sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Asas da Poesia * 119 *


Soneto de
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Síntese

A rosa, flor rainha do canteiro,
jamais força a exclusão do rude espinho
que, em vez de ter bem longe o próprio ninho,
da flor se faz constante companheiro.

A luz divide o seu próprio roteiro
com a sombra, que percorre igual caminho,
enquanto o bem consiste em ser vizinho
do mal, no mesmo espaço, o tempo inteiro.

A vida, amplo mosaico deslumbrante,
condensa eternidade em breve instante,
combina em mil nuances tons diversos.

Sem excluir parcelas da verdade,
mas abraçando a vasta humanidade,
o poeta sente... e expõe o mundo, em versos!
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Vale a pena valer a pena

Vale a pena ser feliz a cada instante
que se viva, quando a dor não está por perto,
pois se o Sol machuca a pele do deserto,
num oásis, o amor é verdejante.

Quando a lágrima é salgada... e cristalina...
na retina, os sonhos teimam em brilhar
e se há sonhos numa gota pequenina,
é nos sonhos que o amor quer se abrigar.

Vale a pena não ter pena do que é triste,
não existe solidão, se a fantasia
faz poesia com a tristeza, se ela insiste
em matar o amor que existe na alegria.

Vale a pena, entretanto, a esperança
de viver e de sentir felicidade,
resgatando a emoção de uma criança
que carece de um sorriso em liberdade.

Pois se o riso se sublima na alma pura,
cada lágrima constrói seu próprio encanto,
e se o canto não faz coro com a amargura,
a ternura é sempre a voz do acalanto.

Vale a vida... o que é triste, o tempo leva...
se são pétalas, o vento as poliniza,
se são folhas, se desprendem... quando neva...
se são bolhas, duram o tempo da brisa.

Vale a pena eu te amar e tu me amares,
nem que seja por um tempo... vale a pena!
... porque quando eu te deixar... ou me deixares,
a saudade há de brotar sempre serena.

Vale a pena agradecer todos os dias
a alegria de se ter uma história,
pois se a vida se dilui em fantasias,
a poesia se eterniza na memória.
= = = = = = 

Glosa de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

MOTE... 
Minha vida é qual navio 
que navega pelo mar... 
Ora contra um mar bravio, 
ora mero devanear. 
José Feldman
Floresta/PR

GLOSA... 
Minha vida é qual navio, 
avião, trem, caminhão; 
porém o meu desafio 
é andar a pé... no chão! 

Se você tem um transporte 
que navega pelo mar... 
digo que você tem sorte 
se o dito nunca afundar! 

Sempre foi um desafio 
para um navio... singrar; 
Ora contra um mar bravio, 
ora ao sabor de um bom mar! 

Pra quem sai ao mar diria: 
é bom, cuidados, tomar; 
pois ora vem ventania, 
ora, mero devanear.
= = = = = = 

Trova Popular

Amar e saber amar
são dois pontos delicados:      
os que amam, são sem conta:
os que sabem, são contados.     
= = = = = = 

Soneto de
EDUARDO A. O. TOLEDO
Pouso Alegre/MG +

Exclusão

Quando o dia abre o céu e o sol desperta,
dourando as relvas do jardim florido,
em meio a uma esperança descoberta,
às vezes amanheço deprimido...

Já, pela tarde, que se faz aberta
às cigarras em límpido alarido,
onde se afaga uma ilusão incerta,
às vezes entardeço sem sentido...

E quando a noite vem, presa em luares,
na própria exaltação dos avatares,
às vezes anoiteço na exclusão...

No entanto, quando chega a madrugada,
meus sonhos se libertam e , em revoada,
vão desenhando versos na amplidão!!!
= = = = = = 

Décima de
FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Aos Poetas de Caicó

Eu queria escrever meu sentimento
Mas não sai, a não ser este prospecto
Ou sou eu um carente de intelecto
Pra mostrar o meu agradecimento
Pode até ser falta de talento
Pra exprimir o que sinto por vocês
Aturando o Pessoa uma outra vez
Nessa nossa querida Caicó
A rainha de todo Seridó
Quem me dera voltar no outro mês!!!
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Jardim secreto

Eu também tenho o meu jardim secreto,
tal qual o mundo inteiro, com certeza...
Mas só porque não sou nada discreto,
o meu “secreto” some na esperteza...

Quem lê meus versos tudo sabe, exceto,
talvez o que eu não disse por lerdeza,
porque o que escrevo eu mesmo interpreto
no meu viver de inteira singeleza.

Se eu disse que te amei, também te disse
que tudo o mais que eu fiz foi só tolice,
pois nunca mais eu tive um outro amor.

O que faltou dizer, eu digo agora:
eu sonho com teus beijos toda hora;
és a razão de eu ser um sonhador!
= = = = = = 

Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

Dor elegante

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Eu sou a tocha do morto,
com a luz já quase extinta,
ou qual a negra mortalha
que por preta não se pinta.
= = = = = = 

Soneto de 
JOSÉ MESSIAS BRAZ
Juiz de Fora/MG

Encantos da tarde

Explode a tarde rubra e refulgente,
na primavera exuberante em cores,
aos olhos do roceiro indiferente
e aos gorjeios dos pássaros cantores...

Alegre, a tarde entrega-se ao poente
abrindo em leque os últimos fulgores
e em seus rastros deixando, lentamente,
que a noite acenda a luz dos refletores.

- Feliz eu morreria à luz da tarde...
espargindo meus versos sem alarde,
no encanto deste adeus crepuscular,

se pudesse voltar em outra vida,
aos braços da pessoa mais querida,
em primorosa noite de luar!..
= = = = = = 

Poema de 
ANTONIO CARLOS DE PAULA
São Paulo/SP

Beijo Quebrado!

Já tive sonho perdido,
já tive um amor sonhado,
fui flor de um vaso partido,
cacos de um beijo quebrado,
eu já rimei contra o vento,
versejei contra a maré,
machuquei meus sentimentos,
tropecei na própria fé!

Entreguei-me apaixonado,
quebrei o sonho e a ilusão,
por isso, hoje o cuidado
com o meu pobre coração,
que sobre as ondas do destino
está vacilando outra vez
levando-me ao desatino,
veja o que a vida me fez!

O sol deste teu sorriso
e a ternura em teu olhar,
me dizem que é preciso
perder o medo de amar!
= = = = = = 

Soneto de 
MARIA MADALENA FERREIRA
Magé/RJ

Amor à Vida

Levei uma “palmada”... ao “pôr os pés”... na vida..
E logo desatei um choro alucinante!
Porém, a minha mãe beijou-me – enternecida! – 
e ao seio me achegou! – Sorri no mesmo instante!!!

De barriguinha cheia – e, tendo por guarida
uns braços, e uma voz serena e repousante,
eu me senti – de pronto! – amada e protegida!
E adormeci, pensando: - “A vida é fascinante!!!”

Se é certo que, ao passar por todos estes Anos,
sofri desilusões, desgostos, desenganos,
também usufruí momentos de prazer!!!

Vivendo, eu me apeguei à vida, de tal jeito,
que a Angústia que ora sinto – aqui, dentro do peito,
não é medo da morte! – É pena de morrer!!!...
= = = = = = 

Poema de
ANTONIO M. A. SARDENBERG
São Fidélis/RJ +

Alma

Quando a vida vem sussurrar baixinho
Dizendo coisas que se quer ouvir,
Deixe o recado chegar de mansinho,
Que toda a alma também quer sentir.

Prepare o peito para uma festa,
Faça um convite para ela entrar,
Reparta o resto todo que inda resta,
Pois dividir é muito mais que dar.

E deixe o amor enaltecer a vida
Dando guarida ao pobre coração.
Quando chegar a hora da partida,
Que nos sussurre a voz da emoção.
 
E que o acalanto de linda cantiga
Deixe que venha a paz que tanto acalma
Trazendo junto a esperança antiga
Que ainda vive dentro dessa alma.
= = = = = = 

Hino de 
Garanhuns/PE

Filhos da Terra, oh! gente,
Ergam a voz, brilhem as frontes,
cantando com a alma que sente
e que vai nas brisas dos montes.

Salve Garanhuns!
Os jardins, as palmeiras e alguns
pedaços do céu... mão divinas!
Salve as sete colina!

Estribilho
Nos anais, "Florescente e garbosa
Garanhuns", fostes sempre assim.
A elegância, a beleza da rosa,
as paisagens, estesias sem fim.

Os teus vales bravios outrora
esconderam fugitivos de cor...
A liberdade da Terra arvora
Estes homens de novo pendor.

E o lema "Ad Altiora Tendere"
é o mais fervoroso ideal.
A bandeira, sagrada e serena,
e Simôa da história fanal.

Tuas belezas - cidade das flores
e os ares - poema acolhedor...
Ai! Suspiros! Que vida, que amores
neste hino, que fulge esplendor!
= = = = = = 

Sonetilho de 
OLIVALDO JUNIOR
Mogi-Guaçu/SP

Tão somente sobre o adeus

De minh’alma preta e branca,
vivo, em cores, surge o adeus,
que a saudade é muito franca
com quem vive sem os seus!...

De uma perna meio manca,
parto sempre em triste adeus,
que essa vida é quem arranca
de um amigo os outros eus.

Hoje o peito já não chora,
choro a seco neste quarto
que a saudade já penhora.

Hoje eu digo adeus, é hora,
pois o tenho quando parto,
quando parte e quando ora.
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

A dama desdenhosa

Uma mui nobre — rica donzela,
Airosa e bela,
Fez a cidade — alvoroçar.

Nas sociedades — mui bem cantava,
Mui bem dançava,
Queriam todos — ser o seu par.

As outras damas — ao seu aspeito*,
Cruel despeito
Na alma sentiam — de as eclipsar.

Rica e formosa — nobre e prendada,
Faltava nada,
Para partidos — ter a fartar.

Já dos mancebos — a estreia toda
Dela anda em roda,
Cada um procura — de a desposar!

Mas desdenhosa — dando à cabeça,
«Não tenho pressa —
Dizia ufana — de me casar!»

Depois severa — cada conquista
Passa em revista,
E em todos acha — que censurar,

Um, nímio* branco — outro é trigueiro,
Outro grosseiro,
Outro mui velho — para a igualar.

No entanto os anos — vão de corrida;
Não pressentida,
Sua beleza — entra a baixar.

Roda somenos — de pretendentes,
Ainda decentes,
Os seus obséquios — vem ofertar.

Mas segue a louca — sua mania:
«Ora — dizia —
Se de tais monos — me hei de agradar!

Fidalgos pobres! — ricos plebeus!
Sem tais sandeus,
Posso contente — vida passar».

Os galãs vão-se — dela zombando;
Até que chegando
O seu espelho — a consultar,

Viu, que desgosto! — que entre os cabelos
Louros e belos,
Alguns começam — a branquejar!

Então ansiosa — busca um marido,
Mas um partido
Sequer mediano — não pôde achar.

E quem rendera — cidade e corte,
Por grande sorte,
Com um corcunda — teve o casar.
= = = = = = = 
* Vocabulário:
Aspeito: aspecto
Nímios: demasiados
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Monsenhor Orivaldo Robles (Compra-se um pai)


Muitos talvez conheçam a história que, faz tempo e não me lembro onde, li sobre um garotinho de orfanato. Quando aparecia uma visita, ele corria-lhe ao encontro com papéis recortados em forma de cédulas, e os oferecia, pedindo: “Tó meu dinheiro, compra um pai pra mim”.

A cena, mesmo imaginada, comove pela inocência e dor do pedido. Calcule-se o espanto do embasbacado visitante. Surpreendeu-me o pedido por um pai. Acostumamo-nos à ideia de que filho sente mais a ausência da mãe. Talvez o orfanato fosse dirigido por religiosas que, muitas vezes, oferecem amor mais completo que mãe biológica. Esta, quem sabe, não fizesse tanta falta à criança.

O avanço científico dos últimos tempos tem conhecido uma escala que parece autorizar-nos a jogar fora certezas tidas, até aqui, por inabaláveis. De repente, nos vemos tão evoluídos nas ciências que passamos a desprezar lições, antes sagradas.

Dia dos Pais era uma data respeitosa, criada para homenagear aquele que, desde os albores da vida, garante segurança e ternura. Hoje, sob tanta propaganda de incentivo ao consumo, nos tornamos vítimas de mais uma das muitas armadilhas que o mercado cria para enganar os trouxas que somos. O erro está não em festejar os pais, mas em fazer do seu dia só data de faturamento maior para o comércio.

Não obstante todas as transformações, não é exagero dizer mais uma vez: pai é necessário. Não só para gerar o filho, mas para viver ao seu lado num grupo humano permanente e responsável, chamado família.

Ao lado da mãe, a presença física, estável e amorosa do pai é exigência básica para equilíbrio emocional e desenvolvimento sadio da personalidade de qualquer criança. São falaciosas - e a vida o tem cabalmente comprovado - as propostas de modelos diferentes. Dispensar a família por inútil, como resquício de organização social imperfeita e transitória, demonstra ignorância bem mais que conhecimento. Sem medo de receber a pecha de atrasado, continuo a entendê-la como construtora do futuro da humanidade.

Vai tornando-se “normal” a ausência física do pai e a desnecessidade de uma família indissolúvel com marido, mulher e filhos. Cresce, entre muitos que se consideram evoluídos cultural, intelectual ou economicamente, a convicção de que o momento exige novos modelos, em que cada pessoa assuma o que lhe parecer mais conveniente. Sem um referencial objetivo a ser observado que, para eles, não existe.

“Pelos frutos se conhece a árvore”, ensinou o Senhor. Basta ver que sociedade vamos produzindo nestes tempos. Uma das causas tem sido a diluição da família de moldes cristãos, formada na observância dos valores essenciais da natureza humana.

Crer que absolutamente tudo até aqui ensinado tenha que ser virado de pernas para o ar não traz a felicidade nem a paz desejadas. Apenas intensifica a desgraça que pretende corrigir.

O erro está não na família, mas no coração da pessoa. Ele é que precisa mudar. Só que isso custa. Mais fácil é atirar pedras na família. Não dá trabalho. Não exige responsabilidade. Nem transformação interior, que é difícil pra burro.
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Monsenhor Orivaldo Robles nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória – Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro “Celeiro Desprovido”, com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.
Fontes:
Recanto das Letras do autor. 23.01.2012.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3456457
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 23 (Tristezas e Mágoas)


1
A lua saiu bem clara 
entre nuvens se escondeu, 
Não pode encontrar ventura 
quem sem ventura nasceu.
2
Eu não sou filho daqui, 
sou filho, sim, lá de fora, 
ando cumprindo o meu fado, 
acabando, vou-me embora.
3
Sopra o vento nos gerais 
e apaga a luz da candeia. 
Triste coisa neste mundo 
e viver em terra alheia.
4
A rolinha de cansada
bateu o papo na areia, 
e batendo foi dizendo: 
– Triste coisa é terra alheia . .
5
Triste vida é de quem anda
fora do seu «natural» .
 Se um dia passa bem, 
três e quatro passa mal...
6
Triste vida de quem vive, 
rolando cantos alheios, 
come e dorme aos bocadinhos, 
bebe e ama com receios.
7
Você me diz : vamos, vamos...
Para onde havemos de ir? 
Quem nasceu para a desgraça 
não tem para onde fugir.
8
Por muito que o infeliz 
contra os males se previna,
há de passar por aqueles 
que lhe marcou sua sina...
9
Meu destino não se muda, 
minha desgraça é constante, 
eu choro todos os dias, 
e suspiro a todo instante.
10
Quando vejo o caranguejo 
caminhando em santa paz, 
julgo ver minha ventura 
que só anda para trás.
11
Queria subir ao céu, 
ter com Deus um argumento, 
perguntar-lhe pra que deu 
aos pobres o sentimento.
12
Beijo a mão que me condena. 
Respeito o poder do fado, 
obedeço a meu destino 
de ser sempre desgraçado.
13
Uma dor de coração 
é ver e não alcançar, 
mas é tristeza maior 
possuir e não gozar.
14
Naquela serra mais alta 
vou os meus prantos chorar, 
talvez naquelas alturas 
me possa Deus escutar.
15
Se eu soubesse que na guerra
das desditas me livrava, 
eu iria ver se a morte 
meus pesares acabava.
16
Corre o rio entre as pedrinhas 
saltitando de alegria, 
também corro, mas sou triste, 
sem sossego, noite e dia.
17
Quando me for desta terra,
vou pelos ares voando,
para que os matos não digam 
que já me viram chorando.
18
Lá vai a garça voando
co’as penas que Deus lhe deu. 
Contando pena por pena
mais penas padeço eu.
19
Já tive dias felizes,
zombando da sorte austera. 
Perdi mimos que gozei, 
já não sou quem dantes era.
20
Meu coração, batei caixas, 
meus sentidos, manobrai, 
meus olhos, deitai bandeira: 
– Vinde lágrimas, marchai!
21
Quem me vir andar chorando
não se ria, tenha dó, 
que o trabalho deste mundo
não me fez para mim só.
22
A um sucede outro dia, 
a uma outra estação.
Só para mim não se muda 
minha triste condição.
23
Não quero mais fazer roça 
que a sorte vem contra mim. 
Planto cana, nasce alpiste, 
planto arroz, nasce capim.
24
Como o prado, com as flores
comparo a minha ventura: 
prado, porque floresce,
a flor, porque pouco dura.
25
Alma no corpo não tenho, 
minha existência é tingida;
Sou como o tronco quebrado 
que dá sombra sem ter vida.
26
No livro dos infelizes 
o meu nome escrito achei. 
Como nasci sem ventura, 
sem ventura acabarei.
27
Dizem que almas não morrem, 
são imortais, não tem fim...
A minha faz exceção, 
está morta dentro de mim.
28
Oh morte, porque não vens 
findar meus dias fatais. 
Vivendo, eu ando penando. 
Morrendo, não peno mais.
29
Sou dos que não querem vida.
Sou dos mais desesperados, 
valei-me, instantes da morte, 
instantes afortunados!
30
Se eu morrer sem me salvar, 
todos chorem minha sorte: 
Infeliz durante a vida, 
infeliz durante a morte.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = = = =  
Júlio Afrânio Peixoto (Lençóis/BA, 1876 – 1947, Rio de Janeiro/RJ) foi um médico, político, professor, crítico literário, ensaísta, romancista e historiador brasileiro. Ocupou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras, e a cadeira 2 da Academia Brasileira de Filologia, da qual foi fundador. Passou sua infância no interior da Bahia, na cidade de Canavieiras (onde há uma biblioteca e rua com seu nome), vivenciando situações e paisagens que influenciariam muitos dos seus romances. Formou-se em Medicina, em Salvador, no ano de 1897. Sua tese inaugural, "Epilepsia e crime", despertou grande interesse nos meios científicos do país e do exterior. Em 1902, mudou-se para a capital do país, na época, Rio de Janeiro, onde foi inspetor de Saúde Pública e diretor do Hospital Nacional de Alienados, em 1904. Ministrou aulas de Medicina legal na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1907) e assumiu os cargos de professor extraordinário da Faculdade de Medicina (1911); diretor da Escola Normal do Rio de Janeiro, em 1915 e diretor da Instrução Pública do Distrito Federal no ano seguinte. Em 1916, após 3 anos ministrando a disciplina de Medicina Legal, torna-se professor titular da cadeira na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Foi eleito deputado federal pela Bahia, ficando no cargo no período de 1924 a 1930. Após isto, voltou à atividade do magistério sendo professor de História da Educação no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, em 1932. Em 1934 foi agraciado com a Grã-Cruz da Antiga, Nobilíssima e Esclarecida Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, do Mérito Científico, Literário e Artístico de Portugal. Foi reitor da Universidade do Distrito Federal em 1935 e, após 40 anos de relevantes serviços, aposentou-se. Iniciou na literatura no ano de 1900 com a publicação do drama Rosa mística. Drama em cinco atos, luxuosamente impresso em Leipzig, com uma cor para cada ato. Entre 1904 e 1906 esteve em vários países da Europa, a fim de adquirir novos conhecimentos. Ao retornar ao Brasil esqueceu-se da literatura e pensou apenas na medicina. Nesse período foi grande sua produção de obras de cunho médico-legal-científica. O romance foi uma implicação a que o autor foi levado em decorrência de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, em 7 de maio de 1910, para a qual fora eleito à revelia, quando se achava no Egito, em sua segunda viagem ao exterior. Quase como que por obrigação, começou a escrever o romance A esfinge, o que fez em três meses antes da posse da Cadeira nº 7. O Egito inspirou-lhe o título e a trama novelesca. O romance, publicado no mesmo ano, obteve um sucesso incomum e colocou seu autor em posto de destaque na galeria dos ficcionistas brasileiros. Afrânio Peixoto obteve, na época, grande aprovação de crítica e prestígio popular. Existe no Palácio Imperial, em Petrópolis, uma placa comemorativa onde se lê: "Nesta sala, durante cinco verões, Afrânio Peixoto disse cousas. Que cousas! e como as disse!". Como ensaísta escreveu importantes estudos sobre Camões, Castro Alves e Euclides da Cunha. Como médico, conheceu e estudou as ideias e teorias de Freud, levando-as para muitos de seus romances. Teve colaboração na publicação periódica Atlântida (1915–1920) e na revista luso-brasileira Atlântico. 
Algumas obras: Rosa mística — drama (1900); Lufada sinistra — novela (1900); A esfinge — romance (1911); Trovas brasileiras (1919); Fruta do mato — romance (1920); As razões do coração — romance (1925); História da literatura brasileira (1931); Livro de horas (1947), etc.
Fontes: 
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919. 
Disponível em Domínio Público.
Biografia = https://pt.wikipedia.org/wiki/Afrânio_Peixoto

Fernando Pessoa (A hora do diabo)


Saíram da estação, e, ao chegar à rua, ela viu pasma que estava na própria rua onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás, para exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém. Estava a rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer ser uma estação de comboios.

Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa. Entrou, subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido. Lia, no escritório, e, quando ela entrou, depôs o livro.

— Então? — perguntou ele.

— Correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante. — E acrescentou, antes que ele perguntasse — Umas pessoas que estavam lá no baile trouxeram-me de automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à porta. Saí ali mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou!

E, num gesto de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar.

Os seus sonhos adquiriram uma feição estranha, pontuados com coisas inexplicáveis por qualquer experiência que se conheça. Pairou nela o desejo de grandes coisas, como de alguém que um dia foi separado, numa vida antes desta, por sobre todas as idades da terra. E viu-se a deslocar por uma ponte de uma grande altura, de onde se vê todo o mundo. Em baixo, a uma distância mais que impossível, estavam, como astros espalhados, grandes manchas de luz: cidades, sem dúvida, da terra. Uma figura de vermelho apareceu-lhe e apontou-lhes, dizendo:

— São as grandes cidades do mundo. Aquela é Londres — e apontou uma na distância descida — Aquela é Berlim — e apontou para outra. — E aquela, ali, é Paris. São manchas de luz na treva, e nós, nesta ponte, passamos alto sobre elas, incrédulos do mistério e do conhecimento.

— Que coisa tão pavorosa e tão bonita! Mas o que é aquilo tudo ali em baixo?

— Aquilo, minha senhora, é o mundo. Foi daqui que, por incumbência de Deus, tentei o seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu já esperava, porque o Filho era mais iniciado que o Pai, e estava em contato direto com os Superiores Incógnitos da Ordem. Foi uma provação, como se diz em linguagem iniciática, e o Candidato portou-se admiravelmente.

— Não percebo. Foi daqui, realmente, que tentou Cristo?

— Foi. Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava então uma montanha. No abismo também há geologias. Aqui, onde estamos agora, era o cume. Que bem que me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde além de Deus. Segui, porque era o meu dever, o conselho e a ordem de Deus: tentei-o com tudo quanto havia. Se tivesse seguido o meu próprio conselho, tê-lo-ia tentado com o que não pode haver. Talvez a história do mundo em geral, e a da religião cristã em particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a força do Destino, supremo arquiteto de todos os mundos, o Deus que criou este, e eu que, porque o nega, o sustenta?

— Mas como é que se pode sustentar uma coisa por a negar?

— É a lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem se desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um mineral. A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe. Mas, se eu não existisse, nada existiria, porque não havia a que opor-se, como a pomba do meu discípulo Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar melhor no vácuo.

“A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e nossos.

— Mas, se o mundo é ação, como é que o sonho faz parte do mundo?

— É que o sonho, minha senhora, é uma ação que se tornou ideia; e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho?

— Sim, mas é triste o acordar...

— O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvida que não durma. Já uma vez ele me disse...

Ela olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão do fundo de toda a alma que nunca sentira.

— Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado?

— Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado.

— Como?

— Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não me tema, nem se sobressalte.

E num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de repente, que era verdade.

— Eu sou de fato o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo, e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada. Na minha companhia está bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso.

“Dato do princípio do mundo, e desde então tenho sido sempre um ironista. Ora, como deve saber, todos os ironistas são inofensivos, exceto se querem usar da ironia para insinuar qualquer verdade. Ora eu nunca pretendi dizer a verdade a ninguém em parte porque de nada serve, e em parte porque a não conheço. O meu irmão mais velho, Deus todo poderoso, creio que também a não sabe. Isso, porém, são questões de família.

“Talvez não saiba porque é que a trouxe aqui, nesta viagem sem termo real nem propósito útil. Não foi, como parecia que ia julgar, para a violar ou atrair. Essas coisas sucedem na terra, entre os animais, que incluem os homens, e parece que dão prazer, creio, segundo me dizem de lá de baixo, até às vítimas.

“De resto, não poderia. Essas coisas acontecem na terra, porque os homens são animais. Na minha posição social no universo são impossíveis não bem porque a moral seja melhor, mas porque nós, os anjos, não temos sexo, e essa é, neste caso pelo menos, a principal garantia. Pode pois estar tranquila, porque a não desrespeitarei. Bem sei que há desrespeitos acessórios e inúteis, como os dos romancistas modernos e os da velhice; mas até esses me são negados, porque a minha falta de sexo data desde o princípio das coisas e nunca tive que pensar nisso. Dizem que muitas feiticeiras tiveram pactos comigo, mas é falso; ainda que o não seja, porque o com que tiveram pacto foi com a própria imaginação, que, em certo modo, sou eu.

“Esteja, pois, tranquila. Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Mas Deus é pior num sentido, pelo menos, porque criou o corpo corruptível, que é muito menos estético. Os sonhos, ao menos, não apodrecem. Passam. Antes assim, não é verdade?

“É o que está significado no Arcano 18. Confesso que não conheço bem o Tarô, porque ainda não consegui aprender os seus segredos com as muitas pessoas que há no mundo que o compreendem perfeitamente.”

— Dezoito? O meu marido tem o grau 18 da Maçonaria.

— Da Maçonaria, não: de um rito da Maçonaria. Mas, apesar do que se tem dito, não tenho nada com a Maçonaria, e muito menos com esse grau. Referia-me ao Arcano 18 do Tarô, isto é, da chave de todo o universo, da qual, aliás, o meu entendimento é imperfeito, como o é da Cabala, da qual os doutores da Doutrina Secreta sabem mais do que eu.

“Mas deixemos isso, que é puramente jornalístico. Lembremo-nos de que sou o Diabo. Sejamos, pois, diabólicos. Quantas vezes tem sonhado comigo?”

— Que eu saiba, nunca! — respondeu, sorrindo, Maria, fitando-o com olhos muito abertos.

— Nunca pensou no Príncipe Encantado, no Homem Perfeito, no amante interminável? Nunca sentiu ao pé de si, em sonho, o que acariciasse como ninguém acaricia, o que fosse seu como se a incluísse em ele, o que fosse, no mesmo tempo, o pai, o marido, o filho, numa tripla sensação que é só uma?

— Embora não compreenda bem, sim, creio que pensei assim e que senti assim. Custa um pouco a confessá-lo, sabe?

— Era eu, sempre eu, que sou a Serpente, foi o papel que me distribuíram desde o princípio do mundo. Tenho que andar a tentar, mas, bem entendido, num sentido figurado e frustrante, porque não vale tentar utilmente.

“Foram os gregos que, pela interposição da Balança, fizeram onze os dez signos primitivos do Zodíaco. Foi a Serpente que, pela interposição da crítica, tornou realmente doze a década primitiva.”

— Realmente, não percebo nada.

— Não percebe: ouça. Outros perceberão. As minhas melhores criações, o luar e a ironia.

— Não são coisas muito parecidas...

— Não, porque eu não sou parecido comigo mesmo. Esse vício é a minha virtude. É por isso que sou o Diabo.

— E como se sente?

— Cansado, principalmente cansado. Cansado de astros e de leis, e um pouco com a vontade de ficar para fora do universo e recrear-me a sério com coisa nenhuma. Agora não há vácuo nem sem razão; e eu lembro coisas antigas sim, muito antigas nos reinos de Adão que eram antes de Israel. Desses estive eu para ser rei, e hoje estou no exílio do que não tive.

“Nunca tive infância, nem adolescência, nem portanto idade viril a que chegasse. Sou o negativo absoluto, a encarnação do nada. O que se deseja e se não pode obter, o que se sonha porque não pode existir nisso está meu reino nulo e aí está assente o trono que me não foi dado. O que poderia ter sido, o que deveria ter havido, o que a Lei ou a Sorte não deram atirei-os às mãos cheias para a alma do homem e ela perturbou-se de sentir a vida viva do que não existe. Sou o esquecimento de todos os deveres, a hesitação de todas as intenções. Os tristes e os cansados da vida, depois de levantados da ilusão erguem para mim os olhos, porque eu também, e a meu modo, sou a Estrela Brilhante da Manhã. E há tanto tempo que o sou!

“A humanidade é pagã. Nunca qualquer religião a penetrou. Nem está na alma do homem vulgar o poder crer na sobrevivência dessa mesma alma. O homem é um animal que desperta, sem que saiba onde nem para quê. Quando adora os Deuses, adora-os como feitiços. A sua religião é uma bruxaria. Assim foi, assim é, e assim será. As religiões são somente o que extravasa dos mistérios para a profanidade e dela não é entendido, pois, por natureza, o não pode ser.

“As religiões são símbolos, e os homens tomam os símbolos, não como vidas (que são), mas como coisas (que não podem ser). Propiciam a Júpiter como se ele existisse, nunca como se ele vivesse. Quando se entorna sal, deita-se uma pitada, com a mão direita, por cima do ombro esquerdo. Quando se ofende a Deus, rezam-se uns tantos Padre-Nossos. A alma contínua pagã e Deus por exumar. Só os raros lhe puseram a acácia (a planta imortal) no topo do túmulo, para que o levantassem dele quando a hora viesse. Mas esses são os que, por bem buscarem, foram eleitos para achá-lo.

“O homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância que nele nasce.

“São eras sobre eras, e tempos atrás de tempos, e não há mais que andar na circunferência de um círculo que tem a verdade no ponto que está no centro.

“O princípio da ciência é sabermos que ignoramos. O Mundo, que é onde estamos; a Carne, que é o que somos; o Diabo, que é o que desejamos. Esses três, na Hora Alta, mataram-no o Mestre que estivemos para ser. E aquele segredo que ele tinha, para que nos convertêssemos nele, esse segredo foi perdido.»

“Também eu, minha senhora, sou a Estrela Brilhante da Manhã. Era-o antes que João falasse, porque há átomos antes de átomos, e mistérios anteriores a todos os mistérios. Sorrio quando pensam (penso) que sou Vênus em outro esquema de símbolos. Mas que importa? Todo este universo, com seu Deus e seu Diabo, com o que há nele de homens e de coisas que eles veem, é um hieróglifo eternamente por decifrar. Sou, por mister, Mestre da Magia: não sei contudo o que ela é.

“A mais alta iniciação acaba pela pergunta encarnada de se há qualquer coisa que exista. O mais alto amor é um grande sono, como aquele em que nos amamos de dormir. Às vezes eu mesmo, que devera ser um alto iniciado, pergunto ao que em mim é de além de Deus se estes deuses todos e todos estes astros não serão mais que sonos de si mesmos, grandes esquecimentos do abismo.

“Não pasme de que eu assim fale. Sou naturalmente poeta, porque sou a verdade falando por engano, e toda a minha vida, afinal, é um sistema especial de moral velado em alegoria e ilustrado por símbolos.”

— Não (disse ela rindo) sempre há de haver uma religião verdadeira... Sim (rindo mais) ou então são todas falsas.

— Minha senhora, todas as religiões são verdadeiras, por mais opostas que pareçam entre si. São símbolos diferentes da mesma realidade, são como a mesma frase dita em várias línguas; de sorte que se não entendem uns aos outros os que estão dizendo a mesma coisa. Quando um pagão diz Júpiter e um cristão diz Deus estão a pôr a mesma emoção em termos diversos da inteligência: estão a pensar diferentemente a mesma intuição.

“O repouso de um gato ao sol é a mesma coisa que a leitura de um livro. Um selvagem olha para a tormenta do mesmo modo que um judeu para Jeová, um selvagem olha para o sol do mesmo modo que um cristão para o Cristo. E porquê, minha senhora? Porque “trovão” e “Jeová”, “sol” e “cristão”, são símbolos diversos da mesma coisa.

“Vivemos neste mundo dos símbolos, no mesmo templo claro e obscura treva visível, por assim dizer; e cada símbolo é uma verdade substituível à verdade até que o tempo e as circunstâncias restituam a verdadeira.

“Corrompo mas ilumino. Sou a Estrela Brilhante da manhã — frase, por sinal, que já foi duas vezes aplicada, não sem critério ou entendimento, a outro que não parece eu.”

— O meu marido disse-me uma vez que Cristo era o símbolo do sol...

— Sim, minha senhora. E porque não será verdade o contrário que o sol é o símbolo de Cristo?

— Mas o Senhor vira tudo do avesso...

— É o meu dever, minha senhora. Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega, mas o espírito que contraria?

— Contrariar é feio...

— Contrariar atos, sim... Contrariar ideias, não.

— E porquê?

— Porque contrariar atos, por maus que sejam, é estorvar o giro do mundo, que é ação. Mas contrariar ideias é fazer com que nos abandonem, e se caia no desalento e de aí no sonho e portanto se pertença ao mundo.

“Há, minha senhora, com respeito ao que sucede neste mundo, três teorias distintas que tudo é obra do Acaso, que tudo é obra de Deus, e que tudo é obra de várias coisas, combinadas ou entrecruzadas. Pensamos, em geral, em termos da nossa sensibilidade, e por isso tudo se nos volve num problema do bem e do mal; há muito que eu mesmo sofro grandes calúnias por causa dessa interpretação. Parece não ter ainda ocorrido a ninguém que as relações entre as coisas supondo que haja coisas e relações são complicadas demais para que algum deus ou diabo as explique, ou ambos as expliquem.

“Sou o mestre lunar de todos os sonhos, o músico solene de todos os silêncios. Lembra-se do que tem pensado quando, sozinha, está ante uma grande paisagem de arvoredos e de luar? Não se lembra, porque pensou em mim, e, devo dizer-lhe, verdadeiramente não existo. Se existe qualquer coisa, não sei.

“As aspirações vagas, os desejos fúteis, os tédios do vulgar, ainda quando o amamos, os aborrecimentos do que não aborrece tudo isso é obra minha, nascida de quando, deitado à margem de grandes rios do abismo, penso que também não sei nada. Então o meu pensamento desce, eflúvio vago, às almas dos homens e eles sentem-se diferentes de si mesmos.

“Sou o eterno Diferente, o eterno Adiado, o Supérfluo do Abismo. Fiquei fora da Criação. Sou o Deus dos mundos que foram antes do Mundo os reis de adão que reinaram mal antes de Israel. A minha presença neste universo é a de quem não foi convidado. Trago comigo memórias de coisas que não chegaram a ser mas que estiveram para ser. (Então face não via face, e não havia equilíbrio.)

“A verdade, porém, é que não existo nem eu, nem outra coisa qualquer. Todo este universo, e todos os outros universos, com seus diversos criadores e seus diversos Satãs mais ou menos perfeitos e adestrados são vácuos dentro do vácuo, nadas que giram, satélites, na órbita inútil de coisa nenhuma.

“Tudo isto, não estou falando consigo mas com o seu filho...”

— Não tenho filho... Isto é, vou tê-lo daqui a seis meses, se Deus quiser...

— É com ele que estou falando... Daqui a seis meses? Seis meses de quê?

— De quê?! Seis meses...

— Seis meses solares? Ah, sim. Mas a gravidez vai por meses lunares, e eu mesmo não posso contar senão por meses de Lua, que é minha filha, isto é, a minha cara vista nas águas do caos. Com a gravidez e todas as porcarias da terra não tenho nada a ver, nem sei porque graça me foram medir essas coisas pelas leis da lua que forneci. Porque não arranjaram outra bitola? Para que é que o onipotente precisava do meu trabalho?

“Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os mesmos poetas por natureza meus amigos que me defendem, me não têm defendido bem. Um inglês chamado Milton fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha indefinida que nunca se travou. O outro, o alemão Goethe deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia. Mas eu não sou o que pensam. As Igrejas abominam-me. Os crentes tremem do meu nome. Mas tenho, quer queiram quer não, um papel no mundo. Nem sou o revoltado contra Deus, nem o espírito que nega. Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio. É por mim que, quando criança, sonhaste aqueles sonhos que são brinquedos; é por mim que, quando mulher já, tiveste a abraçar-te de noite os príncipes e os dominadores que dormem no fundo desses sonhos. Sou o Espírito que cria sem criar, cuja voz é um fumo, e cuja alma é um erro. Deus criou-me para que eu o imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. A minha luz paira sobre tudo quanto é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras.

“Que homem pousou sobre os teus seios aquela mão que foi minha? Que beijo te deram que fosse igual ao meu? Quando, nas grandes tardes quentes, sonhavas tanto que sonhavas de sonhar, não viste passar, no fundo dos teus sonhos, uma figura velada e rápida, a que te daria toda a felicidade, a que te beijaria indefinidamente? Era eu! Sou eu! Sou aquele que sempre procuraste e nunca poderás achar. Talvez, no fundo imenso do abismo, Deus mesmo me busque, para que eu o complete, mas a maldição do Deus Mais Velho o Saturno de Jeová paira sobre ele e sobre mim, separa-nos, quando nos devera unir, para que a vida e o que desejamos dela fossem uma só coisa.

“O anel que usas e amas, a alegria de um pensamento vago, o sentires que estás bem ao espelho em que te vês não te iludas: não és tu, sou eu. Sou eu que ato bem todos os laços com que as coisas se decoram, que disponho certas as cores com que as coisas se ornam. De tudo quanto não vale a pena ser, faço eu meu domínio e o meu império, senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida não é vida. Como a noite é o meu reino, o sonho é o meu domínio. O que não tem peso nem medida, isso é meu.»

«Os problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os deuses. O que está embaixo é como o que está em cima, disse Hermes três vezes a Máximo, que, como todos os fundadores de religiões, se lembrou de tudo, menos de existir. Quantas vezes Deus me disse, citando Antero de Quental, ”Ai de mim! E quem sou eu?”

“Tudo é símbolo e atraso, e nós, os que somos deuses, não temos mais que um grau mais alto numa Ordem cujos Superiores Incógnitos não sabemos quem sejam. Deus é o segundo na Ordem manifesta, e não me diz quem é o Chefe da Ordem, o único que conhece se conhece os Chefes Secretos. Quantas vezes Deus me disse: ”Meu irmão, não sei quem sou.”

“Tendes a vantagem de serdes homens, e creio às vezes, do fundo do meu cansaço de todos os abismos, que mais vale a calma e a paz de uma noite da família à lareira que toda esta metafísica dos mistérios a que nós, os deuses e os anjos, estamos condenados por substância. Quando, às vezes, me debruço sobre o mundo, vejo ao longe, indo do porto ou voltando a ele, as velas dos barcos dos pescadores, e o meu coração tem saudades imaginárias da terra onde nunca esteve. Felizes os que dormem, na sua vida animal, um sistema peculiar de alma, velado em poesia e ilustrado por palavras.

— Esta conversa tem sido interessantíssima...

— Esta conversa, minha senhora? Mas esta conversa, embora talvez o fato mais importante da sua vida, nunca verdadeiramente se deu. Em primeiro lugar, é bem sabido que eu não existo. Em segundo lugar, como estão concordes os teólogos, que me chamam Diabo, e os livres pensadores, que me chamam Reação, nenhuma conversa minha pode ter interesse. Sou um pobre mito, minha senhora, e, o que é pior, um mito inofensivo. Consola-me só o fato de que o universo sim, esta coisa cheia de várias formas de luzes e de vidas é um mito também.

“Dizem-me que todas estas coisas podem ser esclarecidas à luz da Cabala e da filosofia, mas são esses assuntos de que nada sei; e Deus, a quem uma vez falei deles, disse-me que também os não compreendia bem, pois que eram pertença exclusiva, em seus arcanos, dos grandes iniciados da Terra que, pelo que tenho lido em livros e jornais, são e têm sido abundantes.

“Aqui nestas esferas superiores, de onde se criou e transformou o mundo, nós, para lhe dizer a verdade, não percebemos nada. Debruço-me às vezes sobre a terra vasta, deitado à margem do meu planalto sobre tudo o planalto da Montanha de Heredom, como já lhe ouvi chamar e cada vez que me debruço vejo religiões novas, novas grandes iniciações, novas formas, todas contraditórias, da verdade eterna, que nem Deus conhece.

“Confesso-lhe que estou cansado de Universo. Tanto Deus como eu de bom grado dormiríamos um sono que nos libertasse dos cargos transcendentes em que, não sabemos como, fomos investidos. Tudo é muito mais misterioso do que se julga, e tudo isto aqui Deus, o universo e eu é apenas um recanto mentiroso da verdade inatingível.»

— Não imagina quanto apreciei a sua conversa. Nunca ouvi ninguém falar assim.

Tinham saído para a rua, cheia de luar, na qual ela não reparara. Ela calou-se um momento.

— Mas, sabe é curioso sabe realmente, e no fim de tudo, o que sinto?

— O quê? — perguntou o Diabo.

Ela voltou para ele os olhos subitamente marejados.

— Uma grande pena de si!...

Uma expressão de angústia, como ninguém julgaria que pudesse haver, passou pelo rosto e pelos olhos do homem vermelho. Deixou cair súbito o braço que enlaçava o dela. Parou. Ela deu uns passos, constrangida. Depois voltou-se para trás para dizer qualquer coisa não sabia o quê porque nada percebera para se desculpar da mágoa que viu que causara.

Ficou atônita. Estava sozinha.

Sim, era a rua dela, o topo da rua, mas além dela não estava ali ninguém. O luar batia, claríssimo, não na saída do funicular, mas nas duas portas fechadas da serralharia de sempre.

Não, além dela, não estava ali ninguém. Era a rua de dia vista à noite. Em vez do sol o luar mais nada; um luar normal muito claro que deixava naturais as casas e as ruas. O luar de sempre, e ela avançou para casa.
* * *

— Vim com pessoas conhecidas. Como vinham para os mesmos lados...

— E como vieste? A pé?!

— Não. Vim de automóvel.

— Essa é boa! Não ouvi.

— Não até à porta — disse ela sem hesitação. — Passaram ali à esquina, e eu pedi que me não trouxessem até aqui, porque queria andar este bocado de rua com este luar tão lindo. E está lindo... Olha, vou-me deitar. Boa noite...

E foi, sorrindo, mas sem lhe dar um beijo do costume, que ninguém ao dar sabe se é costume se é beijo.

Nenhum deles reparou que não tinham se beijado.
* * *

A criança, um rapaz, que nasceu seis meses depois, veio, no decurso do tempo geral e do seu crescimento particular, a revelar-se, quando já homem, muito inteligente: um talento, talvez um gênio, o que era talvez verdade, embora o dissessem alguns críticos.

Um astrólogo, que lhe fez o horóscopo, disse-lhe que tinha Câncer no Ascendente, e Saturno como signo.

— Diga-me uma coisa, mãe... Dizem que certas memórias maternas se podem transmitir aos filhos. Há uma coisa que constantemente me aparece em sonhos e que não posso relacionar com coisa alguma que me houvesse sucedido. É uma memória de uma viagem estranha, em que aparece um homem de vermelho que fala muito. É, primeiro, um automóvel, e depois um comboio, e nessa viagem em comboio passa-se sobre uma ponte altíssima, que parece dominar toda a terra. Depois há um abismo, e uma voz que diz muitas coisas, que, se eu as ouvisse, talvez me dissessem a verdade. Depois sai-se à luz, isto é, ao luar, como se saíssemos de um subterrâneo, e é exatamente aqui no fim da rua... Ah, é verdade, no fundo ou princípio de tudo há uma espécie de baile, ou festa, em que esse homem de vermelho aparece...

Maria depôs no colo a sua costura. E, virando-se para a sua amiga Antónia, disse:

— Ora, isto tem graça. Está claro que aquilo dos comboios e automóveis e tudo mais é sonho, mas, realmente, há uma parte de verdade... Foi aquele baile no Clube Azul, no Carnaval, aqui há muitos anos, sim, uns cinco uns seis meses antes de este nascer. Lembras-te? Eu dancei com um rapaz qualquer vestido de Mefistófeles, e depois vocês vieram trazer-me a casa no seu automóvel, e eu fiquei, até, no fim da rua... olha, onde ele diz que saiu do abismo.

— Oh, querida, lembro-me perfeitamente... Nós queríamos vir até à porta de casa, aqui, e tu não quiseste. Disseste que gostavas de andar este bocadinho ao luar.

— Isso mesmo... Mas é engraçado, filho, que tu tenhas acertado com certas coisas que estou certa que nunca te contei. É claro, não têm importância nenhuma... Que coisas curiosas que são os sonhos! Como é que se pode arranjar assim uma história, em que há coisas verdadeiras e que a própria pessoa não podia adivinhar e tantos grandes disparates, como o comboio e a ponte?

Ingrata humanidade! Assim se agradeceu ao Diabo.
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Fernando Pessoa (1888-1935) foi um dos mais importantes poetas e escritores da língua portuguesa e uma figura central do modernismo em Portugal. Sua obra é notável pela criação de heterônimos — personalidades literárias distintas com biografias, estilos e filosofias próprias — que assinaram grande parte de sua produção. Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, Portugal, em 13 de junho de 1888. Após a morte de seu pai e o novo casamento de sua mãe, a família mudou-se para Durban, na África do Sul, em 1896. Ele viveu lá até 1905, onde recebeu uma educação em inglês e começou a escrever seus primeiros poemas nesse idioma. Ao voltar a Portugal, ele se matriculou no curso de Letras, mas logo o abandonou, dedicando-se à literatura e trabalhando em várias empresas como correspondente comercial. Pessoa estreou como crítico literário em 1912, na revista Águia. Introduziu o modernismo em Portugal e tornou-se um símbolo da cultura portuguesa. Apesar de sua importância, Pessoa publicou poucas obras em vida. Seu reconhecimento pleno veio após sua morte, com a descoberta de um grande número de textos inéditos em um baú. 
A criação de diferentes identidades literárias é a característica mais marcante de sua obra. Os mais conhecidos são: Alberto Caeiro: O "mestre" dos outros heterônimos, poeta bucólico e simples, que valorizava a natureza e o empirismo, com uma filosofia antirreflexiva; Ricardo Reis: Poeta clássico e neoclássico, com referências à mitologia greco-romana e uma busca pela tranquilidade interior; Álvaro de Campos: Engenheiro naval, poeta vanguardista e futurista, caracterizado pela exaltação da vida moderna e da velocidade, mas também pelo tédio e pessimismo; Bernardo Soares: Considerado um "semi-heterônimo", autor do Livro do Desassossego, que reflete sobre a vida, o existencialismo e a solidão. 
Embora tenha tido uma vida amorosa intensa, Fernando Pessoa nunca se casou ou teve filhos. Declarava-se um cristão gnóstico, mas não se filiou a nenhuma instituição religiosa, explorando a temática religiosa em seus escritos. Faleceu em Lisboa, em 30 de novembro de 1935, aos 47 anos, devido a uma cólica hepática. 
Fontes:
Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista e outros contos filosofais. Disponível em Domínio Público.  
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