domingo, 3 de maio de 2009

Aurelio Buarque de Holanda (1910 – 1989)

Quarto ocupante da cadeira 30, eleito em 4 de maio de 1961, na sucessão de Antônio Austregésilo e recebido pelo Acadêmico Rodrigo Octavio Filho em 18 de dezembro de 1961. Recebeu os Acadêmicos Bernardo Elis, Marques Rebelo e Cyro dos Anjos.

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, ensaísta, filólogo e lexicógrafo, nasceu em Passo de Camaragibe, AL, em 3 de maio de 1910, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 28 de fevereiro de 1989.

Filho de Manuel Hermelindo Ferreira, comerciante, e de Maria Buarque Cavalcanti Ferreira. Passou parte da infância em Porto das Pedras, AL.

Em 1923, mudou-se para Maceió (AL), onde, aos 14 anos de idade, começou a dar aulas particulares de português. Aos 15, ingressou efetivamente no magistério: foi convidado pelo Ginásio Primeiro de Março a lecionar em seu curso primário, passando a se interessar pela língua e literatura portuguesas. Diplomou-se em Direito pela Faculdade do Recife, em 1936.

Em 1930 fez parte de um grupo de intelectuais que exerceria forte influência literária no Nordeste, entre outros, Valdemar Cavalcanti, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Raul Lima, Rachel de Queiroz.

Em 1936 e 1937, foi professor de Português, Literatura e Francês no Colégio Estadual de Alagoas, e em 1937 e 1938, diretor da Biblioteca Municipal de Maceió.

Passou a residir no Rio de Janeiro a partir de 1938. Continuou no magistério, como professor de Português e Literatura Brasileira no Colégio Anglo-Americano em 1939 e 1940; professor de Português no Colégio Pedro II, de 1940 a 1969, e professor de Ensino Médio do Estado do Rio de Janeiro, de 1949 a 1980. Contratado pelo Ministério das Relações Exteriores, exerceu a cadeira de Estudos Brasileiros na Universidade Autônoma do México, de junho de 1954 a dezembro de 1955.

Colaborou na imprensa carioca, com contos e artigos. Foi secretário da Revista do Brasil (1939-1947), quando era seu diretor Otávio Tarquínio de Sousa, de 1939 a 1943. Nessa época, evidenciava-se o escritor, nos contos de Dois mundos, livro publicado em 1942 e premiado em 1944 pela Academia Brasileira de Letras, e no ensaio "Linguagem e estilo de Eça de Queirós", publicado em 1945.

Em 1941 começou Aurélio Buarque a atividade que o iria absorver a vida inteira e que, de certa forma, iria suplantar o Aurélio escritor: o Aurélio dicionarista. Foi quando o convidaram a executar, pela primeira vez, um trabalho lexicográfico, como colaborador do Pequeno dicionário da língua portuguesa. Em janeiro de 1945, tomou parte no I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo.

Em 1947, iniciou no Suplemento Literário do Diário de Notícias a seção "O Conto da Semana", que durará até 1960 e, a partir de 1954, terá a colaboração de Paulo Rónai. Essa colaboração entre os dois amigos vinha desde 1941, quando se conheceram na redação da Revista do Brasil, e se concretizou no trabalho conjunto dos cinco volumes da coleção Mar de histórias, antologia do conto mundial, o primeiro deles publicado em 1945.

A partir de 1950 Aurélio Buarque manteve, na revista Seleções do Reader's Digest, a seção "Enriqueça o seu vocabulário", que em 1958 ele irá reunir e publicar no volume de igual título. Em 1963, tomou parte, em Bucareste, representando a Academia, no Simpósio de Língua, História, Folclore e Arte do Povo Romeno, visitando na mesma ocasião a Bulgária, Iugoslávia, Tchecoslováquia e Grécia. Foi membro da Comissão Nacional do Folclore e da Comissão Machado de Assis.

A preocupação pela língua portuguesa, a paixão pelas palavras levou-o à imensa tarefa de elaborar o próprio dicionário, e esse trabalho lexicográfico ocupou-o durante muitos anos. Finalmente, em 1975, saiu o Novo dicionário da língua portuguesa, conhecido por todos como o dicionário Aurélio. Desde a sua publicação, Mestre Aurélio atendeu a muitos convites, no Brasil inteiro, para falar do Dicionário e dos mistérios e sutilezas da língua portuguesa, que ele enriqueceu de tantos brasileirismos, fazendo do brasileiro comum um consulente de dicionário e um usuário consciente do seu idioma. Pronunciou numerosas conferências, sobre assuntos literários e lingüísticos, no México, Estados Unidos, Cuba, Guatemala e Venezuela.

Pertenceu à Associação Brasileira de Escritores, seção do Rio de Janeiro (1944-49). Era membro da Academia Brasileira de Filologia, do Pen Clube do Brasil, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, da Academia Alagoana de Letras e da Hispanic Society of America.

Bibliografia
Obras:
Dois mundos, contos (1942);
Linguagem e estilo de Eça de Queirós, in Livro do centenário de Eça de Queirós (1945);
Mar de histórias (Antologia do conto mundial), em colaboração com Paulo Rónai, I vol. (1945); II vol. (1951); III vol. (1958); IV vol. (1963); V vol. (1981);
Contos gauchescos e lendas do sul, de Simões Lopes Neto. Edição crítica, com amplo estudo sobre a linguagem e o estilo do autor (1949);
O romance brasileiro (de 1752 a 1930);
Roteiro literário do Brasil e de Portugal (Antologia da língua portuguesa), em colaboração com Álvaro Lins (1956);
Território lírico, ensaios (1958);
Enriqueça o seu vocabulário, filologia (1958);
Vocabulário ortográfico brasileiro (1969);
O chapéu de meu pai, edição revista e reduzida de Dois mundos (1974);
Novo dicionário da língua portuguesa (1975);
Minidicionário da língua portuguesa (1977).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras
Fotomontagem = José Feldman

Nélida Piñon (Colheita)

Aurea Antunes - pintura em acrílico (A Colheita)
Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades submersas em lava.

A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar, embora se soubesse nelas.

Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.

Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas omissões fatais.

Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.

Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra, e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele.

A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.

Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.

Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.

Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das planícies.

Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa, pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?

Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.

Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais provado.

Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.

Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.

Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela casa.

Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.

— O que há na cozinha?

Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu preciso?, ele disse.

— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais...

Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que apresentem certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha, visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.

E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.

— De outro modo, como vingar-me deles?

Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.

E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.

À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual poder narrativo.

Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites ele altivo pensou ter rompido.

Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.

Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-Ia ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu universo.

Fonte:
http://www.nelidapinon.com.br/

Nélida Piñon (1937)

Nélida Cuiñas Piñon, jornalista, romancista, contista, professora, carioca de Vila Isabel, Rio de Janeiro, RJ, nasceu em 3 de maio de 1937.

Filha de Lino Piñon Muiños, comerciante, e Olívia Cuiñas Piñon. O nome Nélida é anagrama do nome do avô, Daniel. Sua família é originária da Galiza, radicada no Brasil desde a década de 1920. Na infância, seus pais a estimularam para a leitura, deram-lhe livros e levaram-na a viajar. Aos dez anos foi para a Galiza, onde ficou dois anos. Essa vivência foi fundamental para a futura escritora, que em sua obra irá revelar, sobretudo, o amor por duas pátrias: a Galiza e o Brasil.

Formou-se em Jornalismo pela Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Foi editora assistente da revista Cadernos Brasileiros (1966-67); membro do Conselho Consultivo da revista Tempo Brasileiro (1976-1993), da revista Impressões (1997), dos Cadernos Pedagógicos e Culturais (1993); membro do Conselho Editorial da revista Imagem Latino-Americana (Caracas, 1993), da Encyclopedia of Latin American Literature (Inglaterra, 1994), da Review: Latin American Literature and Arts (Nova York, desde junho de 1995); colunista semanal do jornal O Dia (Rio de Janeiro, desde 1995). Exerceu cargos no Conselho Consultivo de inúmeras entidades culturais do Rio de Janeiro.

Inaugurou a cadeira de Criação Literária na Faculdade de Letras da UFRJ. Desde 1965, quando recebeu a bolsa "Leader Grant", concedida pelo Governo norte-americano, que lhe deu a oportunidade de viajar pelos Estados Unidos, Nélida Piñon tem feito viagens a vários países, para participar de congressos, seminários e encontros internacionais, proferindo conferências e palestras, sobre temas ligados à cultura, à literatura e à criação literária.

Deu cursos na University of New York, na Columbia University, na John Hopkins University em Baltimore, na Universidade Católica de Lima, na Sorbonne, na Universidade Complutense de Madri, e em outras universidade internacionais. As viagens para outros países foram fundamentais para sua biografia e sua obra e para melhor mostrar-lhe o Brasil, país que é para ela a preocupação maior, a razão da sua inquietação intelectual.

Em 1990, candidatou-se à cátedra Henry King Stanford em Humanidades, da Universidade de Miami, para substituir Isaac Bashevis Singer. Na seleção de 80 intelectuais inscritos, foi um dos cinco finalistas. Assumiu, como titular da cátedra, em 1991. A partir desse ano, ali realizou cursos anualmente, de janeiro a maio, participando de debates, encontros, e proferindo conferências. Em agosto de 1996, desligou-se temporariamente da cátedra, ao assumir interinamente a presidência da Academia Brasileira de Letras, na ausência de presidente Antonio Houaiss.

Eleita em 27 de julho de 1989 para a Cadeira n. 30, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda, foi recebida em 3 de maio de 1990, pelo acadêmico Lêdo Ivo.

Na Academia Brasileira de Letras, foi diretora do Arquivo (desde 1990); eleita primeira-secretária (26.6.1995) e secretária-geral (7.12.1995); presidente em exercício (ago.-dez. 1996). Foi eleita presidente da Academia em 5 de dezembro de 1996. É a primeira mulher, em 100 anos de existência da ABL, a integrar a Diretoria e ocupar a presidência da Casa de Machado de Assis, no ano do seu I Centenário.

Sua estréia na literatura foi com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, que trata do tema do pecado, do perdão e da relação dos mortais com Deus através do diálogo entre a protagonista e seu anjo da guarda. Desde o início a escritora filiou-se ao movimento que, depois de Guimarães Rosa, se orienta pela renovação formal da linguagem.

No romance Fundador, publicado em 1969, Nélida Piñon abandona a base realista que comanda a criação literária analógica do mundo e põe em cena personagens históricos e ficcionais, criando um mundo eminentemente estético.

Em 1972, publica A casa da paixão, romance em que irrompe o tema do desejo e da iniciação sexual. Publica a seguir livros de contos e mais dois romances, até sair o romance autobiográfico A república dos sonhos, em 1984, narrando a saga de uma família enraizada na Galiza que emigra para o Brasil.

Em A doce canção de Caetana, romance de denúncia política publicado em 1987, faz uma incursão ao universo de uma cidade do interior, Trindade, à época da mentira do milagre brasileiro, no começo dos anos 70.

No livro O pão de cada dia, de 1994, Nélida Piñon deixa de lado a moderna ficção na qual se consagrou e empreende uma reflexão profunda sobre as inquietações do homem, através de fragmentos que exprimem emoções, idéias e pensamentos.

Em 2004, esteve presente à 1.a Reunião Plenária da Comissão do Quarto Centenário da Publicação do Dom Quixote, promovida pelo Presidente Zapatearo na Biblioteca Nacional de Madri. Designada membro do Conselho de Honra do Don Quijote, assumiu em dezembro de 2004, em Madri.

Em sua homenagem foi inaugurada a Biblioteca Nélida Piñon, no Morro Santa Marta, promoção da Editora Record e da Oldemburg.

Ao longo de mais de 35 anos de ininterrupta atividade criadora, Nélida Piñon é um testemunho de que, entre as possíveis maneiras de se exprimir que o homem tem a seu dispor, a palavra é aquela que mais diretamente o põe a nu consigo mesmo, quer diante dos seus problemas individuais, quer frente às suas mais dramáticas contradições enquanto ser social, político, cultural, economicamente determinado. Daí a sua consciência da função do escritor, que não deve se limitar apenas a criar, sua tarefa máxima, mas também deve emprestar sua consciência à consciência dos seus leitores, sobretudo em um país como o Brasil, onde é preciso fazer com que o povo reflita sobre a sua realidade e reivindique uma realidade melhor e mais justa.

Sua obra está traduzida para países como Alemanha, Itália, Espanha, União Soviética, Estados Unidos, Cuba e Nicarágua. Contos seus encontram-se publicados em centenas de revistas e fazem parte de antologias brasileiras e estrangeiras.

Recebeu vários prêmios literários:
Prêmio Walmap, pelo romance Fundador (1970);
Prêmio Mário de Andrade, pelo romance A casa da paixão (1973);
Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte e Prêmio Ficção Pen Clube pelo romance A República dos sonhos (1985);
Prêmio José Geraldo Vieira, da União Brasileira de Escritores de São Paulo, pelo romance A doce canção de Caetana (1987);
Prêmio Golfinho de Ouro, pelo Conjunto de Obras, conferido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro (1990);
Prêmio Bienal Nestlé, pelo Conjunto de Obras (1991);
Prêmio Internacional de Literatura Juan Rulfo, o mais importante da América Latina e do Caribe, concedido pela primeira vez a uma mulher e a um autor de língua portuguesa (1995).

Obras:
Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, romance (1961);
Madeira feita cruz, romance (1963);
Tempo das frutas, contos (1966);
Fundador, romance (1969);
A casa da paixão, romance (1972);
Sala de armas, contos (1973);
Tebas do meu coração, romance (1974);
A força do destino, romance (1977);
O calor das coisas, contos (1979);
A república dos sonhos, romance (1984);
A doce canção de Caetana, romance (1987);
O pão de cada dia, fragmentos (1994);
A roda do vento, romance infanto-juvenil (1996);
O ritual da arte, ensaio sobre a criação literária (inédito).

Fontes:
http://www.biblio.com.br/
Academia Brasileira de Letras.
Fotomontagem = José Feldman

sábado, 2 de maio de 2009

Adelino Fontoura (O Poeta no Papel)



CELESTE

É tão divina a angélica aparência
e a graça que ilumina o rosto dela,
que eu concebera o tipo de inocência
nessa criança imaculada e bela.

Peregrina do céu, pálida estrela,
exilada na etérea transparência,
sua origem não pode ser aquela
da nossa triste e mísera existência.

Tem a celeste e ingênua formosura
e a luminosa auréola sacrossanta
de uma visão do céu, cândida e pura.

E quando os olhos para o céu levanta,
inundados de mística doçura,
nem parece mulher - parece santa.
–––––––––––––––––––-

BORGHI MAMO

Ao doce timbre harmonioso e brando
Da tua voz, ó alma enamorada,
Sinto minha alma em sonhos embalada
E como que eu também fico sonhando!

Como agitava o vento, perpassando,
A harpa eólea no salgueiro alada,
Tal me agita essa voz apaixonada
Quando, ó ave de amor, surges cantando.

Ouvir-te é como ver nascer a aurora:
Tudo inunda de luz, tudo ilumina
A tua voz angélica e sonora.

Solta, pois, a volata peregrina!
Ama, geme, soluça, canta e chora,
Celeste Aída, Malibran divina!
Rio, 1882.
––––––––––––––––

ATRAÇÃO E REPULSÃO

Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.

Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.

Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.

Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui té junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano.
–––––––––––––––––––––––

ANTES DE PARTIR

Venho ensopar de lágrimas o lenço
No tristíssimo adeus de despedida;
Em breve a Pátria vou deixar perdida
Além - na curva do horizonte imenso!

Em breve sobre o mar profundo e extenso
Adejará minh'alma dolorida,
Como a gaivota errante, foragida,
Sem ter um ninho onde pousar, suspenso!

Então, senhora, hei de pensar, tristonho,
Revendo a vossa angélica bondade,
Neste ninho de amor calmo e risonho;

E triste, sobre a triste imensidade,
Como quem despertou de um ledo sonho,
Hei de chorar o pranto da saudade.
–––––––––––––––––––––––

VÁCUO

Não sei se pode haver padecimento
Mais profundo, mais íntimo e que tanto
Nos ponha na alma a dor que gera o pranto,
Do que um longo e tristonho isolamento.

Não ter um bem sequer no pensamento,
Nem o calor de um lar, nem o encanto
De um amor de mulher suave e santo,
É viver sem nenhum contentamento.

Bem sei que é bom sofrer, e me parece
Que esta vida sem dor nada seria,
E que é por isso até que se padece.

Mas esta solidão contínua e fria
Chega a ser tão cruel, que a não merece
Um coração que a dor mereceria.
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SÚPLICA

Por mais que aspire ou queira, anele ou tente
Esquecer-me de ti - jamais me esqueço,
Ó bem amado ser por quem padeço,
Por quem tanto soluço inutilmente!

Bem que eu te peça, foges de repente,
E só me fica a dor que te não peço;
E eis tudo, ó céus! eis tudo o que eu mereço,
Em paga deste amor tão puro e crente.

Se te não move, pois, um desafeto
E se te apraz ao menos consolar
A desventura amarga deste afeto,

Ilumina com teu divino olhar
Esta alma que os teus pés, anjo dileto,
Vem, banhada de lágrimas, beijar.
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GAZETINHA
(No dia do seu primeiro aniversário)

Eu não venho trazer a vossa excelência
Um fantástico mimo "high-lifeano";
Possuo um coração meridiano,
Mas não vivo nas pompas da Regência.

Porém, se eu fosse um príncipe indiano,
De sangue azul e antiga descendência,
Possuindo a Golconda, essa opulência,
E os tesouros do Índico Oceano,

Nessas pequenas mãos, tímido e mudo,
Minha senhora, eu deporia tudo...
Como os brilhantes de um colar, dispersos!

Mas... se sou pobre, o que tão mal me fica,
Consinta que, sem luvas de pelica,
Venha depor-lhe aos pés estes meus versos.
4 de maio de 1882.
–––––––––––––––––––––––

DESPEDIDA

Pois que é chegada finalmente a hora
Do triste afastamento e da provança,
Venho dizer-te adeus, gentil criança,
Venho dizer-te adeus, pois vou-me embora.

Morreu em mim a última esperança,
Bem como um sonho bom que se evapora;
Não sei que dor maior que resta agora
Sofrer, nem que maior desesperança.

Não sei, ó sorte mísera e nefasta,
Que assim me arrancas do seu lar querido,
Que assim me roubas sua imagem casta.

Bem vês que eu tenho o coração partido,
E teu peito, inda assim, não desengasta
Um soluço, uma lágrima, um gemido.
–––––––––––––––––––––––

OHS! E AIS!

Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?

É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?

Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,

Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os "Subsídios" o Filinto.
(Gazetinha, de 14-1-1882.)
–––––––––––––––––––––––
Fontes:
Academia Brasileira de Letras
http://pt.wikipedia.org

Adelino Fontoura (1859 – 1884)

Adelino Fontoura Chaves (Axixá, 30 de março de 1859 — Lisboa, 2 de maio de 1884) foi um jornalista, ator e poeta brasileiro, patrono da cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras.

Nasceu Fontoura num pequeno povoado maranhense, filho de Antônio Fontoura Chaves e de Francisca Dias Fontoura. É tio-avô do padre, poeta e escritor Fontoura Chaves.

Ainda muito pequeno começa a trabalhar e trava contato com Artur Azevedo – amizade que perduraria.

Mudando-se para o Recife, onde alista-se no Exército, colaborando numa publicação chamada “Os Xênios”, de teor satírico. Inicia, também a carreira de ator, voltando ao Maranhão natal para uma apresentação – cujo papel rendeu-lhe a prisão. Após este fato, decide mudar-se para o Rio de Janeiro, para onde se mudara o amigo Artur Azevedo, anos antes.

Pretendia seguir carreira teatral e no jornalismo, falhando na primeira. Colaborou nos periódicos “Folha Nova” e “O Combate”, de Lopes Trovão e em “A Gazetinha”, onde Azevedo escrevia (1880). Participara junto a outros jovens talentos do jornal “A Gazeta da Tarde” – que seria aziago, no dizer de Múcio Leão, pois, em menos de 3 anos de sua fundação, os seus criadores haviam todos morrido.

Adelino Fontoura viveu nessa fase de sua vida uma paixão não correspondida e, mesmo com a saúde precária, ao ser convidado para representar a Gazeta da Tarde na Europa, decidiu viajar. No dia 1º de maio de 1883 partiu, no navio Senegal, para Paris. Lá esperava encontrar melhoras para a saúde, mas deparou-se com insuportável inverno. Viajou para Lisboa, para onde seguiu José do Patrocínio que havia comprado o “Gazeta da Tarde”, na esperança de convencê-lo a embarcar de volta para o Brasil. Seu estado de saúde era crítico e, por isso, foi internado no Real Hospital São José, onde veio a falecer aos 25 anos de idade, justamente quando poderia produzir toda uma obra poética de mérito literário. Foi sepultado no Cemitério Oriental de Lisboa.

Tinha apenas vinte e cinco anos, e nenhuma obra publicada.

Anos mais tarde, Adelino ocupa a cadeira nº 38 da Academia Maranhense de Letras.

É o único caso de um patrono, na Academia, sem livro publicado. Em vida, ou não atribuíra muita importância a seus trabalhos para reuni-los em livro, ou confiara em não morrer tão cedo. Após a morte, várias tentativas foram feitas para reunir a obra dispersa do poeta.

Ao tomar posse na Academia a 29 de agosto de 2003, Ana Maria Machado retratou o desconhecimento que cerca a obra desse poeta, mesmo entre os eruditos:

Mas como? Não foi Machado de Assis seu primeiro ocupante? Então ele era o patrono? Não. O patrono, escolhido por Murat, foi Adelino Fontoura. Quem? Pois é... Não encontrei quem, ao ouvir essa correção, identificasse o nome . De minha parte, confesso que também mal havia ouvido falar nele, vaga lembrança de algum poema numa antologia. Pois descobri coisas interessantes na magnífica biblioteca desta nossa Academia, aliás aberta ao público para ser utilizada e fruída.”

Sua obra, esparsa, constitui-se em cerca de 40 poesias, reunidas pela primeira vez na Revista da Academia (números 93 e 117). Foi depois reunida em 1943 e em 1955, por Múcio Leão. Fontora não figura na quase totalidade das antologias e históricos da Poesia brasileira - nem a obra "Apresentação da Poesia Brasileira", de outro Acadêmico, Manuel Bandeira, faz-lhe referência. Seu soneto mais conhecido é "Celeste"
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Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
Academia Brasileira de Letras
Fotomontagem = José Feldman

Alfred de Musset (Teia de Poemas)


Tristeza

Eu perdi minha vida e o alento,
E os amigos, e a intrepidez,
E até mesmo aquela altivez
Que me fez crer no meu talento.

Vi na Verdade, certa vez,
A amiga do meu pensamento;
Mas, ao senti-la, num momento
O seu encanto se desfez.

Entretanto, ela é eterna, e aqueles
Que a desprezaram - pobres deles! -
Ignoraram tudo talvez.

Por ela Deus se manifesta.
O único bem que ainda me resta
É ter chorado uma ou outra vez.
(Tradução Guilherme de Almeida)
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Chanson

Disse a meu peito, a meu pobre peito:
- Não te contentas co'uma só amante?
Pois tu não vês que este mudar constante
Gasta em desejos o prazer do amor?

Ele respondeu: - Não! não me contento;
Não me contento com uma só amante.
Pois tu não vês que este mudar constante
Empresta aos gozos um melhor sabor?

Disse a meu peito, a me pobre peito:
- Não te contentas desta dor errante?
Pois tu não vês que este mudar constante
A cada passo só nos traz a dor?

Ele respondeu: - Não! não me contento,
Não me contento desta dor errante...
Pois tu não vês que este mudar constante
Empresta às mágoas um melhor sabor?

(Tradução de Castro Alves)
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Vida não Vivida

Era bela, como a estátua
Em mortuária capela,
Dormindo em leito de pedra,
Imóvel, pode ser bela.

Tinha bondade, se basta
Dar, ao acaso, sem dó,
Sem que Deus enxergue a esmola,
Se a esmola é dinheiro só.

Pensava, se o vão ruído
De um falar suave e lento,
Como gemido de arroio,
Denuncia o Pensamento.

Orava, se os olhos negros
Uma vez fitos no chão,
Outra vez ao céu erguidos,
Podem chamar-se oração.

Sorrira, se o refrigério
De uma brisa, na alvorada,
Chegasse a expandir a flor
Que se conserva fechada.

Chorava, se, argila inerte,
Seu coração ressequido
Gotas de celeste orvalho
Pudesse haver recolhido.

Amara, se no seu peito
Não velasse orgulho fútil,
Como em cima de um sepulcro
Se entretém lâmpada inútil.

Aparentava viver...
Sem ter vivido morreu...
Cai-lhe das mãos o livro...
Nesse livro nada leu!

(Tradução de Francisco Otaviano)

Alfred de Musset (1810 – 1857)



Alfred Louis Charles de Musset (Paris, 11 de Dezembro de 1810 — Paris, 2 de Maio de 1857) foi um poeta, novelista e dramaturgo francês do século XIX, um dos expoentes mais conhecidos do período literário conhecido como o Romantismo. Diz-se que ele foi "o mais clássico dos românticos e o mais romântico dos clássicos". O seu estilo influenciou profundamente a literatura europeia, tendo surgido múltiplos seguidores, entre os quais se conta o poeta português Fausto Guedes Teixeira, o expoente máximo do neo-romantismo na poesia lusófona.

Alfred de Musset nasceu em Paris, filho de Victor-Donatien de Musset-Pathay e de sua mulher Edmée Guyot-Desherbiers, uma família culta e equilibrada, desde há longa data ligada às letras. O seu avô fora poeta e o seu pai, também escritor de mérito, mantinha uma relação estreita com Jean-Jacques Rousseau, cujas obras editava. Por esta via, Rousseau exerceu uma grande influência sobre o jovem poeta, em cuja obra recebe diversas homenagens, enquanto atacava violentamente Voltaire, o grande adversário de Rousseau.

Matriculou-se no Lycée Henri-IV com 9 anos de idade. Em 1827 ganhou o segundo lugar no prêmio de escrita em latim do Concours général com o ensaio A origem de nossos sentimentos, revelando assim o seu talento literário. Ainda hoje um busto assinala naquele liceu a passagem de Musset como aluno distinto.

Depois de tentar iniciar uma carreira em Medicina, que abandonou devido à sua repugnância pelas dissecações, tentou Direito, desenho, ensino da língua inglesa, piano e saxofone. Foi então que, com a ajuda de Paul Foucher, um cunhado de Victor Hugo, começou a frequentar, com apenas 17 anos de idade, o Cénacle, o salão literário de Charles Nodier na Bibliothèque de l'Arsenal, descobrindo a sua vocação para a literatura e decidindo seguir carreira literária.

No Cénacle simpatiza com Charles Augustin Sainte-Beuve e Alfred de Vigny, mas recusa-se a adular o «mestre» Victor Hugo. Mais tarde ridicularizou os passeio noturnos dos membros do Cénacle pelas torres da catedral de Notre-Dame e outras actividades do grupo.

Publicou em 1829 o seu primeiro livro, intitulado Contos de Espanha e da Itália, que despertou ao mesmo tempo admiração e protesto, por conter paródias em verso a algumas das mais reverenciadas obras românticas da época.

Sendo o mais novo integrante da nova escola literária francesa, ombreando com grandes nomes, como Alfred de Vigny, Prosper Mérimée, Charles Augustin Sainte-Beuve, entre outros, quando tinha 20 anos a sua fama literária era já grande, colocando-o entre os melhores cultores do Romantismo, mas também já o ligando a hábitos de dandy e a uma vida amorosa desregrada e boêmia.

Musset tentou então a sua sorte no teatro, tentando produzir obras dramáticas que lhe permitissem ganhar a vida. Em Dezembro de 1832 aparece o seu primeiro Spectacle dans un fauteuil, que se compunha de um drama, La Coupe et les Lèvres, uma comédia, À quoi rêvent les jeunes filles?, e um conto oriental, Namouna. Musset exprime já nesta recolha a dolorosa tensão entre deboche e pureza de costumes que dominará muita da sua obra.

Contudo, após o fracasso da sua obra Nuit Vénitienne, escreveria, numa carta a P. Calais «adieu à la ménagerie, et pour longtemps» (adeus à ribalta, e por muito tempo), num afastamento que duraria até 1847, ano em que, já alcoólico, retorna às lides teatrais com outra serenidade.

Em 1832 parte para Itália na companhia de George Sand, com quem mantinha um escandaloso relacionamento amoroso. Esta viagem inspirou-lhe a obra Lorenzaccio, um drama romântico escrito em 1834. Publica então os Contes d'Espagne et d'Italie.

Durante esta viagem Musset adoece e George Sand torna-se na amante do seu médico, Pietro Pagello. Regressa então a Paris, onde faz representar as comédias Le Chandelier, On ne badine pas avec l'Amour e Il ne faut jurer de rien, que se mantêm no repertório do Théâtre-Français. Escreve também novelas em prosa e a Confession d'un enfant du siècle, autobiografia anónima dedicada a George Sand, onde ele descreve os sofrimentos que ela lhe teria inflingido com a sua infidelidade.

Entre 1835 e 1837, Musset compõe a sua principal obra lírica, intitulada Les Nuits (Nuits de mai, d'août, d'octobre, de décembre), em torno de temáticas relacionadas com o sofrimento amoroso, o amor e a inspiração. Estas poesias, muitos sentimentais, são hoje consideradas como as obras mais representativas do romantismo francês.

Foi entretanto nomeado bibliotecário do Ministério do Interior durante a Monarquia de Julho, envolvendo-se durante esse período numa polêmica relacionada com as pretensões francesa nas margens do Reno, agudizadas durante a Crise Franco-Alemão de 1840. A polêmica iniciou-se quando o primeiro-ministro francês Adolphe Thiers, que enquanto Ministro do Interior tinha chefiado Musset, exigiu que o território francês se prolongasse até à margem esquerda do Reno, então assumida como a "fronteira natural" da França a leste. Essa pretensão, apesar da população da região ser de língua alemã, baseava-se no domínio sobre a zona exercido durante o consulado de Napoleão Bonaparte, mas era fortemente rejeitada pelos alemães.

Surgiram então canções e poemas rejeitando a pretensão francesa, entre os quais um poema heróico de Nikolaus Becker intitulado Rheinlied (Canção do Reno), que continha o verso: "Sie sollen ihn nicht haben, den freien, deutschen Rhein ..." (Jamais o terão, o livre Reno alemão). Musset respondeu a este poema com o seu: "Nous l'avons eu, votre Rhin allemand" (Já o tivemos, o vosso Reno alemão).

Musset foi exonerado do seu lugar de bibliotecário na sequência da Revolução de 1848, mas foi depois nomeado bibliotecário do Ministério da Instrução Pública durante o Segundo Império.

Musset recebeu a Légion d'honneur em 24 de Abril de 1845, ao mesmo tempo que Honoré de Balzac, e foi eleito para a Academia Francesa em 1852, depois de duas tentativas frustradas em 1848 e 1850.

De saúde frágil devido a uma malformação cardíaca congênita, estava frequentemente adoentado, situação que se foi agravando devido ao alcoolismo e a um estilo de vida desregrado. Faleceu em Paris a 2 de Maio de 1857, quase esquecido. A influência do seu irmão mais velho, Paul de Musset, levou a que fosse sepultado no cemitério de Père Lachaise, em Paris, onde hoje uma artística obra funerária o relembra.

Foi também Paul de Musset quem exerceu um importante papel na redescoberta da obra de Musset, redigindo a sua biografia e reeditando muitas das suas obras.

A polêmica e os comentários despertados pela sua célebre relação amorosa entre Musset e George Sand, que durou entre 1833 e 1835, levou a que escrevesse a novela autobiográfica La Confession d'un Enfant du Siècle, a que ela ripostou com Elle et lui, recontando a história do seu ponto de vista. Esta obra de Sand, publicada em 1859, não foi bem recebida pelos admiradores de Musset, em particular por Paul de Musset, o irmão do visado, que a parodiou seis meses mais tarde com a obra Lui et Elle.

Sobre esta relação têm sido publicadas diversas obras, entre as quais Les Amants de Venise, George Sand et Musset de Charles Maurras (1902), que leva a cabo um aturado estudo do envolvimento amoroso e do relacionamento intelectual entre eles.

A obra

O poeta francês Arthur Rimbaud foi muito crítico em relação à obra de Musset. Rimbaud escreveu nas suas Lettres du Voyant (Cartas de um Vidente) que a poesia de Musset nada conseguia pois o seu autor "fechava os olhos" perante as visões do espírito (Lettre à Paul Demeny, Maio de 1871).

Em 1999, Diane Kurys realizou um filme, intitulado Les Enfants du Siècle, tendo como tema a relação entre Alfred de Musset e George Sand. Em 2005, a obra Il ne faut jurer de rien foi adaptada para o cinema por Eric Civanyan.

O realizador Jean Renoir inspirou-se na peça Les Caprices de Marianne, de Musset, para realizar La règle du jeu.

Em 2006 surgiu uma edição moderna da obra de Musset, com o título de Poésies complètes, com introdução e anotações por Frank Lestringant.

Obras publicadas

Poesia
A ma mère (1824)
A Mademoiselle Zoé le Douairin (1826)
Un rêve, L'Anglais mangeur d'opium (1828)
Premières poésies (1829)
Contes d'Espagne et d'Italie, La quittance du diable , Une nuit vénitienne (1830)
La coupe et les lèvres, Namouna (1831)
Spectacle dans un fauteuil, A quoi rêvent les jeunes filles (1832)
Lorenzaccio, Les Caprices de Marianne, Rolla, André del Sarto (1833)
Fantasio. On ne badine pas avec l'amour , Perdican, Camille et Perdican (1834)
La quenouille de Barberine, La Nuit de mai, La nuit de décembre. Le Chandelier (1835)
Il ne faut jurer de rien, Lettre à M. de Lamartine, Faire sans dire, La nuit d'août. Poesias completas (1836)
Chanson de Barberine (1836)
Un caprice, La nuit d'octobre, À la Malibran, Emmeline, Les deux maîtresses. Lettres à Dupuis et Cotonet (1837)
Le fils du Titien, Frédéric et Bernerette, L'espoir en Dieu. Dupont et Durand. Margot (1838)
Croisilles (1839)
Les deux maîtresses, Tristesse, Une soirée perdue (1840)
Souvenir, Nouvelles (« Emmeline », « Le fils du Titien », « Croisilles », « Margot ») (1841)
Le voyage où il vous plaira, Sur la paresse, Histoire d'un merle blanc, Après une lecture (1842)
Pierre et Camille, Le secret de Javotte, Les frères Van Bruck (1844)
Il faut qu'une porte soit ouverte ou fermée, Mademoiselle Mimi Pinson (1845)
Nouvelles (« Pierre et Camille », « Le secret de Javotte ») (1848)
Louison. L'Habit vert, On ne saurait penser à tout (1849)
Poésies nouvelles, Carmosine (1850)
Bettine, Faustine (1851)
Publicação de Premières Poésies (entre 1829 e 1835) e de Poésies Nouvelles de 1836 a 1852) (1852)
La mouche (1853)
Contes (1854)

Teatro
André del Sarto, 1833
Les Caprices de Marianne, 1833
Lorenzaccio, 1833
Fantasio, 1834
La nuit vénitienne, 1834
On ne badine pas avec l'amour, 1834
Barberine, 1835
Il faut qu'une porte soit ouverte ou fermée, 1845

Novelas
La Confession d'un enfant du siècle (autobiográfica), 1836

Fonte:
http://pt.wikipedia.org

Otto Lara Resende (Três pares de patins)



No amplo adro de ladrilhos, o ruído surdo, enrolado, parecia sepultar-se na terra. Os risos e os gritos da meninada embaraçavam-se na copa da grande magnólia, iam aninhar-se nas torres da igreja. Os sinos de bronze ruminavam, bojudos e quietos, o próprio silêncio. De quando em quando, a queda de algum patinador provocava uma algazarra que aumentava a confusão. Alheio a tudo, Betinho corria de uma ponta a outra com voltas arriscadas em torno da magnólia que projetava uma sombra compacta e úmida sobre as escadas de pedra-sabão. Betinho deslizava na pista e maldosamente abalroava os menos hábeis. Lá embaixo, depois do largo, as sombras do crepúsculo começavam a envolver os telhados baixos, encardidos.

— Vem — disse Betinho, quando cruzou com Francisco.

Pouco adiante, Débora já os esperava. Juntos, os três procuravam não tropeçar na emenda das lajes, mais altas, mais baixas, ásperas ou lascadas. Betinho ia à frente, puxava Débora pela mão. Olhos fixos no chão, Débora erguia os pés como se saltasse obstáculos e lançava um olhar suplicante a Francisco, que acompanhava timidamente Betinho. O cemitério já se entrevia por trás do gradil.

— Vem — disse Betinho, petulante.
— Onde você está me levando? — perguntou Francisco.

— Medroso — disse Betinho.

Até ali atrás da igreja chegavam os ecos dos patinadores no adro. Débora olhou para trás: ninguém pela redondeza. Um movimento em falso, deitou-a de comprido no chão.

Prolongou a queda, como se esperasse auxílio de alguém. Indeciso, Francisco não a socorreu.

— Betinho — chamou Francisco, para significar que não ia mais adiante.

— Tirem os patins — disse Betinho.

Os três ao mesmo tempo desabotoaram as fivelas dos patins e os descalçaram. Era bom pisar com os pés dormentes em terra firme. Como se tivessem vindo de águas revoltas, em movimento.

— O cadeado está trancado — disse Francisco.

— A gente pula — disse Betinho, e atirou os patins por cima das grades do portão.

— Olha o vigário — disse Francisco.

— Onde? — Betinho, voltou-se de olhos vivos, assustados.

— Pode aparecer — resmungou Francisco.

— Medroso — e Betinho começou a subir no portão, mãos e pés nas vigas de ferro.

— Agora vem você — disse a Débora e lhe estendeu a mão direita.

— Empurra a Dé — disse Betinho, agora em posição segura.

Francisco agarrou os tornozelos da menina sem saber o que lhe competia.

— Assim não — disse Betinho.

Francisco subiu-lhe as mãos pelas pernas, ajudou-a a galgar a primeira etapa, mãos nos seus pés. Depois subiu e alcançou a coluna. Evitava as hastes pontudas. Francisco e Débora acompanhavam-lhe os passos — não havia outro caminho. Em cima do portão, letras de ferro, bordadas, estava escrito: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris". Os meninos desciam pelo outro lado, dentro do cemitério.

— Depressa — e Betinho escondeu-se entre o muro e um túmulo.

Francisco apertou a mão de Débora, que era fria, e estendeu a vista de um lado e outro, até lá em cima, no ossário e na parede de engavetar defuntos. Já não se ouvia a meninada no adro. Os patinadores deviam ter se recolhido. Em pouco era a noite. A treva cobriria o cemitério, envolveria a igreja. Uma densa mancha engoliria a copa da magnólia. Em casa o esperavam para jantar, talvez dessem por sua falta e fossem buscá-lo — pensou Francisco.

— Está ficando tarde — disse.

— A gente volta já.

Betinho puxava Débora, que ia nas pontas dos pés, pesada como quem se recusa. Francisco viu Betinho enlaçar a menina e ambos desapareceram por trás de um mausoléu com um anjo de asas de bronze, a mão parada no ar. Francisco olhou os fundos da igreja — quieta e solene como o morro. Voltou-se depois para os túmulos que se sucediam encosta acima. Hora indecisa, entre a noite e o dia. No silêncio, tudo tinha parado. A cidade e o mundo, esquecidos, não ultrapassavam as fronteiras do cemitério. Francisco queria apoiar-se em alguma coisa, mas não ousou encostar-se no túmulo mais próximo. O Cristo de bronze pregado numa cruz de mármore, os companheiros, a vida, o mundo — tudo era absurdo e longe. O arrulhar dos pombos no beiral da igreja queria dizer-lhe qualquer coisa que ele não entendia.

— Francisco.

A cara de Betinho por trás do mausoléu. Francisco foi andando pela aléia entre as sepulturas, até aproximar-se do companheiro, que abotoava os suspensórios por baixo da blusa. Por um momento, estranhou a ausência de Débora e logo a viu deitada, puxando o vestido que deixava à mostra os joelhos.

— Vai — disse Betinho. Está escurecendo. Francisco aproximou-se da menina, tocou-lhe os pés que as alpercatas mal escondiam. Não sabia o que fazer. Olhou Betinho como se pedisse instruções.

— Anda — disse Betinho.

Francisco ajoelhou-se aos pés de Débora e viu Betinho de novo a espreitá-lo.

— Vai embora — e bateu a mão com impaciência.

Betinho sumiu. De joelhos, Francisco apoiou-se com as mãos no chão. O cordão, as medalhas. Débora permanecia passiva, corno a vítima prestes a ser imolada. Estendendo-se de comprido, Francisco sentiu o corpo morno que inerme o recebia. Era como um ritual de que ambos se tinham esquecido. Recortado contra o céu escuro, Débora via parte do anjo de bronze, o braço erguido em sinal de advertência. As mãos no chão, Francisco levantou-se a meio corpo. Débora tentou cobrir o rosto, mas deixou à mostra os olhos que eram cinzentos, quase opacos.

— Está chorando? — perguntou Francisco e passou-lhe a mão pelos cabelos, puxou-lhe os anéis até os ombros.

— Anda — disse Débora.

Francisco não precisou responder, porque Betinho aparecia naquele momento:

— Pronto?

Débora ergueu-se e sacudiu a saia como se quisesse limpá-la. Betinho estava grimpado no alto da pilastra.

— Espera sua irmã — disse Francisco, a voz tão alta que o assustou.

Betinho escorregou para o outro lado, sem fazer caso. Um patim em cada mão, alguns passos adiante voltou-se:

— Ela sabe o caminho.

— Dé — disse Francisco. — Eu te levo.

E saltaram o portão. O vestido de Débora rasgou-se numa haste. Cada qual pegou o seu par de patins. Junto à parede de engavetar defuntos, lá em cima, acendeu-se uma lâmpada vermelha, que anunciava a noite. Em cima do mausoléu, imóvel, o anjo dava adeus num gesto de bronze.

— Tarde demais — e Débora ergueu os olhos para o céu sem estrelas.

— Sua mãe zanga? — perguntou Francisco.

De mãos dadas, de costas para o cemitério, ganharam a calçada que contornava a igreja. No jardim, um padre passeava para lá e para cá, um livro aberto nas mãos. Francisco sussurrou qualquer coisa que Débora não entendeu. Voltaram ambos pelo mesmo caminho, passaram diante do gradil do cemitério e contornaram a igreja pelo outro lado. Confundido agora com as sombras da noite, o silêncio a tudo emprestava proporções monumentais. O adro imenso, desabrigado. O vento na copa da magnólia iluminava as folhas de um lado como se tivessem luz própria.

A escadaria, os degraus gastos, familiares, caminho da missa, da novena, da bênção e do mês de maio. Chegaram ao largo e apertaram o passo até a esquina da mangueira. A casa no alinhamento tinha janelas baixas. Na ponta dos pés como uma boneca, Débora abriu a porta e, lá dentro, ouviu a voz de Betinho entre vozes adultas, indiferentes.

— Está na mesa — disse a mãe.

— Onde está Dé? — perguntou o pai.

— Evem aí — disse Betinho, fungando.

Sozinho na rua, Francisco ouviu o sino que começou a dobrar e despejava sobre a cidade uma onda de sons, a noite grave e triste que ia começar. Na rua parada, as casas paradas, as árvores paradas. O sino o perseguia, ia à frente e vinha atrás. Francisco deixou cair os patins e não voltou para apanhá-los. Fugia como se o cemitério tivesse se despenhado rua abaixo, no seu encalço.

Abriu o portão de casa, atravessou o jardim, parou no alpendre que uma trepadeira atulhava. A dama-da-noite impregnava o ar de um perfume sereno, pacificador. Uma luz estava acesa lá dentro. Limpou com insistência os pés no capacho, como se chegasse da chuva. Enxugou seu rosto molhado de lágrimas na fralda da camisa.

O sino tinha parado de tocar, mas alguma coisa vibrava no ar, sobre a cidade que acabava de acender as suas luzes para dormir.

Fonte:
RESENDE, Otto Lara. O Boca do Inferno. SP: Companhia das Letras,1998.

Otto Lara Resende (1922 – 1992)

Otto de Oliveira Lara Resende nasceu no dia 1°. de maio de 1922, numa casa na Rua da Matola, 9, em São João del Rei, Minas Gerais. Seu pai, Antônio de Lara Resende, era professor, gramático e memorialista, além de legítimo representante da Tradicional Família Mineira (TFM). Casado com D. Maria Julieta de Oliveira teve 20 filhos, dos quais Otto era o quarto.

O longevo professor — morreu em 1988, com 94 anos de idade — fundou seu próprio colégio em São João del Rei, o Instituto Padre Machado, que teve como aluno, entre outros, o futuro escritor João Guimarães Rosa. O Instituto foi transferido para Belo Horizonte quando a família para lá se mudou, em 1938. Tempos depois, foi entregue ao controle dos padres barnabitas.

Foi em 1938, através de Benone Guimarães, um dos professores do colégio, que Otto fez contato com alguns autores cujos livros o acompanharam por toda sua vida. No colégio estreou como jornalista, tendo desempenhado as funções de "gerente", eleito por voto secreto, do jornalzinho feito pelos alunos.

O professor Benone dirigia o jornal, orientava os colaboradores e exercia as funções de copidesque, pois não permitia de forma alguma a publicação de algo que julgasse impróprio. Com ele, tiveram início as agruras de Otto Lara na imprensa. Não se vendo nos textos publicados, após terem sido alterados pelo rígido professor, o autor chegou a inventar um pseudônimo, que mais era um trocadilho do que qualquer outra coisa:
Oh Tu!

Foi através do professor e orientador que teve contato com o Boletim de Ariel, a revista literária dos anos 30, e com a obra de Agripino Grieco, do qual se tornou admirador.

Segundo Otto, foi aí que resolveu ser escritor. "Eu estava convencido de que tinha vindo ao mundo para escrever, para lutar com as palavras, por mais vã que fosse essa luta".

Também por influência de Benone, tornou-se um leitor voraz de Machado de Assis. "A descoberta de Machado de Assis, de sua visão cética, amarga, de sua ironia, de seu sense of humour, desvendou um mundo para mim. Aos catorze, quinze anos, eu talvez fosse mais amargo e mais pessimista do que Machado...".

Nessa época, para deslumbramento do jovem escritor, Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Athayde, famoso autor e pensador católico, vai até São João del Rey para proferir uma conferência no Centro Dom Vital, organização de direita católica da qual seu pai fazia parte, e faz uma visita à sua casa. Vê-lo de perto, engalanado com seu fardão da Academia Brasileira de Letras, levou Otto a constatar que é possível ter duas caras: "Uma convencional, acadêmica e fardada; outra, jovial, humana e simpática".

Seguindo os passos de seu pai, aos 14 anos o biografado já era professor de Francês, que aprendeu por conta própria.

Vale lembrar que, com a Revolução de 30, Minas assumiu o poder cultural do país. Getúlio Vargas nomeou Gustavo Capanema para dirigir sua política educacional e cultural, colocando-o à frente do Ministério da Educação e Saúde Pública. Com carta branca do governo, o Ministro fez sua própria revolução no empoeirado meio cultural da época. Cercou-se de mineiros, nomeando Carlos Drummond de Andrade como seu chefe de gabinete. Tido como comunista, o poeta não era muito benquisto pela nata da sociedade conservadora, incluindo-se aí os velhos mandarins dos círculos literários oficiais e os representantes da direita católica. Outro mineiro levado por Capanema ao Ministério foi o escritor e jornalista Rodrigo Melo Franco de Andrade, que foi o criador, em 1937, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Ajudou-o nessa tarefa o escritor paulista Mário de Andrade, que se tornou uma espécie de mentor e orientador intelectual do grupo de jovens mineiros de que Otto fazia parte.

Em 1938 Otto, no esplendor de seus 16 anos, muda-se com a família para Belo Horizonte, onde morou por sete anos.

"Na carreira literária a glória está no começo. O restante da vida é aprendizado intensivo para o anonimato, o olvido", disse Paulo Mendes Campos, que já era conhecido do biografado desde os tempos de São João del Rei. Numa Belo Horizonte pequena, com menos de 200.000 habitantes, cuja população era oriunda de outras cidades mineiras que para lá — como a família Lara Resende — havia se mudado em busca de novas oportunidades, o biografado inicia sua carreira literária.

Naquela época, o poema "No meio do caminho", de Drummond, ainda provocava escândalo. A Tradicional Família Mineira (TFM) e a Igreja, esta representada pelo poderoso arcebispo dom Antônio dos Santos Cabral, exerciam forte patrulha sobre a população.

Otto, que havia nascido com vocação para a galhofa, era um jovem esperto e aplicado. Lecionava Português e Francês no Instituto Padre Machado, do qual era um dos herdeiros, o que levava a crer que seguiria a carreira de professor.

Conhece Fernando Sabino e juntos aderem à causa do escotismo, face ao incentivo da respeitada educadora Helena Antipoff. Nascida na Rússia, a fundadora dos institutos Pestalozzi, após algum tempo no Rio de Janeiro mudou-se para Minas, em 1920, e acabou por transformar-se em uma autêntica mineira.

Freqüenta, com Paulo Mendes Campos, velho conhecido, o curso de inglês. Juntou-se ao grupo Hélio Pellegrino, futuro psicanalista de renome. Os quatro, amigos por toda a vida, formaram o mais célebre quarteto que o Brasil já conheceu. Nas palavras de Otto, os "adolescentes definitivos". Amantes ardorosos da literatura, eram também portadores de feroz sentimento antifascista.

Passando do campo das idéias para o campo das ações, Otto e Hélio, com o suporte financeiro de alguns políticos, entre eles Afrânio de Melo Franco, publicam e distribuem clandestinamente o jornal "Liberdade", contra o Estado Novo. Além de Wilson Figueiredo, outros jovens se juntaram à dupla, cabendo citar Sábato Magaldi, Autran Dourado e João Etiene Filho. Este último teve grande influência na formação intelectual dos "Quatro Mineiros".

Além de professor, a partir de 1939 o autor aceita um convite para trabalhar no Serviço do Imposto Territorial da Secretaria de Finanças de Minas. "Sempre fui funcionário, que fatalidade" — diria ele anos depois. Dessa época vem a amizade com o jornalista Carlos Castello Branco, o "Castellinho", vindo do Piauí para estudar Direito na capital mineira e que trabalhava no jornal "Estado de Minas".

Aos dezoito anos, começa a trabalhar como jornalista no periódico "O Diário", de Belo Horizonte, ao mesmo tempo em que é professor, funcionário público e estudante de Direito. Sua estréia na imprensa, em 1940, se dá com o artigo "Panelinhas literárias". Dai por diante nunca mais deixou de ser jornalista, tendo chegado a editar o suplemento literário do "Diário de Minas". No Rio, anos depois, trabalhou no "Diário de Notícias", "O Globo", "Diário Carioca", "Correio da Manhã", "Última Hora", "Manchete", "Jornal do Brasil" e "TV Globo". Morreu como cronista do jornal "Folha de São Paulo".

O biografado dizia ter tido sorte de ter virado jornalista num momento em que as mudanças começavam a acontecer na "lerda e acolhedora" capital mineira. Já com Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação e Saúde Pública, outro mineiro se sobressai no âmbito regional: Juscelino Kubitschek de Oliveira, nomeado prefeito de Belo Horizonte pelo interventor Benedito Valadares. Com menos de 40 anos, Juscelino era o único alvo visível quando se queria atingir o Estado Novo, e assim "Os quatro mineiros" agiram. Surpreendidos com a visita do prefeito à mesa onde, entre cafezinhos, discutiam sobre política e literatura, na leiteria "Nova Celeste", fizeram questão de demonstrar a Juscelino não era bem-vindo. Hélio Pellegrino, em especial, aproveitou a oportunidade para um ajuste de contas com o Estado Novo. Juscelino ouviu, com tranqüilidade, o inflamado Hélio e, vendo que ali não teria espaço para expor suas idéias, levantou-se de repente dizendo: "Entrego os pontos", e foi-se embora.

Entre outras realizações, Juscelino promoveu uma espécie de feira cultural — conhecida como "semaninha" — que pretendia ser um reprodução, em tamanho menor, da Semana de Arte Moderna de 1922. Nela, Otto e amigos tiveram oportunidade de conhecer Oswald de Andrade. Mário já mantinha, nessa época, correspondência com Fernando Sabino, tendo conhecido, depois, os outros membros do grupo.

Em 1945, já formado em Direito, Otto muda-se para o Rio de Janeiro, onde já moravam seus amigos Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Vai trabalhar como repórter no "Diário de Notícias". Ao mesmo tempo, permanecia em seu emprego público, tendo em vista que, não se sabe como, havia conseguido a transferência de sua matrícula para o Rio. Depois de servir em diversas secretarias, é nomeado, em 1960, procurador do Estado da Guanabara.

Otto tinha o talento de colecionar e cultivar amizades. Além dos velhos amigos mineiros de infância, logo conquistou Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Rubem Braga, João Cabral de Melo Neto, Carlos Lacerda, Samuel Wainer e muitos outros mais.

Em 1946, começa a namorar Helena, filha de Israel e neta do ex-governador de Minas, João Pinheiro. Casa-se em 1948, na Igreja do Mosteiro de São Bento, no Rio. Ficaram casados por 44 anos e tiveram quatro filhos: André, Bruno, Cristiana e Heleninha.

Considerava-se "casadíssimo" e não se cansava nem se envergonhava de alardear seu amor pela família. "Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar", dizia ele. Levava os filhos à missa dominical, cortava-lhes as unhas, acompanhava o andamento de seus estudos na escola.

Helena leu, antes dos amigos, seus primeiros trabalhos literários. Seu primeiro livro de contos, "Lado Humano", é lançado em 1952 pela "Editora A Noite".

Cinco anos depois, em 1957, a "Editora José Olympio" publica seu segundo livro de contos, "Boca do Inferno". Consta que, logo após seu lançamento, o autor saiu, de livraria em livraria, recolhendo os exemplares, insatisfeito com sua publicação. Se ele ficou insatisfeito, seu pai ficou mais ainda. Em carta, deu um puxão de orelhas no filho, embora já estivesse com 35 anos. Outra reclamação veio de Heráclito Sobral Pinto, militante católico.

Trabalhava na revista "Manchete" nessa ocasião, já há três anos, tendo iniciado como redator-chefe e depois como diretor. Otto cativou Adolpho Bloch, dono da publicação, com sua conversa e, segunda consta, teria Adolpho proposto a ele que construíssem um mausoléu comum, para que ele pudesse continuar ouvindo as histórias do biografado pela eternidade afora. A revista, nas mãos de Otto, melhorou. Levou para lá o artista plástico mineiro Amílcar de Castro, para cuidar da parte gráfica, e colaboravam Rubem Braga, Lúcio Rangel, Flávio de Aquino, Darwin Brandão e Irineu Guimarães, entre outros.

Alegando estar à beira da estafa, e ainda sob o impacto do lançamento do livro "Boca do Inferno", se demite da "Manchete" e parte com a família para a Bélgica, onde vai exercer as funções de adido cultural brasileiro junto à Embaixada em Bruxelas. Com isso, não teve o desprazer de ver o fim do escândalo: segundo Autran Dourado, a porta do apartamento de Otto aparece coberta de fezes, obra, talvez, da "filial" carioca da TFM.

Terminado, em 1960, o mandato de Juscelino, o escritor, contra a vontade, volta ao Brasil. Sua mulher, Helena, o convence a cancelar contrato já assinado com a UNESCO e a retornar ao Rio de Janeiro. Cheio de dúvidas quanto a seu futuro e a profissão que iria exercer, sente-se completamente perdido. Disse: "Caí em depressão. Fui para a Procuradoria como advogado substituto". O destino acaba levando-o para o Banco Mineiro da Produção, onde exerceu, por curto período, o cargo de diretor, nomeado pelo amigo Magalhães Pinto, à época governador de Minas Gerais.

José Aparecido de Oliveira, secretário de imprensa do recém empossado Presidente Jânio Quadros, convence-o a fazer do escritor um membro de sua equipe. Mesmo contra sua vontade foi nomeado, à revelia, coordenador da Assessoria Técnica da Presidência. Não chegou a tomar posse, pois logo Jânio renunciou.

Os dias tumultuados que se seguiram fizeram com que Otto fosse chamado pelo amigo Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, para redigir uma declaração que esclarecesse a posição do governador em relação à posse do vice-presidente João Goulart, o Jango. Consta desse documento uma pérola de exemplo da posição "em cima do muro" escrita por Otto: "Minas está onde sempre esteve".

Anos depois, Otto declarou ser, à época, a favor da posse de Jango, tanto que, nada tendo contra ele, a pedido do amigo Jorge Serpa, havia montado uma entrevista (as perguntas e respostas) publicada pela revista "Manchete" pouco antes da deposição do presidente pelos militares. Carvalho Pinto, ministro da Fazenda, não concordou com as declarações de Jango (que na verdade eram de Otto) e demitiu-se.

Seria chamado novamente, em 1964, pelo governador mineiro, para escrever uma carta a João Goulart alertando-o dos riscos da agitação no campo. Dias depois, no Rio, sem saber de nada, João Pinheiro Neto, ministro de Jango, solicita a Otto o favor de escrever uma carta em resposta àquela que Jango havia recebido do governador de Minas Gerais.

Assume a função de editorialista do Jornal do Brasil. Funda, com Rubem Braga e Fernando Sabino, entre outros amigos, a Editora do Autor. Por ela são publicados "O retrato na gaveta" (1962), "O braço direito" (1963). Em 1964 escreveu "A cilada", um conto sobre a avareza no livro "Os sete pecados capitais", publicado pela Civilização Brasileira, em companhia de Guimarães Rosa (soberba), Carlos Heitor Cony (luxúria), Mário Donato (ira), Guilherme Figueiredo (gula), José Condé (inveja) e Lygia Fagundes Telles (preguiça).

Disse Nelson Rodrigues: "A grande obra de Otto Lara Resende é a conversa. Deviam pôr um taquígrafo atrás dele e vender suas anotações em uma loja de frases". O relacionamento dos dois merece um capítulo especial. Conheceram-se na redação de "O Globo" e a todos espantava o fato de terem se tornado amigos, pois eram pessoas completamente diferentes. Nelson tinha uma vida sentimental tumultuada, enquanto Otto era o exemplo do bom cristão, voltado para a família, um intelectual cuja literatura mesclava prazer, dever e até tortura. Um escritor medido, perfeccionista. Nelson era um vulcão. Escrevia aos borbotões, sem que aparentemente houvesse por trás um projeto literário ou um método.

Nelson adorava pôr amigos (e inimigos também) como personagens em suas peças, crônicas e romances. Aproveitava a oportunidade que seus livros lhe davam para pôr casualmente na boca de personagens, inventados ou não, o que gostaria de dizer por própria conta.

Otto tornou-se um dos personagens da predileção do dramaturgo. Citado em "Asfalto selvagem" (que tem como subtítulo "Engraçadinha, seus amores e seus pecados") e em crônicas, culminou por ser "homenageado" e ter uma peça com seu nome: "Bonitinha mas ordinária ou Otto Lara Resende". O biografado, para sua surpresa e desgosto, figurou escandalosamente em cartazes e no letreiro do Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro, em 1962, quando a peça estreou e ficou em cartaz por cinco meses. O nome do escritor é citado 47 vezes pelos atores.

O homenageado detestou a brincadeira. Em represália, não foi assistir ao espetáculo. Com o tempo, o caso foi esquecido e os dois continuaram bons amigos até o fim.

Em 1967, estréia seu programa "O pequeno mundo de Otto Lara Resende" na "TV Globo". Uma participação diária de 60 segundos, onde falaria sobre os acontecimento do dia. Sua maior dificuldade foi a de adaptar-se ao tempo disponível, já que adorava falar pelos cotovelos.

Ainda naquele ano, Otto despede-se temporariamente do "Jornal do Brasil" e da "TV Globo" e muda-se com a família para Portugal, onde residiria por dois anos, exercendo as funções de adido cultural junto à nossa Embaixada naquele país, em pleno governo Costa e Silva. Lá nasceu sua filha mais nova, Heleninha, a temporã que deixou o escritor, então com 45 anos, deslumbrado. Dizia que ter filhos após os 40 era uma beleza. "Consegui ser avô de minha filha e pai de minha neta, eliminando a intermediação antipática do genro".

Quando retornou ao Brasil, em 1969, não trazia consigo nenhuma crise profissional. Só a alegria de um pai extemporâneo. Voltou a trabalhar no "Jornal do Brasil", agora como diretor. Foi de extrema importância sua atuação junto à autoridades que detinham o poder, pois era obrigado a lidar com a censura, atos institucionais, desmandos e tudo o mais que compunham o ambiente da época.

Saiu do "Jornal do Brasil" em 1974 e, logo depois ingressou nas organizações "Globo".

Em 1975, publica o livro de contos "As pompas do mundo".

Em 03 de julho de 1979 é eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Toma posse em 02 de outubro do mesmo ano, na cadeira 39, vaga com a morte de Elmano Cardim, em solenidade concorridíssima onde estiveram presentes — fato inédito — seus pais. Apesar de não ter sido um acadêmico exemplar, pois comparecia muito pouco às reuniões, segundo colegas, Otto levou um pouco de graça e brilho à vetusta Academia Brasileira de Letras.

Após ter trabalhado por dez anos nas organizações "Globo" (1974/1984), foi demitido sem saber porquê. A verdade é que tal fato o deixou abaladíssimo. Durante seis anos remoeu essa mágoa e, em 1991, voltou a brilhar em nova fase profissional, quando foi contratado pelo jornal "Folha de São Paulo" como colunista.

Seu retorno põe fim a um período difícil em sua vida. Angustiado, queixava-se da falta de dinheiro e dizia não estar satisfeito com a vida que viveu até então. Deixou a barba crescer, começou a beber além de seu normal e, profundamente deprimido, chegou a se trancar em seu escritório e não participar da passagem de ano com sua família.

Em maio de 1985, um grupo de amigos liderados por José Aparecido de Oliveira, então governador de Brasília, movimentou-se para tirar o escritor da reclusão em que se encontrava, mediante sua nomeação para o cargo de Ministro da Cultura do governo José Sarney. Tudo parecia acertado. Sarney ligou para Otto e formulou o convite. Ele não disse nem que sim e nem que não. Viajou para Petrópolis e depois para Tiradentes (MG) e nunca mais tocou no assunto.

Como se não bastasse, no início de 1989, Otto atropelou uma criança na movimentada Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, quando voltava de sua casa de veraneio, em Petrópolis. O escritor prestou-lhe imediato socorro, mas o menino morreu. Ficou comprovado que não teve nenhuma culpa no infausto acontecimento. Em novembro do mesmo ano, seu apartamento foi assaltado e os ladrões levaram tudo o que existia de valor na casa.

Seu velho conhecido, o jornalista Janio de Freitas, vem de São Paulo com a tarefa de convidar Otto a participar do grupo de articulistas do jornal "Folha de São Paulo". Apesar da má vontade externada pelo escritor em aceitar, Janio sentiu que com um pouco de insistência o acordo seria fechado. Veio, então, ao Rio, o editor-executivo da Folha, Matinas Suzuki Jr., para fechar o negócio. A proposta era um desafio: escrever crônicas em seis dias da semana, com não mais de 30 linhas datilografadas. Tudo acertado, o primeiro artigo, publicado no dia 1° de Maio, quando completava 69 anos, intitulava-se "Bom dia para nascer". Ou renascer, como diriam alguns.

A coluna, como não poderia deixar de ser, teve grande aceitação e o número de leitores — e em especial, de leitoras — cresceu sensivelmente. Logo estaria entre os três colunistas mais lidos do jornal. O sucesso, como era da personalidade de Otto, lhe trouxe felicidade e tormento. Apesar de sua bibliofobia crônica, publicou mais um livro, "O elo partido e outras histórias". Escreveu quase 600 crônicas no período em que lá esteve, de Maio de 1991 a novembro de 1992.

Deixa o jornalismo aos 70 anos e, logo em seguida, a vida. Internado para uma operação sem importância, falece inesperadamente aos 28 de dezembro de 1992, segundo os médicos de "embolia pulmonar" mas, segundo a família, de infecção hospitalar.

Em 1992, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro homenageou o escritor dando seu nome para uma pracinha no bairro do Jardim Botânico.

O acadêmico Josué Montello, em fala ressaltando as qualidades do amigo falecido, citou os dois versos em que Afrânio Peixoto resumia sua própria biografia: "Estudou e escreveu./Nada mais lhe aconteceu".

Nos tempos de juventude, numa brincadeira, Fernando Sabino fez a seguinte quadrinha para adornar a lápide de Otto:

Aqui jaz Otto Lara Resende
mineiro ilustre, mancebo guapo.
Deixou saudades, isso se entende:
Passou cem anos batendo papo.

Bibliografia:

- O lado humano (contos, 1952)
- Boca do inferno (contos, 1957 e 1998)
- O retrato na gaveta (contos, 1962)
- O braço direito (romance, 1964)
- A cilada (conto, 1965, publicado em "Os sete pecados capitais)
- As pompas do mundo (contos, 1975)
- O elo partido e outras histórias (contos, 1991)
- Bom dia para nascer (Crônicas na Folha de S. Paulo, 1993)
- O príncipe e o sabiá e outros perfis (História, 1994)
- A testemunha silenciosa (Novelas, 1995).

Fonte:
http://www.releituras.com/

José de Alencar (A Prece)

(ao final vocabulário das palavras negritadas)
A tarde ia morrendo.

O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas, que iluminava com os seus últimos raios.

A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando para verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.

Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; e o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pousada, enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.

Um concerto de notas graves saudava o pôr-do-sol e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder à doce influência da tarde.

Era Ave-Maria.

Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!

Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebras da montanha; esses raios perdidos, que esvasando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia imensa que enche a alma.

O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas de verdura, vão ecoar ao longe como o toque lento e pausado do angelus.

A brisa, roçando as grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o último eco dos rumores do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.

Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.

De repente os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde; era um dos aventureiros que tocava Ave-Maria.

Todos se descobriram.

D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada para o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.

Ao redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo, ajoelharam-se a alguns passos de distância.

O sol com o seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo, e realçava a beleza daquele busto de antigo cavalheiro.

Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio cristã, meio selvagem; em todos aqueles rostos, iluminados pelos raios do ocaso, respirava um santo respeito.

Loredano foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso, e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro, ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplá-la, como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece.

Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um fundo recolhimento, e diziam uma oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.

Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.

Era noite.

Todos se ergueram; os aventureiros cortejaram e foram-se retirando a pouco e pouco.

Cecília ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãe, e fez uma graciosa mesura a seu irmão e a Álvaro.

Isabel tocou com os lábios a mão de seu tio, e curvou-se em face de D. Lauriana para receber uma bênção lançada com a dignidade e altivez de um abade.

Depois a família, chegando-se para junto da porta, dispôs-se a passar um desses curtos serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia.

Álvaro, em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada, fora emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa colação da família, o que havia recebido como um favor imenso.

O que explicava esse apreço e grande valor dado por ele a um tão simples convite era o regime caseiro que D. Lauriana havia estabelecido na sua habitação.

Os aventureiros e seus chefes viviam num lado da casa inteiramente separados da família; durante o dia corriam os matos e ocupavam-se com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria.

Era unicamente na hora da prece que se reuniam um momento na esplanada, onde, quando o tempo estava bom, as damas vinham também fazer a sua oração da tarde.

Quanto à família, essa conservava-se sempre retirada no interior da casa durante a semana. O domingo era consagrado ao repouso, à distração e à alegria; então dava-se às vezes um acontecimento extraordinário como um passeio, uma caçada, ou uma volta em canoa pelo rio.

Já se vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos desejos, como dizia o italiano, de chegar ao Paquequer em um sábado, e antes das seis horas; o moço sonhava com a ventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo, que lhe ofereceria talvez ocasião de arriscar uma palavra.

Formado o grupo da família, a conversa travou-se entre D. Antônio de Mariz, Álvaro e D. Lauriana; Diogo ficara um pouco retirado; as moças, tímidas, escutavam, e quase nunca se animavam a dizer uma palavra sem que se dirigissem diretamente a elas, o que rara vez sucedia.

Álvaro, desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecília, da qual ele tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava, procurou um pretexto que a chamasse à conversa.

- Esquecia-me contar-vos, Sr. D. Antonio, - disse ele aproveitando-se de uma pausa, um dos incidentes da nossa viagem.

- Qual? Vejamos - respondeu o fidalgo.

- A coisa de quatro léguas daqui, encontramos Peri.

- Inda bem! - disse Cecília; - há dois dias que não sabemos notícias dele.

- Nada mais simples,- replicou o fidalgo; - ele corre todo este sertão.

- Sim! - tornou Álvaro, - mas o modo por que o encontramos é que não vos parecerá tão simples.

- O que fazia então?

- Brincava com uma onça como vós com o vosso veadinho, D. Cecília.

- Meu Deus! - exclamou a moça soltando um grito.

- Que tens, menina? - perguntou D. Lauriana.

- É que ele deve estar morto a esta hora, minha mãe.

- Não se perde grande coisa, - respondeu a senhora.

- Mas eu serei a causa de sua morte!

- Como assim, minha filha? disse D. Antônio.

- Vede vós, meu pai, - respondeu Cecília enxugando as lágrimas que lhe saltavam dos olhos; - conversava quinta-feira com Isabel, que tem grande medo de onças, e brincando, disse-lhe que desejava ver uma viva!...

- E Peri a foi buscar para satisfazer o teu desejo,- replicou o fidalgo rindo. - Não há de admirar. Outras tem ele feito.

- Porém, meu pai, isto é coisa que se faça! A onça deve tê-lo morto.

- Não vos assusteis, D. Cecília; ele saberá defender-se.

- E vós, Sr. Álvaro, por que não o ajudastes a defender-se? -disse a moça sentida.

- Oh! Se vísseis a raiva com que ficou por querermos atirar sobre o animal!

E o moço contou parte da cena passada na floresta.

- Não há dúvida, - disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de sua vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!

A conversa continuou; mas Cecília tinha ficado triste, e não tomou mais parte nela.

D. Lauriana retirou-se para dar as suas ordens; o velho fidalgo e o moço conversavam até oito horas, em que o toque de uma campa no terreiro da casa veio anunciar a ceia.

Enquanto os outros subiam os degraus da porta e entravam na habitação, Álvaro achou ocasião de trocar algumas palavras com Cecília.

- Não me perguntais pelo que me ordenastes, D. Cecília?- disse ele a meia voz.

- Ah! Sim! Trouxestes todas as cousas que vos pedi?

- Todas e mais... - disse o moço balbuciando.

- E mais o quê? - perguntou Cecília.

- E mais uma cousa que não pedistes.

- Essa não quero! - respondeu a moça com um ligeiro enfado.

- Nem por vos pertencer já? replicou ele timidamente.

- Não entendo. É uma coisa que já me pertence, dizeis?

- Sim; porque é uma lembrança vossa.

- Nesse caso guardai-a, Sr. Álvaro, - disse ela sorrindo, - e guardai-a bem.

E fugindo foi ter com seu pai, que chegava à varanda, e em presença dele recebeu de Álvaro um pequeno cofre, que o moço fez conduzir, e que continha as suas encomendas. Estas consistiam em jóias, sedas, espiguilhas de linho, fitas, galacês, holandas, e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas.

Vendo essas armas, a moça soltou um suspiro abafado e murmurou consigo:

- Meu pobre Peri! Talvez já não te sirvam nem para te defenderes.

A ceia foi longa e pausada, como costumava ser naqueles tempos em que a refeição era uma ocupação séria, e a mesa um altar que se respeitava.

Durante a colação, Álvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto presente que ele havia acariciado com tanto amor e tanta esperança.

Logo que seu pai ergueu-se, Cecília recolheu ao seu quarto, e ajoelhando diante do crucifixo, fez a sua oração. Depois, erguendo-se, foi levantar um canto da cortina da janela e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo, e estava deserta e solitária.

Sentia apertar-se o coração com a idéia de que, por um gracejo, tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvara a vida, e arriscava todos os dias a sua, somente para fazê-la sorrir.

Tudo nesta recâmara lhe falava dele: suas aves, seus dois amiguinhos que dormiam, um no seu ninho e outro sobre o tapete, as penas que serviam de ornato ao aposento, as peles dos animais que seus pés roçavam, o perfume suave de beijoim que ela respirava; tudo tinha vindo do índio que, como um poeta ou um artista, parecia criar em torno dela um pequeno templo dos primores da natureza brasileira.

Ficou assim a olhar pela janela muito tempo; nessa ocasião nem se lembrava de Álvaro, o jovem cavalheiro elegante, tão delicado, tão tímido, que corava diante dela, como ela diante dele.

De repente a moça estremeceu.

Tinha visto à luz das estrelas passar um vulto que ela reconheceu pela alvura de sua túnica de algodão, e pelas formas esbeltas e flexíveis; quando o vulto entrou na cabana, não lhe restou a menor dúvida.

Era Peri.

Sentiu-se aliviada de um grande peso; e pôde então entregar-se ao prazer de examinar um por um, com toda a atenção, os lindos objetos que recebera, e que lhe causavam um vivo prazer.

Nisso gastou seguramente meia hora; depois deitou-se, e como já não tinha inquietação nem tristeza, adormeceu sorrindo à imagem de Álvaro, e pensando na mágoa que lhe fizera, recusando o seu mimo.
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Vocabulário:
Alcatifa – tapete espesso, grande.
Beijoim – espécie de perfume
Crastas – arquiteturas
Grimpas – ramos de pinheiro
Juriti – espécie de ave
Ouricuri – espécie de palmeira
Reboando – ecoando fortemente
Torvo – tristonho, sombrio
Urutau – espécie de ave
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Fonte:
O Guarani, vol. 1, capítulo VII, 1857. In Academia Brasileira
de Letras.