quarta-feira, 2 de abril de 2008

Liev Tolstoi (Três Mortes)

I
Era outono. Pela estrada real duas carruagens seguiam a trote rápido. Na da frente viajavam duas mulheres. Uma, a senhora, magra e pálida. A outra, a criada, gorda e de um corado lustroso. Seus cabelos curtos e ressecados brotavam por baixo do chapéu desbotado, e a mão avermelhada, coberta por uma luva puída, ajeitava-os com gestos bruscos. O busto volumoso, envolto num lenço rústico, transpirava saúde; os olhos negros e vivazes ora espiavam pela janela os campos fugidios, ora observavam timidamente a senhora, ora lançavam olhares inquietos para os cantos da carruagem. A criada tinha bem ao nariz o chapéu da senhora pendurado no bagageiro, um cãozinho deitado nos joelhos, os pés acima dos bauzinhos dispostos no chão, tamborilando sobre eles, em sons quase abafados pelo ruído dos solavancos das molas e do tilintar dos vidros.

De mãos cruzadas sobre os joelhos e de olhos fechados, a senhora balouçava levemente nas almofadas que lhe serviam de apoio e, com um leve franzir de cenho, dava tossidelas fundas. Tinha na cabeça uma touquinha branca de dormir e um lencinho azul celeste envolto no pescoço pálido e delicado. Uma risca brotava abaixo da touquinha é repartia os cabelos ruços, excessivamente lisos e empastados; havia qualquer coisa de seco e mortiço na brancura do couro daquela vasta risca. A pele murcha, um tanto amarelada, mal conseguia modelar suas feições belas e esguias, que ganhavam um tom vermelho nas maçãs do rosto. Os lábios secos mexiam-se intranqüilos, as ralas pestanas não se encrespavam, e o sobretudo de viagem formava rugas entre os seios encovados. Mesmo de olhos fechados, o rosto da senhora expressava cansaço, irritação e um sofrimento que lhe era familiar.

Recostado em seu banco, o criado cochilava na boléia; o postilhão gritava animado e fustigava a possante quadriga suada; vez por outra espreitava o outro cocheiro, que gritava de trás, da caleça. As marcas paralelas e largas das rodas se estendiam nítidas e iguais pelo calcário lamacento da estrada. O céu estava cinzento e frio; a bruma úmida espalhava-se pelos campos e pela estrada.A carruagem estava abafada e recendia poeira e água-de-colônia. A doente inclinou a cabeça para trás e abriu devagar os olhos, grandes, brilhantes, de uma bela tonalidade escura.

"Outra vez!" — disse ela, repelindo nervosamente com a mão bonita e magra a ponta da saia da criada, que lhe roçava de leve a perna, e torceu a boca de dor. Matriocha recolheu a saia com ambas as mãos, soergueu as pernas robustas e sentou-se mais afastada. Um corado vivo cobriu-lhe o rosto viçoso. Os belos olhos escuros da doente fitavam ansiosos os movimentos da criada. A senhora apoiou as mãos no banco e quis também soerguer-se para se sentar mais alto, mas faltaram-lhe forças. A boca se contorceu e todo o rosto ficou desfigurado por uma expressão de ironia impotente e malévola. "Pelo menos você devia me ajudar... Ah, não é preciso! Eu mesma faço, só que não ponha atrás de mim essas suas sacolas, faça o favor!... É melhor mesmo que não me toque, já que não leva jeito." A senhora fechou os olhos e mais uma vez ergueu as pálpebras, observando a criada. Matriocha mordia o lábio inferior avermelhado, olhando para ela. O peito da doente exalou um suspiro fundo que, antes de terminar, transformou-se em tosse. Ela se virou, encolheu-se e agarrou-se ao peito com ambas as mãos. Quando a tosse passou, tornou a fechar os olhos e permaneceu sentada sem se mexer. A carruagem e a caleça chegaram à aldeia. Matriocha tirou a mão roliça do lenço e se benzeu.

— O que é isso? — perguntou a senhora.

— A estação de posta, senhora.

— E por que você está se benzendo?

— Tem uma igreja, senhora.

A doente voltou-se para a janela e começou a se benzer lentamente, com os olhos bem graúdos fitos numa grande igreja de madeira que a carruagem contornava.

Os dois veículos pararam em frente à estação. O marido da doente e o médico desceram da caleça e se aproximaram da carruagem.

— Como a senhora se sente? — perguntou o médico, tomando-lhe o pulso.

— E então, como está, minha cara, não está cansada? — perguntou o marido em francês. — Não quer descer?

Matriocha juntou as trouxas e encolheu-se num canto para não atrapalhar a conversa.

— Mais ou menos... na mesma — respondeu a doente. — Não vou descer.

O marido foi para a estação, depois de ficar um pouco com a mulher. Matriocha desceu do carro e correu pela lama para a entrada do edifício, nas pontas dos pés.

— Se eu estou mal, isto não é razão para o senhor não tomar o seu café — disse a senhora, com um leve sorriso, ao médico postado à janela.

— Nenhum deles se importa comigo — disse consigo mesma, mal o médico se afastou devagarzinho e subiu correndo a escada da estação. — Eles estão bem, o resto não tem importância. Oh, meu Deus!

— E então, Edvard Ivánovitch? — disse o marido ao encontrar o médico, esfregando as mãos com um sorriso jovial. Ordenei que trouxessem alguma provisão, o que o senhor acha?

— Pode ser.

— E ela, como está? — perguntou suspiroso o marido, baixando a voz e levantando as sobrancelhas.

— Eu disse: ela não vai conseguir chegar, e não só até a Itália: queira Deus que chegue a Moscou. Ainda mais com esse tempo.

— E o que é que nós vamos fazer? Ah, meu Deus! Meu Deus! — o marido tapou os olhos com as mãos.

—Traga aqui — acrescentou ele para o homem que carregava as provisões.

— Ela deveria ter ficado — respondeu o médico, dando de ombros.

— Agora me diga, o que é que eu podia fazer? — objetou o marido. — Ora, eu fiz de tudo para detê-la, falei dos recursos, das crianças que nós teríamos de deixar, e dos meus negócios; ela não quer dar ouvidos a nada. Fica fazendo planos de vida no estrangeiro como se estivesse com saúde. E fosse eu falar do seu estado... seria o mesmo que matá-la.

— Mas ela já está morta, o senhor precisa saber disso, Vassili Dmítritch. Uma pessoa não pode viver quando não tem pulmões, e os pulmões não tornam a crescer. É triste, duro, mas o que se vai fazer? O meu e o seu problema é fazer com que o fim dela seja o mais tranqüilo possível. Nós precisamos é de um confessor.

— Ai meu Deus! Mas o senhor entenda a minha situação na hora de lembrar a ela esta sua última vontade. Aconteça o que acontecer, isso eu não vou dizer a ela. O senhor bem sabe como ela é bondosa...

— Mesmo assim tente convencê-la a ficar até o final do inverno, — disse o médico, meneando a cabeça com ar expressivo — senão pode acontecer o pior na viagem...

— Aksiucha! Ei, Aksiucha! — grunhiu a filha do chefe da estação, jogando um lenço sobre a cabeça e pisando no alpendre enlameado nos fundos da casa. — Vamos espiar a senhora de Chirkin, dizem que está doente do peito e que estão levando para o estrangeiro. Eu nunca vi como é uma tísica.

Aksiucha correu para a soleira da porta e ambas precipitaram-se portão afora de mãos dadas. Encurtando a marcha, passaram diante da carruagem e espiaram através da janela aberta.A doente voltou o rosto para elas mas, percebendo-lhes a curiosidade, franziu o cenho e virou-se para o outro lado.

— Mm-ãe-zinha! — disse a filha do chefe da posta, voltando rapidamente a cabeça. — Que encanto de beleza deve ter sido; agora vejam o que sobrou dela! Dá até medo. Viu, viu, Aksiucha?

— Sim, como está mal! — Aksiucha fez coro com a moça. — Vamos dar mais uma olhada, a gente faz que está indo para o poço.Você percebeu? Ela deu as costas, mas eu vi. Que dó, Macha.

— É, e que lama! — respondeu Macha, e as duas correram para o portão.

— Pelo visto, estou com uma aparência horrível — pensou a doente. — Eu só preciso chegar mais rápido, mais rápido ao estrangeiro, lá eu me curo.

— E então, minha cara, como está? — disse o marido, ao se aproximar da carruagem mastigando.

— A mesma pergunta de sempre. E comendo! — pensou ela. — Mais ou menos... — falou entre dentes.

— Sabe de uma coisa, minha cara, receio que, com esse tempo, você piore no caminho; Edvard Ivanitch também acha. Não seria o caso de voltar?

Ela calava, emburrada.

— Pode ser que o tempo melhore, que a estrada fique boa e que você se recupere; e aí poderíamos ir juntos.

— Desculpe, mas se por muito tempo não tivesse lhe dado ouvidos, eu estaria agora em Berlim e totalmente curada.

— Mas o que eu podia fazer, meu anjo? Era impossível, você sabe. Mas agora, se ficasse por um mês, ao menos, iria se recuperar prontamente; eu terminaria meus negócios, levaríamos as crianças...

— As crianças estão com saúde, eu não.

— Veja se entende, minha cara, com um tempo desses, se você piorar na viagem... pelo menos você estaria em casa.

— Em casa, o quê? Pra morrer? — respondeu a doente irritada. Mas a palavra "morrer" pelo visto a assustou, e ela olhou para o marido com ar de súplica e interrogação. Ele baixou o olhar e calou. De repente, a doente fez um beicinho infantil, e lágrimas lhe saltaram dos olhos. O marido cobriu o rosto com o lenço e afastou-se da carruagem.

"Não, eu vou" — disse a doente, levantando os olhos para o céu, juntando as mãos e murmurando palavras desconexas. "Meu Deus! Por quê?" — dizia ela, e as lágrimas corriam ainda mais intensas. Rezou por muito tempo com ardor, mas no peito, a mesma dor e opressão, no céu, nos campos e na estrada, o mesmo tom cinzento e sombrio, e a mesma bruma de outono, nem mais nem menos rarefeita, derramando-se do mesmo jeito sobre a lama da estrada, os telhados, a carruagem e os tulups dos cocheiros, que discutiam em voz alta, alegres, enquanto lubrificavam e preparavam a carruagem...
II

A carruagem estava atrelada, mas o cocheiro fazia hora. Ele havia passado pela isbá dos cocheiros. A isbá estava quente, abafada, escura, com um ar pesado, um cheiro de lugar habitado, de pão assado, repolho e pele de carneiro. Havia alguns cocheiros no cômodo, uma cozinheira ocupava-se no forno e, em cima deste, um doente estava deitado, coberto por uma pele de carneiro.

— Tio Khviédor! Ô, tio Khviédor! — disse o jovem cocheiro vestido de tulup, com um chicote no cinto, entrando no cômodo e dirigindo-se ao doente.

— O que é que tu vai querer com o Fiédka, seu vadio? — perguntou um dos cocheiros. — Olha só, tão te esperando na carruagem...

— Quero pedir as botas dele; as minhas se acabaram — respondeu o rapaz, jogando os cabelos para trás e ajeitando as luvas no cinto.

— Que que é? — do forno ouviu-se uma voz fraca, e um rosto magro, de barba ruiva, espiou. A mão larga, descarnada e branca, coberta de pêlos, enfiava uma samarra nos ombros cobertos por um camisolão sujo. — Me dá alguma coisa pra beber, irmão; o que que é?

O rapaz lhe serviu uma caneca de água.

— Sabe o que é, Fédia, — disse ele, indeciso — pelo visto tu não vai precisar das botas novas agora; dá pra mim, pelo visto tu não vai andar.

O doente tombou a cabeça cansada sobre a caneca reluzente, molhou os bigodes ralos e caídos na água escura e bebeu sem forças. A barba emaranhada estava suja; os olhos fundos, embotados, levantaram-se com dificuldade para o rosto do rapaz. Depois de beber, ele afastou a água e quis levantar as mãos para enxugar os lábios úmidos, mas não conseguiu e enxugou-as na manga da samarra. Calado e respirando com dificuldade pelo nariz, olhava o rapaz direto nos olhos, reunindo forças.

— Pode ser que tu já tenha prometido a alguém — disse o rapaz. — O problema é que lá fora está úmido, e como eu tenho que ir pro trabalho, pensei com meus botões: eu pego e peço as botas do Fiédka; pelo jeito ele não vai precisar. Agora, se tu precisar, então tu diz...

No peito do doente alguma coisa começou a vibrar e roncar; ele inclinou-se e uma interminável tosse de garganta o sufocou.

— Pra que vai precisar? — trovejou de repente por toda a isbá a voz da cozinheira zangada. — Faz uns dois meses que ele não sai do forno. Tá vendo, tá se arrebentando, até as entranhas dele doem, escuta só. Como é que ele vai precisar das botas? Ninguém vai enterrá-lo com botas novas. Já não é sem tempo, Deus que me perdoe.Tá vendo, tá se arrebentando. Ou então que alguém leve ele daqui pra outra isbá ou pra outro lugar! Diz que na cidade tem esse tipo de hospital; isso é coisa que se faça, ocupar o canto todo... chega! Não se tem espaço pra nada. E ainda por cima, ficam me cobrando limpeza.
— Ei, Serioga vá para a carruagem, os senhores estão esperando — gritou da porta o chefe da estação.

Serioga queria ir sem esperar resposta, mas o doente, tossindo, deu-lhe a entender com os olhos que queria dizer alguma coisa.

— Pega as botas, Serioga — disse ele, contendo a tosse e descansando um pouco. — Só que tu me compra uma campa, porque eu tô morrendo... — acrescentou roncando.

— Obrigado, tio, então eu levo; e a campa, tá, tá, eu compro!

— Bem, meninos, vocês ouviram — ainda conseguiu dizer o doente, e tornou a se curvar sufocado.
— Tá bem, ouvimos — respondeu um dos cocheiros. — Vai, Serioga, vai pra carruagem, senão o chefe vem te chamar outra vez. A senhora de Chirkin tá lá doente.

Serioga tirou depressa as imensas botas furadas e jogou-as debaixo de um banco. As botas novas do tio Fiódor eram precisamente o seu número, e ele foi para a carruagem, admirando-as.

— Êta beleza de botas! Deixa eu engraxar — disse um cocheiro com graxa na mão, enquanto Serioga subia na boléia e tomava as rédeas. — Deu de graça?

— Ah, invejoso! — respondeu Serioga, aprumando-se e juntando as pontas do casaco junto aos pés. — Eia, vamos, belezas! — gritou para os cavalos, agitando o chicote; carruagem e caleça, com seus passageiros, malas e bagagens, saíram em disparada pela estrada molhada, sumindo na bruma cinzenta de outono.

O cocheiro doente permaneceu sobre o forno da isbá abafada e, sem conseguir escarrar, virou-se a muito custo para o outro lado e ficou quieto.

Até o cair da tarde, gente chegava, comia, saía da isbá; e não se ouvia sinal do doente. Ao anoitecer, a cozinheira subiu no forno e puxou a samarra por cima das pernas dele.

— Não fica zangada comigo, Nastácia, — disse o doente — logo vou deixar este teu canto.

— Tá bem, tá bem, deixa pra lá — murmurou Nastácia. — Onde é que dói, tio? Me diz.

— Uma dor insuportável por dentro. Só Deus sabe.

— Na certa a garganta também dói, tu tosse tanto!

— Dói tudo. Minha hora chegou, é isso. Oh, oh, oh! — gemeu o doente.

— Cobre as pernas assim — disse Nastácia, ajeitando a samarra sobre ele, ao descer do forno.

À noite, uma lamparina iluminava fracamente a isbá. Nastácia e uns dez cocheiros roncavam alto pelo chão e pelos bancos. Só o doente gemia fraquinho, tossia e revirava-se no forno. Ao amanhecer, aquietou-se de vez.

— Estranho o que eu vi esta noite em sonho — disse a cozinheira, espreguiçando-se na penumbra da manhã seguinte. — Vejo como se o tio Khviédor tivesse descendo do forno e saindo pra rachar lenha. "Nástia", diz ele, "deixa eu te ajudar"; e eu pra ele: "Como é que tu vai rachar lenha?", mas ele agarra o machado e tome de rachar lenha com tanta vontade, e era só lasca voando. E eu: "Como é que pode, tu não tava doente?". "Nada", diz ele, "eu estou bem". E sacode o machado de um jeito que me dá medo; aí eu comecei a gritar e acordei. Será que ele já não morreu?

—Tio Khviédor! Ô, tio! Fiódor não respondia.

— É mesmo, será que ele já não morreu? Vamos ver — disse um dos cocheiros, que havia acordado.

Um braço magro, frio e céreo, coberto de pêlos ruivos, pendia do forno.

— Vamos falar com o chefe da estação, parece que tá morto — continuou o cocheiro.

Fiódor não tinha parentes. Viera de longe. No dia seguinte, foi enterrado no cemitério novo, atrás do bosque, e Nastácia passou vários dias contando a todo mundo o sonho que tivera e como tinha sido a primeira a perceber a morte do tio Fiódor.
III

Chegou a primavera. Nas ruas úmidas da cidade rumorejavam regatos velozes entre o gelo sujo de esterco; as cores dos trajes e o som das vozes dos transeuntes distinguiam-se nitidamente. Nos jardins, atrás das sebes, as árvores inchavam de botões e mal se notava o balançar dos ramos ao sopro da brisa fresca. Por todo lado gotinhas transparentes pingavam... Pardais desajeitados piavam e adejavam com suas asinhas. Nos lados ensolarados, nas sebes, nas casas e nas árvores, tudo se movia e brilhava. Reinava a alegria e o viço tanto no céu e na terra como no coração dos homens.

Em uma das ruas principais, palha fresca se estendia no chão diante de uma grande casa senhorial; na casa estava aquela mesma doente moribunda que tinha pressa em chegar ao exterior.

À porta fechada do quarto, o marido da doente e uma senhora idosa. Num divã, um sacerdote, vista baixa, segurando alguma coisa enrolada na estola de seus paramentos.A um canto, uma velha, mãe da doente, chorava com amargura numa poltrona Voltaire. A seu lado, uma criada segurava um lenço, esperando que a velha o pedisse; outra lhe friccionava alguma coisa nas têmporas e soprava por baixo da toquinha a cabeça grisalha.

— Vá com Cristo, minha amiga, — disse o marido à mulher idosa ao seu lado — ela confia tanto na senhora... a senhora é tão jeitosa com ela, procure convencê-la direitinho, minha querida; vá, vá. — Ele já queria abrir a porta, mas a prima o deteve, passou o lenço algumas vezes nos olhos e sacudiu a cabeça.

— Agora não parece mais que chorei — disse ela, e abriu a porta, entrando no quarto.

O marido estava agitadíssimo e parecia completamente perdido. Ia caminhando em direção à velha, mal deu alguns passos, voltou-se, andou pela sala e aproximou-se do sacerdote. Este olhou para ele, levantou os olhos para o céu e suspirou. A barba cerrada, tingida de fios grisalhos, também se ergueu e baixou.

— Meu Deus, meu Deus! — disse o marido.

— O que é que se vai fazer? — retrucou suspiroso o padre, e mais uma vez sobrancelhas e barba se ergueram e baixaram.

— E a mãe dela está aqui! — disse o marido quase em desespero. — Ela não vai suportar isso tudo. Porque amar como ela a ama... não sei, não. Reverendo, se pelo menos o senhor tentasse tranqüilizá-la e fazer com que ela saísse daqui...

O sacerdote levantou-se e aproximou-se da velha.

— É isso, ninguém pode avaliar um coração de mãe, — disse ele — mas Deus é misericordioso.

De repente o rosto da velha começou a se contrair cada vez mais e um soluço histérico a sacudiu.

— Deus é misericordioso — continuou o sacerdote, quando ela se acalmou um pouco. — Em minha paróquia havia um doente muito mais grave que Mária Dmítrievna; e veja o que aconteceu, foi completamente curado com ervas por um homem simples, em pouco tempo. E além do mais, esse mesmo homem está agora em Moscou. Eu disse a Vassili Dmítrievitch que dava para se tentar. Ao menos serviria de consolo para a doente. A Deus nada é impossível.

— Não, ela não tem mais jeito, — pronunciou a velha — em vez de me levar, é a ela que Deus leva. — E os soluços histéricos tornaram-se tão fortes que ela perdeu os sentidos.

O marido da enferma cobriu o rosto com as mãos e correu para fora do quarto.

No corredor, a primeira pessoa que encontrou foi um menino de seis anos, que tentava alcançar a todo custo uma menina menor.

— E as crianças, não permite que eu as leve para perto da mãe? — perguntou a babá.

— Não, ela não quer vê-las. Isto a deixaria transtornada. O menino parou um minutinho e examinou atento o rosto do pai; mas, num repente, deu um chute no ar e, com um grito de alegria, continuou a correr.

— Faz de conta que ela é o cavalo murzelo, papai! — berrou o garoto, apontando para a irmã.

Enquanto isso, no outro quarto, a prima sentava-se ao lado da doente e conduzia habilmente a conversa, tentando prepará-la para a idéia da morte. Na outra janela, o médico mexia a tisana.

Metida num roupão branco, cercada de almofadas na cama, a doente olhava calada para a prima.

— Ah, minha amiga, — disse, interrompendo-a inesperadamente — não precisa me preparar. Não me trate como criança. Eu sou cristã. Eu sei de tudo. Eu sei que minha vida está por um fio; eu sei que se meu marido tivesse me escutado antes, eu estaria na Itália agora e, quem sabe, podia até ser verdade, eu estaria curada. Todos lhe diziam isso. Mas o que se há de fazer? Pelo visto, foi assim que Deus quis. Todos nós temos muitos pecados, eu sei disso; mas espero a graça de Deus, que a tudo perdoa, a tudo perdoa. Eu me esforço para entender, mas tenho muitos pecados, querida. Por outro lado, já sofri bastante. Esforcei-me para suportar com paciência meu sofrimento...

— Chamo então o padre, querida? Você vai se sentir mais leve comungando — disse a prima.

A doente baixou a cabeça em sinal de consentimento.

— Deus, perdoa essa pecadora! — sussurrou. A prima saiu e fez sinal para o padre.

— É um anjo! — disse ela ao marido, com lágrimas nos olhos.

O marido começou a chorar; o sacerdote entrou na sala; a velha permanecia desacordada; no quarto principal reinava um silêncio absoluto. Uns cinco minutos depois, o padre saiu do quarto da doente, tirou a estola e ajeitou os cabelos.

— Graças a Deus, está mais calma agora — disse ele. — Quer vê-los.

A prima e o marido entraram. A doente fitava um ícone e chorava baixinho.

— Eu a felicito, minha amiga — disse o marido.

— Deus seja louvado! Como me sinto bem, agora; uma doçura inexplicável — disse a doente, e um leve sorriso brincou em seus lábios finos. — Como Deus é misericordioso! Não é verdade que ele é misericordioso e onipotente? — E mais uma vez olhou para o ícone com olhos marejados e ávida súplica.

De repente, pareceu lembrar-se de algo. Fez um sinal para que o marido se aproximasse.

— Você nunca faz o que eu peço — disse ela com uma voz fraca e descontente.

O marido esticava o pescoço e escutava-a submisso.

— O que foi, minha querida?

— Quantas vezes eu disse que esses médicos não sabem de nada; existem remédios caseiros que curam tudo... Escuta o que o padre disse... o homem simples... Mande buscá-lo.

— Pra quê, minha querida?

— Meu Deus, ninguém quer entender!... — E a doente franziu o cenho e fechou os olhos.

O médico chegou-se a ela e tomou-lhe o pulso. Batia cada vez mais fraco. Ele lançou um olhar para o marido. A senhora percebeu o gesto e olhou à volta assustada.A prima deu-lhe as costas e começou a chorar.

— Não chore, não aflija a você e a mim — disse a doente. — Assim você tira este meu último sossego.

— Você é um anjo! — disse a prima, beijando-lhe a mão. — Não, beije aqui, só se beija a mão dos mortos. Meu Deus, meu Deus!

Na mesma noite, a doente era só corpo, e este corpo jazia no caixão, na sala do casarão. No cômodo espaçoso, a portas fechadas, um sacristão lia salmos de Davi com voz fanhosa e ritmada. A luz viva das velas caía dos altos candelabros de prata sobre a fronte cérea da morta, suas pesadas mãos de cera, sobre as pregas da coberta que delineavam espantosamente os joelhos e os dedos dos pés. Sem entender o que dizia, o sacristão lia de maneira compassada e, no silêncio da sala, as palavras ecoavam estranhas e morriam. De quando em quando, de algum quarto distante chegavam vozes infantis e o barulho do sapateado das crianças.

"Se ocultas o rosto, eles se perturbam" — anunciou o livro dos Salmos. "Se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados e, assim, renovas a face da terra. A glória do Senhor seja para sempre!"

O rosto da morta estava severo, calmo, majestoso. Nada se movia, nem na fronte limpa e fria, nem nos lábios cerrados e enrijecidos. Ela era toda atenção. E será que ao menos agora ela compreendia essas grandes palavras?
IV

Um mês depois erigiu-se um jazigo de pedra sobre a sepultura da morta. Sobre a do cocheiro ainda não havia nenhuma campa, apenas uma relva verde-clara brotava do montículo de terra, único vestígio de um homem que havia passado pela existência.

— Serioga, tu vai cometer um pecado se não comprar a campa para o Khviédor — disse a cozinheira da estação de posta. — Tu dizia assim: é inverno, é inverno. Mas agora, por que não mantém a palavra? Foi na minha frente que tu prometeu. Ele já veio pedir uma vez, e se tu não compra, ele volta e dessa vez é pra te estrangular.

— Que nada! Por acaso eu estou recusando?! — respondeu Serioga. — Eu vou comprar a campa; já disse que vou comprar; vou comprar por um rublo e meio. Não me esqueci, mas é que precisa trazer. É só ir na cidade que eu compro.

— Devia pelo menos colocar uma cruz lá, é isso que você tinha que fazer, — retrucou um velho cocheiro — senão isso vai é acabar mal. As botas tu tá usando, né?

— E essa cruz, onde é que se vai arranjar? Não dá pra fazer de lenha, né?

— Isso lá é coisa que se diga? Claro que de lenha não dá pra fazer; tu pega o machado e vai mais cedo pro bosque, e então tu faz. Tu pega e corta um freixo. Ou então tu vai ter que dar vodca ao guarda florestal. Pra toda essa canalha não há bebida que chegue. Faz pouco eu quebrei a trave da carruagem e cortei uma senhora tora e ninguém deu um pio.

De manhã bem cedo, mal começou a clarear, Serioga pegou o machado e foi para o bosque. Por toda parte estendia-se um manto de orvalho frio e fosco que caía insistente e que o sol não iluminava. O nascente mal começava a clarear, fazendo sua frágil luz refletir no firmamento encoberto por nuvens ralas. Não se mexia um só talo de capim e uma única folha nas copas. Só de quando em quando uns ruídos de asas entre as árvores compactas ou um leve farfalhar pelo chão quebravam o silêncio da mata. De repente, um som estranho, desconhecido da natureza, espalhou-se e congelou na orla do bosque. E de novo ouviu-se o mesmo som que passou a se repetir de forma regular, embaixo, junto ao tronco de uma árvore imóvel. A copa de uma árvore estremeceu de forma incomum; suas folhas viçosas sussurraram algo; uma toutinegra pousada em um galho esvoaçou duas vezes, piando, e pousou em outra árvore, remexendo a caudinha.

Embaixo, o machado ressoava cada vez mais e mais surdo; as lascas brancas e molhadas de seiva voavam sobre o capim orvalhado, ouvindo-se um leve rangido após os golpes. A árvore estremeceu por inteiro, inclinou-se e aprumou-se rapidamente, vacilando assustada sobre sua raiz. Por um instante, tudo ficou em silêncio; mas a árvore tornou a se inclinar e ouviu-se mais uma vez o rangido de seu tronco; e ela despencou de copa na terra úmida, quebrando e soltando os ramos. Cessaram os sons do machado e dos passos. A toutinegra piou e voou para mais alto. O ramo em que ela roçou suas asas balançou por algum tempo e estacou, como os outros, com todas as suas folhas.

As árvores, ainda mais alegres, pavoneavam seus galhos imóveis no espaço aberto há pouco.

Os primeiros raios de sol infiltraram-se por entre as nuvens, brilharam lá no alto e correram a terra e o céu. A neblina derramou-se em ondas pelos vales; o orvalho começou a brincar na relva; nuvenzinhas brancas e transparentes dispersavam-se apressadas pelo firmamento azulado. Os pássaros revoavam sobre a mata espessa e, sem rumo, gorjeavam felizes; folhas viçosas sussurravam radiantes e tranqüilas nas copas, e os ramos das árvores vivas mexeram-se lentos, majestosos, sobre a árvore tombada e morta.

Fonte:
Texto acima, escrito em 1858, extraído do livro "O Diabo e Outras Histórias", Cosac & Naify Edições — São Paulo, 2.000, pág. 29, tradução de Beatriz Morabito e Beatriz P. Ricci, há um narrador exuberante que — num clima de impressionante beleza poética ditada pela natureza — conta a história de três mortes: de uma senhora nobre, de um cocheiro e de uma árvore. Disponível em http://www.releituras.com/lievtolstoi_menu.asp

Imaginário Popular (História do Jesus mendigo)

Eram dois homens que viviam naquela cidade, um pobre e o outro rico, mas ambos muito religiosos e tementes a Deus.

Ora, Jesus querendo experimentar qual deles o amava verdadeiramente com maior veneração, anunciou-lhes que em certo dia iria jantar em companhia de cada um.

O homem rico mandou preparar mesas lautas, acepipes delicados e abundantes, frutas cheirosas e raras, e as festas começaram a ser participadas com uma solenidade de espantar.

O pobre, que apenas possuía uma galinha, mandou matá-la e assá-la no espeto. Preparou modestamente a sua mesa e esperou Cristo.

À tarde apresentou-se um mendigo à porta do homem rico, pedindo esmola, e o dono da casa despediu-o brutalmente, dizendo:

— Espero hoje o Nosso Senhor Jesus Cristo para jantar comigo, e não quero desmanchar minha mesa.

O mendigo voltou ainda pela segunda e pela terceira vez, com outros trajes e feições, e foi sempre despedido do mesmo modo grosseiro e mau.

Então apareceu ele à porta do homem pobre, bateu e pediu uma esmolinha pelo amor de Deus, que estava a morrer de fome. Ficou o pobre sem saber o que fazer, e a mulher lembrou-lhe por fim que poderiam tirar uma asa da galinha e dá-la ao mendigo, sem que Cristo reparasse naquela falta, pois a galinha seria colocada no prato de modo que o lado da asa cortada se achasse virado para baixo. Assim fizeram.

Eis porém que pouco depois surge outro mendigo pedindo outra esmola, pois morria de fome. Novas dúvidas e hesitações, novos cálculos e nova asa de galinha cortada para não deixar o pobre ir sem nada para comer.

Mas aparece o terceiro mendigo e a perplexidade dessa vez cresce de um modo terrível. Como haviam eles de fazer, se já não havia mais asas a cortar?

O marido e a mulher puseram-se a coçar desanimadamente a cabeça, enquanto o mendigo gemia, sentado do lado de fora da porta, mas nem um nem outro tinham coragem de enxotar o pobre sem nada lhe dar. Resolveram finalmente cortar uma coxa da galinha, e levaram-na com toda a delicadeza. Imediatamente o pobre levantou-se da soleira, transformado e belo; caíram no chão os andrajos que lhe cobriam o corpo e a mais fina túnica de lã, alva como o leite, envolveu-lhes as formas.

Era o próprio Cristo, que penetrou no humilde lar, chegou-se à mesa do homem pobre, ergueu a mão sobre a galinha. No mesmo instante reapareceram no seu lugar as duas asas e a coxa cortadas, e delas voou uma bonita pomba branca, que foi pairar sobre a cabeça dos donos da casa, atônitos e reverentes.

Então Jesus lhes disse:

— Cumpristes a minha lei, que ordena a caridade para com os pobres, e por isso sereis felizes, na terra e no céu, como o quer a minha vontade.

Assim sucedeu. Eles foram venturosos em vida e Deus os levou depois da morte para o paraíso dos justos e caridosos.

O homem rico foi para o inferno.

Fonte
(Carmen Dolores. Lendas brasileiras; coleção de 27 contos para crianças. São Paulo, Sá Editora, 2006, p.81-83). Disponível me http://www.jangadabrasil.com.br/

Imaginário Popular (Estórias de João Alfaia)

Com a finalidade de registrar algum material sobre estórias, causos ou contos folclóricos, gravamos em diferentes coletividades da região investigada, para a Campanha de Defesa ao Folclore, exemplares desses relatos orais narrados por contadores conhecidos como tais nas mencionadas coletividades. Dessas gravações releva notar, pelo caráter dramático que assumiu a narrativa, a que teve lugar em Cabelo Gordo, um bairro de São Sebastião (SP).

Lá havíamos ido de barco pensando em pesquisar um fandango, que tínhamos programado de acordo com João Ramos de Morais, mas que por razões ignoradas ou pelo menos não explicadas suficientemente deixou de se realizar. Passamos então, a tarde a andar de lá para cá, tratando de ver se ainda conseguiríamos algo, para aproveitarmos a viagem. E ao cair da noite, enquanto esperávamos o caminhão que nos levaria de volta a São Francisco, onde estávamos hospedados, ficamos conversando com João Ramos de Morais, apelidado de João Alfaia, que se revelou para nós um extraordinário contador de estórias.

João Alfaia, como é mais conhecido, é um homem de perto de 70 anos, de cor branca, crestada de sol, que trabalha como pescador e também exerce as funções de zelador de um laboratório de pesquisas montado em Cabelo Gordo pela faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo. Forte, enxuto, muito vivo e inteligente, é capaz de ficar horas a contar estórias, dramatizando-as na voz, nos gestos e na máscara facial e assumindo, por isso, importante função social no meio em que vive pela força aglutinadora da sua narrativa.

Conhecidíssimo na região e participando inclusive com o próprio nome de pasquins, João Alfaia nos ofereceu a primeira oportunidade de gravar importante documentário, pelos espécimes de literatura folclórica em prosa da região, pelo caráter da narrativa e também como exemplos da linguagem de um autêntico caiçara que ele é, com antiga ascendência portuguesa.

O breve do lenho de Cristo

Um homem caiu doente, né? com reumatismo. Entrevou na cama. Não podia trabalhar. Então, foi indo, foi indo, mais ele com muita amizade com o compadre. O compadre podia, era rico, e a mulher, num sei lá, um sofrimento que teve que foi preciso fazer uma promessa à Itália, a romaria né. E ela ficou boa. Então foi a rimaria.

Então, daí, o compadre veio na casa dele:

— Compadre, olhe aí, eu vou pra Itália. Vou fazê uma romaria.

Então ele disse assim:

— Compadre, eu vou lhe pedi um favor, me traga um pedacinho da cruz de Cristo, do lenho de Cristo, num é, pra eu fazer um breve pra vê se eu fico bem.

Chegou lá, fez a romaria dela, cumpriu a promessa dele, quando ele veio imbora, esqueceu-se do pedacinho, de pedir lá o pedacinho do pau, do lenho de Cristo. Quando ele viu, disse à mulher:

— Mais que esquecimento.

A mulher:

— Do que você se esqueceu?

— Me isquici.

— Se esqueceu de arguma coisa que num pôs na mala?

— Não é, me isquici da encomenda de meu compadre. Um pedacinho do lenho de Cristo. Eu num truxe. Mais num tem nada, ele fica servido da mesma forma. Eu vou cortá um pedacinho do barco.

Tava cum canivete, cortou.

E havia fantasma nesse lugar que eles morava, né? Aí, ele chegou, descansou, esse dia foi lá.

— Compadre, bom dia.

— Bom dia, compadre, como vai o sinhô?

— Ah, compadre, eu aqui todo encorcolado. Todo danado, mesmo, num posso me levantar. Trouxe minha encomenda?

— Ah, tá aqui, compadre, ah tá aqui, olha aí, um pedacinho da cruz de Cristo. Eu pedi ao padre e o padre me mandou cortar. Está aqui.

— Oi mulher, venha cá. Oi mulher, me faz um breve.

Então, ela fez um breve, cortou um pedacinho de pau, fez o breve, costurou no pescoço. Logo noutro dia foi sintino a melhorar, e sintino, e sintino, e sintino, que era de hora em hora, de passo em passo aqui antes de dois meses ele apruma-se. Aprumou-se.

Ele morava num lugar, num subúrbio, mas pra ele ir lá na freguesia passava na serra, né? E ele tudos os sábados ia fazer o negócio dele. Carregava o burrinho de mercadoria e ia fazer a compra dele lá. E assim foi indo, quando foi um dia ele foi, de tarde. Chegou lá e fez a compra dele. Anoiteceu, pegou os amigo dele:

— Pois é, mas você vai agora?

— Vou, vou porque tenho medo de ficar aqui, porque minha mulher tem cuidado. Sou obrigado a ir. E foi. Chegou no meio da serra, olha a bicha pra frente: a fantasma. Apareceu, foi crescendo e ele:

— Olha lá, tô perdido. E foi indo, foi enfrentando, enfrentando. Quando chegou foi quase, chegou pertinho, ela foi dobrando, e veio vindo, veio vindo, quando estava meia braça pra chegar em cima dele, pra esbagaçar com ele, ele tirou o breve e afirmou-se contra a visão, a visão chegou e respondeu pra ele:

— É, tás salvo, mais vale a tua fé, porque o pau é do barco.

Pedra de cevar

Tem samambaia também. Conhece a pedra de cevar, que faz casar velho com moça, moça com velho, eles casam que a pedra de cevar obriga.

É arte do diabo em diabólica. Ele quer ser vintorioso, faz casamento, né? E faz um preto casar com branca, uma branca casar com preto, a pedra de cevar é do diabo. Porque Sexta-feira da Paixão tem a samambaia. A samambaia é um arvoredo que dá no mato. Ela então faz assim. Sexta-feira da Paixão de manhã, ela dá o botão, às 10 horas do dia ela vinga a flor, num é? às 4 horas, ela tá ali, ela tá verdulenga, querendo amadurecer, num é? Quando chega às 10 hora pra meia-noite, meia-noite ela amadurece, tá podre. Agora, o sinhor quer ter a pedra de cevar: é aquela fruta. É o diabo, né? Agora, abre em baixo do pé da samambaia, abre uma toalha e acende quatro vela. Está ali quando chegar meia noite, antes da frô cair, a fruta cai, tem uma voz que responde. Quando a fruta cai que chega na toalha, ele pergunta: — Quem pega!

O senhor tem coragem: — Pego eu.

Segura. Aí, ele vem brigar. Uma briga pá danado, né? É rastera, é cabeçada até outro dia. E vá se desviando dele, né? Vá se desviando, porque quando o galo canta ele desaparece. Aí está a pedra de cevar. Aí dá sorte. Ele come uma agulha por dia, uma agulha de aço. Porque é diabólica. Faz um breve, bota ela e pega aquela agulha põe dentro do breve ela chupa. Outra de vinte em vinte e quatro hora. Assim conserva que ela fica vinturosa. A samambaia a que ele se refere é um pé de jiçara, como um palmito, é samambaia da jiçara. A jiçara o senhor nunca vê com fruta. A fruta da jiçara só dá na sexta-feira da Paixão, a jiçara floresce e aí é a pedra de cevar.

O diabo ensina a tocar viola

Os tocadores que não sabem tocar, então eles espera pela Sexta-feira da Paixão. Sexta-feira da Paixão, ele vai na venda, de manhã, compra uma viola, que nunca ninguém pegasse. Compra na venda um encordoamento, encordoa aquelas dozes cordas, deixa direitinho e quando chega essas horas, assim, põe numa encruzilhada. Quando chega lá pela meia-noite, afina aquela viola que deixa que nem um sino, deixa direitinha, começa a tocar e cantar todas as espécie de música e o sujeito tá ali, espiando, né? Agora, quando antes do galo cantar, que vê que ele num pode, num pode está ali, ele pega na viola e vem brigar co home, né? Briga, luta daqui, luta dali, quando o galo canta a primeira vez ele larga e vai embora. Quando é outro dia tá o tocador. O moço vai tocar, tá tocando que nem o diabo.

Fonte:
Estória de João Alfaias. In LIMA, Rossini Tavares de (e outros). O folclore do litoral norte de São Paulo; Disponível em http://www.jangadabrasil.com.br/

Imaginario Popular (Quero-Quero)

Nos velhos tempos, passados, quando estas coxilhas, estes campos, estas várzeas, não eram de ninguém havia um índio dos Tapes, chefe de tribo, valente, que tinha um filho pequeno, guri assombro da idade.

Vai um dia, o indiozito se chega ao pai e lhe pede:

— Pai, eu quero lutá na primeira peleia que gente nossa peleá...

O índio velho mirou o filho de cima a baixo e lhe respondeu com ar carrancudo:

— Filho, muito pequeno! Guri não é pra peles!

— Pai, eu já sei montá cabaiú... eu quero peleá!

— Guri não é pra peleia!

E o piazito insistente, já com borbolhas nos olhos, quase explodindo num choro, tornava a implorar ao pai:

— Pai... eu já sei atirá incupuiá! Eu quero... eu quero peleá!

— Guri não pensa em peleia... Guri vai ajudá prantá abati!

E o velho chefe, erguendo o braço com firmeza, indicou o mandiocal, para onde o piazito se foi correndo, dizendo sempre a chorar...

— Eu quero... eu quero peleá!

Eu quero! Eu quero! E o indiozito, na sua obsessão guerreira, voltava por vezes a implorar, para que o pai lhe deixasse um dia tomar parte, num intreveiro sangrento. — Eu quero! Eu quero! E de tal forma repetia este pedido, que acabou grangeando o apelido de quero-quero, entre os índios irmãos da tribo, que achavam graça ao vê-lo tentando convencer o velho pai, a deixá-lo um dia pelear.

Mas, vejam só como são as coisas:

Um dia, gente estranha invadiu o pampa, e fio então, que a indiada revoltada, alçou a perna no pingo e se atirou na luta, em defesa de seus direitos, que só Deus lhe poderia quitar! E impeçou refregas... as refregas medonhas, seu! E foi numa dessas heróicas e fatais refregas, que o causo se deu.

Seguindo a pista do inimigo, a horda havia acampado numa várzea estreita, para um descanso ligeiro. Há muitas luas a guerrilha era constante. O inimigo já em fuga... alquebrado... quase derrotado... seria fácil alcançá-lo e liquidá-lo de vez. Toda a tribo então dormia, inclusive as sentinelas, que fatigadas e de certo confiantes na calma da noite e fiados na fraqueza do inimigo, se haviam entregado ao sono profundo. Foi quando a lua, destapando na coxilha, estendeu pela beira da encosta, a silhueta de um vulto. Era... era o gurizito... o indiozito... o mania de peleador... o Quero-Quero.

Sim, senhor. Pois não é que o teimoso, que havia ficado nas "casa", por ordem do pai que vinha em luta e lhe proibira de segui-lo, não pôde resistir às ganas e mal a oportunidade lhe sobrou, largou-se atrás da horda guerreira. Não lhe foi difícil alcançá-la, pois já montava muito bem o cavalo, como ele próprio dizia, assim foi que, gineteando um alazão fogoso, chegou a borda da colina, e, apeando, pra não alarmá ninguém, vinha se chegando a los passitos, rumo ao acampamento adormecido. Mas, veja só! Foi, parece, o destino, quem trouxe o diabinho ali. O inimigo astucioso e traiçoeiro, voltando cautelosamente, vinha surpreender os índios descuidados, numa emboscada fatal. E foi justamente quando o piazito chegava e ao olhar para trás, como a medir a distância, avistou de relancina, aquilo que lhe fez gelar o sangue nas veias: a força traiçoeira que já vinha em riba, na iminência do golpe.

O indiozito não vacilou. Pulando ao lado do pingo, abriu a boca e gritou... gritou com toda a força da goela:

- Pai! Irmãos! Alerta! O inimigo!... O inimigo!

Amigo, foi água na fervura! O inimigo cruel, impiedoso, atacou! A primeira vítima foi o guri.

Depois... bueno, depois quando as barras do dia impeçaram a surgir, aquela várzea tava que era uma sanga de sangue! O descuido da horda, proporcionou ao inimigo uma oportunidade tremenda. Só se via no campo da batalha, índios estendidos, mortos... outros agonizando. E, apontando aqueles corpos sangrentos, haviam pontas de lanças, coloriando de sangue indígena. E isso que os índios pelearam, seu! Mas, ali, bem na beira da coxilha, estirado na relva úmida, de braços abertos, cara virada pro céu, tava o gurizito valente... o Quero-Quero, dentro duma poça de sangue, morto... com a boca entreaberta, como se um grito de luta, lhe pairasse ainda nos lábios.
E é aí que conta que o mistério se deu. — Quando o sol apontou os primeiro raios dourados, o corpito que parecia sem vida, foi aos pouquitos se mexendo... se mexendo e, daí a alguns instantes, o gurizito valente, ia aos poucos se firmando de pé. Depois, passando a mão pelos olhos, como quem sente fumaça, olhou a coxilha, olhou a várzea e aí, com o olhar reascendido numa gana feroz, desceu, meio de arrasto, pra várzea e, chegando junto ao pai morto, agarrou duas pontas de lança coloradas de sangue, botou-as debaixo dos braços e, mirando a ponta da coxilha, com voz moribunda, mas firme, gritou com fero entusiasmo:

— Eu quero! Eu quero pelear! Eu quero!

E ao último grito de quero, tombou... tombou pra sempre. E de seu corpito inerte, elevou-se então uma sombra enfumaçada que aos poucos foi se tornando clara até tomar a forma perfeita de um pássaro que abrindo as asas elevou-se soltando gritos de Quero! Quero! — Vontade talvez que lhe ficou de lutar, aviso, quem sabe, pra que o gaúcho, sempre alerta, não fosse nunca mais atraiçoado.

Fonte:
Costa, Dimas. "Quero-quero". O Dia. Porto Alegre, 17 de fevereiro de 1957

Palmiro Sartorelli (Formação Cultural)

A palavra cultura tem diversos sentidos, e dois deles se destacam: um popular, para traduzir o atributo de toda pessoa possuidora de conhecimentos, com formação intelectual desenvolvida; outro antropológico ou sociológico, em que a cultura é referida como comportamento social do grupo. É nesse sentido que aqui se prega a palavra.

Numerosos são os conceitos sobre cultura. O mais antigo é possivelmente o Tylor (1871): complexo total de conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outros aptidões e a hábitos, adquiridos pelo homem como membro da sociedade. Herskovits a definem com a parte do ambiente feita pelo homem; Linton, como a herança cultural, e Lowie como o total da tradução social. Mais recentemente Ashley Montagu a definiu como o modo particular por que as pessoas se adaptam ao seu ambiente; é a resposta dos homens às suas necessidades básicas. Em resumo, diz Montagu, é um modo de vida de um povo, o ambiente que um grupo de seres humanos, ocupando um território comum, criou em forma de idéias, instituições, linguagem, instrumentos, serviços e sentimentos. A cultura é sempre um complexo. Criação do homem é recebida como herança dentro do grupo em que cada pessoa nasce e adquirida ao contato com outros grupo.

Só o homem é portador de cultura, e por isso só ele a cria, a possui e a transmite. É uma herança que o homem recebe ao nascer. Desde o momento em que é posto no mundo, a criança começa a receber uma serie de influências do grupo em que nasceu: as maneiras de alimentar-se; o vestuário; a cama ou a rede para dormir, a língua falada, a identificação de um pai e de uma mãe, e assim por diante. À proporção que vai crescendo, novas influências desse mesmo grupo, vai recebendo, de modo a integrá-la completamente na sua sociedade, da qual participa como uma personalidade através da posição ou papel que nela exerce. Se individualmente o homem age como reflexo de sua sociedade, faz aquilo que é normal e constante nessa sociedade, quanto mais nela se integra, mais adquire novos hábitos, capazes de fazer com que se considere um membro dessa sociedade, agindo e atuando dentro dos padrões estabelecidos. Esses padrões são justamente a cultura da sociedade em que vive.

Padrão cultural é um expressão que se refere, em antropologia, à soma total das atividades-atos, idéias, objetos de um grupo; ao ajustamento de diversos traços e complexos de uma sociedade.

Através do padrão cultural se evidencia a originalidade das culturas, ou, em particular, de cada cultura; identifica-se o que há de específico ou de peculiar numa cultura. É em torno dele que se formam as diferentes atividades de cada grupo humano, as quais, entre si, constituem uma unidade funcional. Surgem então no quadro do padrão cultural, os complexos e os traços. Os complexos de cultura são aqueles conjuntos de traços culturais, intimamente ligados entre si, que formam unidade de função. Em termos mais rigorosamente técnicos, o complexo cultural pode ser definido como o conjunto variável de fenômenos interdependentes que concorrem para formar o perfil cultural próprio de uma área antropológica mais ou menos definida.

O traço cultural, de seu lado, são os atos, e objetos individuais ou específicos que constituem a manifestação expressa de uma cultura. É unidade desta. Um grupo de traços culturais formam o complexo. Pode-se, assim, no quadro cultural brasileiro, caracterizar o futebol como um complexo de diferentes traços: a bola, o número de jogadores, o campo com dimensão prefixada, a existência de metas. De seu lado, cada complexo, se relaciona com outros, e dessa inter-relação surge o padrão cultural de uma sociedade ou de um grupo. Entretanto, a maioria dos autores considera o traço como a unidade menor, e, por isso mesmo, aquele que, dentro de uma cultura, mais facilmente se difunde a outra cultura. Nessa difusão o traço pode conservar a sua forma e mudar seu uso. A forma é o aspecto passivo, observando e transmitido, do traço cultural; o uso é o aspecto dinâmico, as relações com as coisas externas da cultura.

O padrão cultural é, em suma, aquele conjunto de valores que caracteriza uma cultura em relação com outras culturas. Os novos elementos introduzidos tratarão sempre de acomodar-se aos modelos originais; isso se verifica tanto em povos desenvolvidos ou chamados civilizados, consciente de suas características nacionais, como em povo selvagens ou chamados primitivos. Esse conjunto de valores é o que pode ser chamado de espírito da cultura. Por essa razão, modernas correntes antropológicas substituem o conceito de padrão cultural pelo de personalidade.

Fonte:
Palmiro Sartorelli Neto . http://www.sti.com.br

Fernando Gabeira (O Que é Isso, Companheiro? = o livro e o filme, discrepâncias)

No livro “O que é isso, Companheiro?” Fernando Gabeira, narra sua história, e de outras pessoas, que durante o Regime Militar no Brasil estiveram envolvidas em movimentos contra a ditadura.

Por se tratar de um livro de memória, “O que é isso, Companheiro?”, pode apresentar falhas, ocultando e exaltando fatos ocorridos. O texto é escrito em primeira pessoa, e é uma fala solitária, mas ao mesmo tempo, é para o leitor coletiva, pois ele relata fatos ocorridos na sociedade brasileira na década de 60.

No livro, Fernando Gabeira, está sempre questionando sua ação dentro do movimento, ele faz críticas e mostra uma clareza ao questionar o que estava errado no movimento de esquerda brasileira. Isso não ocorre porque ele apresenta superioridade em relação aos outros e sim porque o livro foi escrito dez anos depois dos acontecimentos narrados. Nos anos de chumbo, Gabeira pensava igual aos outros companheiros, que desejavam fazer a sonhada “Revolução”.

Com base neste livro Bruno Barreto dirige o filme “O que é isso, Companheiro?” que apresenta contradições com relação ao livro, é portanto, falsa a idéia de um filme verídico, mas apresenta acontecimentos, datas e nomes reais.

Não é a primeira vez , que a realidade se transforma em ficção, na minissérie da TV Globo “Anos Rebeldes”, exibida em 1992, também apresentou fatos reais, com o extremo ar de romance. Mas existem outras produções sobre o período que não são obras de ficção é o caso do filme “Lamarca”, de 1994, que conta a história de um capital do exército que deixou a farda pela Revolução.

O contexto histórico dos fatos discutidos nesse trabalho, é o ano de 1969, que inicia-se em 13.12.68 com o AI-5, que foi o “golpe dentro do golpe”. O Brasil que já estava vivendo num período autoritário, e agora passa para um sistema rígido, violento e opressor. O seqüestro do embaixador é realizado neste contexto, de prisões, torturas e exílios. A esquerda, em sua maioria, havia entrado na luta armada, e estavam fazendo treinamento em Cuba. E foram realizadas ações contra a ditadura.

O momento era propício para a realização do seqüestro. O país estava sendo governado por uma Junta Militar, pois Costa e Silva afastou-se da presidência por motivos de saúde. “...Divididos sobre a aceitação das exigências do grupo, os militares tinham agora a possibilidade de um ataque direto. A Junta que ocupava a presidência a acompanhava as operações em tempo real, passo a passo: recém-empossada sob contestação de todos os lados, sabia não ter controle total sobre a tropa.” O seqüestro do embaixador foi planejado para a Semana da Pátria, para desmoralizar o e prejudicar a ação do exército.

Seqüestro que foi realizado pelo MR8, nome adotada para confrontar com a repressão que havia divulgado uma nota que o grupo terrorista MR8 estava eliminado, mas Movimento Revolucionário 8 de Outubro era apenas o nome do jornal. Então a Dissidência da Ganabara, resolveu adotar o nome, e por ser um grupo com pouca experiência na luta armada, pede ajuda a ALN de Carlos Marighella para realizar o seqüestro.

O filme O que é isso, Companheiro?, é uma ficção a partir de fatos reais do seqüestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick. “ Como disse a atriz Fernanda Torres ao jornal O Estado de S. Paulo (01/05/97,p.D-7): ‘Precisamos atingir os jovens, eu não aprendi nada disso na escola, o cinema tem que ajudar o brasileiro a descobrir a complexidade da história recente do país.”

Em duas entrevistas Bruno Barreto se contradiz, pois em uma ele fala que fez um filme para os jovens que não viveram a época e necessitam conhecer uma história recente do país, e em outra entrevista fala que fez o filme pensando em mostrar aos norte-americanos o seqüestro do embaixador deles no Brasil na década de 60. Na realidade ele estava interessado em ganhar um Oscar de melhor filme estrangeiro, mas não poderia utilizar cenas reconstituídas no mesmo padrão de imagem da época, ou seja, ele inicia o filme em preto e branco, e ainda coloca uma legenda falando que se trata de uma história verídica, produzido como se fosse um filme norte-americano.

O filme é destinado ao entretenimento da massa e esquece o seu objetivo de relatar a verdade dos acontecimentos, o cinema apresenta aos seus espectadores uma história e uma cultura, fictícia ou real, tendo coerência em separar um do outro, no caso do O que é isso, Companheiro? A ficção se mistura com a realidade, contrariando a história de vida de pessoas que se vêem retratadas no filme. É um filme de alta produção, como esse, deixou muito a desejar, ele se preocupou com a forma e esqueceu o conteúdo. Bruno Barreto tem liberdade de criação em seus filmes, mas não se utilizar de fatos e imagens de pessoas, para ter bilheteria, pois é um filme produzido nos moldes da indústria cultural.

No filme “O que é isso, Companheiro”, Fernando Gabeira se destaca em relação aos outros personagens , ele é o mais sensato e inteligente dos militantes que participavam do seqüestro do embaixador. Tanto no livro como no filme a idéia do seqüestro é Fernando Gabeira, mas na realidade foi de um outro companheiro, Franklin Martins. E eu pergunto a Gabeira: “O que é isso, Companheiro?” O plágio não era crime em 69? Mas não ficou por aí, ele também assumiu a autoria do manifesto divulgado nos meios de comunicação, que o Franklin escreveu.

Em uma entrevista dada a Folha de S. Paulo, Bruno Barreto justifica-se dizendo “...Eu tomei certas liberdades com o personagem do Gabeira só para ele ter alguma qualidade. Ele não sabia dirigir, não sabia atirar, se não soubesse escrever, o que estaria fazendo ali ...”, fico abismada que nem escrever ele não sabia! Fernando Gabeira só ficou sabendo da ação no dia do seqüestro, pois o embaixador ficaria na casa que ele alugou para sede do jornal do grupo. Então por que assumir uma coisa que nem ia participar? Um outro ponto, que não mencionei, é que no filme começa com uma passeata, onde Fernando Gabeira estava participando, mas no livro ele conta que estava observando da janela do Jornal do Brasil, onde trabalhava.

Existem outros detalhes no filme, o assalto a banco é mostrado somente com o objetivo de juntar dinheiro para a realização do seqüestro, mas na realidade os assaltos eram feitos para garantir sobrevivência da clandestinidade e também como uma forma de protesto contra o sistema autoritário e o imperialismo. No livro Gabeira conta que ele seguiu os militares que estavam vigiando a casa em Santa Tereza, mas no filme fica ridículo esta encenação. Um outro ponto que chama a atenção foi a compra dos frangos, numa época de recessão e também repressão, que boa parte da população estava auxiliando os militares em perseguir os “subversivos”, como uma pessoa compraria doze frangos e mostrando muito dinheiro no bolso não levantaria suspeita? No Brasil atualmente nem todas as casas tem telefone, e na época só os mais privilegiados possuíam, então porque colocar telefones em todas as casas como nos Estados Unidos?

O plágio não é o único problema, a própria personalidade dos personagens está distorcida, Bruno Barreto utiliza nomes, codinomes e descrições dos verdadeiros participantes do seqüestro, só que de forma diferente, o mais prejudicado é o personagem Jonas, (Vírgilio Gomes da Silva), um operário, militante da ALN, que trouxe sua experiência na luta armada para a realização dessa ação em conjunto. O filme mostra um homem violento, calculista que mataria um companheiro caso esse enfraquecesse, e deu ordem ao Paulo personagem de Fernando Gabeira, de matar o embaixador caso as exigências não fossem aceitas. Jonas não tem nada a ver com o personagem primitivo do filme, segundo seus parentes Jonas era um homem calmo.

Bruno Barreto é extremamente preconceituoso, pois coloca a imagem distorcida de um pessoa devido sua classe social, um operário e coloca um intelectual no alto.

Bruno Barreto faz isso também com o personagem feminino da história, Vera Sílvia Magalhães, "... Foi ela que, então com 21 anos, fez o levantamento da ação, tendo também participado diretamente do seqüestro, na cobertura logística. Vera, porém, não permaneceu dentro da casa em Santa Tereza - nenhuma mulher ficou -, mas acompanhou os acontecimentos passo a passo, por intermédio de alguns companheiros que entravam e saíam. No filme, ela seria a fonte de inspiração das personagens de Cláudia Abreu(que faz o levantamento da ação) e de Fernanda Torres, que, como Vera, deixa o país com as pernas paralisadas - quando de sua libertação em troca de embaixador alemão Ehrenfried von Holleben (seqüestrado em 1970), junto com mais 39 prisioneiros políticos -, em conseqüência das violentas torturas que sofreu na cadeia."

A relação de preconceito neste fato, reduz a utilização do corpo feminino para obtenção de favores, Vera utilizou de encantos femininos para obter as informações sobre a rotina do embaixador, mas nunca teve nenhuma relação com o segurança, como mostra no filme.

Um outro ponto importante, é que Bruno Barreto mostra no filme um conflito entre um torturador e sua esposa, este militar fala a um outro amigo militar se ele consegue dormir depois do trabalho, e ele fala que sim. Ele tenta demonstrar que o torturador também tinha uma história, uma família, e ficava com a crise de consciência, e por sinal o torturador que se sentia bem no trabalho que fazia, que era torturar os “subversivos”, era negro, outro fato de preconceito.

Com relação a tortura em si, o filme ficou devendo, pois, no livro Gabeira conta alguns detalhes sobre os porões do Dops, fala do tiro que levou quando foi preso, como ele fazia para enganar os torturadores para não contar detalhes do seqüestro, fala das suas transferências, conta a história de um militante que resistiu até a morte e antes de morrer conseguiu atingir um torturador, ferindo-o muito, todos dentro da cadeia ficou sabendo desse fato, e esse preso era justamente Vírgilio Gomes da Silva, o companheiro Jonas, e no filme Bruno Barreto mostra um lado tão simplório da tortura, ele faz questão de mostrar que os torturadores eram bonzinhos, que a tortura não eram tão violenta como na realidade foi. Em comparação com o filme Lamarca, que mostra bem como era feita a tortura, quando ele coloca um pau-de-arara um homem nú o expondo a humilhação, ele sofre violentos choques elétricos no seu órgão genital, e quando este vem a falecer depois de tanto sofrimento, o comandante da ação fala que a causa da morte, “atropelado quando resistia a prisão”.

A frieza dos militares é bem retratada nesse filme, o esquema do exército, suas influências e sua violência. E Bruno Barreto deixa de lado essa questão, com relação ao exército ele só mostra dois comandantes, que fazem tudo desde as ordens, a prisões e a tortura. Segundo Renato Tapajós, “ A tortura pode ser uma decisão racional para os altos escalões de comando, que decidem permiti-la ou aceitá-la como método e são capazes, inclusive, de mandar trazer assessores internacionais para divulgar técnicas ‘modernas de tortura entre seus comandados. No entanto, no escalão do torturador, daquele sujeito que põe a mão na massa, a tortura significa infligir for, humilhação e talvez a morte a outro ser humano. Ela acontece em meio a gritos, sangue, cheiro de sangue e de suor, o fedor insuportável do medo, freqüentemente urina e fezes - porque o medo e a dor soltam bexiga e intestinos...a tortura é a negação do humano - e essa é a chave da sua eficácia...”

Bruno Barreto compreende as razões do torturador, de um certo modo defendendo-o, quando na realidade eles não passem de criminosos, no Brasil e não existe punição para esses crimes, todos sem exceção deveria ir para a justiça, tanto os torturadores, o alto escalão do exército e os políticos que apoiavam a ditadura.


“ Frente a todos os perigos, frente a todas as ameaças, as agressões, aos bloqueios, às sabotagens; frente a todas os divisionistas, frente a todos os poderes que tratam de nos enfrenta, temos que demonstrar, uma vez mais, a capacidade do povo para construir a sua história.”
Ernesto Che Guevara


A capacidade da classe dominante apagar a memória e a esperança do povo pela luta de seus direitos, é incrível. Com uma simples distorção da história, ela pode mudar a capacidade de raciocínio da maior parte das pessoas.

Fonte:
Adriana De Oliveira Costa. Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”
Faculdade De Ciências E Letras. Departamento De Sociologia. Araraquara, 1997.

Antonio Aleixo (1849 – 1949)


Que importa perder a vida
na luta contra a traição
se a razão mesmo vencida
não deixa de ser razão

António Fernandes Aleixo, é um autodidata. Este poeta popular algarvio, de vida acidentada e humano, morreu tuberculoso em Loulé. Foi tecelão, emigrante, pastor de cabras e cauteleiro. Percorria as feiras improvisando à guitarra ou vendendo folhas avulsas com quadra e glosas. A sua poesia distingue-se pelo rigor de inspiração e de talhe e caracteriza-se por uma tendência conceptiva de qualidade. As primeiras edições da sua obra, disseminada oralmente, foram promovidas por Joaquim da Rocha Peixoto Magalhães, que recolheu sistematicamente todo o manancial, quer a partir do próprio autor, quer de amigos e conterrâneos.

António Fernandes Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de Fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de Novembro de 1949) foi um dos poetas populares algarvios de maior relevo, famoso pela sua ironia e pela crítica social sempre presente em seus versos. Também é recordado por ter sido simples, humilde e semi-analfabeto, e ainda assim ter deixado como legado uma obra poética singular no panorama literário português da primeira metade do século XX.

No emaranhado de uma vida recheada de pobreza, mudanças de emprego, imigração, tragédias familiares e doenças, na sua figura de homem humilde e simples, havia o perfil de uma personalidade rica, vincada e conhecedora das diversas realidades da cultura e sociedade do seu tempo.

Do seu percurso de vida fazem parte profissões como tecelão, guarda de polícia, servente de pedreiro, trabalho este, que emigrado, também exerceu em França.
De regresso ao seu país natal, restabeleceu-se novamente em Loulé, onde passou a vender cautelas e a cantar as suas produções pelas feiras portuguesas, actividades que se juntaram às suas muitas profissões e que lhe renderia a alcunha de "poeta-cauteleiro".

Faleceu por conta de uma tuberculose, em 16 de Novembro de 1949, doença que tempos antes havia também vitimado uma de suas filhas.

Corrente do cancioneiro popular português

O termo "cancioneiro" é, em geral, atribuído à reunião de canções populares; cada uma das coleções da antiga poesia lírica portuguesa e galega, com início entre os séculos XI e XIII, reunidas sob a alçada de reis e príncipes e constituídas por composições de vários autores, de entre homens das diversas classes sociais, é o "cancioneiro" em língua portuguesa mais conhecido.

No Algarve, na primeira metade do século XX, teria irrompido uma poderosa corrente de um novo cancioneiro popular português, a qual recebeu o nome do poeta semi-analfabeto que lhe teria "aberto as comportas": António Aleixo. Quem apontou essa corrente foram o artista plástico Tóssan também autor da imagem supra, e o professor de liceu Joaquim Magalhães, este último o professor do Liceu de Loulé e "descobridor" de António Aleixo, ao qual se deve o registo e publicação da obra do poeta popular algarvio e sua inclusão no sistema literário português.

Estilo literário

Poeta possuidor de uma rara espontaneidade, de um apurado sentido filosófico e notável pela «capacidade de expressão sintética de conceitos com conteúdo de pensamento moral», António Aleixo tinha por motivos de inspiração desde as brincadeiras dirigidas aos amigos até à crítica sofrida das injustiças da vida. É notável em sua poesia a expressão concisa e original de uma amarga filosofia, aprendida na escola impiedosa da vida.

A sua conhecida obra poética é uma parte mínima de um vasto repertório literário. O poeta, que escrevia sempre usando a métrica mais comum na língua portuguesa (heptassílabos, em pequenas composições de quatro versos, conhecidas como "quadras" ou "trovas"), nunca teve a preocupação de registar suas composições. Apenas com o trabalho de Joaquim de Magalhães, que se dedicou a compilar os versos que lhe ditou o poeta no intuito de compor o primeiro volume de suas poesias ("Quando Começo a Cantar", e com o posterior registo pelo próprio poeta com o incentivo daquele mesmo professor, é que a obra de Aleixo recebeu algum registo escrito. Antes de Magalhães, contudo, alguns amigos do poeta lançaram folhetos avulsos com quadras por ele compostas, mais no intuito, à época, de angariar algum dinheiro que ajudasse o poeta em uma situação de miséria que com a intenção maior de permanência da obra na forma escrita.

Estudiosos de António Aleixo ainda conjugam esforços no sentido de reunir o seu espólio, que ainda se encontra fragmentado por vários pontos do Algarve, algum dele já localizado. Sabe-se também que vários cadernos seus de poesia - nos quais era incentivado por Joaquim de Magalhães a registrar seus poemas, já que antes os produzia espontaneamente em suas apresentações em feiras e praças públicas, sem a preocupação de publicação - foram cremados como meio de defesa contra o vírus infeccioso da doença que o vitimou, sem dúvida, um «sacrifício» impensado, levado a cabo pelo desconhecimento de seus vizinhos. Foi esta uma perda irreparável de um patrimônio insubstituível no vasto mundo da literatura portuguesa.

A opinião pública e reconhecidos amigos

A partir da descoberta de Joaquim de Magalhães, o grande responsável por "passar a limpo" e registar a obra do poeta, António Aleixo passou a ser apreciado por inúmeras figuras da sociedade. Também é digno de registo José Rosa Madeira, que o protegeu, divulgou e colecionou os seus escritos, contribuindo no lançamento do primeiro livro, "quando Começo a Cantar" (1943), editado pelo Círculo Cultural do Algarve.

A opinião pública aceitou a primeira obra de António Aleixo com bom agrado, sendo bem acolhido pela crítica. Com uma tiragem de 1.100 exemplares, o livro esgotou-se em poucos dias, o que proporciona a Aleixo uma pequena melhoria de vida, que é ensombrada pela morte de uma sua filha, doente com tuberculose. Desta mesma doença viria o poeta a sofrer pelos tratamentos que vida lhe foi impondo, tendo que ser internado no Hospital – Sanatório dos Covões, em Coimbra, a 28 de Junho de 1943.

Em Coimbra começa uma nova era para o poeta que descobre novas amizades e deleita-se com novos admiradores, que reconhecem o seu talento, de destacar o Dr. Armando Gonçalves, o escritor Miguel Torga e António Santos (Tossan), o artista plástico e autor da mais conhecida imagem do poeta algarvio, amigo do poeta que nunca o desamparou nas horas difíceis. Os seus últimos anos de vida foram passados, ora no sanatório, em Coimbra, ora no Algarve, em Loulé.

Os Derradeiros momentos de António Aleixo:
Caro Senhor Dr. Joaquim Magalhães;
Saúde! E boa vontade!
Este é o rogo do moribundo. Pasmo como ainda lhe sobra vontade para querer alguma coisa.
Deve ter adivinhado que se trata do Aleixo. Ele mandou-me chamar hoje. Fui encontrá-lo medonhamente acabado. Olhou-me quando entrei e creio que lhe faltavam as forças para o fazer mais vezes. Enquanto me falou, - com esforço visível, num sopro enrouquecido, - fitava alguma coisa, longe ou perto com a lividez gelada da última hora. Pasmei como se poderia interessar por alguma coisa.

Falou-me do livro e pediu-me que telefonasse ainda hoje a desistir da publicação. Disse-me que desistia e que com o dinheiro ia dar de comer à família que ultimamente vem passando mal… É claro que lhe tirei isso do sentido; pelo menos fiz o possível dizendo-lhe que não, que isso era mal pensado e que ele tinha a obrigação de pensar (como se já lhe assistisse qualquer espécie de obrigação) na receita que poderia advir do livro em proveito da família, da sua relativa continuidade, etc, etc. Disse-lhe ainda que escreveria ao Sr. Dr. no sentido de apressar o mais possível a impressão do livro, - argumento com que o convenci a não fazer a asneira da desistência. Prometi escrever ao Sr. Ainda hoje e lá o deixei mais ou menos consolado com a ideia de que tudo se iria passar rapidamente, não como seria a nossa vontade mas dentro das possibilidades de que dispomos. Consolei-o dizendo que todas as pessoas que mais ou menos contribuem para a publicação do livro estão a fazer o que podem nesse sentido e com toda a boa vontade - Na verdade, creio que por mais depressa que o assunto se resolva não virá a horas de lhe dar a satisfação que ele vê fugir, - a sua grande e última satisfação. Penso que poucas horas lhe restarão. Demais ele já não come há dois dias. Todo o volume que ele faz no leito não excede o de uma criança de poucos anos. Todavia há que pensar na miséria que o rodeia e que muito se acentuará depois do seu último dia. Talvez por isso ele peça por meu intermédio ao Sr. Dr. Magalhães toda a urgência.

Por mim espero que o Sr. Dr. Magalhães fará o possível, assim como já terá dado alguns passos no sentido de regularizar os registros de autor do Aleixo, dos quais ele me falou hoje e a que eu lhe respondi que o Sr. andava a tratar do caso como lhe era possível.

Posto o que ficou dito, fico em boa consciência pensando que nada mais poderia fazer.

Recomendo-me e cumprimento-o respeitosamente
Armando Gonçalves (médico que assistiu Aleixo no Sanatório dos Covões - Coimbra)

Sua Obra:
Quando começo a cantar – (1943);
Intencionais – (1945);
Auto da vida e da morte – (1948);
Auto do curandeiro – (1950);
Auto do Ti Jaquim - incompleto;
Este livro que vos deixo – (1969) - reunião de toda a obra do poeta;
Inéditos – (1979); tendo sido, estes quatro últimos, publicados postumamente.

Fontes:
Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal
http://www.caestamosnos.org/indice/indice.htm
http://acaciasrubras.no.sapo.pt/biblioteca/poesia/antonio_aleixo/ (retrato)

Antônio Aleixo (Quadras Populares)

Forçam-me, mesmo velhote,
de vez em quando, a beijar
a mão que brande o chicote
que tanto me faz penar.
«»
Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.
«»
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
querer um mundo novo a sério.
«»
Pra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.
«»
Enquanto o homem pensar
que vale mais que outro homem,
são como os cães a ladrar,
não deixam comer, nem comem.
«»
A vida na grande terra
corrompe a humanidade.
Entre a cidade e a serra
prefiro a serra à cidade.
«»
Eu não sei porque razão
certos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem parecer.
«»
Uma mosca sem valor
poisa, c'o a mesma alegria,
na careca de um doutor
como em qualquer porcaria.
«»
Num arranco de loucura,
filha desta confusão,
vai todo o mundo à procura
daquilo que tem à mão.
«»
Entre leigos ou letrados,
fala só de vez em quando,
que nós, às vezes, calados,
dizemos mais que falando.
«»
Quando te vês mal, e dizes
que preferias a morte,
pensa que outros menos felizes
invejam a tua sorte.
«»
Tem a música o poder
de tornar o homem feliz;
nem há quem saiba dizer
tanto quanto ela nos diz.
«»
Gosto do preto no branco,
como costumam dizer:
antes perder por ser franco
que ganhar por não ser.
«»
Queremos ver sempre à distância
o que não está descoberto,
Sem ligarmos importância
ao que está à vista e perto.
«»
Sei que umas quadras são conselhos
que vos dou de boa fé;
outras são finos espelhos
onde o leitor vê quem é.
«»
Quantas sedas aí vão,
quantos colarinhos,
são pedacinhos de pão
roubados aos pobrezinhos!
«»
Quando não tenhas à mão
outro livro mais distinto,
lê estes versos que são
filhos da mágoa que sinto.
«»
Julgam-me mui sabedor
E é tão grande o meu saber
Que desconheço o valor
Das quadras que sei fazer!
«»
A quadra tem pouco espaço
Mas eu fico satisfeito
Quando numa quadra faço
Alguma coisa com jeito
«»
Nos versos que se improvisem,
Os poetas sabem ler,
Para além do que eles dizem,
Tudo o que querem dizer
«»
Falemos sinceramente,
Como p'ra nós mesmos, a sós;
Lá longe de toda a gente,
Do mundo, e até de nós
«»
Mentiu com habilidade,
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade,
ninguém crê no que ele diz
«»
Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande,
Façam das mil pequeninas
Uma só doutrina grande.
«»
A arte em nós se revela
Sempre de forma diferente:
Cai no papel ou na tela
Conforme o artista sente
«»
Embora os meus olhos sejam
Os mais pequenos do mundo,
O que importa é que eles sejam
O que os Homens são no fundo. Porque o mundo me empurrou,
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor, mas não sou
a lama que muitos são.
«»
À guerra não ligues meia,
porque alguns grandes da terra,
vendo a guerra em terra alheia,
não querem que acabe a guerra
«»
Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão mesmo vencida,
não deixa de ser Razão?
«»
Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.
«»
Eu já não sei o que faça
pra juntar algum dinheiro;
se se vendesse a desgraça
já hoje eu era banqueiro.
«»
O mundo só pode ser
melhor do que até aqui,
- quando consigas fazer
mais pelos outros que por ti!
«»
Bate a fome à porta deles
e é lá mais mal recebida
do que na casa daqueles
que a sofreram toda a vida.
«»
Para não fazeres ofensas
e teres dias felizes,
não digas tudo o que pensas,
mas pensa tudo o que dizes.
«»
Vinho que vai para vinagre
não retrocede o caminho;
só por obra de milagre,
pode de novo ser vinho.
«»
Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.
«»
Mentiu com habilidade,
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade
ninguém crê no que ele diz.
«»
Quando os homens se convençam
que a força nada faz,
serão felizes os que pensam
num mundo de amor e paz.
«»
Não sou esperto nem bruto,
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o produto
do meio em que fui criado.
«»
Porque será que nós temos
na frente, aos montes, aos molhos,
tantas coisas que não vemos
nem mesmo perto dos olhos?
«»
Vemos gente bem vestida,
no aspecto desassombrada;
são tudo ilusões da vida,
tudo é miséria dourada.
«»
Julgam-me mui sabedor;
e é tão grande o meu saber
que desconheço o valor
das quadras que sei fazer.
«»
Peço às altas competências
Perdão, porque mal sei ler,
P’ra aquelas deficiências
Que os meus versos possam ter.
«»
Quem nada tem, nada come;
e ao pé de quem tem de comer,
se alguém disser que tem fome,
comete um crime, sem querer
«»
Nada direi, mas, enfim,
Vou ter a grande alegria
De a Arte dizer por mim
Tudo quanto eu vos diria
«»
Falemos sinceramente,
Como p'ra nós mesmos, a sós;
Lá longe de toda a gente,
Do mundo, e até de nós
«»
Após um dia tristonho
de mágoas e agonias
vem outro alegre e risonho:
são assim todos os dias
«»
São parvos, não rias deles,
deixa-os ser, que não são sós;
às vezes rimos daqueles
que valem mais do que nós
«»
Quando os Homens se convençam
Que à força nada se faz,
Serão felizes os que pensam
Num mundo de amor e paz.
«»
Quem prende a água que corre
É por si próprio enganado;
O ribeirinho não morre,
Vai correr por outro lado.
«»
Julgando um dever cumprir,
Sem descer no meu critério,
- Digo verdades a rir
Aos que me mentem a sério!
Fonte:
Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal
http://www.caestamosnos.org/indice/indice.htm

Adriana Lunardi (Clarice)

Na varanda, ele aponta a pedra pontuda e as casinhas apinhadas que sobem pela encosta. Professoral, chama cada coisa pelo nome, educando-me o olhar para as coisas que ama. Aquele é o morro Dois Irmãos; do lado, a favela da Rocinha. Na vibração da voz, no atropelo de assuntos, a pressa de revelar-se. A ansiedade pelo papel que durante toda a vida (a minha vida, ao menos) evitou desempenhar. O de ser meu pai.

Eu não decidira ainda de que modo chamá-lo. Com minha mãe, ele sempre fora ele, simplesmente, o pronome indicando um mesmo sujeito, o único homem importante em minha biografia. Pai é uma palavra que nunca precisei usar – já tinha dentes quando aprendi a pronunciá-la – e Otávio, pura e simplesmente, exige maior intimidade do que posso oferecer. O jeito é usar a neutralidade do que você e despistar todas as vezes que os apelos tenham que ser mais diretos.

Lá é o Leblon, Ipanema do lado e, à direita, esse você sabe, o Cristo. Apresenta os bairros e as montanhas como um senhor feudal e, em seguida, me espreita, à espera de reação. Aliás, ele me observa o tempo todo, procurando em meu rosto aquelas semelhanças que todos os parentes procuram nas gerações mais novas. Quem sabe na forma dos olhos, no jeito de sorrir, encontrasse uma prova inequívoca, material, de que somos mesmo pai e filha.

Em minha cabeça, nada se acomoda. Os pensamentos fogem antes que eu possa esclarecê-los. É muita informação logo cedo, e estou em jejum, o que agrava meu desconforto. Para completar, tem essa bondade no olhar dele encaramelando tudo.

Estava à beira de vomitar quando a senhora de uniforme avisou que o café seria servido.
Não há silêncio mais incômodo do que aquele de duas pessoas sentadas frente a frente, sem ter o que falar ou, ao contrário, com tanto a dizer que não imaginam por onde começar senão saindo aos gritos. Um pouco de violência faz parte de mim. Uso unhas afiadas sempre que me põem contra a parede. A cicatriz discreta, mas indelével, na pálpebra esquerda da Cris, coleguinha de maternal, é testemunha do meu estilo. Desde que me alfabetizei, contudo, transferi essa ferocidade para as palavras, que cicatrizam mais lentamente que os arranhões. Será a minha contribuição a esse homem que, enquanto raspa a polpa de um papaia até a casca, tenta mapear o gelo em que pisa. Sou capaz de destruí-lo, sinto a força em mim. A força de um selvagem das cavernas que não sabe controlar os próprios instintos.

Procurando incessantemente por pistas, ele pergunta coisas que se perguntam às crianças: se vou bem ao colégio, qual a minha matéria predileta, qual grupo de rock. Quer saber tudo de mim entre uma colher de geléia e uma mordida de pão. Basta o resumo.

Sim à primeira, português à segunda e Mutantes à última, respondo num tiro, esperando que o questionário morra ali. Sem me abalar, ele pensa um pouco e retoma o rimo, fazendo apreciações analíticas.

Mutantes? Achei que na sua idade ninguém mais conhecia.

Gostaria de ter certeza de que ele sabe que tenho dezessete anos. Minha aparência diz menos. Parei de crescer aos doze, e mesmo naquela época era a menos da turma, de modo que é fácil me confundirem com uma menina, especialmente para um pai recém-nascido que nunca comprou presentes de aniversário. Talvez essa imagem de anjo perverso explique os olhos arregalados, incertos sobre o que dizer ao me verem encher a segunda xícara de café e acender o primeiro cigarro do dia.

Sopro a fumaça de lado, pergunto se incomoda. Ele agüenta firme. Autoriza-me um fique à vontade de anfitrião educado e, no embalo, confidencia ter parado de fumar há pouco. E que achava que a minha geração estava melhor informada sobre os malefícios do fumo.

Os vícios é que nos salvam, penso em dizer, mas acho melhor ficar calada.

O silêncio se alarga entre o guardanapo e a boca. Uma pergunta difícil, dessas que se experimenta primeiro, abrindo-lhe a casca para verificar se está perfeita, demora a achar a voz de Otávio, mas chega. Qual o primeiro lugar que eu gostaria de conhecer no Rio de Janeiro?
O cemitério do Caju, respondo sem hesitar.

Pronto. Está feito. Sou uma garota difícil. Dessas que fazem os pais fincarem os cotovelos na mesa e segurarem as têmporas com o indicador e o dedo médio, enquanto os polegares sustentam as mandíbulas inferiores, analisando a máscara da perplexidade.

A gargalhada da Penha, tirando a mesa do café, enche a sala de espontaneidade.

Tanta coisa linda para se ver nessa cidade e a menina querendo ir ao cemitério. É de lascar, seu Otávio!

Otávio empalidece e afunda os olhos na mesa, vexado por ter de se expor à crítica popular dos fatos.

Você é gótica? Penha se esbalda, irreverente. O termo aprendido na novela da tevê é uma sobremesa que irá apreciar em família, depois do expediente, comentando sobre a estranha filha do patrão que em vez do Pão de açúcar preferia visitar o caju.

A gargalhada vívida desaparece por uma porta vaivém, deixando migalhas na toalha xadrez e, no ar, um vapor inflamável de posto de gasolina. Apago o cigarro, temendo explosões.

Arrependido, digo, ambígua no tom, que tanto pode ser interrogativo quanto de adivinhação.
Era o que você queria? Otávio me encara, a raiva fininha se infiltrando na massa corrida do discurso paterno, o rosto crespo de indignação. Não está entre amigos, ele devia saber, mas parece não ter entendido ainda. Ninguém que responde a uma pergunta fazendo outra sabe. Deixei que a provocação agonizasse sozinha até que o ruído dos carros, vindo de muito longe, a atropelasse. Otávio desviou as pupilas para o céu e suspirou.

O ódio bem podia ser o sentimento supremo que nos une. Temos, afinal, o mesmo código, eu e esse cara. O exame de DNA disse. O resto da história, como e porquê são buracos mal cobertos pelas versões esfarinhadas de minha mãe. O resumo básico é que ela tivera com Otávio uma fidelidade insuficiente para tranqüilizá-lo quanto à genética do embrião que carregava. As dúvidas favoreceram mágoas, acusações e o resto da cartilha dos amores imperfeitos. Na hora do meu nascimento, não havia ninguém para fotografar o parto.

Às vezes basta uma desculpa, dessas que só o tempo afia, para tudo ficar cristalino como uma janela recém-lavada. Em outras vezes, no entanto, é preciso um grande susto para a verdade aparecer. A certeza da minha origem precisou das duas possibilidades combinadas: a crise dos quarenta batendo à porta de dois ex-namorados e um exame de saúde trazendo a suspeita de que em breve eu seria órfã de mãe. Desde então, tenho aprendido que a morte, sua vizinha inapelável, exige sinceridade absoluta de todos os envolvidos. A minha inclusive.

Vamos para a sala? ele convida, reclinando a cabeça no ombro esquerdo. Deve ter precisado alongar o pescoço muitas vezes na vida para não perdê-lo. Esse apartamento, por exemplo. O piso recamado de persas, a cintilância de alguns cristais e essa natureza na varanda, luxuosa como documentário da National Geographic, escancaram em cada metro quadrado uma alma vendida.

Gostou daqui? Ele me flagra apreciando seus tesouros. Da próxima vez terei de ser mais cuidadosa. Odeio que me apanhem desprevenida.

Bonito. Caro. O segundo adjetivo saiu quase sem querer, colado à lisonja, como se eu estivesse avaliando profissionalmente o lugar.

Demorei muito para conseguir, Otávio se defende, enumerando as virtudes necessárias para se adquirir um império. Trabalho duro, ambição, resistência. As reticências na fala deixam a lista em aberto, fazendo crer que tem mais. Um pouco de sorte também, ele considera, jogando a purpurina da modéstia para causar boa impressão.

Você trabalha com propaganda, mamãe disse.

Internet. Sou sócio em um provedor.

Ele, provedor. Meu riso explode. Só podia ser uma piada. Otávio finge não perceber a ironia.
Quer saber se eu navego, qual é a minha máquina, quanta memória ela tem.

Pouca. Uso o computador só para escrever.

Os filhos dos meus amigos respiram Web. É divertido. Você não tem vontade?

Não gosto de me divertir.

Eu estava fazendo uma citação, mas ele jamais presumiria. A sombra da culpa embaça-lhe a inteligência. Cada frase que eu disser pode significar uma grosseria diante de suas sublimes intenções patriarcais, pois tudo o que ele teme é o Quarto Mandamento ser rasgado em mil pedacinhos no chão da sala, sujando os tapetes que, de tão puros, prometem voar.

Sem conseguir conter a frustração, Otávio sopra mais um suspiro e cruza as pernas, enlaçando as mãos sobre o joelho que ficou por cima.

Do que você gosta, então? desafia, meio zombeteiro, meio irritado.

De aprender, respondo, a voz sumindo a cada sílaba, espuma que se empraia na arrebentação.

Então você deve ir bem na escola, se olhos se acendem: enfim uma brecha, quase um diálogo inteiro. Colei até o fim da faculdade, confidencia, animadíssimo. Nunca achei que alguém tivesse alguma coisa para me ensinar e... Ele segue falando até distrair-se com a própria voz. Aproveito para observar a casa.

Será que ele mora sozinho? Procuro pelas mesas e balcões um porta-retrato, desses em que se aparecem rostos queridos lembrando do quanto somos importantes, ao menos para duas ou três fotografias. Os enfeites, contudo, são poucos. Quase sempre esculturas ou objetos de uso obscuro vindos de algum lugar bem distante.

O mar! – me lembro – preciso descobrir se fica longe, se posso ir a pé até a praia e andar sozinha, andar até saber o que lalande.

Ao descobrir que falava sozinho, Otávio se cala. Afasta o antebraço, olha o pulso e dá um salto.
Preciso dar uma passadinha no trabalho. Depois teremos o final de semana inteirinho pra gente. Penha me fará companhia, ele garante, caso eu queira descer, caminhar, ver a lagoa de perto.
Pede licença e desaparece no corredor.

Sinto-me infinitamente mais à vontade sem ninguém por perto. As coisas começam a ganhar sentido. Preciso de clama para senti-las, para saber o que significam, se gosto ou não delas. É tão demorado acostumar-se com o novo, que parece não haver tempo suficiente para isso. Em vez de viver, verbo irresponsável demais para tanta exigência, a gente deveria dizer estou me dedicando, como em um trabalho difícil, desses que exigem cada uma das horas do dia.

Otávio ressurge. Trocou de roupa e penteou os cabelos. Chama Penha e distribui ordens enquanto apanha chaves. Pára um segundo, olha para mim e pergunta se preciso de alguma coisa. Faço um não com a cabeça. Ele diz que volta para o almoço e bate a porta. O som abafado da madeira devolve o silêncio de antes, mas agora um perfume almiscarado flutua no ar.

Onde fica o Caju? Entro na cozinha, assustando Penha. Dá para ir caminhando?

Dá não, responde Penha. É lá para os lados de São Cristóvão.

Conto o dinheiro entre as páginas de um livro. Mostro a quantia a Penha, perguntando se é suficiente para o táxi. Ela diz que eu não deveria ir sozinha.

A cidade é perigosa, você não conhece nada. Seu Otávio não vai gostar.

Saio depressa, Penha me segue até o elevador, ameaça ligar para o “seu pai”, enquanto exclama por santos desconhecidos para mim. Aperto o botão do térreo e, me certificando de que a pedra está comigo, prometo estar em casa à hora do almoço.

Parte do caminho é bonita. Margeia a lagoa, tomada por remadores e pessoas que se exercitam como se o dia fosse feriado. O táxi entra por um túnel tão longo que é mais fácil adivinhar o fim do mundo do que o céu azul esperando na saída. Depois, são viadutos que espicham línguas em cima dos edifícios, fazendo o carro voar sobre a cidade. Mais adiante, um cinza de subúrbio, casas baixas, ruas estreitas.

Na vitrina de uma loja, a coroa de flores anuncia que estamos chegando. Um muro alto passa a acompanhar o carro. A asa de um anjo espia o movimento do lado de fora. Mais adiante, uma cruz. O táxi diminui a marcha e estaciona.

O comunal Israelita é logo ali, diz o motorista.

Rente à calçada, a parede prossegue, bloqueando a visão. Deixo que meus dedos rocem a superfície áspera do tijolo até ferir a pele. Sob a tinta barata, posso sentir o frio, antigo como a terra, revelando a alma de todos os muros. Tenho vontade de encostar minha testa ali, deixar que a indiferença dos séculos acalme as passadas rápidas do meu coração, que quer sempre outro, ou ser finalmente ele mesmo, e bate apenas para me lembrar que está à espera de uma decisão.

A opacidade da muralha é finalmente interrompida pelo gradeado de um portão. Em cada uma das folhas, finas lanças de ferro apontam o firmamento. No meio do caminho abrem mão de sua verticalidade para formar o desenho de duas estrelas de seis pontas, e voltam à retidão anterior até espetar o céu. Detrás delas, filas de lajes compridas e estreitas como camas de solteiro estampam o terreno de norte a sul.

Bem no meio, organizando o dormitório, a rua principal, feita de pedras portuguesas, alterna ondas pretas e ondas brancas. Um alpendre azul celeste a recobre. Os pilares se erguem, à esquerda e à direita, encimando um telhado pontudo. Lembram as casinhas que se desenha na infância. Feitas apenas de contornos, ocas por dentro. No alto, uma tumbérgia agarra-se firme ao madeirame. É muito jovem para entender os motivos de estar ali, mas seu destino de sombra e sombrinha está escrito.

O branco repetido das tumbas não ajuda a decidir quanto à direção a ser tomada. Escolho a fila mais próxima. Começar pelo meio pode não ser muito racional, mas depois de investigar três alas de retângulos idênticos e ler as inscrições em hebraico descubro que há uma organização por datas, ou então muita gente morreu em 1968.

Quanto mais avanço, mais o oco do silêncio se fecha, amplificando o som das solas dos sapatos a esmigalhar a terra. O calor também cresce, e sinto que estou perdida. Paro, escuto com mais atenção. Nada se mexe, salvo uma abelha perturbada pelo sol. Espero, imóvel, até meus ouvidos alcançarem o som abafado de uma batida repetir-se muito longe de onde estou.

Volto sobre minhas pegadas e depois de dobrar esquinas e errar o caminho, avisto um pedreiro ajoelhado junto a uma cova aberta. Faço aproximação cautelosa, evitando que ele se assuste com a minha presença. O homem se vira, deixando ao meio um golpe de picareta. Cumprimento-o.
Ele responde, mantendo o toco de charuto no canto da boca, depois estica o queixo pra o vazio aberto no chão e acrescenta. Não tenha medo. É só um trabalho de reforma. Sorrio, tentando mostrar confiança, e pergunto onde fica o túmulo que procuro. O homem aponta uma pá suja de cimento para a direção de onde vim.

Siga por ali até a rua G. É o oitavo, à esquerda.

Agradeço, aliviada, e, ao virar as costas, escuto ele perguntar:

Você é da família, moça?

Volto-me, a língua já alojada nos dentes da frente, o sopro do n pronto para iniciar o não, quando uma idéia rodopia no fundo da resposta, adiando-a.

Não, não era filha, sobrinha, prima. Nenhum laço de genealogia me atava a ela, mas a que família eu podia afirmar pertencer? Não tivera um pai até hoje e, quando ele aparece, é minha mãe que parte: um arranjo simples demais para a instituição familiar; ofende as leis mais elementares que a regulam. Nada em minha vida afiançara as relações de parentesco. Se eu quisesse uma família, tinha que criá-la eu mesma. Fazer uma seleção particular de pessoas e inventar uma afinidade que nos unisse. Um desespero de compreensão, por exemplo, no lugar do sangue. Então sim, poderia afirmar, gritar ao coveiro, que Clarice me era mais familiar do que qualquer outro ser no mundo. Com ela eu tinha finalmente uma coisa parecida. Uma coisa fundamental. Ela era alguém que me olhava nos olhos, e nesse olhar estava o segredo que compartilhávamos. Um segredo que só existe pela cumplicidade de sabê-lo, como todos os segredos da família. Ela afastava de mim o temor de enlouquecer só porque aquilo que eu sentia ainda não tinha nome. E me encorajava a ser o que eu era, a gostar de sê-lo. Assumia a minha estranheza, apontava-me a beleza que havia nela e, sobretudo, cercava-a de dignidade. O resto do mundo que ficasse atônito se eu era um daqueles que matam para florescer.

Antes que eu pudesse dizer um sim vitorioso, sibilante de convicção, o homem já tinha retomado sua tarefa, indiferente como um pedreiro que ergue tumbas debaixo do sol.

Volto devagar à rua principal. Dobro a esquina indicada e meus olhos avançam sobre o mármore que se ergue da terra como pombo de peito estufado. Um pombo cubista. Na lápide, as letras foram pintadas à mão sobre o molde talhado em pedra. Na linha superior, o nome em hebraico e a estrela de David. Uma única data, 9-12-1977, sepulta para sempre o mistério do ano do seu nascimento.

Clarice Lispector, leio. Clarice Lispector, leio outra vez, repetindo, repetindo, até meus olhos acreditarem.

Um gosto salgado me invade a boca. As lágrimas enchem os canais escondidos sob o rosto, mas não escorrem. Seguro-as para me fortalecer no sofrimento. Quero o choro apenas quando o mal for maior que a compreensão. E aqui, há encontro. Estou diante do túmulo de Clarice Lispector e essa é a minha história. Tinha ido até ali para vivê-la, para fazer-me do que gosto, ceder à mínima manifestação do meu ser difícil, áspero, desesperado. Sobretudo, tinha ido ali para me filiar.

Tiro a pedra do bolso e deposito-a na superfície respingada de luz. Um ritual de que não conheço ao certo o sentido, mas que tomo de empréstimo para iniciar a tradição da minha linhagem.

O meio-dia varreu toda possibilidade de sombras. Acaricio o leito branco. A poeira se gruda em meus dedos, lembrando-me do eterno pó que somos e seremos. O corpo dói de celebração. Atrás de mim ouço um ruído. Não tenho pressa. Sei que ao dar as costas verei Otávio, as mãos nos bolsos, entre furioso e aliviado, pensando no que fazer comigo. Há, finalmente, coisas para as quais ele não tem um nome. Mas pode estar perto, muito perto, de conhecer a ordem dos corações selvagens.

Fonte:
In: Vésperas. Rocco, 2002.
http://www.claricelispector.com.br/artigos_adrianaLunardiVesperas.aspx

terça-feira, 1 de abril de 2008

Tertúlia - Encontros de Literatura no SESC Pinheiros

O projeto teve início no dia 20 de março e vai até 18 de junho de 2008, no SESC Pinheiros.
A cada encontro será feita a leitura e interpretação de texto de um reconhecido escritor, onde o público é também convidado a ler. Orientação da professora Susanna Ventura e interpretação do ator Clóvis Torres. A cada encontro um convidado, dentre eles nomes como Fabrício Carpinejar, Ana Miranda, Lourenço Mutarelli, Contardo Calligaris, Juliano Pessanha e Lygia Fagundes Telles.

Próximos encontros, sempre as 20hs:


"O homem desativado" - João Gilberto Noll por Fabrício Carpinejar
03/04 - SESC Pinheiros

"Anjos e Quimeras - Procura-se um editor!" - Augusto dos Anjos por Ana Miranda
10/04 - SESC Pinheiros

"O homem invisível" - William Burroughs por Lourenço Mutarelli
17/04 - SESC Pinheiros

"O prazer da ficção" - Luiz Alfredo Garcia-Roza por Contardo Calligaris
24/04 - SESC Pinheiros

"Kafka: poeta em mundo sem poema" - Franz Kafka por Juliano Garcia Pessanha
08/05 - SESC Pinheiros

"Indecifráveis olhos de ressaca" - Machado de Assis por Lygia Fagundes Telles
14/05 - SESC Pinheiros

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O SESC Pinheiros fica localizado na

rua Paes Leme, 195 Pinheiros São Paulo - SP

Inscrições no balcão da Sala de Leitura - 2º andar.



Andreia Lima - Assessoria de Imprensa, SESC Pinheiros
Tels.: (11) 3095.9421 ou 3095.9425
http://www.sescsp.org.br/


Fontes
E- mail enviado por Douglas Lara
Acontece em Sorocaba - Últimas Notícias
http://www.sorocaba.com.br/acontece