quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Napoleão Valadares (Tico Tico Preto)



Cinco da manhã. Pedro saía para o trabalho e, ao abrir a porta, um embrulho no chão. Criança recém nascida, enrolada nuns panos. Agora essa! As mães deixando as crias em portas alheias. Na hora de fazer, todo mundo está pronto. Vão parindo e abandonando os inocentes.

Com aquela filharada, vinha lhe agora mais uma boca para comer. Do jeito que a vida andava difícil... Por que não deixavam na porta de um rico? Ali perto morava Dr. Santana, advogado, cheio da grana, folgado. Dr. Santana nem precisava se levantar a uma hora daquelas, só saindo para o escritório mais tarde. Ele, Pedro, é que tinha de pular da cama com o escuro, correr uma água na cara e se mandar para a obra.

Se chamasse Madalena, ela ia querer ficar com a criança. Não chamaria. Ia era levar aquele embrulho e entregar ao juiz. Ele que arranjasse um jeito de resolver o problema. Mas àquela hora não ia encontrar juiz nenhum. O juiz, como Dr. Santana, só se levantaria mais tarde.

Pegou aquilo com cuidado, atravessou a rua, amaciou o passo, puxou o trinco do portãozinho e colocou na porta de Dr. Santana. Um aperto no coração e uma vontade de retomar a criança e levá la para casa. Mas teve medo de ser visto ali na porta alheia. Fazendo o quê? E saiu apressado, segurando se para não correr.

Na obra, os pensamentos. Se puseram em sua porta, tinha que tomar conta. Teria agido certo, recusando se a dar abrigo à criança, colocando a na porta de outro, negando a caridade?

– Seu Pedro, a massa tá pronta. O senhor hoje tá pensativo... – despertou-o Manuel, o servente.

– É... Não. Pensando é mesmo nisso aqui. Essa obra...

Que obra que nada! Teve que empurrar a criança para outra porta, negando a caridade. Tinha ouvido Frei Plequelmo dizer num sermão que o sujeito pode ser tudo neste mundo, mas se for caridoso, vai para o céu. Parece que era o caso de Dimas, que pintou o sete e depois ainda ganhou o reino de Deus.

– Seu Pedro, o senhor não disse que ia começar o reboco lá pela frente? Tá no mundo da lua hoje...

– Sim, Manuel, é pela frente. Distração minha.

Não podia criar mais ninguém. Bastavam lhe os seus. A vida custando o olho da cara. Chegava de despesas. Mais uma criança em casa significaria repartir o que os filhos comiam.

Em casa, Madalena já tinha a novidade. Veio toda repórter com as canjicas de fora:

– Pedro, não te conto a maior: deixaram um nenenzinho essa noite na porta de Dr. Santana. Uma gracinha! D. Terezinha mais Dr. Santana tão encantados com ele. Só vendo...

– É homem?

– É. Você já sabia?

– De quê?

– Do nenem, uai.

– Eu? Eu não. Por quê?

– Está perguntando se é homem, como se já soubesse...

– Não. Sabendo agora.

Dr. Santana, mais que depressa, deu ao menino o nome de Otávio, em homenagem ao civil dos Dezoito do Forte. Otávio, crioulinho bem nutrido em casa de branco, novo encanto de D. Terezinha, que já tinha os filhos grandes.

Na porta de outro. Sujeito fraco não pode se meter a caridoso. Fazer caridade para sacrificar os seus? Tinha agido certo. Dr. Santana era rico. Ele que criasse.

Acabava de largar o prato, quando o telefone tocou.

– Alô. É Pedro que está falando?

– Ele mesmo.

– Pedro, aqui é a Valquíria.

Gelou se. Valquíria, um caso antigo e complicado. Depois de umas brigas, ela sumiu. Fazia meses. Agora vinha telefonar para casa, o que nunca tinha feito.

– Alô...

– Alô, Pedro. Valquíria. Estou telefonando para avisar. Olha, não quero criar problema pra você não. Escuta. Só pra avisar que deixei nosso filho em sua porta essa noite. Toma conta. Você sabe, eu não posso criar. E, pra deixar numa porta, achei melhor deixar na sua, que é pai. Pode ficar tranqüilo, que não vou complicar sua vida não. Estou me mandando pro Paraná. Fica com Deus e olha ele.

Na porta de outro. Tinha botado o menino lá, sem saber que era seu filho. Se soubesse, não botaria. Co¬mo não sabia, estava certo. Estava? A situação pra lá de feia, com essa carestia dos diabos. Dificuldades e dificuldades. E uma criança dá despesa que não é brinquedo.

Lembrava se do tempo de menino, quando caçava ninhos. Por vezes, achava filhote de pássaro preto em ninho de tico tico. A fêmea preta botando em ninho alheio. O velho Procópio ensinava: "É, menino, a passa-preta é uma sem vergonha, e a tica tica é uma besta que cria o pretinho." Sem vergonheza... A natureza não sabe tudo? Não seria porque a comida fica mais escassa para o pássaro preto? Pobre criado em casa de rico pode estar apartado da idéia de fome. Otávio crescia gordo. Um pássaro preto em ninho de tico tico. Tico-tico preto. Deus o abençoasse.

Fontes:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/
Imagem =
http://flickr.com

Napoleão Valadares e a Formação Poética em Delírio Lírico

Vencedor do Concurso de Contos Cyro dos Anjos, promovido pela Academia Montesclarense de Letras, autor de muitos livros, Napoleão Valadares, urucuiano da Barra da Vaca, hoje próspera cidade de Arinos (MG), cenário de um conto de Guimarães Rosa

Nestes tempos de pós-modernidade, de poesia neobarroca, de poema verbivocovisual e outras designações que têm norteado certa poesia praticada entre nós, o surgimento de um livro de poesia que explora a linguagem dos signos e dos símbolos, concomitantemente palatáveis à compreensão geral, é motivo suficiente para a manifestação de uma resenha ou de um artigo em letra de imprensa.

Vamos, pois, ao livro. Trata-se de Delírio Lírico, poema longo, em trinta e quatro cantos, de Napoleão Valadares, editado por Edições Galo Branco, Rio de Janeiro, 2008, e lançado em Brasília em novembro desse ano. O poema é todo construído em decassílabos brancos, sem estrofes, cujos cantos têm 49 versos cada um, exceto os de números V, VI e VII que se estendem a 80, num total de 1.759 versos. O assunto é tratado em ordem cronológica e abrange mais de 30 séculos de história, que se inicia com a Guerra de Tróia (séc. XIII a.C.), passando por Sócrates, Platão, Aristóteles, até chegar praticamente aos nossos dias.

Napoleão Valadares, na sua construção poética, optou pela narrativa épica em que, com mestria e bom humor, funde a linguagem nobre, clássica, à linguagem popular, atual, numa tirada muito interessante e jamais vista em nenhum poeta brasileiro de qualquer escola. Mas o que salta aos olhos e aos sentidos é a correção gramatical, o domínio da língua, a clareza de expressão, a concisão. Além, é claro, do senso de humor nas “pilhérias” e “invenções” que o Autor derrama pelo texto afora. Sirva-se de exemplo o Canto XXVI, em que o narrador, em diálogo com Camões, ouve do mestre de Os Lusíadas a seguinte confissão: “Amor é fogo”, numa clara alusão ao célebre soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, do bardo português.

Por força da circunstância de leitura, há que se fazer agora uma referência enfática: ao longo do poema são praticados os mais variados tipos de verso decassilábico, que vão dos mais comuns (heróico e sáfico) aos de maior raridade. Por exemplo: a gaita galega (também chamada moinheira), decassílabo que apresenta sílabas tônicas nas posições 4, 7 e 10; e o que Anderson Braga Horta chama de “decassílabo átono”, aquele cuja décima sílaba abre mão da tônica para criar um novo tipo de enjambement — o que desafia a linguagem poética em benefício da fluência rítmica da prosa. Deve-se acrescentar que, de rara apresentação nos poemas latinos, esse tipo de verso aparece, no entanto, algumas vezes em letras de música. (Quem ama a poesia e conhece um pouco os seus mistérios, sabe que a figura da métrica no poema não é, como na música, uma regência implacável sobre o ritmo. Mas sabe, sobretudo, que é o ritmo que dá beleza à música, bem como ao poema. Fora disso, a poesia escrita sob os parâmetros do que foi mencionado no primeiro parágrafo deste texto corre sério risco: pode cair no vazio absoluto ou no descrédito normativo da língua. E aqui cabe um provérbio chinês: “O tolo corre onde o sábio não andaria.”)

A temática simples, porém inusitada de Napoleão Valadares, exposta por intermédio de um personagem delirante, vítima de febre intermitente, abrange o conhecimento universal da política, da filosofia, da cultura, das artes; enfim, da história da humanidade, em seus mais variados arcabouços lingüísticos e semânticos. E apresenta — et pour cause — um conhecimento profundo das coisas e das mazelas do mundo. A exemplo de Machado de Assis e Francisco Carvalho — para citar somente dois escritores que nunca saíram de sua terra natal e conhecem cada canto do mundo, cada rua e cada pedra de muitas cidades, sem ter viajado para nenhuma delas —, Napoleão Valadares vai descrevendo vilas, urbes, países, continentes inteiros, só pela leitura sistemática e pelo estudo regular. Seu texto é uma vitória sobre o turismo funcional e dirigido...

Outro registro que vale a pena ser consignado é com relação à simetria de alguns grupos de versos encontrados em três cantos do poema. A saber: no Canto XXV, que trata do Descobrimento da América, há, além da simetria, um reducionismo consciente do verso “Colombo olhando o azul” para, dez versos abaixo, “Olhando o azul” e, nos dez seguintes, simplesmente “O azul”. No Canto XXVIII — sobre Shakespeare — ocorre semelhante simetria do número oito entre os versos “Hamlet, o Príncipe da Dinamarca”, “Depois, Otelo, o Mouro de Veneza” e “rapazes muito diferentes delas”. Finalmente, no Canto XXXII — num encontro com Dostoievski e Tolstoi — pode ser facilmente encontrada a relação com o número sete entre os versos “porque o primeiro, condenado à morte”, “O outro, mundana mocidade, estróina” e, finalmente, “os meandros da alma humana conhecia”. Mas esta numerologia deverá ser tratada em outro estudo.

Napoleão Valadares, com este livro, apresenta um poema novo e singular, mas não pretende inventar ou reinventar estilo nem fundar escola. Quer tão-somente fazer partícipe o leitor dos delírios da febre, nesta grande viagem pelo mundo e pela história da humanidade, empreitada que realiza, com percuciente habilidade, por intermédio de uma linguagem poética fluente e agradável.

Ler “Delírio Lírico” é uma forma recreativa de reestudar a história. Descrevendo poeticamente um delírio de febre ele conclui, no Conto I: E foi nesse delírio que saltei / do Vale para o Mar Egeu. Desci / à praia, caminhei e fui a Tróia, / no extremo noroeste da Anatólia. / Trinta e três séculos já passados, / e eu, tonto, ali na capital de Príamo, / via o cerco dos gregos, via Ulisses / com mil astúcias, via Agamenon / raptando a escrava do guerreiro Aquiles, / como se não bastasse a justa cólera / de Menelau, que fez se unirem todos / os príncipes da Grécia belicosa.

Bem mais adiante, ele percorre as margens do rio Tigre: Vi-me no Tigre, num lugar bem antes / da sua confluência com o Eufrates, / e fui descendo. Inesperadamente, / topei de testa com o grande rei / Alexandre, de Pela, aquele moço / da Macedônia, filho de Felipe, / que tinha sido aluno de Aristóteles, / interessando-se pela política, / filosofia, medicina e tudo / o que viesse do mestre de Estagira.

Delírio Lírico é leitura obrigatória para todos aqueles que amam a tradição e aceitam o novo, pois essa dicotomia geralmente possibilita maior compreensão e fruição da Arte, seja ela musical, pictórica ou literária.
_______________________________________

Fontes:
João Carlos Taveira. http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/
Petrônio Braz. http://www.gazetanortemineira.com.br/

Napoleão Valadares (1946)

NAPOLEÃO VALADARES, filho de João Valadares Carneiro e de Maria Cordeiro Valadares, nasceu em Arinos (MG), a 6 de fevereiro de 1946. Depois de freqüentar escolas rurais, estudou no Grupo Escolar Major Saint-Clair, em sua cidade natal. Mudou-se com a família para Formosa (GO), no início de 1958, completando o curso primário na Escola Paroquial Nossa Senhora da Conceição, que funcionava no Ginásio Arquidiocesano do Planalto. De 1962 a 1965, fez o curso ginasial no Ginásio São João, da cidade são-franciscana de Januária (MG). Concluído o curso ginasial, partiu para Brasília, cursando o científico no Centro de Ensino Médio Elefante Branco. Ingressou na UnB (Universidade de Brasília), onde fez o curso de Direito, colando grau em 20 de dezembro de 1972.

Ainda quando universitário, fundou, com alguns colegas, o periódico “Correio do Vale”, que circulou nas cidades de Arinos e Buritis, de maio de 1971 a dezembro de 1972. Um dos fundadores e presidente da Associação dos Urucuianos em Brasília, que fez editar o “Jornal do Urucuia”, de junho de 1984 a abril de 1986. Presidiu também a Associação Nacional de Escritores.

Exerceu os cargos de Assistente Jurídico da União, Diretor de Secretaria da Justiça Federal, Assessor de Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e Advogado da União.

Pertence à Associação Nacional de Escritores, ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, à Academia de Letras do Brasil, à Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco.

Participa da Antologia de Contos Alberto Renart, 1994; Cronistas de Brasília, 1995; De Mãos Dadas, 1995; O Prazer da Leitura, 1997; Poesia de Brasília, 1998; Poetas Mineiros em Brasília, 2002; Antologia Literária – Aclécia, 2003; Antologia do Conto Brasiliense, 2004; Chuva de Poesias, Cores e Notas, 2005; Todas as Gerações, 2006.

Autor dos livros: Os Personagens de Grande Sertão: Veredas, 1982; Planalto em Poesia (organização e participação), 1987; Contos Correntes (organização e participação), 1988; Urucuia (romance), 1990; Dicionário de Escritores de Brasília, 1994; Resposta às Cartas Chilenas, 1998; De Gregório a Drummond (organização), 1999; Remanso (romance), 2000; Pensamentos da Literatura Brasileira, 2002; Chuvisco, 2003; Antologia de Haicais Brasileiros (organização e participação), 2003; Descendentes de Pedro Cordeiro, 2004; Campos Gerais, 2004; Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal – Patronos (organização e participação), 2007; Passagens da Minha Aldeia (crônicas), 2007; Delírio Lírico (poema), 2008.

Premiado no Concurso Petrobrás de Literatura, no Concurso de Contos Cidade de Cataguases, no Concurso de Contos Cyro dos Anjos (Academia Montesclarense de Letras), entre outros.

Fonte:
Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco.
http://www.aclecia.art.br/

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Célia Dias (Nas Trilhas do Sol)



Nas trilhas do sol
Rebusco as canções
Presentes do tempo
Que brotam na gente
E se espalham no vento...

Nas trilhas do tempo
Rebusco as pessoas
Presentes do sol
Que brilham na gente
Em qualquer estação...

Nas trilhas do sol e do tempo
Rebusco outros elos
Entre o céu e o momento de um lugar...
-----------

Edgar Allan Poe (Coração Denunciador)



É verdade tenho sido nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno eu ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente posso contar toda a história.

É impossível dizer como a idéia me penetrou primeiro no cérebro, uma vez concebida, porém, ela perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos parecia com o de um abutre... um olho de cor azul pálida, que sofria de catarata . Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre mim; e assim, pouco a pouco, bem lentamente , fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para sempre.

Ora, aí é que estava o problema. Imaginais que sou louco. Os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, ter-me visto. Deveríeis ter visto como procedi cautelosamente, com que prudência, com que previsão, com que dissimulação, lancei mão à obra!

Eu nunca fora mais bondoso para com o velho do que durante a semana inteira, antes de matá-lo. todas as noites, por volta da meia-noite, eu girava o trinco da porta de seu quarto e abria-a... oh! Bem devagarinho! E depois, quando a abertura era suficientemente para conter minha cabeça, eu introduzia uma lanterna com tampa, toda velada, bem velada, de modo que nenhuma luz se projetasse para fora, e em seguida enfiava a cabeça. Oh! Teríeis rido ao ver como enfiava habilmente! Movia-a lentamente, muito, muito lentamente, a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para colocar a cabeça inteira além da abertura, até podê-lo ver deitado na cama. Ah! Um louco seria precavido assim? E depois, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a tampa da lanterna cautelosamente... oh! Bem cautelosamente!... cautelosamente... por que a dobradiça rangia... abria-a só até permitir que apenas um débil raio de luz caísse no olho de abutre. E isto eu fiz durante sete longas noites... sempre precisamente à meia-noite... e sempre encontrei o olho fechado. Assim, era impossível fazer minha tarefa, porque não era o velho que me perturbava, mas seu olho diabólico. E todas as manhãs, sem temor, chamando-o pelo nome com ternura e perguntando como havia passado a noite. Por aí vedes que ele precisaria ser um velho muito perspicaz para suspeitar que todas as noites, justamente às doze horas, eu o espreitava, enquanto dormia.

Na oitava noite, fui mais cauteloso do que de hábito, ao abrir a porta. O ponteiro dos minutos de um relógio mover-se-ia mais rapidamente do que meus dedos. Jamais, antes daquela noite, sentira eu tanto a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia conter meus sentimentos de triunfo. Pensar que ali estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ele nem sequer sonhava com meus atos ou pensamentos secretos... Ri com gosto, entre dentes, e essa idéia; e talvez ele me tivesse ouvido, porque se moveu de súbito na cama, como se assustado. Pensava talvez que recuei? Não! O quarto dele estava escuro como piche, espesso de sombra, pois os postigos se achavam hermeticamente fechado, por medo aos ladrões. E eu sabia, assim, que ele não podia ver a abertura da porta; continuei a avançar, cada vez mais, cada vez mais.

Já estava com a cabeça dentro do quarto e a ponto de abrir a lanterna, quando meu polegar deslizou sobre o fecho da porta e o velho saltou na cama gritando: "Quem está aí?"

Fiquei completamente silencioso e nada disse. Durante uma hora inteira não movi um músculo e, por todo esse tempo, não o ouvi deitar-se de novo: ele ainda estava sentado na cama, à escura; justamente com eu fizera, noite após noite, ouvindo a ronda da morte próxima.

Depois, ouvi um leve gemido e notei que era um gemido de terror mortal. Não era um gemido de dor ou pesar, oh não! Era o som grave e sufocado. Bem conhecia esse som. Muitas noites, ao soar a meia-noite, quando o mundo inteiro dormia, ele irrompia de meu próprio peito, aguçando, com o seu eco espantoso, os terrores que me aturdiam. Disse que bem o conhecia. Conheci também o eu o velho sentia e tive pena dele, embora abafasse o riso no coração. Eu sabia que ele ficara acordado, desde o primeiro leve rumor, quando se voltar na cama. Daí por diante, seus temores foram crescendo. Tentara imaginá-los sem motivo mas não fora possível. Dissera a si mesmo; "É só o vento na chaminé", ou "é só um rato andando pelo chão", ou "foi apenas um grilo que cantou um instante só": sim, ele estivera tentando animar-se com essas suposições, mas tudo fora em vão. Tudo em vão, porque a Morte, ao aproximar-se dele, projetava sua sombra negra para frente, envolvendo nela a vítima. E era a influência tétrica dessa sombra não percebia que o levava a sentir - embora não visse, nem ouvisse - a sentir a presença de minha cabeça dentro do quarto.

Depois de esperar longo tempo, com muita paciência, sem ouvi-lo deitar-se, resolvi abrir um pouco, muito, muito pouco, a tampa da lanterna. Abri-a, podeis imaginar o quão furtivamente; até que, por fim, um raio de luz apenas, tênue como o fio de uma teia de aranha, passou pela fenda e caiu sobre o olho de abutre.

Ele estava aberto; todo, plenamente aberto. E, ao contemplá-lo, minha fúria cresceu. Vi-o, com perfeita clareza; todo de um azul desbotado, com uma horrível película a cobri-lo, o que me enregelava até a medula dos ossos. Mas não podia ver nada mais da face, ou do corpo do velho, pois dirigira a luz como por instinto, sobre o maldito lugar.

Ora, não vos disse que apenas é superacuidade dos sentidos aquilo que erradamente julgais loucura? Repito, pois, que chegou a meus ouvidos em som baixo, monótono, rápido, como o de um relógio, quando abafado com algodão. Igualmente eu bem sabia que som era. Era o bater do coração do velho. Ele me aumentava a fúria, como o bater um tambor estimula a coragem do soldado.

Ainda aí, porém, refreei-me e fiquei quieto. Tentei manter tão fixamente quanto pude a réstia de luz sobre o olho do velho. Entretanto, o infernal tam-tam do coração aumentava. A cada instante ficava mais alto, mais rápido! Cada vez mais alto, repito, a cada momento! Prestai-me bem atenção? Disse-vos que sou nervoso: sou. E então, àquela hora morta da noite, tão estranho ruído excitou em mim um terror incontrolável. Contudo, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto. Mas o bater era cada vez mais alto. Julguei que o coração ia rebentar. E, depois, nova angústia me aferrou: o rumor poderia ser ouvido por um vizinho! A hora do velho tinha chegado! Com um alto berro, escancarei a lanterna e pulei para dentro do quarto. Ele guinchou mais uma vez... uma vez só. Num instante arrastei-o para o soalho e virei a pesada cama sobre ele. Então sorri alegremente por ver a façanha realizada. Mas, durante muitos minutos, o coração continuou a bater, com som surdo. Isto, porém, não me vexava. Não seria ouvido através da parede. Afinal cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, era um pedra, uma pedra morta. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a mantive durante muitos minutos. Não havia pulsação. Estava petrificado. Seu olho não me perturbaria.

Se ainda pensais que sou louco, não mais pensareis, quando eu descrever as sábias precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite avançava e eu trabalhava apressadamente, porém em silêncio. Em primeiro lugar, esquartejei o corpo. Cortei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei depois três pranchas do soalho e coloquei tudo entre os vãos. Depois recoloquei as tábuas, com tamanha habilidade e perfeição, que nenhum olhar humano, nem mesmo o dele, poderia distinguir qualquer coisa suspeita. Nada havia a lavar, nem mancha de espécie alguma, nem marca de sangue. Fora demasiado prudente no evitá-las. Uma tina tinha recolhido tudo... ah! Ah! Ah! Terminadas todas essas tarefas, eram quatro horas. Mas ainda estava escuro, como se fosse meia-noite. Quando o sino soou a hora, bateram a porta da rua. Desci para abri-la, de coração ligeiro,... pois que tinha eu agora a temer? Entraram três homens que se apresentaram , com perfeita mansidão, com soldados de polícia. Fora ouvido um grito por um vizinho, durante a noite. Despertara-se a suspeita de um crime. Tinha-se formulado uma denúncia à polícia e eles, soldados , tinham sido mandados para investigar.

Sorri... pois que tinha eu a temer? Dei as boas vindas aos cavalheiros. O grito, disse eu, fora meu mesmo, em sonhos. O velho, relatei, estava ausente, no interior. Levei meus visitantes a percorrer toda a casa. Pedi que dessem busca... completa. Conduzi-os, afinal, ao quarto dele. Mostrei-lhe suas riquezas, em segurança inatas. No entusiasmo de minha confiança, trouxe cadeiras para o quarto e mostrei desejos de que eles ficassem ali, para descansar de suas fadigas, enquanto eu mesmo, na desenfreada audácia do meu perfeito triunfo, colocava minha própria cadeira , precisamente sobre o lugar onde repousava o cadáver da vítima.

Os soldados ficaram satisfeitos. Minhas maneiras os haviam convencido. Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia cordialmente, conversavam coisas familiares. Mas, dentro em pouco, senti que ia empalidecendo e desejei que eles se retirassem. Minha cabeça me doía e parecia-me ouvir zumbidos nos ouvidos; eles, porém, continuavam sentados e continuavam a conversar. O zumbido tornou-se mais distinto. Continuou e tornou-se ainda mais distinto: eu falava com mais desenfreio, para dominar a sensação: ela, porém, continuava a aumentava sua perceptibilidade, até que, afinal, descobri que o barulho não era dentro dos meus ouvidos.

É claro que então minha palidez aumentou sobreposse. Mas eu falava ainda mais fluentemente e num tom de voz muito elevada. Não obstante, o som se avolumava... E que podia fazer? Era um som grave, monótono, rápido... muito semelhante ao de um relógio envolto em algodão. Respirava com dificuldade... E no entanto, os soldados não o ouviram. Falei mais depressa ainda, com mais veemência. Mas o som aumentava constantemente. Levantei-me e fiz perguntas a respeito de ninharias, num tom bastante elevado, e com violenta gesticulação, mas o som constantemente aumentava. Por que não se iam embora? Andava pelo quarto acima e abaixo, com largas e pesadas passadas, como se excitado até a fúria pela vigilância dos homens... mas o som aumentava constante. Oh! Deus! Que poderia eu fazer? Espumei... enraiveci-me... praguejei! Fiz girar a cadeira, sobre a qual estivera sentado, e arrastei-a sobre as tábuas, mas o barulho se elevava acima de tudo e continuamente aumentava. Tornou-se então mais alto... mais alto... mais alto! E os homens continuavam ainda a passear, satisfeitos e sorriam. Seria possível que eles não ouvissem? Deus Todo Poderoso!... não, não! Eles suspeitavam!.. Eles sabiam!... Estavam zombando do meu horror!... Isto pensava eu e ainda penso. Outra coisa qualquer, porém, era melhor que essa agonia! Qualquer coisa era mais tolerável que essa irrisão! Não podia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Sentia que devia gritar ou morrer!... E agora... de novo! Escutai! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto! Mais alto...

Visões! - trovejei - Não finjam mais! Confesso o crime!... Arranquem as pranchas!.. aqui, aqui! ... ouçam o bater do seu horrendo coração!

Fonte:
POE, Edgar Allan. Contos de Mistério e terror.

Machado de Assis (Crônica: O jornal e o livro)



AO SR. MANUEL ANTONIO DE ALMEIDA

O espírito humano, como o heliotrópio, olha sempre de face um sol que o atrai, e para o qual ele caminha sem cessar: — é a perfectibilidade.

A evidência deste princípio, ou antes deste fato, foi claramente demonstrada num livro de ouro, que tornou-se o Evangelho de uma religião. Serei eu, derradeiro dos levitas da nova arca, que me aba­lance a falar sobre tão debatido e profundo assunto?

Seria loucura tentá-lo. De resto, eu manifestei a minha profissão de fé nuns versos singelos, mas não frios de entusiasmo, nascidos de uma discussão. Mas então tratava-se do progresso na sua expres­são genérica. Desta vez limito-me a traçar algumas idéias sobre uma especialidade, um sintoma do adiantamento moral da humanidade.

Sou dos menos inteligentes adeptos da nova crença, mas tenho consciência que dos de mais profunda convicção. Sou filho deste século, em cujas veias ferve o licor da esperança. Minhas tendências, minhas aspirações, são as aspirações e as tendências da mocidade; e a mocidade é o fogo, a confiança, o futuro, o progresso. A nós, guebros modernos do fogo intelectual, na expressão de Lamartine, não importa este ou aquele brado de descrença e desânimo: as sedi­ções só se realizam contra os princípios, nunca contra as variedades.

Não há contradizê-lo. Por qualquer face que se olhe o espírito humano descobre-se a reflexão viva de um sol ignoto. Tem-se reco­nhecido que há homens para quem a evidência das teorias é uma quimera; felizmente temos a evidência dos fatos, diante da qual os São Tomés do século têm de curvar a cabeça.

É a época das regenerações. A Revolução Francesa, o estrondo maior dos tempos europeus, na bela expressão do poeta de Jocelyn, foi o passo da humanidade para entrar neste século. O pórtico era gigantesco, e era necessário um passo de gigante para entrá-lo. Ora, esta explosão do pensamento humano concentrado na rainha da Europa não é um sintoma de progresso? O que era a Revolução Francesa senão a idéia que se fazia república, o espírito humano que tomava a toga democrática pelas mãos do povo mais democrá­tico do mundo? Se o pensamento se fazia liberal é que tomava a sua verdadeira face. A humanidade, antes de tudo, é republicana.

Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade, como o vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do pensamento humano? Não; nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático, como ele. Foi a nova cratera do vulcão.

Tratemos do jornal, esta alavanca que Arquimedes pedia para abalar o mundo, e que o espírito humano, este Arquimedes de todos os séculos, encontrou.

O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?

A humanidade desde os primeiros tempos tem caminhado em busca de um meio de propagar e perpetuar a idéia. Uma pedra convenientemente levantada era o símbolo representativo de um pensamento. A geração que nascia vinha ali contemplar a idéia da geração aniquilada.

Este meio, mais ou menos aperfeiçoado, não preenchia as exigências do pensamento humano. Era uma fórmula estreita, muda, limitada. Não havia outro. Mas as tendências progressivas da humanidade não se acomodavam com os exemplares primitivos dos seus livros de pedra. De perfeição em perfeição nasceu a arte. A arquitetura vinha transformar em preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos. O Egito na aurora da arquitetura deu-lhe a solidez e a simplicidade nas formas severas da coluna e da pirâmide. Parece que este povo ilustre queria fazer eterna a idéia no monumento, como o homem na múmia.

O meio, pois, de propagar e perpetuar a idéia era uma arte. Não farei a história dessa arte, que, passando pelo crisol das civilizações antigas, enriquecida pelo gênio da Grécia e de Roma, chegou ao seu apogeu na Idade Média e cristalizou a idéia humana na catedral. A catedral é mais que uma fórmula arquitetônica, é a síntese do espírito e das tendências daquela época. A influência da Igreja sobre os povos lia-se nessas epopéias de pedra; a arte por sua vez acompanhava o tempo e produzia com seus arrojos de águia as obras-primas do santuário.

A catedral é a chave de ouro que fecha a vida de séculos da arquitetura antiga; foi a sua última expressão, o seu derradeiro crepúsculo, mas uma expressão eloqüente, mas um crepúsculo palpitante de luz.

Era, porém, preciso um gigante para fazer morrer outro gigante. Que novo parto do engenho humano veio nulificar uma arte que reinara por séculos? Evidentemente era mister uma revolução para apear a realeza de um sistema; mas essa revolução devia ser a expressão de um outro sistema de incontestável legitimidade. Era chegada a imprensa, era chegado o livro.

O que era a imprensa? Era o fogo do céu que um novo Prometeu roubara, e que vinha animar a estátua de longos anos. Era a faísca elétrica da inteligência que vinha unir a raça aniquilada à geração vivente por um meio melhor, indestrutível, móbil, mais eloqüente, mais vivo, mais próprio a penetrar arraiais de imortalidade.

O que era o livro? Era a fórmula da nova idéia, do novo sistema. O edifício, manifestando uma idéia, não passava de uma coisa local, estreita. O vivo procurava-o para ler a idéia do morto; o livro, pelo contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada. O progresso aqui é evidente.

A revolução foi completa. O universo sentiu um imenso abalo pelo impulso de uma dupla causa: uma idéia que caía e outra que se levantava. Com a onipotência das grandes invenções, a imprensa atraía todas as vistas e todas as inteligências convergiam para ela. Era um crepúsculo que unia a aurora e o ocaso de dois grandes sóis. Mas a aurora é a mocidade, a seiva, a esperança; devia ofuscar o sol que descambava. É o que temia aquele arcediago da catedral parisiense, tão bem delineado pelo poeta das Contemplações.

Com efeito! a imprensa era mais que uma descoberta maravilhosa, era uma redenção. A humanidade galgava assim o Himalaia dos séculos, e via na idéia que alvorecia uma arca poderosa e mais capaz de conter o pensamento humano.

A imprensa devorou, pois, a arquitetura. Era o leão devorando o sol, como na epopéia do nosso Homero.

Não procurarei historiar o desenvolvimento desta arte-rei, desenvolvimento asselado em cada época por um progresso. Sabe-se a que ponto esta aperfeiçoada, e não se pode calcular a que ponto chegará ainda.

Mas restabeleçamos a questão. A humanidade perdia a arquitetura, mas ganhava a imprensa; perdia o edifício, mas ganhava o livro. O livro era um progresso; preenchia as condições do pensamento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma coisa; não era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, aparecendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um sistema planetário. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito moderno: é o jornal.

O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e o fogo das convicções.

O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social.

Quem poderá marcar todas as conseqüências desta revolução?

Completa-se a emancipação da inteligência e começa a dos povos. O direito da força, o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica.

Não é uma aurora de felicidade que se entreabre no horizonte? A idéia de Deus encarnada há séculos na humanidade apareceu enfim à luz. Os que receavam um aborto podem erguer a fronte desassombrada: concluiu-se o pacto maravilhoso.

Ao século XIX cabe sem dúvida a glória de ter aperfeiçoado e desenvolvido esta grandiosa epopéia da vida íntima dos povos, sempre palpitante de idéias. É uma produção toda sua. Depois das idéias que emiti em ligeiros traços é tempo de desenvolver a questão proposta: — O livro absorverá o jornal? o jornal devorará o livro?

II

A lei eterna, a faculdade radical do espírito humano, é o movimento. Quanto maior for esse movimento mais ele preenche o seu fim, mais se aproxima desses pólos dourados que ele busca há séculos. O livro é um sintoma de movimento? Decerto. Mas estará esse movimento no grau do movimento da imprensa-jornal? Repugno afirmá-lo.

O jornal, literatura quotidiana, no dito de um publicista contemporâneo, é reprodução diária do espírito do povo, o espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos, onde se reflete, não a idéia de, um homem, mas a idéia popular, esta fração da idéia humana.

O livro não está decerto nestas condições; — há aí alguma coisa de limitado e de estreito se o colocarmos em face do jornal. Depois, o espírito humano tem necessidade de discussão, porque a discussão é — movimento. Ora, o livro não se presta a essa necessidade, como o jornal. A discussão pela imprensa-jornal anima-se e toma fogo pela presteza e reprodução diária desta locomoção intelectual. A discussão pelo livro esfria pela morosidade, e esfriando decai, porque a discussão vive pelo fogo. O panfleto não vale um artigo de fundo.

Isto posto, o jornal é mais que um livro, isto é, está mais nas condições do espírito humano. Nulifica-o como o livro nulificará a página de pedra? Não repugno admiti-lo.

Já disse que a humanidade, em busca de uma forma mais conforme aos seus instintos, descobriu o jornal.

O jornal, invenção moderna, mas não da época que passa, deve contudo ao nosso século o seu desenvolvimento; daí a sua influência. Não cabe aqui discutir ou demonstrar a razão por que há mais tempo não atingira ele a esse grau de desenvolvimento; seria um estudo da época, uma análise de palácios e de claustros.

As tendências progressivas do espírito humano não deixam supor que ele passasse de uma forma superior a uma forma inferior.

Demonstrada a superioridade do jornal pela teoria e pelo fato, isto é, pelas aparições de perfectibilidade da idéia humana e pela legitimidade da própria essência do jornal, parece clara a possibili­dade de aniquilamento do livro em face do jornal. Mas estará bem definida a superioridade do jornal?

Disse acima que o jornal era a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo social, do mundo literário e do mundo econômico. Do mundo literário parece-me ter demonstrado as vantagens que não existem no livro. Do mundo social já o disse. Uma forma de literatura que se apresenta aos talentos como uma tribuna universal é o nivelamento das classes sociais, é a democracia prática pela inteligência. Ora, isto não é evidentemente um progresso?

Quanto ao mundo econômico, não é menos fácil de demonstrar. Este século é, como dizem, o século do dinheiro e da indústria. Tendências mais ou menos ideais clamam em belos hexâmetros contra as aspirações de uma parte da sociedade e parecem prescrever os princípios da economia social. Eu mesmo manifestei algumas idéias muito metafísicas e vaporosas em um artigo publicado há tempos.

Mas, pondo de parte a arte plástica dessas produções contra o século, acha-se no fundo pouco razoáveis. A indústria e o comércio não são simples fórmulas de uma classe; são os elos que prendem as nações, isto é, que unem a humanidade para o cumprimento de sua missão. São a fonte da riqueza dos povos, e predispõem mais ou menos sua importância política no equilíbrio político da humanidade.

O comércio estabelece a troca do gênero pelo dinheiro. Ora, o dinheiro é um resultado da civilização, uma aristocracia, não bastarda, mas legitimada pelo trabalho ou pelo suor vazado nas lucubrações industriais. O sistema primitivo da indústria colocava o homem na alternativa de adquirir uma fazenda para operar a compra de outra, ou o entregava às intempéries do tempo se ele pretendia especular com as suas produções agrícolas. O novo sistema estabelece um valor, estabelece a moeda, e para adquiri-la o homem só tem necessidade de seu braço.

O crédito assenta a sua base sobre esta engenhosa produção do espírito humano. Ora, indústria manufatora ou indústria-crédito, o século conta a indústria como uma das suas grandes potências: tirai-a aos Estados Unidos e vereis desmoronar-se o colosso do norte.

O que é o crédito? A idéia econômica consubstanciada numa fórmula altamente industrial. E o que é a idéia econômica senão uma face, uma transformação da idéia humana? É parte da humanidade; aniquilai-a, — ela deixa de ser um todo.

O jornal, operando uma lenta revolução no globo, desenvolve esta indústria monetária, que é a confiança, a riqueza e os melhoramentos. O crédito tem também a sua parte no jornalismo, onde se discutem todas as questões, todos os problemas da época, debaixo da ação da idéia sempre nova, sempre palpitante. O desenvolvi­mento do crédito quer o desenvolvimento do jornalismo, porque o jornalismo não é senão um grande banco intelectual, grande monetização da idéia, como diz um escritor moderno.

Ora, parece claro que, se este grande molde do pensamento cor­responde à idéia econômica como à idéia social e literária, — é a forma que convém mais que nenhuma outra ao espírito humano.

É ou não claro o que acabo de apresentar? Parece-me que sim. O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; por­que ele diz ao talento: "Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da criação!" Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?

Não! graças a Deus! Esse mau uso caiu com o dogma junto do absolutismo. O jornal é a liberdade, é o povo, é a consciência, é a esperança, é o trabalho, é a civilização. Tudo se liberta; só o talento ficaria servo?

Não faltará quem lance o nome de utopista. O que acabo, porém, de dizer me parece racional. Mas não confundam a minha idéia. Admitido o aniquilamento do livro pelo jornal, esse aniquilamento não pode ser total. Seria loucura admiti-lo. Destruída a arquitetura, quem evita que à fundação dos monumentos modernos presida este ou aquele axioma d'arte, e que esta ou aquela ordem trace e levante a coluna, o capitel ou zimbório? Mas o que é real é que a arqui­tetura não é hoje uma arte influente, e que do clarão com que inun­dava os tempos e os povos caiu num crepúsculo perpétuo.

Não é um capricho de imaginação, não é uma aberração do espírito, que faz levantar este grito de regeneração humana. São as circunstâncias, são as tendências dos povos, são os horizontes rasgados neste céu de séculos, que implantam pela inspiração esta verdade no espírito. É a profecia dos fatos.

Quem enxergasse na minha idéia uma idolatria pelo jornal teria concebido uma convicção parva. Se argumento assim, se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia; e a democracia é o povo, é a humanidade. Desaparecendo as fronteiras sociais, a humanidade realiza o derradeiro passo, para entrar o pórtico da felicidade, essa terra de promissão.

Tanto melhor! este desenvolvimento da imprensa-jornal é um sintoma, é uma aurora dessa época de ouro. O talento sobe à tribuna comum; a indústria eleva-se à altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por toda a parte os princípios inveterados das fórmulas governativas, talha com a espada da razão o manto dos dogmas no­vos. É a luz de uma aurora fecunda que se derrama pelo horizonte. Preparar a humanidade para saudar o sol que vai nascer, — eis a obra das civilizações modernas.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, 1994.
Publicado originalmente no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12/01/1859.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Davi Machado (O Relogio e a Areia levada pelo Vento)

Salvador Dali (A Presistência da Memória)
Eu era o pobre, o pastor de ovelhas, o rude...
Eu nunca quis aquilo que chama, ilude
E descompassa o coração por uma surpresa...
( Fui caçador do tempo, hoje sou presa.)

Eu era o incenso ascendido para seu Deus,
Eu não podia conter as lágrimas nos meus
Olhos cansados hoje tão cheios de mágoas
(Fui homem pairando sobre às águas!)

Quis te querer em mim por uma vontade
Que por todas as noites traria a "metade"
E cedo, n'alvorada, levaria de volta a dor...
(Fui incrédulo ao ver o sol se por...)

Na desventurada avenida da inoscência
Eu era o pedinte que clamava com veemência,
Rogando aos anjos que eu não pude amar
(Fui o desague de sangue no frio mar!)

E na tempestade de areia eu quis tê-la
Para mim; esta escarlate e terna estrela,
Erguendo as mãos aos céus, de joelhos
(Fui todos os rostos nos teus espelhos!)

No Éden e em Shangri-la eu era o fruto
Guardado no teu coração como o luto,
Feito da força e do avesso de viver
(Fui o eclipse que não pudes-tes ver!)

E do temor apocalíptico fui forjado...
Tive a cruz da solidão como legado...
Como pomba que por flecha atingida
(Fui a mão que não aponta a saída!)

E o assombro que assobia à janela
Feito luz da lua de íris amarela
Não poderia ser outro além de mim.
(Fui o grito de agonia antes do fim!)

Na tua cama a escuridão da meia noite
Eu trazia aos seus ouvidos o açoite
Transmutado em brisa quase matutina...
(Fui das chagas da paixão tua vacina!)

Por todas as vezes nos corpos todos fui
O que o alquimista da vida dilui
E molda a cada era com esmero...
(Fui o vinho envelhecido em desespero!)

E seguindo a aventura longa e mística
Indo contra a fé cristã e metafísica,
D'outras vidas eu nasci reencarnado
(Sou aquele que adormece a teu lado!)

Edgar Allan Poe (Manuscrito encontrado dentro de uma Garrafa)



Qui n'a plus qu'un moment à vivre
N'a plus rien à dissimuler.
Quinault, Atys

Quem tem apenas um momento mais de vida
Nada mais tem a dissimular.

Da minha terra e da minha família pouco tenho a dizer. Os maus costumes e o acumular dos anos afastaram-me da primeira e alhearam-me da segunda. O meu patrimônio proporcionou-me uma educação pouco comum e uma disposição de espírito contemplativa permitiu-me ordenar metodicamente as aquisições diligentemente reunidas pelo estudo precoce. O estudo dos filósofos alemães fez particularmente as minhas delícias: não por qualquer mal-avisada admiração pela sua eloqüente loucura, mas antes pela facilidade com que os meus hábitos de raciocínio rigoroso me facultavam a detecção dos seus erros. Fui muitas vezes admoestado pela aridez do meu gênio; imputavam-me, como se de um crime se tratasse, falta de imaginação, e o pirronismo das minhas opiniões sempre me tornou notado. De fato, receio bem que uma forte atração pela filosofia física me tenha impregnado o espírito de um defeito muito comum nesta época: refiro-me ao hábito de reportar os acontecimentos, mesmo os menos susceptíveis de o serem, aos princípios de tal ciência. Em suma, ninguém seria menos dado que eu a deixar-se desviar das estritas fronteiras da verdade pelos ignes fatui da superstição. Achei que se justificaria esta introdução, sob pena de o incrível relato que se segue ser tomado mais pelo delírio de uma imaginação desenfreada do que pela experiência positiva de um espírito para o qual os devaneios da fantasia sempre foram letra morta e coisa de nulo valor.

Após muitos anos passados em deslocações pelo estrangeiro, larguei no ano de 18... do porto de Batávia, na rica e populosa ilha de Java, em viagem ao arquipélago de Sunda. Embarquei como passageiro, sem outro estímulo que não fosse uma qualquer nervosa irrequietude que me obcecava como espírito maléfico.

O nosso navio era um belo veleiro de umas quatrocentas toneladas, construído de teca do Malabar em Bombaim. Levava um carregamento de algodão em rama e azeite, proveniente das ilhas Lacadivas. Transportávamos ainda fibra de coco, açúcar mascavado, manteiga, cocos e algumas caixas de ópio. A estiva tinha sido feita de modo descuidado, pelo que o navio ia adornado.

Largamos sob um tênue bafejo de vento e mantivemo-nos durante vários dias ao longo da costa oriental de Java, sem mais incidentes que iludissem a monotonia da nossa singradura para além do encontro ocasional com alguns grabs (Embarcação oriental armada de velas latinas e normalmente de dois mastros. (N. do T.)) do arquipélago a que nos mantínhamos confinados.

Uma tarde, debruçado à balaustrada da popa, observei uma nuvem isolada muito estranha, a noroeste. Era singular, quer pela cor, quer por ser a primeira com que deparávamos desde a largada de Batávia. Contemplei-a atentamente até ao sol-pôr, altura em que alastrou repentinamente para leste e oeste, cercando o horizonte de uma estreita faixa de vapor e assemelhando-se a uma baixa linha de costa. Não tardou que a minha atenção fosse subseqüentemente atraída pelo aspecto vermelho-escuro da Lua e pelo invulgar estado do mar. Este sofreu uma rápida alteração e a água parecia mais transparente do que o habitual. Embora conseguisse ver distintamente o fundo, ao lançar a sonda verifiquei que a profundidade local era de vinte braças. O ar tornara-se agora intoleravelmente quente e estava carregado de exalações espirais semelhantes às que se desprendem do ferro quando aquecido. Com o tombar da noite, o vento caiu totalmente, sendo impossível conceber calmaria mais completa. A chama da lanterna sobre a popa ardia sem o menor movimento perceptível, e um cabelo comprido, seguro entre o polegar e o indicador, pendia sem que pudesse observar-se a mais pequena ondulação. No entanto, como o comandante dissesse que não se apercebia de qualquer indício de perigo, e uma vez que estávamos a abater totalmente para terra, mandou ferrar as velas e fundear. Não se passou a regime de quartos e a tripulação, constituída principalmente por malaios, veio deitar-se deliberadamente no convés. Desci aos alojamentos - não sem um forte pressentimento de desastre. De facto, todas as aparências me levavam a suspeitar da aproximação do simum. Dei parte dos meus temores ao comandante, mas este não prestou a menor atenção às minhas palavras e deixou-me sem ao menos se dignar de responder. Todavia, a inquietação não me deixou dormir e, perto da meia-noite, subi ao convés. Ao colocar o pé no último degrau da escada, fui surpreendido por um forte ruído sussurrante como produzido por rápida rotação de moinho e, antes que pudesse averiguar o seu significado, apercebi-me de que o navio estremecia na direção do seu centro. No instante imediato, um cachão de espuma fez-nos adornar subitamente e, passando sobre nós, varreu todo o convés de popa a proa.

A extrema violência do choque veio, em grande parte, a ser a salvação do navio. Embora completamente inundado, quando os mastros foram pela borda fora, ergueu-se pesadamente das águas um minuto depois e, vacilando um instante sob a intensa pressão da tempestade, endireitou-se finalmente.

Não sei dizer por que milagre escapei à destruição. Atordoado pelo embate de água, dei por mim, uma vez refeito, entalado entre o cadaste e o leme. com grande dificuldade, pus-me de pé e, olhando confusamente ao redor, fui inicialmente assaltado pela idéia de que estivéssemos no meio de recifes, de tal modo terrível e inimaginável era o turbilhão do oceano alteroso e espumejante em que estávamos mergulhados. Passados algum tempo ouvi a voz de um velho sueco, que embarcara conosco no momento em que largávamos do porto. Gritei-lhe com todas as forças e ele acabou por dirigir-se, a cambalear, para a popa. Depressa descobrimos que éramos os únicos sobreviventes do acidente. Todos os que estavam no convés, exceto nós, tinham sido varridos pela borda fora; o comandante e os oficiais deviam ter perecido durante o sono, visto que os camarotes se encontravam totalmente alagados. Sem auxílio, pouco poderíamos contar fazer pela segurança do navio e os nossos esforços foram de princípio paralisados pela perspectiva momentânea de irmos a pique. Era evidente que a amarra se quebrara como se fosse uma guita ao primeiro sopro do furacão, pois de contrário teríamos sido instantaneamente esmagados. Corríamos com o furacão a uma velocidade assustadora e as águas abriam brechas visíveis à nossa frente. A estrutura da popa tinha sofrido enormes danos e, praticamente sob todos os aspectos, fôramos objeto de consideráveis avarias; mas para nossa extrema alegria, descobrimos que as bombas não tinham ficado obstruídas e que o lastro não sofrera grande deslocação. A maior fúria da tempestade tinha já amainado e a violência do vento não parecia oferecer grande perigo: contudo, ansiávamos, consternados, por que ele cessasse completamente, pois estávamos em crer que, com tais estragos, inevitavelmente pereceríamos na ondulação tremenda que sobreviria. Contudo, esta justíssima apreensão não parecia de modo algum em vias de concretizar-se. Durante cinco dias e cinco noites - no decurso dos quais tivemos por único alimento uma pequena porção de açúcar mascavado, obtido com grande dificuldade no castelo da proa - o calhambeque correu a uma velocidade que desafiava qualquer cálculo, impulsionado por rajadas de vento que se sucediam rapidamente, as quais, sem contudo se compararem à violência inicial do simum, eram ainda mais terríveis do que qualquer tempestade que até então eu tivesse presenciado. O nosso rumo durante os primeiros quatro dias foi, com insignificantes variações, sueste quarta a sul, e deveríamos ir parar às costas da Nova Holanda. No quinto dia começou a fazer-se sentir um frio extremo, embora o vento tivesse rondado mais uma quarta para norte. O Sol despontou com um fulgor amarelo doentio e ergueu-se apenas alguns graus acima do horizonte - sem emitir uma luz definida. Não havia nuvens à vista, mas o vento continuava a refrescar e soprava com uma violência irregular e instável. Cerca do meio-dia, tanto quanto nos era possível estimar, a nossa atenção foi novamente desperta pela aparência do Sol. Não emitia luz propriamente dita, mas antes um clarão mortiço e soturno sem reverberação, como se todos os seus raios estivessem polarizados. Imediatamente antes de mergulhar no mar túrgido, a sua chama central extinguiu-se de súbito, como que pressurosamente apagada por algum inexplicável poder. Era apenas um arco esbatido e quase prateado ao precipitar-se no oceano insondável.

Aguardamos em vão a chegada do sexto dia: esse dia para mim não chegou: para o sueco, não existiu sequer. De então em diante, vimo-nos amortalhados numa escuridão de breu, de tal modo que não conseguiríamos ver um objeto a vinte passo do navio. A noite eterna começou a envolver-nos, nem sequer mitigada pela fosforescência das águas a que nos habituáramos nos trópicos. Observamos igualmente que, embora a tempestade continuasse a bramir com inquebrantável violência, já não conseguia descortinar-se o habitual aparecimento de rebentação ou espuma, que até então nos havia acompanhado. À nossa volta tudo era horror, trevas profundas e um negro e abrasador deserto de ébano. Um terror supersticioso começou a invadir progressivamente o cérebro do velho sueco, e meu próprio espírito estava mergulhado em profundo espanto. Abandonáramos todos os cuidados do navio, mais do que inúteis, e, amarrando-nos o melhor que pudemos ao mastro da mezena, observávamos amargamente a imensidão do oceano. Não tínhamos maneira de calcular o tempo nem fazíamos a menor idéia de qual a nossa posição. Contudo, estávamos perfeitamente cientes de que havíamos navegado mais para sul do que qualquer outro mareante e experimentamos grande admiração por se não nos depararem os habituais obstáculos de gelo. Entrementes, cada instante ameaçava ser o último da nossa vida: não havia vaga alterosa que não se precipitasse para nos esmagar. A ondulação ultrapassava tudo o que eu imaginara possível e o fato de o mar não nos ter sepultado instantaneamente constituía um milagre. O meu companheiro referiu-se ao pouco peso da carga que transportávamos e recordou-me as excelentes qualidades do navio; fosse como fosse, eu não conseguia deixar de sentir o extremo desespero da própria esperança e preparei-me melancolicamente para a morte que acreditava nada poder adiar por mais que uma hora, visto que, a cada nó que o navio avançava, a agitação das prodigiosas águas negras se tornava cada vez mais lugubremente aterradora. Por vezes, ao elevarmo-nos mais ainda que um albatroz, perdíamos a respiração; outras ficávamos atordoados com a velocidade com que o navio se afundava em qualquer inferno aquático, onde o ar estagnava e nenhum som perturbava o sono do kraken (Monstro marinho lendário das costas escandinavas. (N. do T.)).

Encontrávamo-nos no fundo de um desses abismos quando um súbito grito do meu companheiro rompeu temerosamente na noite:

- Olhe! Olhe! - gritou angustiadamente aos meus ouvidos. - Deus todo-poderoso! Olhe! Olhe!

Enquanto ele falava, apercebi-me do clarão mortiço e sombrio de uma luz vermelha que se escoava de um e outro lado do abismo em que estávamos mergulhados, e lançava um brilho incerto sobre o nosso convés. Erguendo a vista, observei um espetáculo que me fez gelar o sangue nas veias. A uma altura descomunal acima de nós, e precisamente na orla precipício das águas, pairava um gigantesco navio de umas quatro mil toneladas. Apesar de alcandorado na crista de uma vaga que tinha mais de cem vezes a sua altura, as suas dimensões aparentes ainda assim excediam as de qualquer navio de linha ou da Companhia das Índias. O seu casco enorme era de um negro profundo, nem sequer atenuado por qualquer dos habituais ornatos que os navios ostentam. Uma fileira única de peças de artilharia de bronze emergia das escotilhas abertas e as suas superfícies polidas refletiam os clarões das inúmeras lanternas de combate que balouçavam de um lado para outro na mastreação. Todavia, o que fundamentalmente nos encheu de horror e espanto foi que ele navegava a todo o pano, a despeito daquele mar sobrenatural e do incontrolável furacão. Quando o avistamos a primeira vez, apenas se lhe via a proa, ao erguer-se lentamente do sombrio e horrível fosso que ia deixando para trás. Por um instante de intenso terror, deteve-se sobre o cume vertiginoso, como que imerso na contemplação da sua própria magnificência, após o que estremeceu, vacilou e... iniciou a queda.

Nesse instante, não sei que súbita serenidade me invadiu o espírito. Avançando a cambalear para a popa o mais que me foi possível, aguardei sem receio a catástrofe que certamente nos iria esmagar. O nosso próprio navio começava a abandonar a luta e a mergulhar a proa nas águas. O choque daquela mole que se abatia atingiu-o, por conseguinte, naquele porção da estrutura que estava já sob a água, e o resultado inevitável foi precipitar-me, com irresistível violência, de encontro ao cordame do intruso.

Quando caí, o navio aproou ao vento e virou de bordo; foi à confusão que se seguiu que atribuí o fato de ter passado despercebido aos olhos da tripulação. Não encontrei dificuldade em abrir caminho sem ser detectado até à escotilha principal, que estava parcialmente aberta, e pouco tardou que se me deparasse uma ocasião propícia para me ocultar no porão. Não sei exatamente por que razão o fiz. Talvez uma indefinida sensação de temor, que desde a primeira visão dos tripulantes do navio se me apoderara do espírito, estivesse na origem desta tentativa de buscar esconderijo. Não me sentia inclinado a confiar numa raça de gente que havia revelado, perante o olhar apressado que lhes deitara, tantos motivos de vaga estranheza, dúvida e apreensão. Julguei, pois, acertado arranjar um lugar no porão onde pudesse ocultar-me. Fi-lo deslocando uma porção de pranchas, de modo a obter um abrigo adequado entre o cavername enorme do navio.

Mal terminara ainda a tarefa, quando o som de passos no porão me obrigou a utilizá-lo. Um homem de andar débil e incerto passou junto ao meu esconderijo. Não pude ver-lhe o rosto, mas tive ocasião de observar-lhe o aspecto geral. Apresentava indícios de idade avançada e de doença. Os joelhos vacilavam ao peso dos anos e todo o corpo estremecia sob o seu fardo. Murmurava de si para si, em tom grave e entrecortado, quaisquer palavras numa língua que não logrei distinguir e tateou a um canto entre uma pilha de instrumentos de aspecto invulgar e de cartas de navegação apodrecidas. O seu comportamento era uma estranha mistura de rabugice da segunda infância e da solene dignidade de um deus. Acabou por regressar ao convés e não voltei a vê-lo.
* * *
Um sentimento que não sei designar apossou-se-me do espírito: uma sensação que não admite análise, para a qual os ensinamentos do passado de nada servem e, receio, nem o porvir me fornecerá a chave. Para um espírito da estrutura do meu, esta última consideração é uma tortura. Nunca hei de ser esclarecido - sei que nunca o serei - relativamente à natureza das minhas concepções. E contudo não será de estranhar que tais concepções sejam mal definidas, posto que têm a sua origem em causas tão inteiramente inéditas. Um novo sentido - uma nova entidade - foi acrescentada à minha alma.

Faz já muito que pisei pela primeira vez o convés deste terrível navio e julgo que os raios do meu destino convergem para um foco. Homens incompreensíveis! Imersos em meditações cuja natureza não logro adivinhar, passam por mim sem darem pela minha presença. O fato de me esconder é puro disparate da minha parte, pois esta gente não quer ver. Ainda há instantes passei diretamente pela frente do imediato; não faz muito tempo que me aventurei a penetrar mesmo no camarote individual do comandante e de lá tirei o material com o qual escrevo e tenho vindo a escrever. Continuarei este diário de quando em quando. É certo que posso não ter ocasião de transmiti-lo ao mundo, mas não deixarei de o tentar. No último momento meterei o manuscrito numa garrafa e lançá-la-ei ao mar.
* * *
Deu-se um incidente que me forneceu novos motivos de reflexão. Será tudo isto obra de um desordenado Acaso? Tinha-me aventurado a sair ao convés e estendi-me, sem despertar a menor atenção, no meio de um amontoado de cabos de enxárcias e de velas usadas, no fundo do escaler. Enquanto meditava sobre a singularidade do meu destino, rabisquei inconscientemente com uma brocha de alcatrão as orlas de um cutelo cuidadosamente dobrado que tinha perto de mim sobre uma barrica. O cutelo está agora envergado no navio e as pinceladas irrefletidas da brocha, com a vela esticada, formam a palavra DESCOBERTA.

Ultimamente fiz várias observações sobre a estrutura do navio. Embora bem armado, creio que não se trata de um navio de guerra. Quer o cordame, quer a construção, quer o equipamento em geral levam a por de lado tal hipótese. O que ele não é posso eu facilmente compreender; receio é que seja impossível dizer o que é. Não sei como, mas, ao perscrutar o seu estranho modelo e a forma singular da mastreação, o seu enorme tamanho, o exagerado número de jogos de velas, a sua proa austeramente simples e a popa antiquada, acontece vir uma ou outra vez ao meu espírito uma sensação de coisas familiares, e a essas sombras indistintas da memória mistura-se sempre uma inexplicável reminiscência de velhas crônicas estrangeiras e de épocas remotas.

Estive a observar o madeiramento do navio. O material de que é feito é-me desconhecido. Há uma característica peculiar da madeira que me choca como se a tornasse inadequada para o fim ao qual foi destinada: refiro-me à sua extrema porosidade, considerada independentemente do fato dos estragos que os parasitas provocam nestes mares e para além da podridão concomitante com a idade. Isto poderá porventura parecer uma observação algo sutil, mas esta madeira teria todas as características do carvalho espanhol se este tivesse sido distendido por quaisquer meios não naturais.

Ao reler a frase anterior, ocorre-me intacto à memória o curioso adágio de um velho marinheiro holandês forjado nas intempéries: "É tão verdade", costumava dizer quando alguém albergava qualquer dúvida sobre a veracidade do que contava, "como é verdade existir um mar onde o próprio navio aumenta de volume como o corpo vivo de um marinheiro".

Há cerca de uma hora, ousei introduzir-me num grupo de tripulantes. Não me deram a menor atenção e, embora estivesse mesmo no meio de todos eles, pareceram completamente alheios à minha presença. Tal como o que tinha visto antes no porão, qualquer deles apresentava indícios de encanecida velhice. Os joelhos tremiam-lhes de doença; tinham os ombros duplamente abaulados devido à decrepitude; os seus rostos ressequidos abanavam ao vento; as vozes eram baixas, trêmulas e entrecortadas; os olhos cintilavam-lhes com a corrente dos anos e os cabelos grisalhos tremulavam espantosamente na tempestade. Em redor deles, por todo o convés, estavam espalhados instrumentos matemáticos da mais singular e obsoleta estrutura.

Referi um pouco atrás o envergar de um cutelo. Desde essa altura o navio, correndo com o vento, continuou a sua assustadora carreira para sul, com todo pano largado, dos topos dos mastros aos botalós dos cutelos baixos, e balançando a cada instante as vergas do joanete no mais aterrador inferno marinho que a imaginação humana possa conceber. Acabo de abandonar o convés, onde concluí ser impossível manter-me, embora a tripulação não pareça experimentar grande incômodo. Afigura-se-me o milagre dos milagres o fato de a massa enorme de nosso navio não ser tragada de uma vez por todas. Estamos certamente condenados a pairar continuamente sobre a orla da Eternidade, sem dar um mergulho final no abismo. Deslizamos entre vagas mil mais tremendas do que alguma vez vi, com a facilidade da sagitada gaivota; e as ondas colossais erguem as cristas sobre nós como demônios das profundezas, mas como demônios limitados a meras ameaças e impedidos de destruir. Sinto-me tentado a atribuir esta repetida salvação à única causa natural que pode explicar tal efeito: devo supor que o navio está sob a influência de uma forte corrente, de uma impetuosa ressaca.

Vi o comandante cara a cara, e no seu próprio camarote; mas, como esperava, não me prestou atenção. Embora nada haja no seu aspecto, para um observador pouco atento, que possa sugerir ser ele alguma coisa mais ou menos do que humano, misturaram-se-me uma irreprimível reverência e temor à sensação de espanto com que o observei. A estatura dele é quase a mesma que a minha, isto é, certa de um metro e setenta. É de compleição proporcionada e compacta, sem ser robusto nem quanto ao resto digno de nota. É, porém, a singularidade da expressão que lhe anima o rosto, é o intenso, maravilhoso e empolgante testemunho de velhice, de uma tão extrema velhice que suscita no meu espírito um sentimento, uma sensação inefável. A sua fronte, conquanto pouco enrugada, parece transportar a marca de uma miríade de anos. Os seus cabelos grisalhos são registros do passado e os olhos ainda mais cinzentos são sibilas do futuro. O pavimento do camarote estava densamente juncado de in-fólios com fivelas de ferro, de esboroados instrumentos científicos e de cartas obsoletas e há muito abandonadas. Tinha a cabeça inclinada sobre as mãos e lia atentamente, com um ardente olhar inquieto, um papel que tomei por uma carta de comando e que, em qualquer caso, apresentava a assinatura de um monarca. Murmurava de si para si, em voz baixa e rabugenta, como fazia o primeiro marinheiro que eu vira no porão, quaisquer sílabas de uma língua estrangeira, e, embora falasse mesmo junto de mim, a sua voz parecia chegar-me aos ouvidos vinda de uma milha de distância.

O navio e todos os que nele seguem estão imbuídos do espírito de Antanho. A tripulação desliza para um lado e para outro como fantasmas de séculos enterrados; os seus olhares têm uma expressão ansiosa e intranqüila; e quando os seus dedos, à minha passagem, caem sob o brilho cru das lanternas de combate, sinto o que nunca antes senti, embora toda a vida tenha negociado em antiguidades e me tenha impregnado das sombras das colunas caídas de Balbec, Tadmor, e Persépolis, até a minha própria alma se converter numa ruína.

Quando olho em redor envergonho-me das minhas apreensões iniciais. Se tremi ante a tempestade que até agora nos acompanhou, não deveria ficar horrorizado perante a adversidade do vendo e do oceano, que as palavras tornado e simum se tornam banais e ineficazes para descrever? Tudo o que se encontra na imediata proximidade do navio é a escuridão da noite eterna e um caos de água sem espuma; mas, cerca de uma légua para um e outro bordo, podem ver-se, indistintamente e de quando em quando, enormes baluartes de gelo, que se erguem ao longe contra o céu desolado, semelhantes às muralhas do universo.

Conforme imaginei, prova-se que o navio está sob a ação de uma corrente, se é que assim se pode apelidar uma maré que, gemendo e uivando através da brancura do gelo, troveja para o sul com uma velocidade semelhante à impetuosa precipitação de uma catarata.

Creio ser totalmente impossível transmitir o horror das minhas sensações; porém, a curiosidade de penetrar os mistérios destas horríveis regiões prevalece mesmo sobre o meu desespero e reconcilia-me com o aspecto mais hediondo da morte. Torna-se evidente que corremos ao encontro de qualquer revelação emocionante: algum segredo que nunca será transmitido, descoberta é o termo da vida. Talvez esta corrente nos leve ao próprio Pólo Sul. Devo considerar que esta suposição, aparentemente tão estranha, tem todas as probabilidades de estar correta.

A tripulação percorre o convés com passo inquieto e trêmulo; mas há na sua atitude uma expressão que é mais da ânsia da esperança do que da apatia do desespero.

Entretanto, temos ainda o vento na popa e, como navegamos com imenso pano, o navio é por vezes erguido do mar em peso. Oh, horror sobre horror! O gelo abre-se simultaneamente à direita e à esquerda e começamos a rodopiar vertiginosamente em imensos círculos concêntricos, em torno de um gigantesco anfiteatro, de paredes cuja altura se perde na escuridão e na distância. Mas pouco tempo me restará para ponderar sobre o meu destino: os círculos estreitam rapidamente... mergulhamos loucamente nas garras do turbilhão... e, por entre o rugir, o bramir e o ribombar do oceano e da tempestade, o navio começa a estremecer e - meu Deus! - e... a afundar.
-------------------------------------------------------------------

Obs: O Manuscrito encontrado numa garrafa foi publicado pela primeira vez em 1831, e só muitos anos mais tarde tomei conhecimento das cartas de Mercator, nas quais o oceano é representado a precipitar-se, por quatro embocaduras, no Abismo Polar (do Norte), para ser absorvido pelas entranhas da terra, sendo o próprio pólo representado por um rochedo negro que se ergue a uma altura prodigiosa. (N. do A.)

Fontes:
POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias.
Imagem =
http://trajedia.zip.net

Aluisio de Azevedo (O Japão Crônica = Capítulo 4)



Capitulo 1 - http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/aluisio-de-azevedo-o-japo-cronica.html
Capítulo 2 - http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/alusio-de-azevedo-o-japo-crnica-captulo.html
Capítulo 3 - http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/aluisio-de-azevedo-o-japo-cronica.html
----------------------------------



Eliminaram Ii Kammon, mas o grande fato estava consumado, bem ou mal os tratados concluídos, e o Japão aberto aos estrangeiros.

Em breve, à semelhança da América do Norte, os Estados europeus entravam de mandar os seus representantes diplomáticos, e atrás destes surgiam logo, de focinho arregaçado e palpitante, os primeiros furões comercias, os farejadores de negócios virgens de exploração, os avançados de Ashaverus que aí já vinha se arrastando azafamado de saco vazio às costas; enquanto do arquipélago muitos indígenas curiosos, estalando por gosto o ocidental fruto até aí proibido pelas "Cem Leis", muniam-se de ouro e tomavam as pressas o primeiro barco a sair para a China, com medo de que, uma vez morto o Regente, não fosse de novo trancada a autorização de viajar pelo estrangeiro. Esta leva tão espontânea, quase toda de gente moça e rica, na melhor parte inteligente e ávida de aprender coisas novas; haveria no futuro de influir também nos acontecimentos políticos do país.

Quanto ao que neste ia por dentro, agora a grande questão pública era apurar se valiam ou não valiam os tratados apenas com a assinatura do Shogun. O Imperador abanava as mãos e sacudia os ombros, declarando a quem lhe ia falar em credenciais e exequatur que não lhe constava haver nenhum compromisso formal entre o seu império e qualquer Potência estrangeira; e que de sua parte evidenciassem ao novo Regente a necessidade de desenganar semelhantes importunos antes de ser preciso lançar mão dos meios extremos. Ao mesmo tempo decreta a retirada de todo o forasteiro que se ache no território sem clara e positiva autorização do Micado, e delega a Mito essa incumbência, repetindo-lhe numa carta escrita de seu próprio punho, a frase da vassoura e da poeira com que ele havia ressuscitado do outro mundo para acudir ao momento crítico.

Visionário! Agora já não era uma simples esquadra que flutuava nas águas japonesas, era uma formidável armada constituída pelo contingente marítimo das principais potências do mundo. Dir-se-ia um congresso universal nas costas do Japão, porque, além das bandeiras que de tão longe vinham por defender os seus tratados, outras novas iam chegando desejosas de entrar também em fala com a sedutora esfinge do Extremo Oriente.

E os radicais elementos patrióticos do altaneiro Sul coração do Império, sequiosos por descarregar em alguém ou alguma coisa a raiva de cruel despeito em que ardiam, nada podendo fazer contra o verdadeiro objeto do seu impotente desespero, voltaram-se contra a instituição a que pertencera o causador de tio irreparável desastre nacional; tomando porém o Shogunato para alvo dos golpes que precisavam descarregar, forçoso era opor-lhe em campo de combate a bandeira de outro poder, pelo qual se batessem e pelo qual, no momento da vitória, substituíssem o do vencido, resolveram então, depois de muito bem discutir o caso, adotar o unitarismo do Trono como ideal político. Mito, consultado, aplaudiu-os e deu-lhes de conselho que procurassem pôr à sua frente os príncipes do extremo sul.

Foi desse modo que se formou, para logo se desenvolver maravilhosamente, o partido popular do Imperador, coisa que até aí nunca tinha existido no movimento político do país. Ora, como o pobre Soberano, no seu empírico patriotismo, punha antes de tudo a preocupação de expulsar os estrangeiros, o novo partido, por cair-lhe em graça, fez o seu lema com o grito de guerra "Honra ao Micado! Fora os bárbaros!", apesar de compreender perfeitamente a impossibilidade de levar a efeito nessa ocasião tão adorado sonho.

Assim pois vinha à luz o partido do Imperador já com um plano de mistificação urdido contra o seu próprio chefe, disposto a servir-se da mesma maromba que caíra das mãos fracas de Yeçada e que servira Ii Kammon para equilibrar os seus primeiros passos no governo, pois como esses iria dizendo ao Micado que se constituía e fortificava só com o fim de bater os estrangeiros, quando a sua real intenção era, pelo menos antes de cuidar doutra coisa, combater o Shogunato.

Os daimos do sul, ligando-se a esse elemento popular, não calculavam o alcance que contra eles próprios poderia ter a campanha empreendida, não previam que a unificação do poder do trono iria absorver também o dos principados; e contavam ingenuamente que, abolido o Shogunato, o Império voltaria sem dúvida ao regime feudal de antes de Yoritomo, quando os príncipes governavam ao lado do Imperador e não estavam sujeitos i alçada do Shogun. Quanto ao que pensava a Nobreza e Povo com respeito aos estrangeiros, era opinião corrente que qualquer ação decisiva seria impossível contra eles enquanto existissem a Corte e as forças shogunais para defendê-los dentro do país, desde porém que o Imperador concentrasse na mão todo o poder e comandasse diretamente os daimos, claro estava que a questão seria prontamente resolvida.

Eis aqui em que estado se achava o país nas vésperas da sua grande revolução. A terrível guerra civil que se ia abrir, isto é, a luta de parte dos príncipes e parte do povo contra a instituição do Shogunato ou contra a dinastia dos Tokugawas, era pois conseqüência direta dos atos de Ii Kammon e não tinham raízes em nenhum fator político precedente à chegada do Comodoro Perry, como pretendem os ocidentais nos seus livros sobre o Japão.

Alçando-se o partido do Imperador até a esfera dos príncipes do sul, que eram muito unidos e poderosos, converteu-se em força disciplinada capaz de fazer frente à do Shogun, contra a qual ninguém até aí se atreveria a levantar o braço. Para ter o leitor idéia justa da importância dessa campanha, convém lembrar-lhe quão extensa permanecia então a autoridade shogunal. Além das suas inveteradíssimas tradições, mantidas por enorme família e filtradas durante dois séculos e meio ininterruptamente até os íntimos refolhos da alma da nação, era mais que considerável a força material de que dispunha, graças à maravilhosa posição por Ieiás escolhida para sede do seu poder. O grande homem havia, nem só aproveitado admiravelmente as condições topográficas do Império, como a dos elementos militares que encontrou disseminados por todas as províncias, cujos castelos fortificados se acharam sempre nas mãos de príncipes por muitos laços jungidos à família Tokugawa e à instituição agora ameaçada. A zona Tokugawal propriamente dita era a enorme bacia de Kuanto na parte leste da grande ilha central do Japão, compreendendo oito províncias cercadas de montanhas abruptas que lhes serviam de natural defesa, com os seus despenhadeiros inacessíveis, não deixando ao inimigo outro ponto estratégico mais que a cidade de Hokone na província de Izo, entre as duas bacias de Suruga e de Sagami, lugar este precisamente onde Ieiás estabelecera as barreiras dos seus vastos domínios territoriais e em que lhe era fácil verificar uma a uma as pessoas que neles penetravam. Nessas oito províncias de Kuanto residiam os oitenta mil hattamotos, vassalos diretos dos Tokugawas, os quais por sua vez, como nobres, tinham nos samurais inferiores os seus vassalos próprios. Toda essa gente se levantaria em massa ao primeiro apelo do chefe suserano.

Yedo, capital do Shogun e centro das suas operações militares, está no fundo de um golfo, cuja boca estreita era defendida de um dos lados pela fortaleza de Futsu e do outro pela de Kannonzaki, e tinha como tem, as costas guardadas por uma anfractuosa cordilheira de montanhas que só dão uma garganta praticável, a de Akonê. Em volta, para além das penedias e quebradas, todos os príncipes fortificados, menos o de Mito em Hitachi e Chimoosa, eram simpáticos à causa dos Tokugawas; e para o norte até Hakodate em Yezo, e para o sudoeste, e na ilha de Sikok, até certo ponto da ilha de Kiuciu ao sul, não havia um daimo inimigo dela, podendo por conseguinte as forças do Shogun moverem-se por toda a parte, certas de que só poderiam encontrar auxílio e proteção. Os únicos pontos do Império que escaparam à imensa rede estendida por Ieiás eram, além de Hitachi e Chimoosa a noroeste, o extremo sul da ilha de Kiuciu, onde se acham as províncias de Ocumi e Satzuma, e o extremo oeste de Hondo em que existe a de Nagato. E foi precisamente destes pontos que rebentou a guerra.

Havia assumido a regência do Shogunato Ando Tsusima, como ministro sucessivo do príncipe de Hikone. É um comparsa sem feitio próprio, com quem não vale a pena gastar muitas palavras em descrevê-lo; sumir-se-á daqui a pouco nos bastidores, substituído pelo dono legítimo do papel, Iyemochi, que reclama o seu cargo e entra a exercê-lo antes mesmo da maioridade comum, no Japão fixada aos vinte anos; comum, disse eu, porque a dos membros da família imperial é privilegiadamente contada dos dezoito anos em diante, e a dos príncipes Tokugawas era a partir dos quinze.

Como esperavam todos, Ando Tsusima, galgando o poder, declarou logo sustentar os atos e a norma política do seu antecessor, mas ao mesmo tempo, para fazer crer que não persistiam divergências entre o Shogunato e o trono micadoal, abriu mão do príncipe de Mito, a quem Ii Kammon havia condenado ao exílio perpétuo e a quem o Imperador agora por último delegava a expulsão dos estrangeiros; e faz melhor: consegue a aliança do seu jovem chefe Iyemochi com uma princesa ainda mais jovem, irmã legitima do Micado; pomposo casamento que se realizou em 15 de dezembro de 1860.

Nada disto porém impediu que continuasse cavado o abismo entre as duas Cortes, como não impediu que se desse, para mais agravá-lo, o seguinte revoltante fato: precisando Mito recompor uma parte desmantelada das trincheiras do seu castelo e estando com toda a gente ocupada, mandou chamar de fora alguns pedreiros; apresentaram-se oito sujeitos com o traje característico daquele ofício e armados de picaretas, martelos e alavancas (no Japão cada artífice trazia sempre o seu uniforme próprio). Confiou-lhes o príncipe o trabalho e foi em pessoa mostrar o que havia de fazer. Os oito operários desceram com ele ao fundo das fortificações e lá, vibrando as ferramentas que levavam, o trucidaram e mais a dois pajens que o acompanhavam. Aos gritos destes últimos, acudiram as sentinelas, mas antes já os assassinos tinham galgado os fossos e mergulhado nas valas sem deixar rastros de si. Eram os oito samurais que em Yedo sobre o cadáver de Ii Kammon haviam jurado vingar-lhe a morte.

Semelhante crime, tão vil e traiçoeiro, tão contrário aos usos cavaleirescos do japonês do tempo, achou enorme repercussão na alma generosa do povo, a quem sem dúvida não desagradava um homem que só tinha coração para amar o seu imperador e odiar os estrangeiros; pelo menos todas as classes armadas, até mesmo as hostes do Shogun, viam em Mito a legítima e briosa expressão do velho sentimento nacional. A nódoa daquela covardia chegou para todos os samurais que foram de Ii Kammon; alguns rasgaram o ventre sentindo-se desonrados; e, sabendo-se que Iyemochi ao ouvir falar do monstruoso crime, tivera um mau sorriso e nenhuma providência dera para castigar os criminosos, nobreza e povo começaram a ver nele um Tokugawa degenerado e um dinasta perverso, apesar da sua extrema juventude e natural donaire que o faziam simpático aos olhos da nação. O Imperador, desde esse fato, começou a desdenhá-lo.

Com a morte do seu idolatrado chefe, os nativistas de Hitachi e Chimoosa sentem-se desamparados, ali tão cerca de Yedo, valhacoito do estrangeirismo, e tão longe do extremo sul, onde palpitava o coração da pátria. O sucessor natural de Mito era uma criança e no horizonte político da nação não havia ainda então apontado o vulto juvenil e petulante de Mori Daízen, príncipe de Nagato, parente do assassinado, e que foi quem o secundou no ardor da convicção e na audácia franca de sustentá-lo pelas armas.

À falta de sinceridade e firmeza nos chefes nativistas, ganhava terreno a causa dos estrangeiros, fortalecida agora pela veemência do novo Shogun; herdeiro de muito ódio e muita sede de vingança contra os inimigos da sua dinastia. Mas, enquanto com mil disfarces, e às pressas se levantavam em Yedo, no Coten Yama, terreno de propriedade particular dos Tokugawas, os edifícios destinados às legações ocidentais, ia minando o pais nas mais fundas camadas até aí indiferentes à agitação política, um surdo mal estar, uma angustiosa desesperança no futuro, um desses perigosos descontentamentos do povo, que são já principio de raiva e revolta contra os que governam. Entretanto, nem uma só parcela de tal repugnância pública visava a pessoa do Micado, porque o pobre povo, na sua instintiva vidência, compreendia, adivinhava, que contra os invasores da pátria, só havia agora em campo duas vontades sinceras — a dele próprio e a do Imperador, dois utopistas, dois ignorantes da vida nova, dois ludibriados pelas ambições dos outros, desses outros que só faziam política de intriga, tratando cada qual do seu particular interesse. O Shogun, a Corte Shogunal, a Corte Imperial, os príncipes do Sul, os príncipes do Norte, todos disputavam entre si o maior quinhão de domínio público sem cogitar nenhum deles da ferida que fazia gemer a pátria apunhalada.

Mas esse contínuo gemido sem socorro pode transformar-se em uivo de tempestade feroz; aquele surdo e recalcado desespero pode de súbito fazer-se aspiração nacional e rebentar com fúria, devorando todos os poderes constituídos para só deixar firme e de pé as duas expressões sinceras da nação — O Micado e o povo. Foi isto o que não souberam ver, o Shogun, nem os senhores feudais, nem a Corte do Imperador, nem o seu próprio partido. É fácil enganar diplomatas estrangeiros, mal conhecedores do verdadeiro mecanismo político do país que os engana; é fácil mistificar um monarca espiritual, sofismar-lhe as ordens e torcer-lhe a vontade ao sabor dos ministros que ele supõe governar; mas iludir um povo ferido no seu patriotismo, isso deixa de ser difícil para ser impossível e só pode ter conseqüências desastrosas para o temerário que o surpreender. E foi isso justamente o que aconteceu. Muitos soldados começam logo a abandonar entristecidos os seus nobres chefes, a quem de corpo e alma obedeciam, para se incorporarem à ventura, sem patentes nem garantias, aos grupos sediciosos que se vão formando entre os samurais do sul e os roninos de todo o Império. O recente partido do Imperador estala em pedaços, e cada cisão é mais uma nuvem sinistra que vai bandear-se com a tempestade iminente. Em breve de Hitachi e Chimoosa, as duas províncias viúvas do único príncipe com que contava o povo, surgem multidões armadas que chegam até às portas da capital do Imperador, soltando o mesmo grito de guerra do partido despedaçado, mas agora não como simples embuste para agradar ao chefe e sim fazendo dele o sincero programa do seu ideal político. "Honra ao Micado! Fora os bárbaros!" é agora um ardente grito d'alma e há de ecoar por todos os recantos do país até a explosão da mina.

E começam os saques e as pilhagens, porque toda essa gente que grita, de mãos arrancadas para o céu e olhos desvairados pelo ódio, já não trabalha nem ganha com que comer. O terror invade os campos abundantes e os centros populosos por onde voa essa multidão devastadora, mas ninguém, por medo ou espontânea cumplicidade, não se atreve a denunciar um deles. E das mãos do lavrador e do operário arrancam as ferramentas para as transformar em armas de combate.

Todavia, essa gente, que os alheios historiadores do Japão tratam com tão negro e desabrido rancor; essa gente que exerce a pilhagem para não morrer de fome, nada mais quer do que a deixem morrer gloriosamente defendendo a pátria ferida e sem socorro, a tenda em que vivem honrada e feliz e que agora, tão mesquinha! parece abandonada dos seus divinos príncipes e dos seus humanos deuses. Essa alucinada farândola, que lá vai, legião de espectros! — a correr, uivando através dos campos e das cidades, de província em província, de castelo em castelo, anda doida, como seu Imperador, à procura de uma espada que a conduza contra os malditos abutres que lhe invadem o ninho paterno. É morto porém o grande Mito, o homem que partiu o coração em duas conchas, para encher uma de amor nativo e com ela dar de beber à sua raça, e a outra de ódio envenenado reservada às que viessem lá de fora banquetear-se no inviolável e sagrado arquipélago de Amateras; é morto o grande Mito, e os príncipes que aí restam de pé, nem parecem descenderem dos preclaros daimos dos tempos heróicos — Satzuma negou-se a comandar o bando desamparado; negaram-se outros; negaram-se todos.

Então, como as primeiras bolhas de uma efervescência subterrânea, irrompem por aqui e por ali, em plena rua das duas capitais e das cidades imediatas, represálias cruéis já ensopadas em sangue: no dia 14 de janeiro de 1862 assassinam em Yedo a golpes de machado o Secretário da Legação norte-americana, Heusken, então interinamente encarregado de negócios, e que acabava de representar papel saliente nas pretensões internacionais do seu país; em 15 de julho do mesmo ano, o templo cedido pelo Shogun à Inglaterra para ai fazer funcionar provisoriamente a sua Legação, é atacado durante a noite e são estranguladas as duas sentinelas inglesas que o guardavam e detruídos todos os móveis, escudo d'armas, bandeiras, livros e papéis que havia dentro; em seguida é uma tentativa de morte contra Ando Tsusima, que escapou gravemente ferido e inutilizado para o resto da vida, tendo de abandonar por vez o Governo no qual persistia em atividade como ajudante d'ordens de Iyemochi; depois foi uma descarga de arcabuzes contra um grupo de cinco estrangeiros que passeavam no Tokaido e o assassínio do inglês Richardson; logo adiante o incêndio da nova Legação da Inglaterra, cujo edifício se acabava de construir no parque de Goten Yama em Kioto; e outros, e outros desforços se sucederam, e outros e outros terão de vir, e as provocações por parte dos nacionais se irão multiplicando cada vez mais cruas e destemidas. O bando impetuoso avulta e enrobustece de dia para dia; já não é a humilde farândola que suplicava um braço armado, é agora um indômito vulcão que rola de norte a sul, de leste a oeste, deixando atrás de si o arquipélago aceso na cólera por ele desencadeada; é um baluarte ambulante que à nação inteira se impõe pelo desespero da causa que o agita; é uma força tempestuosa, desordenada e cega, que depois de varrer a necrópole dos Tokugawa em Nikko, decepando as centenas de ídolos de granito celebrados dos shoguns passados, vai à Corte Imperial tomar-lhe contas pela infame lentidão e covarde cautela que estão pondo seus membros em cumprir as ordens do Chefe do Estado, e vai depois ao castelo do próprio Imperador para pedir-lhe que se não deixe ludibriar por mais tempo, que abandone a sua túnica celestial, envergue as armas dos seus antepassados de antes de Yoritomo e venha cá fora à rua, entre o seu povo, repelir à frente dele os bárbaros atrevidos.

O soberano não aceitou o alvitre, mas atendeu comovido aos que reclamavam; chegou a mandar, contra todas as fórmulas da etiqueta micadoal, descer as portas do chiro, abrir as portas do sagrado recinto e mostrar-se à multidão, envolto espectralmente da cabeça aos pés, num enorme véu todo negro, que lhe não deixava transparecer o menor vislumbre das suas formas de homem.

A multidão prosternou-se com um gemido de súplica, emborcando por terra, braços estendidos, rosto colado ao chão. E aquela imóvel sombra divina, daquele mistério todo negro, uma voz saiu e ressoou, amiga e humana, no meio do religioso silêncio, como um balbuciar de bênçãos enviadas pelo céu. A boca do santo falou pela segunda vez, para dizer:

- O espírito dos meus avós penetrou vossas entranhas e é convosco! A vossa vontade é a vontade do meu coração, e ela se fará verdade, se os Deuses a quem pertenço me não tomarem antes para junto de nossa mãe formosa e cheia de luz. Em nome de Amateras vos digo que tomeis ao vosso lar pelo caminho da satisfação: vou remeter ao Shogun ordem terminante para repelir os bárbaros. Ide vós, e que os olhos de Izananmi vos acompanhem pela estrada!

Cerrou-se o reposteiro do santuário e desapareceu o divino espectro. A multidão ergueu-se com um suspiro de consolo, e foi feliz e reconfortada de esperança que retirou do sagrado reduto, bradando o seu grito de guerra contra os estrangeiros e em honra do Micado.

Este, cumprindo o que acabava de prometer, expediu logo ao Shogun por cinco kugês uma ordem escrita de seu próprio punho, na qual, descobrindo-se de novo, fazia já sentir bem ao vivo a sua ascendência monárquica. Os emissários partiram a galope para Yedo e o bando de nativistas atirou-se a correr na mesma direção.

Eis o que dizia a carta do Imperador:

Desde a primeira vinda dos tais americanos, Eu Micado, dei ordem para varrê-los do meu Império. Não fui atendido. Meu coração vive agitado dia e noite, porque até hoje nada se decidiu com respeito à expulsão dos bárbaros. Entre as forças regulares do Estado e as forças vivas da Nação não existe a menor coerência; de sorte que, em vez de guerra com o inimigo exterior por mim determinada, é a guerra civil que ameaça agora devorar e país. Para evitar esta tão grande calamidade e outras que depois ainda sobrevenham, pois a desgraça é má e medrosa e nunca se apresenta desacompanhada, recomendo ao Shogun que delibere positivamente sobre a expulsão dos invasores, e leve quanto antes esta minha irrevogável ordem ao conhecimento de todos os príncipes fortes do Império. O Shogun, na qualidade de Comandante em Chefe dessas forças, há de achar meios estratégicos de pôr em execução as minhas ordens. Tal é o seu dever e tal é a minha vontade de Imperador.

"Vigésimo oitavo dia do quinto mês" (25 de junho de 1862).

Os nativistas não tardaram a surgir em Yedo, reclamando a execução da ordem imperial e declarando ao Shogun que se achavam prontos a expulsar os bárbaros, se lhes desse ele elementos para a luta. Por única resposta, Iyemochi, que se havia prevenido, mandou destroçá-los pelos seus oitenta mil hattamotos.

Seguiu-se uma infernal tragédia, porque os visionários tentaram resistir e assaltar o castelo e foram completamente esmagados, deixando mais de vinte mil mortos no campo da sua heróica temeridade. Os que conseguiram escapar à rápida carnificina despejaram-se como demônios pelas ruas de Yedo, a lançar fogo em quarteirões inteiros da vastíssima capital. Mas naquele mesmo decreto do Imperador estava implicitamente imposta a anistia dos implicados nos sucessos contra Ii Kammon, e o Shogun, para não desobedecer de frente ao Soberano, teve que desencadear por suas próprias mãos os príncipes inimigos do Shogunato, Owari, Echízen, Uwajima e os outros postos em liberdade vão apresentar-se logo ao Micado e passam, por ordem deste, a exercer altos cargos na Corte Imperial, ou são restabelecidos na posição oficial que dantes ocupavam; por outro lado, o Monarca resolve punir com a supressão parcial nas rendas os daimos que s~ tinham posto ao lado de Ii Kammon.

Como se vê, já em fatos se traduzem os sonhos do divino fantasma e a situação política começa a definir-se. Os príncipes de Satzuma e de Tosa, acompanhados pelo de Nagato, o jovem e ardente Mori que até então não tinha aparecido na cena política, vão também apresentar-se ao Imperador e oferecer-lhe os seus serviços na defesa do Trono. Esses três príncipes formavam o mais poderoso núcleo de resistência entre todos os daimos do Império. Komei recebeu-os nadando em júbilo e entregou-lhes logo a guarda e segurança da sua capital, agora a regurgitar de população com o enxurro fugitivo dos litorais; gente fraca e desarmada que, no momento do perigo, ia abrigar-se estarrecida de medo à protetora sombra do filho dos deuses. Volvia esse povo, como no principio da sua formação étnica a agremiar-se em torno do centro espiritual da sua raça.

Para a sagrada Kioto voltavam-se todas as vistas, e os fidalgos não ligados diretamente ao Shogun por interesses dinásticos de família, cargo público ou solidariedade política, entraram de abandonar Yedo que era nessa época, como ainda é hoje, a maior e mais importante cidade do Japão; nos rastros da nobreza seguem também os artistas e os obreiros, e afinal os mercadores, com a tenda às costas, arribam por sua vez. É o abandono palpável da capital do homem mau. O restante da população levanta-se em massa, e da noite para o dia a incomensurável Yedo despovoa-se de todo, não ficando lá senão os Tokugawas, os hattamotos, e a Corte de Iyemochi com as suas duas câmaras, e os seus samurais e funcionários permanentes

Por essa ocasião, a 15 de abril de 1863, o Ministro plenipotenciário da Inglaterra, em termos arrogantes, reclama uma indenização de cem mil libras esterlinas pelo assassínio de Richardson, desculpas formais pedidas pelo Governo Japonês ao Governo daquela Potência, e a execução dos criminosos diante de uma força naval da Marinha Britânica que iria à terra só para esse fim; e mais vinte e cinco mil libras pelos feridos em diversas ocasiões, e mais dez mil pelas duas sentinelas mortas no ataque à legação provisória, limitando em vinte dias o prazo para uma resposta categórica e declarando que, no caso de recusa ou negligência por parte do Governo Japonês, passaria a questão às mãos do Comandante em Chefe das forças navais de Sua Majestade Britânica nas águas do Extremo Oriente, o Almirante Kuper, para que tomasse este as medidas coercivas que lhe parecessem acertadas.

Bárbaros lhe chamavam os filhos do país, e com razão, porque bárbaro não é só o que comete barbarias, é também todo aquele que comete barbaridades.
---------------------
continua...
--------------------
Fontes:
http://www.biblio.com.br
Pintura =
http://meublocodeanotacoes.blogspot.com