino grandioso 
E a mais nobre determinação 
Amaporã és torrão generoso 
Onde tudo é labor e união. 

Caminhando pela trilha do sucesso
Com a força do trabalho como lema 
Construindo dia a dia o teu progresso 
Desde o tempo em que te chamavam Jurema 
Nossa Senhora de Fátima querida
Com seu Manto estende sua proteção 
Abençoando para sempre a nossa lida 
E as riquezas que brotarem deste chão. 

Amaporã - chuva bonita, qual cascata.
Despetalando alva espuma no Ivaí 
Irrigando as lavouras e a mata 
No cenário mais lindo que eu já vi 
Eu que sou filho deste recanto 
Com orgulho hei de dizer 
Amaporã: És colmeia de encanto 
Onde sempre haverei de viver. 

Caminhando pela trilha do sucesso
Com a força do trabalho como lema 
Construindo dia a dia o teu progresso 
Desde o tempo em que te chamavam Jurema 
Nossa Senhora de Fátima querida
Com seu Manto estende sua proteção 
Abençoando para sempre a nossa lida 
E as riquezas que brotarem deste chão. 
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Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

O amor que perdura
 
Nosso primeiro encontro no trabalho;
depois a nossa loja, nossas casas...
Os filhos chegam, como sempre, brasas
aquecidas e boas... Embaralho

das nossas vidas diferentes, asas
ligeiras balançando meu grisalho
amor, ciumento de nós todos, malho
constante dos espíritos. Abrasas

minha existência... Mas te amava tanto
que sublimei por muitos anos teu
precoce encantamento... E tanto quanto

te amei,  passei  a duvidar do amor
de qualquer ser humano... E espero ter
meu encontro contigo  quando eu for.
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Trova Premiada de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Ser mãe é perpetuar 
a vida em seu seguimento 
conjugando o verbo AMAR 
seja qual for o momento.
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Uma Lengalenga de Portugal
HORAS DE SONO

(Esta lengalenga é também provérbio/adágio, cantada no século XVIII)

 Quatro horas dorme o santo,
 Cinco o que não é tanto,
Seis o caminhante
Sete o estudante,
Oito o preguiçoso,
Nove o porco,
Mais só o morto.
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Quadra Popular de
ANTÓNIO JOSÉ BARRADAS BARROSO
Paredes/ Portugal

Nosso querer tão velhinho,
cheio de ternuras e afetos,
se deu, aos filhos, carinho,
mais ainda deu aos netos.
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Aparecido Raimundo de Souza (Pedágios)

MINHA MÃE (que Deus a tenha!), dizia sempre: “Filho, não deixe de colocar seus joelhos no chão e rezar pedindo proteção ao seu Anjo da Guarda. Não se esqueça, jamais, de agradecer por estar vivo, por ter a chance contínua e durável de acordar todas as manhãs e enxergar o mundo que Deus preparou para você. Clame por segurança, brade em alto e bom som agradecendo, ponha as mãos para cima e ore. Dê graças. Suplique ao Criador para que novos caminhos apareçam trazendo horizontes benfazejos, e portas se abram à sua frente, com perspectivas infindáveis de sucessos e brilhanturas”.

Eu seguia seus conselhos à risca. Rezava antes de sair do meu quarto, orava compenetrado, implorando ao céu que me desse um dia venturoso e afortunado, um dia de realizações flóreas e plenas, e que ao sair depois do breakfast, voltasse inteiro e ileso, sem um arranhão no final da tarde e pudesse pegar no colo meus filhos, um por um, e beijar, e abraçar a minha mulher e a minha mãe, que ficavam acenando da janela da sala. 

A nossa casa, apesar de se posicionar numa rua sem saída, morria, por conta disso, em nosso portão. A alvenaria do “tempo do ronca” (muito antigo), não tinha os privilégios dos ricos, nem ostentava as riquezas soberbas das outras construções próximas. A sua estrutura se fazia de edificação modesta e simples. 

Havia um alpendre enorme que circundava todo o seu entorno e lembro que as paredes dessa varanda envelheciam a cada dia, desprovidas de reparos, sem reboco, os tijolos expostos às intempéries e aos bochornos (calor causticante) duros do tempo inexorável. A cobertura também se sustentava nas asas do precário. Existia um monte de telhas quebradas carentes de serem trocadas. 

Quando chovia, ainda que por pouco tempo, precisávamos correr contra os relâmpagos e as trovoadas. Tamponar ligeiro os móveis, e eletrodomésticos, vedando com plásticos enormes para que não fossem atingidos pelos pingos que pareciam brotar de todos os lugares como minúsculos olhinhos de nascentes, gotejando das cantoneiras e dos caibros velhos e cheios de teias de aranha. 

As minhas implorações, acreditem, por incrível que pareçam, davam certo. Na verdade, confesso, deu no ponto exato por todos esses anos. Graças a minha fé no Anjo da guarda e, claro, atento aos ensinamentos sábios de mamãe, grudado em suas leis e preceitos internos advindos de uma alma boa e sem máculas, consegui atravessar por esse mundo de loucos e birutas e chegar íntegro e perfeito até onde estou agora. Uma glória digna de ser contada e comemorada. 

Do alto da fortaleza que me sustenta, ao olhar longamente para trás, consigo contemplar, vitorioso, mais de meio século de existência. E faço consciente do dever cumprido, sem ter deixado mágoas e dissabores pelas mais diversas sendas que cruzei. Está certo que nem tudo se fez um mar de flores. Paguei taxas e contribuições caras às autarquias e concessionárias por pecados cometidos ao longo dessas décadas. Urrei pelas transgressões que, de certa forma, chegaram a pesar nos meus costados, açoitando, como fardos enormes em lombos de burros envelhecidos. 

Muitos desses deslizes, pasmem, eu confesso, cometi por vontade própria! Outros tantos, por pura bobeira ou ignorância e desconhecimentos da vida. Os aprendizados do cotidiano, nós todos, só conseguimos com o decorrer do tempo que nos é concedido. O mundo é a melhor escola para nos tornarmos melhores e mais humanos. O fato é que, apesar dos pesares e equívocos, aceitei a tudo numa boa. Não tenho, pois, do que reclamar. 

Meu trilhar sempre se mostrou pontilhado por trancos e barrancos, altos e baixos. Atravessei anos ruins e desastrosos, cruzei noites claras e escuras, me vi frenteado às esquinas mais diversas, com fantasmas iracundos assustando meus medos e covardias, desbrios e horrores, sem me darem trégua e um minuto, sequer de paz. 

Foi, entretanto, tirando fora as absurdidades e alogias (despropósitos), um tempo bom. Um tempo excelente, sem dores maiores, sem machucados que se negassem a cicatrizar. Todas as minhas feridas restaram curadas, sem deixarem indícios ou abalos morais. Por sorte, do Pai Maior colhi igualmente tempos de calmarias e bonanças, sem doenças letais ou irremediáveis. 

Hoje, fazendo uma introspecção de todo meu tempo percorrido, percebo que essas primaveras vividas, dia após dia, em nenhum momento se mostraram cruéis e desumanas, celeradas ou bárbaras demais. Apagar um amontoado de velinhas não é coisa para qualquer um. Tornou-se um dote, para mim, particularmente, um apanágio, uma regalia, um dom. 

Quero crer, e creio piamente, somente chegam a este número de janeiros acumulados, pessoas com a patente carimbada no DNA, com as peculiaridades dos que nasceram privilegiados, criaturas que, de alguma forma, se tornaram escolhidas a dedo, pelo Criador. 

Eu estou feliz, realizado, satisfeito, jubiloso e exultante. Todavia, quieto no meu cantinho. Contente com meu destino, em festividade constante com a minha vida, mais ainda com o meu passado. Enfim, com a minha sorte, com a minha auriflama empunhada, com meu estandarte às vistas de todos, porque na verdade, na verdade, eu fui, de fato, eu fui não, eu sou, por tudo o que passei, eu sou um escolhido e, como tal, me sinto, de certa forma, um álacre literalmente iluminado. Reparem todos: aqui estou, firme e forte, forte e firme, a viver e gozar os meus trebelhos.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro “O menino de Andirá,” onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

domingo, 12 de janeiro de 2025

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 07

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José Erigutemberg Meneses de Lima nasceu em Fortaleza/CE, radicou-se em Blumenau/SC. Advogado aposentado do Banco do Brasil, com graduação em Ciências Econômicas e Direito pela FURB - Fundação Universidade Regional de Blumenau, dedica-se às letras, escrevendo prosa na forma de crônicas, contos, ensaios, textos jurídicos e poesia, especialmente, sonetos. Publicou “Raptos Líricos” - Sonetos, 2005; Portas da Solidão pela Fundação Cultural de Blumenau, 1996.

Monteiro Lobato (História dos dois ladrões)

Era uma vez um boiadeiro lá do sertão, que tinha cara de bobo e fumaças de esperto. Um dia veio ao Rio de Janeiro gastar os cobres de uma boiada. Logo que desceu do trem e ia se encaminhando para um hotelzinho próximo, foi abordado por um homem de cara ainda mais boba que a sua.
 
— Boa noite, meu senhor! — saudou o homem humildemente.

O boiadeiro respondeu com um "boa noite" desconfiado, e foram andando juntos. O homem começou a contar uma história muito comprida. Disse que era da roça e estava completamente zonzo naquela capital. Não conhecia ninguém, não sabia tomar bondes, atrapalhava-se com qualquer coisinha — e o pior de tudo era o medão de ser roubado.

— Isto aqui — disse ele — é gatuno de todos os lados. Ninguém pode confiar em ninguém. Os piratas não dormem. Se a gente está com dinheiro no bolso, eles conhecem pelo cheiro — e tanto fazem que deixam uma pessoa limpa.

— Se o senhor tem tanto medo, é sinal de que está empatacado — disse o boiadeiro.

O homem correu os olhos, com desconfiança, dum lado e doutro; depois respondeu quase num cochicho:

— O senhor adivinhou. Todo o meu medo vem de trazer no bolso um pacote de notas no valor de dez mil cruzeiros, que lá na minha terra me encarregaram de entregar à Santa Casa. Mas não sei onde é a Santa Casa. Se pergunto, ensinam-me errado — ou então desconfiam de que estou com dinheiro...

E deu um suspiro. Depois continuou:

— Aquela gente lá da roça não imagina o que é isto aqui. Nem eu imaginava coisa nenhuma. Se soubesse, não vê que não me encarregava deste maldito dinheiro. Dez mil cruzeiros! Se perco o pacote, ou se algum pirata me passa a perna, vão dizer por lá que roubei — e fico desacreditado.

— E que pretende fazer? — indagou o boiadeiro.

— Minha ideia é descobrir um homem de bem que queira encarregar-se da entrega do dinheiro. Mas não acho esse homem. As caras desta terra não me inspiram a menor confiança. Só a sua. Assim que vi o senhor, tive um pressentimento no coração: "Aquele, sim, aquele tem cara de homem de bem." Por isso me aproximei.

O boiadeiro ficou muito lisonjeado com a boa impressão que o homem fazia dele.

— Lá isso, sou. Graças a Deus tenho um nome limpo. Quem quiser tratar com pessoa séria, me procure.

O homem do pacote suspirou.

— Deus seja louvado! Custou, mas achei. Meu coração não nega. Quando o vi descendo esta rua; palpitei cá comigo: "Meu salvador vai ser aquele homem..."

— Mas de que maneira acha que eu possa servi-lo? — perguntou o boiadeiro.

— De um modo muito simples. Eu lhe dou o pacote dos dez mil cruzeiros e o senhor faz a entrega à Santa Casa.

Os olhos do boiadeiro brilharam.

— Pois estou às suas ordens! — disse ele. — Neste mundo um tem de servir o outro. Já que lhe inspiro tanta confiança, disponha dos meus préstimos.

— Ora graças! — suspirou o homem, tirando o pacote do bolso. Era um pacote de notas graúdas, muito bem amarrado, com uma de cem cruzeiros em cima.

— Pois aqui está o pacote, meu senhor. E eu fico imensamente agradecido da sua bondade, Ah, nem imagina o peso que me tira do coração! Uf! Esse dinheiro estava me deixando doido...

O boiadeiro pegou no pacote e foi abrindo a mala para guardá-lo.

— Espere! — disse o homem. — Eu tenho no senhor a mais absoluta confiança, mas sempre é bom que me dê uma garantiazinha — aí um dinheirinho qualquer, porque afinal de contas eu acabo de lhe entregar dez mil cruzeiros. Dez mil cruzeiros é uma fortuninha...

O primeiro ímpeto do boiadeiro foi restituir o pacote. Depois mudou e disse, pondo a mão no bolso:

— Serve uma garantia de mil e quinhentos cruzeiros? É todo o dinheiro que tenho no bolso.

O homem cocou a cabeça vacilante. Afinal resolveu:

— Serve. É pouco, mas serve...

O boiadeiro puxou os cobres e deu a de mil e quinhentos cruzeiros.

Despediram-se cada qual seguindo numa direção.

— Dez mil cruzeiros! — foi murmurando o boiadeiro. — Dez mil cruzeiros! Para que precisa a Santa Casa de tanto dinheiro? Muito melhor eu distribuir isto lá pelos pobres da minha terra — pelo menos metade. É justo que a outra metade fique comigo, em pagamento do trabalho...

No hotel pediu um quarto, onde se fechou para contar o dinheiro. Só encontrou aquela nota de cem cruzeiros. O resto era papel de jornal…
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José Bento Renato Monteiro Lobato nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos. Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta “Uma velha praga” foi publicada n’O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892–1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882–1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883–1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer “implorar votos”. Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes: 
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia.  Publicado originalmente em 1937.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Aluísio de Azevedo (No Maranhão)

Quando eu tinha treze anos, lá na província, uma das famílias que mais intimamente se dava com a minha era a do velho Cunha, um bom homem, já afastado do comércio de retalhos, onde fizera o seu pecúlio, e casado com uma senhora brasileira, Dona Mariana.

Tinham um casal de filhos: Luís e Rosa, ou Rosinha, como lhe chamávamos. Luís era mais velho que a irmã apenas um ano e mais moço do que eu apenas meses. 

Fomos, por bem dizer, criados juntos, porque quando não era eu que ia visitá-los, eram eles dois que vinham passar o dia comigo.

Moravam na praia de Santo Antônio, num grande e belo sobrado, cujos fundos, como o de todas as casas do litoral da ilha do Maranhão, davam diretamente para o mar. 

O Cunha, além desta casa, que era de sua propriedade, tinha um sítio onde ia frequentemente passear com a família.

Quase sempre levavam-me também. O sítio chamava-se “Boa-Vinda” e ficava à margem do rio Anil, para além de Vinhais. Embarcava-se no próprio quintal da casa. 

Estes passeios à Boa-Vinda constituíam um dos maiores encantos da minha infância. Criado à beira mar na minha ilha, eu adorava a água; aos doze anos era já valente nadador, sabia governar um escaler ou uma canoa, amainar com destreza a vela num temporal, e meu remo não se deixava abater facilmente pelo remo de pá de qualquer jacumaúba* pescador de piabas.

Saíamos quase sempre no segredo da primeira madrugada e chegávamos ao sítio ao despontar do sol.

Ah! que deliciosos passeios! Que belas manhãs, frescas, deslizadas por entre os mangais, sentindo-se rescender forte o odor salgado das maresias!

E depois, lá no sítio, instalados na varanda de telha vã, que prazer não era devorar o almoço, assentados todos em bancos de pau, em volta de uma mesa coberta de linho claro, a beber-se o vinho novo do caju por grandes canecas de terra vermelha! E depois — toca a brincar! Toca a correr por aí afora, em pleno mato, cabelos ao vento, corpo e coração à larga! 

E, à tarde, depois do jantar, quando a natureza principiava a cair nos desfalecimentos chorosos do crepúsculo, vínhamos todos assentar-nos na eira, defronte da casa, ouvindo o pio mavioso e plangente das sururinas que se açoitavam para dormir nas matas próximas. Então, Luís ia buscar a sua flauta, Rosinha o seu violão, e eu, acompanhado por eles, punha-me a cantar as modas mais bonitas de minha terra.

Dona Mariana e o Cunha gostavam de ouvir-me cantar. Nesse tempo a minha voz tinha ainda, como minha alma, toda a frescura da inocência.

À noite, enfim, metiam-se de novo no balaio as vasilhas do farnel, carregava-se com tudo para bordo da canoa, estendia-se por cima uma vela de lona, em que nós assentávamos os três, Luís, a irmã e eu; o Cunha tomava conta do leme, com a mulher ao lado; três escravos encarregavam-se dos remos, e rebatíamos para a cidade.

Tanto era risonha e viva a ida pela manhã, quanto era arrastada e quase triste a volta pela noite. Dona Mariana começava a cabecear de sono; o Cunha punha-se a falar conosco sobre as nossas obrigações de aula no dia seguinte. Luís em geral deitava-se com a cabeça no regaço da irmã, e eu esticava-me sobre a lona, de rosto para o céu, a olhar as estrelas.

Uma noite voltávamos do sítio nessas condições. Mas havia luar.

E que luar! Desse que parece feito para quem anda embarcado; desse que vai espalhando pelo caminho adiante brancos fantasmas que soluçam correndo pelas águas, surgindo e desaparecendo com as suas mortalhas de prata, numa agonia de morte, como se fossem as almas aflitas dos afogados.

Tínhamos, já passado Vinhais havia muito e íamos agora deixando atrás de nós, uma por uma, todas as velhas quintas do Caminho-Grande, que dão um lado para o Anil. Dona Mariana toscanejava como de costume, recostada numa almofada, o rosto pousado na palma da mão; Rosinha, com um braço fora da canoa, brincava pensativa, com as pontas dos dedos na orla fosforescente que se fazia nas águas a cada rumorosa braceagem dos reinos; Luís cantarolava distraído; e o velho Cunha, vergado sobre o braço do leme, como seu grande chapéu de carnaúba derreado para a nuca, a camisa e o casaco de brim pardo abertos sobre o peito, fitava as praias que íamos percorrendo, como se a beleza daquela noite do Norte e a solidão aquele formoso rio azul lhe enleassem traiçoeiramente o espírito burguês, fazendo o milagre de arrebatá-lo para um devaneio contemplativo e poético.

Qual! No fim de longo recolhimento, quando passávamos em certa altura do rio, disse-me ele com um suspiro de lástima: 

— Que desperdício de dinheiro e quanta incúria vai por aqui!... Vês aquelas ruínas cobertas de mato? Aquilo foi principiado há bem quarenta anos para um grande armazém de alfândega... nunca passou do começo! Teve a mesma sorte do cais da Sagração e do dique das Mercês! Que gente!

E eu pus-me a considerar as ruínas, que pareciam crescer à luz do luar; e o Cunha, possuído de uma febre de censura, continuava a derramar pelas tristes águas do Anil a sua cansada indignação contra os malditos presidentes de província, que tão mal cuidavam da nossa pobre e querida capital.

E, à marcha monótona e vagarosa da canoa, ia-se desdobrando lentamente ao lado de nós todo o flanco alcantilado da cidade.

Surgiu à distância o largo dos Remédios, elevando-se da praia como um velho baluarte dos tempos guerreiros.

Ouvia-se já um rumor tristonho de casuarinas. 

— Está ali! exclamou o Cunha, estendendo o braço para o lado de terra. Para que esbanjar dinheiro com uma estátua daquela ordem, quando há por aí tanta coisa de necessidade séria de que se não cuida?... 

Olhei na direção que o Cunha indicava e vi a estátua de Gonçalves Dias, erguida no meio do largo dos Remédios, toda branca, muito alta, riste ao luar como a solitária coluna de um túmulo.

Não achei ânimo nem palavras para protestar contra o que dizia o velho Cunha. De Gonçalves Dias sabia apenas que fora um poeta infeliz e nada mais.

— É!  rosnou o pobre homem. Para o luxo de encarapitar aquele grande boneco no tope daquele imenso canudo de mármore — houve dinheiro! E dinheiro grosso! Todo o povo do Maranhão concorreu! Ao passo que para concluir o trapiche de Campos Melo, que é uma necessidade reclamada todos os dias pelo comércio não apareceu ainda quem se mexesse? Súcia de doidos! Isto é uma coisa tão revoltante que eu confesso, chego quase a arrepender-me de me ter naturalizado!

Tornei a olhar para a estátua e, não sei porque, as palavras do velho Cunha não me produziram desta vez a impressão de respeito que costumavam exercer sobre o meu espírito de criança. Pungia-me aquilo até como uma blasfêmia cuspida sobre uma imagem sagrada. Lá em casa de minha família todos veneravam a memória do nosso poeta, e na escola onde eu aprendia a escrever a língua portuguesa o meu próprio mestre chamava a ele mestre.

No entanto não opus uma palavra de defesa; mas, fitando agora de mais perto, a branca figura de pedra, que na sua mudez gloriosa encara aquele mesmo mar que serviu de sepultura ao cantor das palmeiras de minha terra, achei-lhe o ar tão tranquilo, tão superior, tão distante de mim e do Cunha, que balbuciei para este, timidamente:

— Mas, seu Cunha, se o povo lhe fez aquela estátua, é porque ele naturalmente a mereceu, coitado!

— Mereceu?! Por quê?! O que foi que ele fez?... "Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá" ?! Está aí o que ele fez! Fez versos!

E o Cunha, no auge da sua indignação, redobrou de fúria contra a loucura dos homens, que levantavam estátuas a poetas em vez de cuidar dos trapiches que o comércio a retalho reclamava.

Nesse instante a canoa desusava justamente por defronte do largo dos Remédios.

A lua, perdida e só no meio do céu luminoso, banhava no seu misterioso eflúvio a imóvel e branca figura de mármore.

É Rosinha, que não prestara atenção à nossa conversa, abriu a cantar, com a sua voz cristalina de donzela, uma das cantigas mais populares do Brasil:

Se queres saber os meios
Porque às vezes me arrebata
Nas asas do pensamento
A poesia tão grata;
Porque vejo nos meus sonhos
Tantos anjinhos dos céus,
Vem comigo, oh doce amada!
Que eu te direi os caminhos
Donde se enxergam os anjinhos,
Donde se trata com Deus.

E aquela menina, na sua virginal singeleza, estava desafrontando Gonçalves Dias, porque são dele os versos que ela ia cantando aos pés da sua estátua, inocentemente; rendendo, sem saber, enquanto o pai o amaldiçoava, o maior preito que se pode render a um poeta: repetir-lhe os versos, sem indagar quem os fez. 

Não sou supersticioso, nem o era nesse tempo, apesar dos meus treze anos, mas quis parecer-me que naquele momento a estátua sorriu. 

Efeitos do luar, naturalmente.
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* jacumaúba = piloto de canoa em navegação arriscada
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Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasceu em São Luís/MA, em 1857 e faleceu em 1913, em Buenos Aires/Argentina. Caricaturista, jornalista, escritor e cônsul brasileiro. Sua trajetória literária inaugurou a estética naturalista no Brasil. Demonstrou, desde muito jovem, grande interesse por desenho e pintura, o que o levou a mudar-se para o Rio de Janeiro em 1876, a fim de matricular-se na Imperial Academia de Belas Artes. Para manter-se na capital, desenhava caricaturas para os jornais O Fígaro, A Semana Ilustrada, O Mequetrefe, e Zig-Zag. Também rascunhava cenas de romances. Em 1878, retorna a São Luís, onde dá início à sua carreira de escritor no ano seguinte, com o romance “Uma lágrima de mulher”, ainda aos moldes da estética romântica. Trabalha também para a fundação do jornal O Pensador, publicação anticlerical e abolicionista. Em 1881, lança seu primeiro romance naturalista, “O mulato”, abordando o assunto do preconceito racial. Bem recebido na corte, apesar da temática da obra ter sido considerada escandalosa, Aluísio embarca de volta para o Rio de Janeiro, decidido a ganhar a vida como escritor. Produz diversos folhetins, que garantiam sua sobrevivência. Nos intervalos dessas publicações, geralmente melodramáticas e românticas, dedicava-se à pesquisa e à escrita naturalista, que o consagrou como grande autor brasileiro. Foi nessa época que lançou suas principais obras, Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). Aprovado em concurso para o cargo de cônsul em 1895, abandona a carreira literária. Reside na Espanha, no Japão, na Inglaterra, na Itália, na França, no Uruguai, no Paraguai e na Argentina, onde falece, em Buenos Aires, em 1913.

Fontes: 
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing