sábado, 8 de março de 2025
Giuseppe Paolo Dell’ Orso (Memórias de um Vinhedo)
Na Itália dos anos 70, a luz do sol dançava sobre as colinas da Pieve di Soligo, cidade do no interior da Itália, criando um espetáculo que parecia pintado à mão. Giovanni, um jovem de espírito livre, acordava ao amanhecer, quando a neblina ainda abraçava a terra. O aroma da terra molhada e o canto dos pássaros eram a sinfonia que lhe dava bom dia. A vida nos vinhedos era dura, mas cheia de beleza e significado.
Giovanni cresceu entre as videiras, aprendendo com seu pai os segredos do cultivo. As mãos calejadas do velho eram um testemunho de anos de trabalho árduo, e cada uva colhida era um pedacinho de história que se entrelaçava com a tradição familiar. As tardes eram passadas entre risadas e cantos, enquanto a família se reunia para a colheita. A alegria do trabalho em conjunto era contagiante e, para Giovanni, não havia lugar mais encantador no mundo.
A conexão com a natureza era profunda. Giovanni entendia que a terra não era apenas um recurso; era um lar. Ele via cada estação como uma parte do ciclo da vida — a primavera trazia o renascimento, o verão a abundância, o outono a gratidão, e o inverno, a pausa necessária. Essa harmonia era um reflexo de sua própria existência, onde cada desafio e cada conquista se entrelaçavam como as raízes das videiras.
Com o passar dos anos, Giovanni encontrou o amor em Isabella, uma jovem com olhos que brilhavam como as estrelas. Juntos, sonharam em construir uma família e cultivar não apenas uvas, mas também memórias. A cerimônia de casamento foi celebrada sob as videiras floridas, com amigos e familiares ao redor, dançando e rindo, enquanto o vinho escorria como um rio de felicidade.
A vida seguiu seu curso, e logo vieram os filhos. Cada um deles crescia correndo pelos vinhedos, brincando entre as folhas e aprendendo a amar a terra. Giovanni os ensinava a respeitar a natureza, a entender o valor de cada planta e cada animal que cruzava seu caminho. Para ele, a preservação ambiental não era apenas uma ideia; era um legado que ele desejava deixar.
Mas os anos 70 também trouxeram mudanças. A modernização começou a ameaçar o modo de vida tradicional. Máquinas pesadas substituíam as mãos calejadas, e vinhedos exuberantes davam lugar a monoculturas. Giovanni observava preocupado enquanto as colinas que antes eram vibrantes se tornavam mais áridas. O que aconteceria com o futuro dos seus filhos se a natureza fosse esquecida?
Em um dia especialmente claro, Giovanni decidiu que precisava agir. Reuniu a família e compartilhou suas preocupações. “A natureza nos deu tudo”, disse ele, com a voz embargada pela emoção. “Precisamos protegê-la, não apenas para nós, mas para aqueles que virão depois de nós.”
As crianças, com seus olhinhos curiosos, prometeram ajudar. Juntos, plantaram novas árvores, criaram um pequeno pomar e começaram a aprender sobre as práticas sustentáveis.
Os anos passaram, e a família de Giovanni se tornou um exemplo na comunidade. Outros vinhedos começaram a seguir seu caminho, buscando um equilíbrio entre tradição e inovação. A conexão com a natureza foi reestabelecida, e a beleza das colinas voltou a brilhar. A luta pela preservação não era apenas uma batalha, mas uma dança entre os seres humanos e a terra, onde cada passo importava.
Giovanni olhava para seus filhos, agora crescidos, e sentia um orgulho imenso. Havia algo mágico em ver a continuidade da vida, em saber que suas lições foram passadas adiante. As risadas que ecoavam pelo vinhedo eram um lembrete de que a natureza e a família estavam entrelaçadas, como as raízes das videiras.
Hoje, ao recordar aqueles dias, Giovanni entende que a verdadeira riqueza não está apenas na colheita abundante, mas na conexão que cultivamos com o mundo ao nosso redor. A preservação ambiental é um ato de amor, um compromisso com o futuro. E, enquanto a luz do sol se põe sobre as colinas da Pieve di Soligo, ele sabe que, assim como as videiras, a vida é um ciclo contínuo de crescimento, amor e respeito pela natureza. Que as futuras gerações possam sempre encontrar beleza e sabedoria nas lições da terra.
==================================
GIUSEPPE PAOLO DELL’ORSO nasceu em 1935, em Pieve di Soligo, na Itália. Desde jovem, demonstrava um profundo amor pela literatura, influenciado por seu avô, um poeta local. Foi para Roma estudar Literatura Italiana na Universidade La Sapienza. Destacou-se como um aluno excepcional, recebendo diversos prêmios acadêmicos. Após obter seu diploma, se mudou para a Inglaterra, onde fez pós-graduação em Literatura Comparada na Universidade de Harvard, cuja pesquisa lhe rendeu um doutorado com honras e o prêmio Harvard Literary Fellowship, um reconhecimento pela contribuição significativa ao campo da literatura. Em 2001, foi convidado a lecionar Literatura Italiana em uma universidade no Brasil, no estado do Paraná. No Brasil, se envolveu profundamente com a comunidade literária, fazendo amizade com muitos escritores locais. Organizou encontros literários e oficinas de poesia, promovendo um intercâmbio cultural que unia vozes italianas e brasileiras. Defensor ativo de causas sociais, contribuiu para várias entidades filantrópicas tanto no Brasil, quanto na Itália, focando em projetos que promovem a educação e a inclusão social, ajudando a criar bibliotecas comunitárias e programas de alfabetização em áreas carentes. Aposentado, perpetua a ideia de que a literatura é uma ponte que conecta pessoas, independentemente de fronteiras. Em 2005 criou uma conexão com o gestor cultural José Feldman. Conheceu o trabalho deste na Biblioteca de Parma onde há trovas e poemas da autoria de Feldman. Juntos, iniciaram diversos projetos que visavam fomentar a literatura e a troca cultural entre Brasil e Itália.
“A influência de Feldman na minha carreira literária é inegável. Através de suas iniciativas, não só ajudou a promover minhas obras, mas também contribuiu para a criação de uma comunidade literária vibrante, ao mesmo tempo que eu trazia uma nova perspectiva à cena literária, enriquecendo o diálogo cultural com nossas experiências e visões. A nossa amizade é um exemplo de como a literatura pode unir pessoas de diferentes culturas e origens. Juntos, promovemos a poesia e a literatura, mostrando que a arte é uma ponte que conecta corações e mentes, independentemente das fronteiras. A admiração mútua e a colaboração entre nós é um testemunho do poder transformador da amizade na literatura.” (GP Dell’Orso)
Autor de diversos livros, tanto em italiano quanto em português, com destaque para a poesia. Seus textos e poemas refletem a fusão entre a tradição literária italiana e as influências culturais brasileiras.
Fontes:
Giuseppe Paolo Dell’Orso. Cantos da Terra. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com IA Microsoft Bing
Vereda da Poesia = 223
Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009
MANHÃ
A manhã nasce das muitas janelas
deste sereno corpo fatigado,
sede dos meus caminhos sem cancelas,
na luz de muitos astros albergados.
Casa em que me recolho das mazelas,
dos louros, derroteiros, lado a lado,
para de mim ouvir franca sequela:
Ecce Homo! Eis o triste camuflado.
Essa tristeza antiga em residência,
às vezes se constrói em face alegre,
máscara sem eu mesmo em aparência
num carnaval insólito em seu frege.
O que me salva a cor nessa vivência
é saber que a poesia é quem me rege.
= = = = = = = = =
Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM
CAMINHOS DO CORAÇÃO
Quando tudo acaba no coração da gente,
Ficamos em meio a um deserto,
Sem direção, tudo é vazio,
A alma treme exposta ao incerto.
Na ânsia louca de preencher o espaço,
A alma aflita pede socorro,
O corpo balança cai em qualquer braço,
Assim começa tudo de novo,
A falsa esperança mostrou o caminho,
Em seus braços findou-se o medo,
Enganou-se de novo com falsos carinhos.
Seguiu os passos para linda miragem,
Pisou as flores, morreu nos espinhos,
E o amor começa no mesmo caminho.
De novo o deserto,
De novo o incerto,
De novo os espinhos…
= = = = = = = = =
Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal
VEM TER COMIGO, À NOITE, À MINHA CAMA
(Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 21)
Vem ter comigo, à noite, à minha cama
Falar-me das saudades que sentiste
Que eu envolvo o teu corpo que despiste
Em lençóis com o nosso monograma.
No calor do aconchego é que se inflama
O excelso dom da vida que consiste
Em fazer singular tudo o que existe
E ao apagado círio dar a chama.
Vem afogar em mim os teus cansaços
Molda-te ao travesseiro dos meus braços
Que a cama é doce, quente e hospitaleira.
Dorme que o maior bem que pode haver
É o de numa só noite alguém viver
Os sonhos todos de uma vida inteira.
= = = = = = = = =
Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP
LOUCURA VERDE
Nas longas noites em que eu me enveneno,
cigarro a espiralar sobre cigarro,
traz-me a saudade o teu perfil bizarro,
que eu não sei mais se é louro ou se é moreno.
Não é bem um perfil, mas um pequeno
alvoroço de névoas, um desgarro
de linhas onde, surpreendido, esbarro
com o teu olhar a me sorrir, sereno...
Depois teu vulto se dilui aos poucos,
mas teus olhos heris, como os dos loucos,
ficam parados, mortos, ante os meus.
— Verdes, curvos cristais, por onde eu vejo
monstros verdes passando num cortejo,
sob um sol verde como os olhos teus.
= = = = = =
Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP
CAMINHADA
A caminhada é longa, nós sabemos
que é difícil vencer este caminho,
mas a fé nos ajuda, assim nós cremos,
melhor lutar do que ceder ao espinho.
Não temer o perigo é o que queremos,
porque o mundo se torna tão mesquinho
que às vezes é preciso que busquemos
um punhado de amor e de carinho.
E enquanto a vida nos disser prossiga,
buscaremos obter na fé amiga
os pomos que a vitória nos conduz.
Almas gêmeas seremos pela vida,
unidas pelo amor – missão cumprida
para o destino que nos leva à luz!
= = = = = = = = =
Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES
DESEJOS
Queria ser
o seu “tudo” na vida...
o caminho a percorrer,
os perigos a enfrentar,
o amanhã por nascer,
o sorriso
do seu olhar.
Queria
ser o seu
agora;
o seu melhor
momento
de felicidade
e encantamento...
Queria,
ser também,
a sua,
esperança.
A sua alegria,
a sua ilusão,
e fantasia.
Queria,
finalmente,
estar em seu coração...
ser seu momento
de reflexão
na calma tarde
refletida lá fora.
= = = = = =
Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP
DESENCANTO
(Primeiro sonho de amor, 1944)
Personagens esparsos… pela vida
caminhamos, atrás de uma quimera.
Alguns se acham… o amor lhes dá guarida,
juntos mudam o inverno em primavera!
E sonhei que assim fosse… embevecida,
ao dar contigo, como se soubera
que à tua sombra, cálida e querida,
acharia a ventura à minha espera!
– Errei! Tinha as mãos de amores cheias…
E o jovem coração, já saturado,
no fogo das paixões, ainda incendeias,
pensando ser feliz, quem sabe, assim!
Nosso romance, apenas esboçado,
“ sem nunca ter começo, teve fim”. (*)
= =
(*) Chave de Ouro de Guilherme de Almeida
= = = = = = = = = = = = =
Cantiga Infantil de Roda
SAMBA LELÊ
Samba Lelê tá doente
Tá com a cabeça quebrada
Samba Lelê precisava
É de uma boa lambada
Samba, samba, samba, ô Lelê
Samba, samba, samba, ô Lalá
Samba, samba, samba, ô Lelê
Pisa na barra da saia, ô Lalá
= = = = = = = = =
Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO
Abrigo de todo o mundo,
tens, quarto, testemunhado
exaltação do feliz
e queixas do desgraçado.
= = = = = = = = =
Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR
VENTO MENINO
Vento menino
Despenteia meus cabelos
Brinca de Destino
E espalha as reticências...
Vento Menino
Faz com que eu viaje em sonhos
E reencontre meu Amor...
= = = = = =
Luciana Soares (O Mistério do Pastel Desaparecido)
Toda sexta-feira era sagrada, na casa do Espanhol e de sua esposa Lulu, um rodízio de pastéis! E quem comandava a fritura (pilotava o fogão), era Dona Luiza, a sogra, uma verdadeira autoridade em massas crocantes e recheios generosos.
Os sabores eram variados: queijo, palmito, carne, camarão etc., mas o queridinho da família era o pastel de banana.
Aquela semana, resolveram inovar e ousaram investir na versão: banana com queijo. Espanhol, que torceu o nariz no início, foi o primeiro a se render. Lulu deu a ideia de fazer meia dúzia, já prevendo a disputa.
Quando os pastéis ficaram prontos, o cheiro dominou a casa. Dona Luíza organizou tudo na mesa e, entre goles de suco e mordidas crocantes, chegou a vez de degustarem o “sexteto”, nome que deram aos pastéis. Dos seis pastéis de banana com queijo, cinco foram devorados em tempo recorde. Mas, e o sexto?
Espanhol, com a boca cheia, jurou que só comeu um. Lulu levantou suspeitas, mas estava certa de ter pegado apenas dois. Luiza, indignada, alegou que só deu uma mordida no dela.
A tensão pairou no ar. Reviraram a travessa, olharam embaixo da mesa, até checaram o “dog” da vizinha que apareceu na porta. Nada do pastel.
A tradição das sextas-feiras se manteve, mas desde então, toda vez entre uma mordida e outra, a pergunta ressurge: "Cadê o pastel que sumiu?"
E até hoje ninguém assumiu.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
LUCIANA SOARES CHAGAS é do Rio de Janeiro/RJ. Doutoranda em Educação, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Especialista em Gestão de Recursos Humanos. Formação em Pedagogia Empresarial. Especialização em Mídias e Tecnologia na Educação pela Universidade Veiga de Almeida e Licenciatura em Pedagogia. Docente há mais de 10 anos dos cursos de MBAs do Núcleo de Negócios e das Pós Graduação de Educação. Palestrante nas Jornadas presenciais para os alunos da EaD. Atuou como Instrutora comportamental em empresas como ABRADECONT, Marinha de Brasil-EMGEPRON, Miriam S.A., CIPA Administradora (BKR-Lopes e Machado), IBEF, Casa de Cultura (SevenStarmarketing). Diretora e sócia da Prassos Treinamento Empresarial. Autora de diversos E-books de disciplinas da área de Pedagogia na Universidade Veiga de Almeida e Organizadora do Livro E-Book da Coletânea de textos sobre inclusão escolar: Pedagogia.
Fontes:
Texto enviado pela autora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
sexta-feira, 7 de março de 2025
Monsenhor Orivaldo Robles (O desperdício)
Faz anos, era véspera do aniversário de meu afilhado, criança dos seus quatro ou cinco anos. A comadre surpreende-o atirando ao lixo um monte de brinquedos. “Que é isso, filho?”. A resposta desconcerta-a: “Ah, mãe, amanhã é meu aniversário. Vai vir tudo novo”. A comadre não alisa. Faz desabar sobre o pequeno um sermão a respeito de crianças pobres, que se sentiriam felizes com um só daqueles brinquedos que ele estava jogando fora. O compadre reforça a bronca. Conta de sua infância na zona rural. Com os irmãos fabricava os próprios brinquedos utilizando carretéis de linha usados, sarrafos de madeira, vidros de remédio vazios e outras peças. “O pai e os tios, meu filho, nem sonhavam com um brinquedo desses que enchem o seu quarto. Um só já nos tornaria felizes. Mas a gente não tinha dinheiro”. Confrange-se o coraçãozinho do garoto. Ele cai num pranto sentido, que pai e mãe precisam consolar.
Dias depois, na pia da cozinha aparece aberto um potinho de iogurte quase cheio. A repreensão vem na hora: “Filho, se você não aguentava tomar um inteiro, por que abriu? Quantos pobrezinhos desejam um iogurte...” Rápido, ele corta o discurso: “Ih, pai, não vem de novo com esse papo dos pobres, que outro dia eu fui obrigado a chorar por causa deles”.
A cena acontece todos os dias numa infinidade de lares brasileiros. Infelizmente, nem todos os pais são educadores como o compadre e a comadre. Boa parte se preocupa com cortinas, camas, sofás e roupas. Cuidam que restos de comida ou bebida não os emporcalhem. Cuidado cosmético, beleza externa para os outros verem, só isso.
O desperdício é hábito generalizado, que importa combater desde cedo. A criança não tem ideia do uso correto das coisas. Não sabe se está gastando muito ou pouco. Precisa de orientação sobre o sentido exato de quantidades e valores. Senão, vai se acostumar com o esbanjamento. Se os pais não transmitem, também no consumo, noções de disciplina – pior, se eles mesmos dão exemplo de gastança irresponsável –, será difícil corrigir vícios arraigados no povo.
O opúsculo “Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome”, publicado em abril de 2002 (Documentos da CNBB – 69), ensina, já no subtítulo: “Alimento, dom de Deus, direito de todos”. O acesso à comida de qualidade e em quantidade suficiente é direito de toda pessoa, de qualquer condição, em qualquer lugar do planeta. Como se tornar gente, na plenitude do termo, sem poder se alimentar?
A este absurdo chegamos: países cheios de pessoas doentes por comerem em excesso, enquanto em outros a população vem sendo exterminada pela fome. Dentro do Brasil convivemos com ambas as situações. Temos gente desperdiçando, ao lado de quem não possui o necessário para comer.
O problema vem de longe. Não será resolvido da noite para o dia. Mas é preciso que todos se sintam comprometidos. Não adianta ficar lançando a culpa nas costas dos outros. Para o faminto pouco importa quem provocou a fome. O que ele quer é comida.
Nas propostas concretas, sugerem-se medidas possíveis, algumas bem simples, como “educar para o melhor aproveitamento do alimento produzido, evitando todo o desperdício”.
É urgente começar dentro de casa, educando as novas gerações. Como, desde muito, fazem os compadres.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
MONSENHOR ORIVALDO ROBLES nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória - Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro "Celeiro Desprovido", com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.
Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
Antonio Brás Constante (Você sabe distinguir entre o certo e o errado?)
O ser humano é capaz de agir de acordo com um princípio moral coerente? E você? Você acredita ter a capacidade necessária para resolver seus próprios dilemas éticos? Outro dia li sobre um estudo feito por um pesquisador chamado Hauser, através do livro “Deus, um Delírio”, do escritor Richard Dawkins, onde foram colocados alguns dilemas morais a uma série de indivíduos, buscando respostas para estas perguntas.
No primeiro dilema haviam cinco pessoas presas aos trilhos de uma ferrovia, e você (sim, você leitor) tinha acesso ao centro de comandos dos trilhos. Um trem desgovernado vinha em direção a essas pessoas, e somente você poderia desviá-lo para uma linha secundária salvando a vida dessas pessoas, porém, na linha secundária também havia uma pessoa presa aos trilhos, ou seja, salvando as cinco pessoas você mataria o infeliz que estava sozinho, sabe-se lá fazendo o quê, nos outros trilhos. De acordo com o livro de Dawkins, diante deste dilema, aproximadamente 90% dos entrevistados, optou por sacrificar aquela pessoa solitária para salvar as outras cinco.
No segundo dilema havia cinco pacientes em um hospital que precisavam de transplante, cada um necessitava de um órgão diferente, você era o médico-cirurgião responsável pelo hospital, e descobriu que havia uma pessoa na sala de espera que era compatível com aqueles cinco pacientes, a pergunta agora é, se não existissem complicações jurídicas, apenas morais, você sacrificaria essa pessoa para salvar as outras cinco? Em torno de 97% dos entrevistados disse que era imoral matar alguém para salvar os pacientes.
Agora vamos misturar tudo e colocar os cinco pacientes no trilho principal do trem e o homem da sala de espera no trilho secundário, neste caso haveria ou não problemas na morte do homem sozinho para salvar os outros? Pode-se notar que no primeiro caso o arauto da morte é um fator externo (o trem) e que todos são vítimas sem qualquer conexão com o artefato, já no segundo caso o fator “morte” está intrínseco a cada um dos cinco doentes, como uma espécie de sina destinada a eles, neste caso pareceria injusto que outro indivíduo fosse sacrificado para salvá-los.
Na reflexão sobre estes dilemas o peso da decisão tende a se alterar quando novos elementos são apresentados, tais como: E se algum dos cinco pacientes fosse próximo a você (mãe, irmão, sogra, namorado cabeludo e tatuado da sua filha, etc), e o homem sozinho fosse um total desconhecido, ou quem sabe um corrupto, ou até sua ex-mulher? E se fosse o contrário? No caso dos trilhos, e se os cinco indivíduos fossem procurados pela polícia? E se a pessoa sozinha fosse uma criança? E se você tivesse que arremessar a pessoa nos trilhos para salvar as outras? E se essa pessoa fosse Madre Tereza de Calcutá? Ou Hitler? Ou se fosse seu filho...
Nossa mente vai dançando conforme as situações que vão se apresentando, onde o certo e o errado vão mudando de lado a cada nova informação, mas no fundo o resultado final é sempre o mesmo, trocar cinco vidas por uma ou vice-versa. Outro fator interessante é que quando apresentado em pequenas proporções, muitas vezes não nos damos conta do que podem representar tais escolhas, mas quando multiplicamos os números, nossa percepção muda, por exemplo, ao invés de cinco pessoas aumente para cinquenta milhões, e troque o indivíduo solitário por uma minoria de alguns milhões de habitantes, e perceberá como estas escolhas soam parecidas com aquelas difundidas pelas tiranias, para justificar seus genocídios históricos.
Dispomos em nossa herança genética de vínculos relacionados ao senso moral inerente a cada indivíduo. Algo forjado nos mesmos primórdios que definiram os sentimentos e sentidos de autopreservação de nossas vidas. Apesar de entendermos muitas de nossas escolhas como emocionais, elas acabam tendo raízes bem mais profundas e desconhecidas dentro de nossa frágil cabeça, do que podemos imaginar.
Somos um produto da evolução, que nos moldou tal qual um boneco de barro para se chegar até onde nós chegamos. E apesar de ser desprovida de qualquer mágica, o resultado de toda esta ciranda existencial é algo verdadeiramente encantador em seu produto atual e não final, pois assim como o universo, nós também somos obras inacabadas do ponto de vista macro de nosso desenvolvimento como raça, porém, finalizados diante de nossa finita condição humana.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
ANTONIO BRÁS CONSTANTE é natural de Porto Alegre. Residente em Canoas RS. Bacharel em computação, bancário e cronista de coração, escreve com naturalidade, descontraída e espontaneamente, sobre suas ideias, seus pontos de vista, sobre o panorama que se descortina diferente a cada instante, a nossa frente: a vida. Membro da ACE (Associação Canoense de Escritores).
Fontes:
Recanto das Letras. 16 agosto 2009.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1756856
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
terça-feira, 4 de março de 2025
Manuel de Oliveira Paiva (Pobre Moisés que não foste!)
A janela estava aberta ao luar: porém, de uma grande amendoeira, que subia quase apegada aos altos muros da casa, caíam sombras negras fazendo lavores imensos no pano do caiamento, e assim, era numa grande mancha, preta como uma nuvem de chuva, que a janela emoldurava-se, adquirindo as parecenças de um remendo quadrilongo, de um tampo de fogo, sobre um pano de trevas. Uma cabecinha loira despontou do ambiente luminoso, e rapidamente fechou-se. Ficou tudo no escuro cá fora, a não ser a face dos corpos onde batia o luar. O murmurejo das ondas ressoava como a escoar pelo chão.
O regato achatava-se morno e quase invisível sob rijos golpes de sombra. Um corpo alvo se encaminhava por ele acima, e ouvia-se o chape-chape dos pés.
A intervalos, o corpo resplendia de luar.
Depois, a janela abriu uma greta, como uma larga fita de fogo, e a fita fez-se mais larga, e em seguida, de modo que rasgou-se e desapareceu. Ficou tudo no escuro outra vez, a não ser a face dos corpos onde batia o luar.
No dia seguinte, a noite estava zangada. A lua, que ontem era a princesa de pezinhos pequenos, hoje era a Maria Borralheira; tudo era cinza no seio do luar, nem as lindas sombras negras e nem os coloramentos mágicos porejando encantos de poesia e saudosa tristeza. O céu queria chover, o céu queria chorar, o céu queria mais proteger a virgem que lhe confidenciara na janela aberta.
Virgem?!
Pois quem é que não conhece na vila o velho Antônio Faraó? É aquele que habita no sítio cheio de canaviais. Ele é o senhor da mulher loura que apareceu na janela. É um homem sem mácula. Jesus, então, por que é que a janela não se tornou a abrir? Pois aquilo não era a alegria dos raios da luz e a predileção das sombras da amendoeira? A amendoeira? Cortaram-na!
E quem era aquele que subia a corrente fazendo chape-chape? Ele amava muito a mulher loura. Um dia ela disse-lhe: — Quando vires a luz na minha janela, sobe a amendoeira, e apega-te ao lençol que penderá da sacada.
E ele viera; mas, quando tornou a desaparecer na corrente, fazendo chape-chape, jurou a si que ali não voltava mais. "Tu me enganaste! dissera ele, ao despedir-se dela. — Meu pai só planta em roçado novo. A capoeira é para se dar aos cavalos."
"Não compreendo" — respondera-lhe a amante. — E logo desatou a chorar.
O homem tinha o coração de fogo, porém a decepção apagou. E ficou de gelo. Assim, para nunca mais, desapareceu na corrente, fazendo chape-chape.
— O velho Antônio Faraó quase endoideceu. A mulher loura botou-se a ele como uma fera e disse-lhe:
— "Desgraçado!"
E calou-se. Não disse mais, porque estava toda cheia, desde o cérebro até ao ventre. Caiu para trás, e pediu veneno a ele — que pelo amor de Deus matasse-a! Mas, neste ponto, ajoelhou-se, pôs as mãos, e pediu-lhe, cheia de lágrimas, que a deixasse viva, porque, santo Deus, no seu corpo de mulher palpitavam dois corações vivendo um da vida do outro.
Contudo, era tremendo e feroz o olhar que ela flechava para o pai de seu filho. E achava horrível a ideia dele, a de ter aberto a janela para a entrevista de um inexperiente mancebo, afim de salvar a honra.
"E então? blasfemara o velho, chacoteando, a remexer num saco de dinheiro — Porventura José não é o pai de Jesus?..."
Hediondo!
E os meses corriam, bem como as águas do riacho. Uma vez, vinha rompendo a aurora, e foi a primeira vez que a janela se abriu, desde que o mancebo veio e foi para nunca mais. Foi também a primeira vez que a mulher loura sorriu, desde aquela cena com o António Faraó. Agora ela podia morrer, porque os dois corações que palpitavam no mesmo corpo se tinham separado: o seu filhinho nascera! E foi por isso que o sorriso da mocidade reabriu-lhe os lábios secos de mártir.
Mas era preciso salvar a honra de Antônio Faraó. A mulher loura desmaiara num frouxo de sangue. Nesse ínterim, desapareceu o seu filho. Ela acorda, ergue-se pálida, grita por ele, e acima de suas forças, corre à janela donde sentia-se cheiro do rosicler da aurora, se debruça, estira o pescoço, aflita...
Nas praias do riacho cavava um homem, com a ponta de um facão, uma covinha onde se poderia sepultar um botão de rosa.
Com as suas praias lavadas, o riacho parecia um poço comprido e interminável, manso, com uma correnteza que lhe esflorava apenas, e umas tremulações de quando um líquido quer abrir a fervura; de modo que as ondulações eram antes efeito de um ventinho que a ameaçava engrossar. As águas, em si, aparentavam uma quietude, uma pachorra admiráveis.
O lugar, onde o homem cavara uma covinha, era sob o dossel de uma bananeira. O sol, no limbo de uma larga folha de tinhorão, avivava transparências, desenhava-lhe velames como em fina cútis de moça, e projetava embrazinhas, que o vento movia tremendo, para o pequeno cômoro que entupira a covinha onde sepultar-se-ia um botão de rosa.
Por cima do bosque o dia empoeirava deslumbramentos sem par. As flores se destacavam nas polpas enormes da folhagem, e pareciam rir de inocência.
Mais tarde caiu a chuva e o riacho encheu, subiu, trepou, até as moitas do bananeiro. Agora, mourejava nas areias do leito a ação de uma volumosa corrente, improvisando cômoros e os desfazendo.
Nos tapumes, ao passar entre as estacas, a água se abria como dedos, a espumar e a marulhar. Escavava canais, espraiava e revolvia-se no polme (massa líquida) do enxurro. A superfície líquida não era mais uma casquinha de espelho que em seu seio recebia um paraíso ideal pintado para debaixo do chão a golpes de sol e de claridade.
O turbilhão montava. E parecia um rio de lama, chicoteado pelos cordõezinhos da chuva. Caía sobre a natureza uma zoada infernal.
O sol, pé ante pé, rasgando uma brechinha entre as altas nuvens de repouso, furava pelo dossel do bananeiro e descia até ao lugar do cômoro que encobria a covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. "Nada. Aqui não está coisa alguma." O sol falava consigo mesmo, gesticulando como um espião, na pontinha dos pés, com um olhar tão vivo que abria transparências no limbo das grandes folhas. Foi adiante.
O riacho tomara juízo, recolhendo-se ao seu leito modesto e voltando à pacatez de bom colega. Recebeu o sol com todas as cortesias. Acendeu rebrilhamentos à tona, encheu-se de imagens que pareciam um paraíso debaixo do chão, mostrou que imensamente amava aos seus amigos a ponto de conservar dentro de si o retrato vivo do bananeiro, e dos tinhorões verdes e púrpuros, e das touceiras de borboletas, de tudo e de tomos, até do próprio céu que bem alto mora.
Porém ambos se retraíram quando avistaram, passando o caule do coqueiro caído que servia de ponte, a mulher loura que habitou a janela do castanheiro cortado. A imagem caía de águas a fundo com a cabeça para baixo. Aqui o sol acendeu-se mais, a fim de que o riacho gozasse da aparição, e pintasse grandes segredos, e fartasse o peito nela toda. Ela passou e foi direitinha ao lugar onde vira o homem cavando com um facão uma covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. E deu um grito, abugalhou os olhos, e caiu de joelhos, mãos postas para o céu:
— Ah! Ela olha para cima, o seu olhar se parece comigo, os seus cabelos são meus irmãos. Implora para cima, é a mim que ela pede, porque aqui quem manda sou eu — disse o sol, incandescendo raios de alegria.
— O que ela quer sei eu, que vi tudo — respondeu o riacho. — E cochichou com o sol, que se estendia sobre ele, num amplexo dourado.
Vamos, protejamos a pobre mãe!
— Mas olha, não vês tu aquele sujeito que atravessa a ponte e segue os mesmos passos da mulher loura?
— Que importa! Protejamos a pobre mãe! Ela é a judia cativa, tu és o Nilo, e eu sou o grande Deus dos oprimidos! Anda! Revolve-te!
Sobre a água estendiam-se natas de claridade trêmula ao fremor da corrente. Folhas maduras do bananeiro e tudo o mais ao redor, como que era chupado para o fundo, em perspectiva. E as águas em comoção pareciam de bronze dourado, pareciam de seda furtiva entre verde e cor de fogo. E esse manto com modos que se ia rasgando. O zéfiro soprava embalamentos doces na folhagem. O sol tremia paternalmente. E num grande riso de luz e de marulhos, o riacho apresentou ao sol, de repente, no chamalote encantador das águas, o corpo encantador de um cupidozinho de espumas.
A mulher soltou um grito alegremente desvairado e saltou para as águas. Porém não pôde. O homem que, armado de um facão, abrira a covinha onde poder-se-ia sepultar como um botão de rosa o corpinho encantador de uma criança morta, estava ali e agarrou-a.
Ela ficou esbugalhando um olhar de pedra para a tumidez das águas. Ele também olhava assim. E a corrente lhes parecia membrana viva de um animal, de modo que o lombo chato de uma cobra que não acabava de passar, de uma cobra insinuante, fascinadora, que hipnotiza.
Assim, deslizava o riacho por entre a vegetação, como uma serpe. E ali, estava a mulher loura tolhida pelo homem do facão, semelhante um jacaré sob as garras de uma onça.
E o cupidozinho foi, foi, foi, e sumiu-se nas águas onde quando a gente andava fazia chape-chape.
Fontes:
Manuel de Oliveira Paiva. Contos. Publicado originalmente em 1888. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
Vereda da Poesia = 222
Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009
MALA COM ALÇA
É da lama essa mala que retiro
para subir a encosta (como a pedra
que Sísifo ainda empurra todo dia)
numa viagem cheia de sequelas.
Não há como negar tantos espinhos
na travessia turva de mistérios
que vão-se descobrindo nos caminhos:
a mão negada, a fome, o vitupério,
o rito solidário que esquecemos
em troca a vaidade transitória.
Somos do barro e ao barro voltaremos.
A verdade do Homem e de sua Hora
vem com mala e alça, disto sabemos,
mais o peso do corpo e sua história.
= = = = = = = = =
Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM
AMO
Amo os beijos da sua boca
E o enlace dos seus braços
Amo, como quem ama... Somente
Como um amor outrora ausente... Que volta
No deslace do desejo ardente
Amo o calor do corpo seu
Tudo em ti que, agora é meu
Amo o fogo que não se apaga
A fonte que encandeia
O vento que nos abrasa
Nas noites de lua cheia
Amo o tempo moroso
E o amor que, em amor se encerra
Puro, eterno... Gostoso.
= = = = = = = = =
Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal
QUANDO EU VOLTAR À TERRA DE ONDE VIM
(Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 19)
Quando eu voltar à terra de onde vim
Não chorem que essas lágrimas não trazem
O meu olhar ao chão onde se fazem
As rosas que incendeiam um jardim.
Nem rezem, nesse já morto Latim
Ladainhas que em nada satisfazem
As pálidas lembranças em que jazem
Os restos do melhor que havia em mim.
Entreguem o meu corpo ao fogo santo
Que o limpe do pecado e do quebranto
Até que dele sobre apenas pó.
E o meu penar talvez não seja em vão
Vendo que o trigo, antes de ser pão
Primeiro há de passar por qualquer mó.
= = = = = = = = =
Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP
O POEMA DA CASA QUE NÃO EXISTE
Onde a cidade acaba em chácaras quietas
e a campina se alarga em sulcados caminhos
achei a solidão amiga dos poetas
numa casa que é ninho, entre todos os ninhos.
Térrea, branquinha, com portadas muito largas,
desse azul português das antiquadas vilas
e uma decoração de laranjas amargas
que perfumam da tarde as aragens tranquilas.
Ergue-se no pendor suave da colina,
escondida por trás dos eucaliptos calmos;
tem jardim, tem pomar, tem horta pequenina,
solar de Liliput que a gente mede aos palmos ...
Neste ponto, a ilusão, a miragem, se some;
olho para você, eu triste, você triste.
Enganei uma boba! O bairro não tem nome,
a estrada não tem sombra, a casa não existe!
= = = = = =
Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP
APÓS A TEMPESTADE
O vento chega e sopra muito forte
anunciando, em trovões, a tempestade,
as folhas arrancadas com vontade
revoam à mercê da injusta sorte.
Raios cortam o céu de Sul a Norte,
um prenúncio de horror, calamidade,
estrondos são ouvidos na cidade
gerando medo, caos e a própria morte.
Tristonha, a tarde se vestiu de escuro,
e a chuva desabou estrepitosa
como se castigasse o povo impuro.
A noite chega e adentra pela fresta,
céu estrelado e a lua tão formosa
e a Natureza, eu vi, estava em festa!
= = = = = = = = =
Balaio de Versos de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE
A MENTIRA
Mentira tem perna curta...
diz o dito popular;
e só em quem dela se furta
devemos acreditar!
Se tu mentes, eu proponho:
não mintas! Mesmo dormindo
isto é feio, e nem em sonho
eu quero te ouvir mentindo!
A mentira só tem graça
dita pelo Pantaleão;
na verdade ela é uma traça
que corrói qualquer união!
Sabe, aquela "mentirinha"
dita..., sem má intenção?
Pois é..., como esta "coisinha"
fere o nosso coração;
e a dor por ela causada
só pode ser reparada
quando se pede perdão!
Quem planta uma "mentirinha"
no pomar do coração
mal sabe que esta "plantinha"
destrói toda plantação;
e deve logo arrancá-la
pela raiz, e queimá-la
na fogueira do perdão!
= = = = = =
Soneto de
HEGEL PONTES
Juiz de Fora/MG (1932 – 2012)
LADAINHAS DA SAUDADE
Vem, companheira,
encostar o silêncio de tua fronte
no meu ombro de espera
e derramar no meu peito
a maciez de teus cabelos.
Que madrugadas vazias
alongavam teus pensamentos
no caminho do silêncio?
Entendo que não digas.
A solidão,
que pintava a tristeza nos teus olhos,
também segredava em meus ouvidos
ladainhas e ladainhas de saudade.
Vem, companheira,
para o leito dos meus braços
desmentir angústias
de noites indetermináveis.
Minhas mãos
transbordam carícias
que tua inventou…
Vem, companheira,
fecha os olhos
e deixa que anoiteça.
= = = = = = = = = = = = =
Cantiga Infantil de Roda
PASSARINHO DA LAGOA
(cateretê/toada, 1949)
É uma roda de meninas, cantando:
Passarinho da lagoa
Se tu queres avoar
Avoa, avoa
Avoa já
O biquinho pelo chão
As asinhas pelo ar
Avoa, avoa
Avoa já
Quando dizem — O biquinho pelo chão — todas se curvam, imitando o passarinho.
Quando cantam — As asinhas pelo ar — todas levantam os braços e balançam, imitando o bater das asas dos pássaros
= = = = = = = = =
Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO
Resposta branda e suave
quebra da ira o furor;
palavras duras excitam
ressentimento e rancor.
= = = = = = = = =
Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR
SEMENTES DE CEREJAS
Hoje, no fim de tarde,
Acariciei a terra
E à sombra do teu sorriso
Plantei com amor,
As sementes de cerejas,
Cerejas que colhi para você…
= = = = = =