quarta-feira, 16 de julho de 2025

Asas da Poesia * 51 *


Trova de
MANOEL CAVALCANTE
Pau dos Ferros/RN

Puseste-me na clausura!
E hoje, em sonhos sem sentido,
eu me alimento da jura
que murmuras noutro ouvido…
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Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Moinhos de vento

As invasões letais de ervas daninhas,
nossos rosais repletos de falenas;
saúvas temporãs cortando as vinhas...
não trazem tempos bons, eras serenas...

Poeta cônscio, em tantas entrelinhas,
versei, sem a influência dos mecenas,
e tantas vezes vi que são só minhas
as frases que aos demais são “cantilenas”.

Não quero mais falar dos caules tortos,
dos joios infestados nos trigais,
que a ação da “sarracênia” é covardia...

Melhor, talvez, que fossem todos mortos,
mas... vidas são premissas capitais...
E eu sempre fui contrário à eugenia!
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Trova de
ANGÉLICA VILLELA SANTOS
Guaratinguetá/SP, 1935 – 2017, Taubaté/SP

Às crianças ensinemos
que a nossa união é que traz
a este mundo em que vivemos,
a grande benção da paz!
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Poema de
CARLOS LÚCIO GONTIJO
Santo Antônio do Monte/MG

Falsa retidão

Tudo o que quis ser e não fui
Hoje se dilui sobre o que sou
Em meu passo o mar do destino flui
No que não sou o pedaço do que sou está
Esquecimento faz parte da lembrança
Esperança com a desesperança convive
A vida vive em meio a muita morte
O mais forte nem sempre é valente
Pode não ser contente a pessoa feliz 
Há muita presença cheia de ausência
Muita ausência que presença marca
Refletindo a fiel luz da transparência
Que reflete o ser humano em solidão
Pois que sob o pano solerte da multidão
Todos aparentam viver em retidão
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Trova de
ADILSON ROBERTO GONÇALVES
Lorena/SP

A família do passado
era unida, sempre em festa;
hoje tudo é conectado,
mas pouca relação resta.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Só se chora por quem parte
(Manuel Lima Monteiro Andrade in "Mãos abertas", p. 20)
 
Choremos por quem parte sem voltar
A ser presença viva à nossa mesa
E desse imenso reino da tristeza
Desça à terra num raio de luar.

Ausente, para sempre, em nosso olhar
Terá em nosso peito a fortaleza
Que guarda a delicada vela acesa
Da memória que brilha em seu altar.

De saudade será a sua imagem
Que se esvai como um barco na viagem
No denso nevoeiro, rumo ao norte.

Só quando a sua face tão inteira
Não nos assomar, sem que a gente queira
Só então foi levada pela morte.
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Trova de
CRISTINA CACOSSI
Bragança Paulista/SP

Reunião familiar
tem nova tecnologia:
usa o verbo conectar
em total desarmonia...
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Poema de
LUCIANA SOARES CHAGAS
Rio de Janeiro/RJ

Luíza

Luíza, nome que soa como poesia,
Mulher de fé, sorriso que irradia,
Com batom suave, enfeita o dia,
Mãe, esposa, amiga, harmonia.

Tão terna e carinhosa no gesto,
Generosa alma, sempre manifesto,
Disponível ao amor, tão desmedida,
Tu és o melhor livro que já li na vida.

Avó que conta histórias com doçura,
Bisavó, um pilar de ternura,
Destemida, enfrenta cada jornada,
Com a força que só o amor embala.

Luíza, és essência, és beleza,
Um coração que vibra com pureza,
Tua luz é eterna, não se desfaz,
Um poema vivo, escrito na paz.
= = = = = = 

Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Do sino, ouvindo a amargura,
da tarde que já morria,
fiz da triste partitura
a mais feliz melodia !
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Soneto de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Inspiração

Busquei a inspiração a duras penas
para escrever, com fé, este soneto,
e quero que as palavras mais amenas
sejam a Paz e o Amor, como dueto.

Que vou dizer das provações terrenas,
se o ninho é construído com graveto?
– Será melhor curar dores pequenas
e confirmar aquilo que prometo.

Mas teimo em encontrar a inspiração
que se escondeu e foge com razão,
deixando amargurado este poeta…

Clamo de novo e então ela aparece
trazendo junto aos peito farta messe
e agora, sim, a noite está completa!
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Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

O destino traiçoeiro
separou-nos, sem piedade,
mas o amor fez do carteiro
o porta-voz da saudade.
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Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

Soneto classe média, baixa

Quando eu me aposentar… Irei morar em Vênus!…
(O I.P.T.U. de lá, é menor que o da lua.
Há descontos de lei sem qualquer falcatrua
e sem taxas de lixo embutida em terrenos).

Aposentadoria é crime?…(Mais ou menos…
se for por doença não é, mas a verdade crua,
é que os espertalhões desfilam pela rua
cheios de “ME APOSENTEI”) — Que salários obscenos!

Quando eu me aposentar…(Se eu puder, o pijama,
o radinho de pilha, o travesseiro, a cama,
nenhum deles terá um minuto de folga).

Quando eu me aposentar… Urras e Vivas! Bingo!
Os dias de semana, o sábado… o domingo…
serão todos iguais. É isto que me empolga!
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Não chores, mãe, os pinheiros
que o pai cortou com afeto,
pois são agora os madeiros
que sustentam nosso teto!
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Cantiga Infantil de Roda
SERENO DA MEIA-NOITE 

É uma roda de crianças, com uma no centro. Cantam as da roda:

Sereno da meia-noite }
Sereno da madrugada } bis

Eu caio, eu caio }
Eu caio. sereno, eu caio } bis

Responde a menina do centro:

Das filhas de minha mãe }
Sou eu a mais estimada } bis

Eu não m'importo, }
Que da amiguinha, }
Eu seja a mais desprezada } bis
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Quanto a teteia abre o pico,
turva-se o tempo, meu bem;
quem tem sua dor, que gema,
que eu não sou pai de ninguém.
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Ecoam cantigas na memória...
À sombra da árvore
Brincam de roda as targets.
Crianças traquinas...
Em movimento, mesclam-se as cores
Entre os raios do sol.
Tontos com tanta beleza
Os olhos sorriem satisfeitos
Pois brincando de roda foi o jeito
Que encontrei pra segurar as tuas mãos.
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Trova de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Minha saudade em vigília
revive os velhos Natais,
das orações em família
que os anos não trazem mais.
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Poema de
MÁRIO DE ANDRADE
São Paulo/SP 1893– 1945

    Eu Sou Trezentos...

    Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
    As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
    Ôh espelhos, ôh ! Pirineus ! Ôh caiçaras !
    Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro !
    Abraço no meu leito as melhores palavras,
    E os suspiros que dou são violinos alheios;
    Eu piso a terra como quem descobre a furto
    Nas esquinas, nos táxis,
    nas camarinhas seus próprios beijos !
    Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
    Mas um dia afinal toparei comigo...
    Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
    Só o esquecimento é que condensa,
    E então minha alma servirá de abrigo.
= = = = = =

Trova de
MARINA GOMES VALENTE 
Bragança Paulista/SP

Nesta era da informática,
computadores de mão,
sugam da família, a prática
da confraternização.
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Soneto de
AMADEU AMARAL
Capivari/SP, 1875 — 1929, São Paulo/SP

Voz íntima

 Fecha-te, sofredor, na alva túnica ondeante
Dos sonhos!  E caminha, e prossegue, embebido,
Muito embora, na dor de um fiel celebrante
De um estranho ritual desdenhado e esquecido!

 Deixa ressoar em torno o bárbaro alarido,
Deixa que voe o pó da terra em torno... Adiante!
Vai tu só, calmo e bom, calmo e triste, envolvido
Nessa túnica ideal de sonhos, alvejante.

 Sê, nesta escuridão do mundo, o paradigma
De um desolado espectro, uma sombra, um enigma,
Perpassando sem ruído a caminho do Além.
 
E só deixes na terra uma reminiscência:
A de alguém que assistiu à luta da existência,
Triste e só, sem fazer nenhum mal a ninguém.
= = = = = = 

Trova de
VERLAINE TERRES
Gravataí/RS

Euforia, minha gente,
faz inveja ao coração...
pois sempre que alguém a sente,
vem logo a desilusão.
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Hino de
SÃO JOSÉ DE MIPIBU/ RN

São José de Mipibu, terra linda de coqueirais
Em teu seio onde está a tua gente
Terra linda de carnavais, com seus verdes canaviais
Que estarão sempre a embelezar

REFRÃO
Mostrarás tua cultura, teu orgulho e teu esplendor
Seus artistas, suas famílias, seus poetas
E um povo trabalhador...

São José de Mipibu, para sempre triunfarás
No agreste, no sertão e litoral
Os seus rios, os seus pássaros e a bonita Mata da Bica
Vão ser sempre o jardim do seu quintal

Seus sobrados, suas casas e os Índios de Mopebus
Na lembrança do seu povo ficarão
Os engenhos de outrora e os seus filhos mais ilustres
Para sempre o seu povo lembrará.
= = = = = =

Trova de
GÉRSON CÉSAR SOUZA
São Leopoldo/ RS

Não julgue alguém pela imagem,
pois muitos fazem de tudo
para esconder na “embalagem”
a falta de conteúdo.
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Soneto de
COLOMBINA
(Yde Schloenbach Blumenschein)
São Paulo/SP, 1882 – 1963

Invicta

As distâncias venci e venci as procelas
da vida; e toda a humana ingratidão venci.
Dos sonhos que sonhei, as áureas caravelas,
afundá-las no mar do olvido, consegui.

Vitoriosa alcancei as altitudes belas
da solidão! E, altiva, então, aos pés, eu vi       i
espatifar-se um mundo em ódios e querelas
e só desprezo foi o que n'alma senti,

Os venenos do amor e da ilusão, venci-os!
Invejas, detrações (ladrar de cães vadios)
e calunias pisei, como se faz á lesma,

Mundanas tentações e aspirações de gloria,
tudo venci, enfim. A única vitória
que não pude alcançar, foi vencer a mim mesma.
= = = = = = = = = 

Trova de
ADAMO PASQUARELLI
São José dos Campos/SP

Esse é o trem de minha vida!
Passou rápido e fugaz
na tresloucada corrida
dos meus tempos de rapaz.
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Soneto de
CORNÉLIO PIRES
Tietê/SP, 1884 – 1958, São Paulo/SP+

A Origem do Homem

 — O senhor por acaso não descende
dos bugres que moravam por aqui?
— Hom'eu num sei dizê, vancê compreende
que essa gente inté hoje nunca vi.

 Mais porém o Bernado dis-que intende
que os moradô antigo do Brasi
gerava de macaco!... Inté me offende
vê um véio cumo elle, ansim, minti.

 D'otra feita um cabocro - ai um caiçára -
dis-que nasci um de dois e inté de treis,
quano estralava um gommo de taquara!

 Nois num temo parente purtugueis,
nem mico, nem cuaty, nem capivára...
Semo fio de Deus cumo vanceis!
= = = = = = 

Trova de
RODOLPHO ABBUD
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013

Um longo teste ela fez,
de cantora com requinte:
– Cantou somente uma vez,
mas foi cantada umas vinte!
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Poema de
CLEVANE PESSOA
Belo Horizonte/MG

Um copinho d'água, um rio, a poça...e a sede...
 
 Um simples copinho d'água,
 se posto ao alcance do olhar,
 é promessa de que em breve,
 a sede se vai saciar...
 Mesmo quem anda na neve.
 como quem dorme na praia,
 fica sempre a  cobiçar
 o frio e claro lenitivo...

 E no amor, há quem, sedento
 não mais o consiga  alcançar:
 pois para longe o empurram,
 como enxotam o cão sarnento
 -quantos o chutam, esmurram,
 e já foi de estimação...
 
 No abandono explode a ponte
 cada um fica num lado,
 com sede à beira da fonte,
 sem poder descer ao rio...
 Cada olhar alcança o amado,
 faz calor e sentem frio...
 
 Descobrem então que o ausente
 lhes parece cheio de espinhos,
 e que amar não é suficiente
quando se esgotam carinhos...
A história dos dois se esgarça,
não importa quem mais amou...
 Baixa o pano sobre a farsa,
 mas a sede não acabou...
 
Um copo, um cão ,uma ponte
nada possuem em comum
 apenas aparentemente...
 
Se você souber, me conte
como voltar a ser um:
 a sede enfraquece a gente...
 
 Sem poder chegar ao copo
 A sede nos seca a boca...
 
 Boca seca
 
seca...
 sede...
 
 E o copo rola, se parte,
 ao sabor da ventania...
 
Parece que vou morrer...
Se eu fosse cão, lamberia
 a poça d'água no chão...
 Mas por certo cortaria
 minha língua exposta, então...
 Essa imagem me apavora
 e ante tal alegoria,
as mãos desamarro, saio
 vou viver noutro lugar!
 Descalça, tropeço e caio,
 outro copo vou buscar...
uma água me espera agora
minha sede vou matar...
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Aldravia de 
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Espelho
Meu
Espelho
Meu
Cadê
Eu ?
= = = = = = = = =  

Poema de 
FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Queira Conversar com Deus

Faça Deus seu inquilino
Mas não lhe cobre aluguel
Nem mande assinar papel
Pois o contrato é divino
Se quer mudar seu destino
Para amenizar a dor
Nas veredas colha flor 
Mas uma flor de verdade
Peça força de vontade
Ao Poder Superior.

Como revela a ciência
E eu mesmo comprovei
Só Deus sabe o que passei 
Com a crise de abstinência
Percebi minha impotência
Perante aquela assassina
Sedutora messalina
Fez-me sua dependente
Uma paixão tão ardente
Pela tal da nicotina.

Tomei uma decisão
Fortaleci a vontade
Falei com sinceridade
Com meu frágil coração
Deus, a nós, nunca diz não
Se o pedido é salutar…
Queres experimentar?
Peça a ele como fiz
Sou hoje um homem feliz
Pois já deixei de fumar!!!
= = = = = =

Trova de
ROBERTO TCHEPELENTYKY 
São Paulo/SP

Sobre a parreira, o luar
no sereno te retrata…
E os teus olhos a brilhar:
“Duas uvas”… cor de prata…
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Poema de
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Saudade de outrora

"Ó tu, que habitas nos jardins,
faze-me ouvir a tua voz."
(Ct. 8.13)

Com grande saudade,
Relembro-me agora,
Qual sonho tão lindo,
Dos tempos de outrora;
Sonhando eu sabia
Que alguém me esperava,
Feliz e sorrindo...
Então, me acordava.

Ao brilho do Sol,
A aurora sumia;
Alegre eu partia,
Depois do arrebol.

Eu era feliz:
Buscava meu mundo,
Que o mundo retinha,
Bem dentro de si.

E o mundo que eu tinha
No seio do mundo,
O mundo não via
Que glória era a minha.

Ao brilho do Sol,
A aurora sumia;
Alegre eu partia,
Depois do arrebol.

Eu era feliz:
Buscava o amor
- Da alma o perfume,
Que é alma da flor.

Do mundo que eu via,
Tão perto de mim,
Nem mesmo eu sabia
O tudo que eu tinha.

Com grande saudade,
Relembro-me agora,
Qual sonho tão lindo,
Dos tempos de outrora;
Sonhando eu sentia
Que alguém me esperava,
Feliz e sorrindo...
Então, me acordava...
= = = = = = = = =  

José Feldman (E se for verdade?)

Acordo, como de costume, com os primeiros raios de sol filtrando pela janela. O calor suave me envolve, e ao meu lado, Sol, minha fiel companheira, já está acordada, com aquele olhar curioso e brincalhão. Aos 70 anos, a vida me ensinou a valorizar cada instante, mesmo que a sombra do câncer tente me roubar o brilho.

Moro em uma casa isolada, longe dos amigos e da família que, por razões que nunca entendi bem, se afastaram. A solidão é uma companheira constante, mas não deixo que isso me abale. Encontro formas de lidar com esse vazio. Converso com Sol como se ela pudesse entender cada palavra. E quem sabe? Ela é a única que realmente me escuta.

Para preencher os dias, criei uma rotina. Acordo cedo, faço as tarefas de casa e preparo o café. Às vezes, ligo para amigos antigos, apenas para ouvir suas vozes do outro lado da linha. Mesmo que as conversas sejam curtas, elas me lembram de que não estou completamente sozinho. A tecnologia me ajuda a me conectar, mesmo à distância.

Hoje, decidi que iríamos dar um passeio no parque. A brisa fresca me acariciava o rosto, e Sol corria à minha frente, como se estivesse me dizendo: “Vamos, ainda há muito para viver!” O caminho até o parque não é fácil, mas a cada passo, sinto o peso da solidão diminuir. Sorrio ao lembrar de um velho amigo que sempre dizia que a vida é como um jogo de cartas: o que importa é como você joga com as cartas que tem.

Chegando ao parque, observo as crianças brincando, os risos ecoando no ar. Um dia, fui como elas, cheio de sonhos e promessas. Agora, a doença me lembra constantemente de que a vida pode ser frágil. Mas, mesmo assim, não deixo que a tristeza tome conta. A cada sorriso que encontro, a cada elogio que recebo por causa da minha cadela, sinto que ainda tenho um papel a desempenhar.

Sol, sempre brincalhona, atrai a atenção das pessoas. Ela é uma estrela, e eu, seu humilde acompanhante. Um grupo de crianças se aproxima, e, em um instante, estamos cercados de risadas e carinhos. “Ela é tão linda!” dizem, e eu me sinto grato. É nesses momentos que percebo que a vida é feita de pequenas alegrias.

À noite, quando o sol se despede e a escuridão envolve a casa, sento-me na varanda com Sol ao meu lado. O céu está cheio de estrelas, e eu me pergunto se elas também têm suas próprias histórias. É fácil se deixar levar pela melancolia, mas eu prefiro olhar para o futuro. Cada novo dia traz a possibilidade de um milagre, e enquanto eu e Sol estivermos juntos, sempre haverá esperança.

Sim, a solidão pode ser desafiadora, mas eu a enfrento com gratidão. A doença pode me minar aos poucos, mas não me destruirá. O que importa é como encaro cada manhã. O câncer pode levar meu corpo, mas nunca meu espírito. O que importa é como encaro cada manhã. A ausência de visitas me ensinou a valorizar as pequenas interações, a encontrar alegria nas coisas simples. Continuarei a ser aquele homem alto astral, sempre pronto para ajudar os outros, mesmo que minha própria luta seja dolorosa e silenciosa.

E assim, adormeço com a certeza de que, ao acordar, haverá um novo dia. Um dia para brincar com Sol, para rir com os vizinhos, para viver. Porque, afinal, a vida é isso: um conjunto de momentos, e eu escolho fazer deles os melhores que posso.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Casado em 1994 com a escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, Alba Krishna, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul e Gralha Azul Trovadoresca. Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); e “Canteiro de trovas”.. No prelo: “Pérgola de textos” (crônicas e contos) e “Asas da poesia”

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Carina Mendes (Travessia)


Essa rua era assim? Sempre foi assim? Há vinte anos passo aqui e não reparei que era de paralelepípedo, onde eu estava? O que mudou agora? Mudei eu ou mudou a rua? Paralelepípedo é bom pra deixar escoar a água, é o que dizem, deixa a água fluir, como lágrimas que não se acumulam, lágrimas, acho que a essa altura não me sobrou mais nenhuma, eu devia estar ainda desconsolada, vinte anos de casamento que escoaram como chuva em piso de paralelepípedo, com uma facilidade fantástica, eu devia estar mal, já estive, hoje não estou, em pleno aniversário eu deveria estar pior, mas já chorei demais, não me restaram lágrimas, elas já se foram e me sinto bem, quero que ele me veja bem, assim, bonita, mais magra, com esse corte de cabelo que valoriza meu rosto, mas ele não vai gostar dessa roupa, costumava gostar de mim de vestido, essa calça, esse sapato, nossa, esse sapato, ele detestava, será que coloquei de propósito? Queria ter raiva, mas não tenho, queria jogar na cara dele que calço o sapato que ele odeia, é uma afronta, só pra ele ver como faço o que quero, mas ele não foi ruim, terminou, só isso, Laura, terminou, tudo termina, por acaso achou que casamentos fossem eternos? Não precisa de um motivo claro e objetivo, não houve traição, não houve sacanagem, ninguém ferrou com ninguém, foi fissurando e não percebemos, foi desgastando, só isso, a vida não é conto de fadas com aquele tal de e viveram felizes para sempre, e essa rua, ainda mais essa agora, de paralelepípedos, e vai me dizer que sempre foi arborizada assim? Rui adora árvores, vai ver por isso escolheu esse bairro, mas essas árvores, nessa rua, são acácias? Ipês? Essa florzinha amarela, a mesma daquelas férias, o chalé na serra, só nós dois, eu tinha que estar pior, me sentindo mal, ele terminou tudo assim, como se desfolhasse uma árvore toda de uma vez, folhas no chão, tristeza escorrendo pelas frestas do paralelepípedo, um ano de cão esse último, demora um ano pra gente drenar todas as lágrimas da cara, não sobra nada, por que me sinto bem agora? E esse sorriso, Laura? Quarenta anos, aniversário, tá feliz por quê? Vinte foram ao lado dele, desde a faculdade, ah a faculdade, época em que não se chorava, e essa rua? Vinte anos dividindo uma vida e fazer quarenta aqui, andando nessa rua, sem lágrimas, pra encontrar com ele, com esses sapatos, por que ele me chamou pra conversar justo hoje? Meu aniversário de nascimento e de reconstrução, um ano me reconstruindo, me reencontrando, e essa felicidade que quer sair, presta atenção na rua pra não cair, Laura, pelo menos a rua do bar é de asfalto, as lágrimas descem pelas bocas de lobo, bocas, beijos, não sinto mais falta dos dele, foram muitos, vinte anos, tá bom, quero viver outros, estou feliz, renascendo, aquele é o bar? Vejo Rui na mesa da calçada, aquilo são flores? Me aproximo, ele abre os braços, uma lágrima lhe escapa, se eu ainda tivesse alguma provavelmente me escaparia, ele sussurra um feliz aniversário, nos abraçamos... as flores são amarelas.
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Carina Mendes é carioca que atualmente mora em Cabo Frio/RJ. É arquiteta e urbanista de formação, servidora pública, trabalha na área do patrimônio cultural, professora universitária. Depois de mestrado e doutorado, decidiu navegar pela escrita criativa. Tem feito cursos, publicado minicontos, contos e crônicas em coletâneas, e como colaboradora em blogs. Publicou o livro Os Entornos e a Proteção do Patrimônio Urbano no Brasil e na Itália.

Fontes:
https://www.carinamendes.com.br/index.php?pgn=texto&idtexto=1996
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing