sexta-feira, 3 de julho de 2009

Rodrigo de Souza Leão (4 Novembro 1965 – 2 Julho 2009)



Rodrigo Antonio de Souza Leão nasceu em 4 de novembro 1965. Formado em jornalismo, tem poemas publicados no "O Correio das Artes", revista Babel e fez parte da I Mostra de Poesia Carioca. É autor de vários livros em formato pdf (e-book/Virtualbooks). Finalista do Prêmio Uapê/2001. Consta da antologia Na virada do século – Poesia de invenção no Brasil. Tem resenhas e reportagens publicadas em O Globo e Rascunho (Paraná).

Graduado em jornalismo no ano de 1988, Rodrigo só pôde exercer plenamente a função de repórter dez anos depois de formado. Um acidente de carro tirou-lhe momentaneamente do trilho jornalístico. Durante o período de recuperação solidificou a sua formação na área de humanas. Foi colocando os vagões em ordem e escrevendo seu romance Carbono Pautado, revisado pelo escritor Luiz Antonio Aguiar.

Mas antes do acidente, nos anos oitenta é que começa a surgir espaço para a arte na vida do jovem. É na efervescência cultural daquela época, em meio a aurora do rock Brasil, que começa escrevendo letras para o grupo punk Eutanásia. Não demora muito e forma com João Athaide, o grupo PátriArmada - próximo ao estilo new wave e ao pós-punk. Participa da cena carioca. Faz apresentações nas danceterias Metrópoles, Circo Voador, Let it Be, Made in Brazil.

Participa como vocalista e letrista de outras bandas como Morganas, Ensaio a 4.Assina seu primeiro direito autoral em 1988. A música se chama Esquina do Pecado e tinha a co-autoria de André Trigueiro e Billy Brandão, na ocasião, bateristas e guitarristas da banda homônima ao título da canção.

.Estuda canto lírico no conservatório Villa Lobos, com o tenor Paulo Barcelos, a quem deve a sua formação musical. Estuda e aprende a gostar da música erudita também.Começa a trabalhar na SASSE A Seguradora da Caixa. Trabalha na Assessoria de Imprensa e no setor de Marketing.Concilia estudo/trabalho/música. É convidado a participar da equipe do programa Informe Imobiliário,na TV Corcovado, canal 9, Rio de Janeiro.
Assume as funções de editor e repórter.

Em 1989 sofre o acidente de carro, assunto que ainda retine no interior do jornalista e vibra de forma estranha dentro do poeta. Tanto que detesta falar sobre o passado.

A recuperação é lenta. Há pouca melhora até 1994 quando volta a escrever. Ressurge das cinzas. Fênix? Nasce do zero. Ele ainda é o "garoto" que começou a escrever em O Preto no Branco, jornaleco do colégio Brasil América, que fazia oposição ao presidente do grêmio e não menos amigo Marcelo Paixão.Conclui (em 1995) Carbono Pautado. No mesmo ano compra um computador e ingressa na internet, ocasião em que estava surgindo o Poesia Diária, de Cláudio Alex. Trabalham juntos.

Cria o CAOX, sítio cibernético e o Boletim do Caox, um e-zine dedicado a veiculação de poesia na web.Em 1996 nasce o Balacobaco, entrevista.Soares Feitosa disponibiliza no Jornal de Poesia as entrevistas de Rodrigo de Souza Leão. No mesmo ano tem poemas publicados no O Correio das Artes - o suplemento cultural mais antigo do Brasil.

Em 1997 participa e ganha um concurso no programa Esporte Real.Seu soneto é lido por Armando Nogueira na TV. Ainda no ano em questão, Affonso Romano de Sant'Anna faz uma crônica, publicada no jornal O Globo, sobre o poema Palmas, onde Rodrigo mostra a indignação diante da realidade brasileira.
Em 1998 é classificado e participa da I Mostra de Poesia Carioca. Publica o livro de poemas Retalhos.

Tem seu trabalho reconhecido em colunas como a do Gravatá e na Revista da Internet.Cria o LERo e o Professor Poesia. Ambos destinados à divulgação de poetas da internet.É o repórter do Conversa aos Domingos. Desdobramento do seu trabalho no PD, agora junto com Asta Vozondas.Rompendo o século, Rodrigo participa da criação da Revista Agulha.
Edita quatro números junto com Cláudio Willer e Floriano Martins.

Em pleno ano 2000, suas atividades atuais são ligadas ao seu sítio Caox, onde podemos encontrar poemas em mp3, ensaios e entrevistas com grandes nomes da literatura brasileira. Continua como compositor.Trabalha no Jornal Rascunho, do Paraná, até abril,como entrevistador.É convidado por Nara Gil para trabalhar no site do Gilberto Gil.

Recebe a menção honrosa classificando-se entre centenas de poetas no prêmio UAPÊ, divulgado pela REVISTA CULT. È publicado na Revista da Uapê.Tem 12 e-books de poesia na VIRTUALBOOKS.

É convidado para antologia poética do site poetry.com.Publica em papel Há Flores na Pele, Editora TREMA.

Suas entrevistas estão pelos diversos sites de poetas que entrevistou, cantores e artistas em geral.

Trabalhou no Balacobaco onde recebe auxílio luxuoso da webdsigner Andréa Augusto.
Conta da antologia Na Virada do Século - Poesia de Invenção no Brasil, organizada por Frederico Barbosa e Claudio Daniel.

Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 02 de julho de 2009, de ataque cardíaco, aos 43 anos de idade.

Sobre o seu trabalho poético, Frederico Barbosa se manifesta: “(...) Em tempos de poesia rala, descritiva e intelectualóide, a poesia de Rodrigo de Souza Leão é um antídoto perfeito. Linguagem densa e enxuta a serviço da emoção mais crua. Impossível ler sem sentir um soco no estômago. Impossível não se impressionar. E Rodrigo convoca Rimbaud, Baudelaire, Drummond, todos relidos à luz de nossos dias, todos fazendo sentido. Não estão lá apenas para ostentar conhecimento: significam! O livro se fecha com o seu "resumo" : pulei / de uma janela / deitada // andei / na nata iceberg / do leite // caí / de pára-queda / no nada // subi / cavando / com enxada". Em resumo, é preciso que se conheça a poesia de Rodrigo de Souza Leão. Poesia rara que se faz sentir e que sobe, "cavando / com enxada" dentro do leitor”.

Já Antonio Carlos Secchin assim se expressou diante da poesia de Rodrigo Souza Leão: “é necessário distinguir a necessidade intrínseca de expressão (que pode demandar variadas formas) do virtuosismo verbal; no seu caso, a meu ver, convivem ambas as vertentes. Metáforas originais, arraigadamente pessoais (o melhor de sua poesia), ao lado de certas facilidades retóricas, como por exemplo o fluxo próximo ao surrealismo e a insistência escatológica,”

Produção Literária :

Em papel:

Retalhos (Ed. PD) e Há Flores na Pele (Ed. Trema e Ed.Manufatura).

Formato e-book:

XXV Tábuas
No Litoral do Tempo
Síndrome
Impressões sob Pressão Alta
Na visícula do Rock
Miragens Póstumas
Meu primeiro Livro que é o Segundo
Uma temporada nas Têmportas
O Bem e o Mal Divinos
Suorpicios Mind
Omar

Ainda em home page:

A paz amanhahoje
Já prontos faltando digitar:
Aparelhos, Poemas Longos, Poemas para Sylvia,
Poemas para Bruno, 1 litro de loucura e 500 gramas de razão, Antígona 6, Poemas Avulsos e Poemas para Marina (Livrinho infantil lindinho).

Romances finalizados:

Memórias de um Auxiliar de Escritório (Carbono Pautado) TEXAS

Fontes:
Luiz Alberto Machado
Virtual Books

Rodrigo de Souza Leão (O Escritor em Xeque)



Com um texto atraente e incômodo, Rodrigo de Souza Leão afirma sua condição: poeta. Sua prosa está contaminada de poesia.

No livro Todos os cachorros são azuis, o autor narra, através de uma experiência autobiográfica, a trajetória de um homem internado no hospício. E destaca três momentos da vida do personagem – infância, adolescência e fase adulta – para costurar uma narrativa marcada pela fragmentação do ser humano, característica que dialoga com a produção de alguns autores contemporâneos.

Não leia o livro à espera de linearidade, pois é justamente a ausência dela que prende o leitor. A escrita de Rodrigo torna-se mais valorosa quando lembramos que trata-se de uma autor esquizofrênico – como ele gosta de deixar claro. O escritor tem a generosidade de mergulhar no seu rico inconsciente e nos apresentar personagens que não conseguimos enxergar em nosso cotidiano.

Personagens delirantes apresentam momentos de lucidez. Rodrigo durante a entrevista concedida em sua casa, na Lagoa, apresentou o avesso de sua criação: lúcido com emocionantes instantes de delírio.

Ler esta entrevista e os livros do autor é abrir uma janela a inúmeros estados de consciência, mergulhar no desconhecido, enxergar através de uma lente azul – como propõe o narrador. Desejo que Rodrigo Souza Leão tenha sempre facilidade para publicar seus escritos; os leitores agradecem.

Por que o título do seu livro é Todos os cachorros são azuis?

Rodrigo Souza Leão – Na minha primeira infância eu tive um cachorro de pelúcia azul. Depois esse cachorro sumiu e nunca mais eu vi. É forte lembrança desse tempo. Como o livro fala de três fases da minha vida, resolvi fazer o link com minha infância. Mas nenhum cachorro é azul, é bom deixar claro. Só os cachorros de pelúcia são azuis.

Você tem alguma cor predileta?

Rodrigo – Eu gosto de azul e preto.

Você escreve prosa e poesia. Como surgiu seu interesse pela Literatura?

Rodrigo – É uma história longa. Você tem tempo?

Sim, pode falar.

Rodrigo – Eu comecei escrevendo poesia. A Suzana Vargas foi minha professora na Estação das Letras. No meu primeiro dia de aula, ela pediu que os alunos escrevessem um texto para ser comentado. Mas meu texto não foi escolhido para ser lido. Fiquei muito triste. O texto era assim:

a bomba é a solução / pra essa situação / pra crise geral / pro imposto territorial

Fala dos problemas políticos do país. Depois virou um hino punk através do grupo Eutanásia, onde meu irmão tocava bateria. Meu irmão me roubou essa parte da letra e colocou na música dele. Eu nunca quis ser escritor, meu plano era ser vocalista. Na década de 80, tive uma banda chamada Pátria Armada. Fizemos show no Circo Voador, na Metrópolis, no Made in Brazil – casas de shows da época. Minha meta de vida era ser músico.

Você toca algum instrumento?

Rodrigo – Eu toco um pouco de violão, mas só para compor. Minha voz fica boa impostada, perdi muito poder vocal por causa dos remédios que eu tomo.

Porque você toma os remédios?

Rodrigo – Para controlar o meu distúrbio delirante, minha esquizofrenia. Aos 23 anos tive um sério problema, identificaram a esquizofrenia. Hoje em dia usam muitos eufemismos para essa doença.

A Dra. Nise da Silveira batizou a esquizofrenia de ‘inúmeros estados do ser’...

Rodrigo – Nise da Silveira é maravilhosa, uma mãe. Mas voltando aos 23 anos: Tive um problema sério quando trabalhava na assessoria de imprensa da seguradora da Caixa Econômica. Foi uma crise de estresse muito elevado. Eu já era esquizofrênico, mas nunca havia manifestado a doença. Aos 15 anos, eu achei que tinha engolido um grilo – esse episódio está no meu livro. Aos 23 anos, no dia 03 de setembro de 1989, eu fui internado pela primeira vez, se não me falha a memória. Fui internado numa clínica, que não vou dizer o nome para não ser processado. Me colocaram camisa de força, me jogaram num cubículo e me deram um ‘sossega leão’. Mas o hospício em si não é a pior coisa do mundo. Porque, geralmente, não se sabe lidar com a loucura. Para família é muito complicado, ela se ver impelida a internar. O louco quebra a casa toda, faz um monte de merda, como aconteceu comigo na segunda internação. E pra onde você vai mandar esse cara? Eu sou a favor da luta antimanicomial. Acho que manicômio não resolve o problema de ninguém, só piora. Aqui está meu irmão, que é bipolar de humor, para comprovar. Na minha casa há histórico familiar de problemas mentais. Ele teve duas internações, na segunda vez ele ficou totalmente fora de si.

Se pudesse caracterizar o estado mental em que se encontra, o que diria?

Rodrigo – Eu falaria que eu sou esquizofrênico. Isso quer dizer que sou uma pessoa que necessita de certos cuidados: preciso tomar remédios específicos, viver uma vida diferente das outras pessoas e conseguir viver dentro das minhas ‘nóias’. Tenho que saber que a minha paranóia é paranóia e aprender a conviver com ela. A palavra-chave é convivência. É a convivência com a diferença. O meu ser é diferente dos outros. O esquizofrênico tem que ter uma sensibilidade para entender que é diferente. E sobre os eufemismos, isso é besteira. Falam “clínica” ao invés de “hospício”.

Não é difícil falar e escrever sobre doença?

Rodrigo – Hoje em dia é tranqüilo. Mas teve um tempo em que eu nem tocava no assunto. Até começar a minha relação com a internet eu não falava da doença. Escrevo mais poesia do que prosa. O meu primeiro livro chama-se Há Flores na Pele, só há um poema que fala de loucura. Eu falo da doença porque nunca gostei de psicólogos. Psicologia não resolve nada. Você fica batendo papo, conversando e nada. Fiz análise dos 12 aos 18 anos e não resolveu nada. Eu já tomei eletrochoque, mas com sedação. E esse eletrochoque é muito bom porque melhora muito o doente. Sério! Não é aquele eletrochoque tenebroso que era aplicado no tempo da Dra. Nise. Aquilo era um absurdo. Quem tirou o meu irmão da fase ‘abobalhado’, durante a crise psicótica, foi esse eletrochoque.

A arte tem um papel importante na sua vida. Certo?

Rodrigo – Justamente. Eu comecei a pintar há pouco. Mas escrever é uma coisa que vem. Eu só comecei a falar após a minha segunda internação. Fui internado duas vezes em 1989 e 2001, acho. Sou péssimo com datas e números, não sei nem meu telefone decorado. Essa segunda internação foi difícil, traumática, mas foi muito boa pra mim. Eu conheci lá dentro um cara chamado Gilberto Sabá, que foi guitarrista do Serguei, e gente tocava o terror. Ele que fez aquela música: ‘Toca um, toca dois, toca três. Toca, toca, toca rock and roll...’ A gente arrumava um violão e tocava para maluco dançar. (RISOS) Eu e ele éramos as pessoas mais lúcidas. Essa clínica onde fiquei era muito bonita, cheia de flores e árvores. Costumo dizer que hospícios são lugares tão bonitos que lembram cemitério. Eu ficava muito tempo fora do quarto vendo a paisagem, vendo a copa das árvores e escrevendo algumas coisas.

Sua prosa me lembra a poesia da Stella do Patrocínio. Conhece?

Rodrigo – Sim. Uma louca, lançaram um livro pela editora Azougue. Isso acontece porque a loucura é igual para todos. O bipolar de humor tem momentos de euforia e depressão, com momentos tristes e maravilhosos. Se o bipolar tomar remedinhos, como Lithium e Haldol, ele consegue se curar em longo prazo. A cura não é imediata porque precisa da conscientização da doença. A pessoa que tem distúrbio delirante acha que está sendo perseguida por agentes e policiais. Você acha mesmo que está sendo perseguido! Eu nunca tive visões. Ou melhor, tive visões quando fiquei uns cinco meses sem comer em casa porque achava que estava sendo envenenado pela minha família. Eu só comprava comida fora, fiquei muito tempo sem dormir.

(BRUNO, IRMÃO DE RODRIGO, SE APROXIMA E COMEÇA A PARTICIPAR DA ENTREVISTA)

Você tem uma lucidez muito forte em relação a isso.

Rodrigo – Não sei se é lucidez ou excesso de sofrimento. Eu sofri muito com minha doença, só eu sei o quanto eu sofri. Meu irmão também sabe.

Bruno – Sou assessor dele.

Rodrigo – Ele é meu assessor para assuntos estratégicos. (PAUSA) O sofrimento fez com que eu tivesse um insight. Mas minha vida tem muitas limitações, por exemplo, não saio de casa, sou recluso. Tenho medo de ser perseguido por agentes. É uma coisa absurda. Você está vendo um cara lúcido dizer que tem medo de ser perseguido por agentes. Mas essa é a minha doença. O que eu posso fazer?

Bruno – Quando arranja uma namorada ele sai. Pra ir ao motel...

Rodrigo – Só saio um pouco quando arranjo uma namorada.

Você namora muito?

Rodrigo – Namorei muito até os 23 anos. Eu era muito bonito, mas não sou mais por causa dos remédios. E não vejo no relacionamento a solução para os meus problemas. Se eu quiser ficar com uma garota, ela vai ter de se adequar muito a mim. Porque o problemático da relação sou eu. É difícil conciliar uma relação com alguém que não pode sair. Gosto de ficar na minha casa vendo filme e jogos de futebol. Sou 'flamenguista doente'. Hoje em dia as pessoas só querem ir para festas e barzinhos. Eu não posso beber porque tomo remédio tarja-preta, tomo Haldol.

Bruno – Mas faz sexo...

Rodrigo – Mas isso não tem contra-indicação. Eu já tomei muitos remédios. Mas me dei bem com esse remédio, embora dê tremor, mão fria e salivação.

Você é formado em Jornalismo.

Rodrigo – Sim. Me formei em Jornalismo pela Faculdade da Cidade (atual UniverCidade). Eu não consegui me formar por uma faculdade federal, mas tive bons professores: Fernando Muniz, Lúcia Padilha, Ítalo Moriconi... Tive uma formação muito interessante. Meu lance nunca foi jornalismo, eu queria ser locutor de rádio. Ouvi muito a Rádio Cidade e a Rádio Fluminense com Maurício Valladares. Mas o que restou na minha vida foi escrever. O que sobrou? Escrever. Eu já fazia letra de música, depois passei a escrever poemas. Acredito que algumas letras de música são poemas.

Há letristas que são poetas.

Rodrigo – Sim. Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Gilberto Gil e Chico Buarque são maravilhosos.

Você sempre gostou de ler?

Rodrigo – Não. A leitura foi um hábito que adquiri após minha primeira internação. Eu fiquei muito tempo em casa e devorei Proust e James Joyce. Li muito o Rubem Fonseca, gosto muito dele.

Você tem um livro de poesia chamado Carbono Pautado – memórias de uma auxiliar de escritório.

Rodrigo – Sim. Mas esse livro só foi importante para que eu pudesse ver como foi a minha vida.

Sua escrita é muito fragmentada, uma característica muito presente no texto dos autores contemporâneos...

Rodrigo – Nós vivemos em tempos esquizofrênicos. Muita gente tem depressão ou síndrome do pânico. É uma sociedade que está doente porque dá valor ao que não se deve: o dinheiro. O ser humano viveria muito mais se parasse com essa babaquice de querer dominar o outro.

No seu livro, Rimbaud e Baudelaire são influências?

Rodrigo – Mais Rimbaud do que o Baudelaire. Li a obra completa do Rimbaud, que é bem curta. Gosto muito da "Canção da Torre Mais Alta":

Juventude preza / A tudo oprimida / Por delicadeza /Perdi minha vida.

Acho essa poesia sensacional! O Rimbaud é muito presente na minha vida. Eu tive muitos livros. Mas teve uma época em que eu achei que ia morrer, então fiz uma grande liquidação de livros. Peguei todos os meus livros, separei, dei os que eu queria dar e vendi todo o resto. Dei um disco incrível do Roberto Carlos, Nas Curvas da Estrada de Santos, para um cara que estava num sebo.

Bruno – Meus discos do Iron Maiden foram juntos...

Rodrigo – É, os discos do meu irmão, que gosta de heavy metal. Eu só fiz essa grande liquidação porque eu achava que fosse morrer. Mas eu sobrevivi. A minha condição de vida é a seguinte: vivo o presente. Como estou vivo, faço um melhor dia pra mim. Eu não faço projeto a longo prazo. No edital da Petrobras eu deixei claro que o meu livro estava quase todo pronto e eles aceitaram assim mesmo. Mas o meu livro foi rejeitado pela Casa do Psicólogo. Eu pensei: Nem os psicólogos estão do meu lado? Logo na Casa do Psicólogo? Num lugar em que eu deveria ser tratado a pão de ló.

Mas você conseguiu aprovação na Petrobras.

Rodrigo – Esse projeto foi muito importante. Eu não tinha dinheiro para bancar meu livro. Apesar de viver nesse apartamento na Lagoa e parecer rico, não tenho muita grana. O dinheiro vai para serviços, remédios e outras despesas. Fui aposentado por invalidez aos 23 anos, não recebo muito. Eu consegui publicar graças à Petrobras e à 7 Letras. Mas no início a Petrobras não acreditou muito, mandaram duas psicólogas para me avaliarem. Elas diziam: ‘Ele tem problemas cognitivos, problemas X, problemas Y’. Foi ótimo porque depois dessa avaliação “não preciso” ter mais problemas.

Você é otimista em relação a sua carreira de escritor?

Rodrigo – Não. Mas acho que fiz um livro bom, intenso e mágico. Estou escrevendo outro livro: Tripolar, um livro de mais confronto com a linguagem. São três novelas que não se comunicam. Tenho uma postura positiva, mas não sou ufanista em relação a vida. Não acho que vou viver de literatura. Mas acredito no que eu faço. Vou ganhar prêmio? Isso é imponderável.

Bruno – Vai ganhar o Jabuti.

Rodrigo – Não vou ganhar.

O que é mais importante na sua vida?

Rodrigo – O mais importante, no momento, é eu não saber o que é a coisa mais importante na minha vida. É saber colocar importâncias variadas. É importante que eu continue estável e consiga viver o máximo de tempo possível.

Você quer viver muito?

Rodrigo – Não. Eu espero viver pouco. Se eu conseguir viver até 50 anos ficarei contente. Porque viver muito é para quem não tem problemas. Quando a pessoa tem muito problema é até melhor morrer cedo porque se livra um pouco dos traumas e angústias. Sou uma pessoa muito traumatizada. Mas feliz! Eu sou feliz. Posso dizer que sou muito feliz, mais feliz que a grande maioria das pessoas. Eu sou feliz. Eu não estou realizado porque ainda estou no meu primeiro livro. Estou na batalha para publicar um livro há muito tempo, desde os 27 anos.

Você acredita em Deus?

Rodrigo – Por muito tempo eu li Nietzsche: Assim falou Zaratustra. Li todos os livros de Nietzsche quando eu tinha vinte e poucos anos, eu adorava filosofia. Então a minha relação com a religião é mais calma. Eu rezo três orações antes de dormir, minha avó que ensinou: Oração a São Miguel de Arcanjo, Pai Nosso e Oração a Nossa Senhora da Cabeça.

Salve Imaculada, Rainha da Glória, Virgem Santíssima da Cabeça, em cujo admirável título fundam-se nossas esperanças, por sedes...

Agora está me faltando, não estou conseguindo lembrar.

Sem problemas.

Bruno – E ele vê a Igreja Universal do Reino de Deus, todos os dias comigo no quarto.

Rodrigo – Só vejo porque ele vê. Isso não tem nada a ver. Não vejo Igreja Universal.

O que é a morte?

Rodrigo – Eu torço para que exista algo além. Gostaria de ver o que as pessoas acham de mim quando eu estivesse morto. Sabe? A reação das pessoas. Para saber se meu melhor amigo iria chorar, se alguma namorada ia lembrar de mim, se meu livro ia vender depois de morto... Por que depois que morre todo escritor vende.

O que é loucura?

Rodrigo – Isso é engraçado. Porque quando se é um louco folclórico, cheio de indumentária e adereços – tipo Bispo do Rosário, Plínio Marcos, Gentileza –, aí ele é bem-vindo. Eu quero acabar com esse folclore porque eu me visto como uma pessoa normal. Não tem como definir loucura. Loucura é uma coisa perigosa de ser definida, por isso as pessoas falam tão pouco. As pessoas têm uma idéia mitificada da loucura, o Michel Foucault falava disso. Definir loucura é não saber como se está no mundo. Não posso crer que só existam loucos como eu, que têm noção do que é a doença. Têm loucos como o Bruno, que são menos capacitados a isso. E também têm os agressivos. Acho que os hospícios não deveriam misturar os loucos. Assim as clínicas se tornam um depósito de gente. Os oligofrênicos deveriam estar separados dos outros loucos. Eu não vou ser mais internado, eu acho. Vou ser internado só no cemitério do Caju. (RISOS).

O que é a vida?

Rodrigo – A vida é excepcional. É o lugar onde tentamos construir sonhos. Vida é algo que foi dado e só você pode tirar, se você se suicidar. Ou Deus, que também pode tirar. Mas nem sei se Deus existe. Eu sou meio revoltado com Deus. Por que eu fui nascer esquizofrênico? Por que eu não nasci mais alto como o fotógrafo (Tomás Rangel). Eu nasci com 1,70. Eu queria 1.85. (RISOS) Ramon também faz parte da família dos ‘gnomídios’. Você deve se achar um anão. (RISOS).

Por que escrever?

Rodrigo – Escrever foi o que me sobrou. De tudo que tive, foi o que me restou a fazer.

A escrita trouxe vida?

Rodrigo – A leitura me trouxe vida. Eu lia o Proust, anotava umas palavras num papelzinho e no final do dia fazia um poema. Saía uma coisa sem pé nem cabeça. Na prosa eu trabalho o psicológico dos personagens.
O que você diria para um jovem que deseja ser escritor?

Rodrigo – Primeiro: Viva ao máximo! O que importa são os momentos. Se o livro for rejeitado, não desista! Se você gosta de escrever, então escreva para você mesmo. Eu só fui publicado quando escrevi para mim mesmo.

Fonte:
Entrevista concedida a Ramon Mello no Portal Literal

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Trova XXXIV

Trova sobre Caricatura de Maurízio de Reda

X Concurso Depoesia (Finalíssima nesse Domingo)


Estimular e divulgar a produção poética de Sorocaba e das cidades da Região, esse é o objetivo do X Depoesia promovido pelo Instituto Darcy Ribeiro. O concurso é dirigido a pessoas acima de 15 anos.

O Concurso Depoesia é promovido pelo Instituto desde o ano 2000 e já reuniu, nesse período, mais de 350 poesias. Nesses 10 anos de existência, o Instituto publicou vários livros e CDs do Concurso Depoesia.

Serão conhecidas nesse domingo as três poesias vencedoras do 10º Concurso Depoesia, promovido pelo Instituto Darcy Ribeiro. O Concurso recebeu inscrições de 55 poetas de Sorocaba, Pilar do Sul, São Roque, Iperó, Votorantim, Itu e Itararé, classificando 31 poemas para a etapa final através de duas eliminatórias.

O consagrado ator sorocabano Ademir Feliziani, conhecido do grande público por inesquecíveis atuações em peças como “Até o Próximo Adeus”, “A Gaivota”, “Macbeth”, “Ponto de Partida”, “À Flor da Pele”, entre outras, vem interpretando com maestria os poemas inscritos.

Para escolher as melhores poesias do concurso foram convidados o jornalista e dramaturgo Gai Sang, responsável por textos como “Os Maus se Perfumam com Gasolina”, “Anjos e Cowboys”, O Castelo do Bispo”, entre outros; Cida Muniz jornalista e atriz de peças como “O Baile”, “Ritos do Amor e do Esquecimento”, “A Fúria”, entre outas; e Maurício Toco, professor e músico, integrante do grupo Mad Dog Blues.

Após a premiação será realizada a cerimônia de entrega do troféu Darcy Ribeiro ao ator Ademir Feliziani por sua contribuição ao teatro sorocabano. O prêmio foi instituído pelo presidente do Instituto, professor Armando Oliveira Lima e visa homenagear pessoas ligadas a cultura.

A final do Concurso Depoesia ocorre nesse domingo, dia 05 de julho, às 19 horas, no Arara Aurora Bar (rua Pandiá Calógeras, 443 - próximo a Rodoviária).

Fontes:
Douglas Lara
Portal Sorocabano

Roberto Gomes (1882 – 1922)


O que mais impressiona na literatura dramática brasileira é quando nos deparamos com aqueles autores singulares, praticamente desconhecidos e que ficam com parte significativa da obra teatral inédita, e que, por vezes, por mais que os estudiosos ou 'testemunhas dramatúrgicas' lhes propaguem as qualidades literárias e teatrais, os textos não saem das gavetas e prateleiras, ou seja lá onde se amontoem a literatura dramática do Brasil.

Assim também se dá com Roberto Gomes, nome tão simples mas de dramaturgia tão complexa e que não pode ser dividida. Autor que se deixou viver muito pouco, se suicidou aos 40 anos, e de obra não tão grande, porém não menos expressiva, queda-se no esquecimento, considerando ainda que à época de vida do autor o teatro brasileiro passava uma daquelas suas fases de crise, ou seja, tudo se fazia no palco menos teatro. Estamos entre 1897 a 1922, período ativo de dramaturgia para Roberto Gomes.

Autor de um refinamento de cultura e expressão muito agudos, adquirido nos estudos ora no Brasil ora na França, podemos dizer que é o autor certo para a hora errada. A consistência dos diálogos e de temas fez de Roberto Gomes um exemplar único da sua época e de sua geração, talvez único na dramaturgia brasileira.

A semana de arte moderna ficou manca de teatro e talvez isso tenha afetado o autor profundamente, pois que já esquecido em vida e com sérios problema de depressão, pôs fim a sua vida às 22:30 do dia 31 de dezembro de 1922. Não seria o único injustiçado das artes brasileiras e, especificamente, injustiçado pela semana de arte moderna. Considerando os temas de suas peças em comparativo com o teatro brasileiro de então e a busca pela qualidade dramatúrgica, há que se ter um desconto pelo seu excesso romântico e poético nos textos, mas que com elencos de primeira linha seriam não só obstáculos vencidos como seriam um laurel para as montagens.

O estilo de Roberto Gomes não é de vanguarda, dando um valor superior à palavra, mas sem esquecer a 'vida' do palco. Trata o autor de colocar pequenos discursos com idéias e ideais nas personagens, mas é de se ressaltar que estes pequenos discursos não afetam o andamento das peças, nem seus ritmos. Ainda que o ritmo da dramaturgia de Roberto Gomes seja mais lento do que a vida, digamos assim. O autor coloca uma série de convenções próprias, que vão se revelando minuciosamente e com uma inteligência de palco incrível ao longo do próprio enredo de suas peças.

O tema fundamental do autor é o tempo e a impossibilidade, do amor, da felicidade... ou seja, seus temas estão muito ligados a dramaturgia francesa de sua época, da qual era um confesso admirador, como de Henri Bataille, por exemplo, e nas letras em geral como Marcel Proust.

Há que ser entendido que Roberto Gomes era filho de um banqueiro com uma dama da sociedade parisiense, foi educado nas primeiras letras escolares em Paris, e lá uma vez mais foi onde começou a se impregnar de teatro, seja atuando ou tentando começar a escrever suas peças, ou ainda tocando sua música. Roberto era um exímio pianista, havendo estudado em Paris, onde se bebia os compositores simbolistas, modernos e de toda a sorte de pianos deprimidos, o que certamente teve profunda influência em sua dramaturgia. O autor, embora nascido no Rio de Janeiro em 12 de janeiro de 1882, começa a escrever suas peças em francês, e depois as traduz quando retorna definitivamente ao Brasil em 1897. Porém, é de registrar que isto não prejudica a dramaturgia de Roberto Gomes, nem mesmo os temas abordados pelo autor. Temos que fazer duas considerações nesse assunto, para que não seja mal interpretado nosso autor em tela. Roberto Gomes escreveu em francês quando residia na França, peças estas que tinham um elevamento de tema, sem colocações sociais precisas (até porque ainda não existia propriamente o teatro social, este se conforma como uma existência em si a partir de 1920 com Erwin Piscator, na Alemanha), restringindo as dores dos personagens ao ambiente burguês, que predominava em Paris, e no Rio de Janeiro também, e em qualquer lugar de cultura ocidental onde houvesse burguesia europeizada. Assim as peças poderiam até estar em servo-croata e não perderiam sua validade intrínseca. A outra consideração, é que o Rio de Janeiro da época do autor era de tal forma parisiense que em nada se perdem os textos. O Rio era uma cidade então capital do país, mas que propriamente não fazia parte deste país. Havia um banqueiro que mandava suas camisas serem lavadas na França por causa das águas do Rio Sena, para se ver a que ponto chegava a burguesia carioca de então, na tentativa de reproduzir a vida de Paris!

Os textos de Roberto Gomes que seguem a sua moradia no Brasil, já com ambientações em salões de Petrópolis e outros elitismos, fixam exatamente este exagero de tentativa da reprodução de Paris nos trópicos, sem entretanto serem críticos em relação a isso. Eles ambientam os salões da burguesia carioca e fluminense com busca de identificação, inclusive, do próprio autor que freqüentava estes salões.

Roberto Gomes escreve em prosa, mas com ritmo de poesia. Seus textos contam sempre com acabamentos literários perfeitos, e ainda teatralmente bem compostos. Única no gênero da literatura teatral brasileira, a obra de Roberto Gomes ainda está por ser verdadeiramente descoberta pelos homens de palco do Brasil.

Vale conferir a publicação de suas obras completas pela FUNARTE/IBAC, ou seja lá que nome tiver atualmente o órgão cultural do governo; atentos, sobretudo, às peças A Casa Fechada e Ao cair da tarde.
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Abaixo veja a peça teatral A Casa Fechada, na íntegra
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Fonte:
Marcos André Tavares , no artigo Roberto Gomes, um raro simbolista para O Cisco Tonitruante

Roberto Gomes (A Casa Fechada)


ATO ÚNICO

(Uma rua tristonha, numa cidade do interior. Uma lagoa reluz ao longe. Ao fundo, à extrema direita, uma casinha de duas janelas, separada da rua por um pequeno jardim. A casa está completamente fechada. No primeiro plano, à esquerda, a entrada do Correio. Perto da porta, um banco. No centro, ao fundo, um lampião perfila-se diante de uma árvore raquítica. A rua é vista em diagonal. Seis horas da tarde.)

CENA 1

(Dona Sinfonia, Joaquim Aguaceiro, Mendigo,Pescador.)
(Dona Sinfonia, à janela da agência, faz crochê e olha de vez em quando para a casa fechada. O Mendigo está sentado, imóvel, debaixo do lampião. Entra o Pescador com uma carta na mão e atravessa o palco. Quando ele vai penetrar no Correio, topa com Joaquim Aguaceiro, que, em pé, no solar, contempla a casa, ao longe.)

O PESCADOR
(Cumprimentando) Boa tarde, patrão.

JOAQUIM AGUACEIRO
Boa tarde, Candonga. (O Pescador entra, depois de cumprimentar Dona Sinfonia, e sai, logo após, sem a carta.) Está metido a escritor, agora?

O PESCADOR
Foi a carta que mandei pro filho.

JOAQUIM AGUACEIRO
Está sempre trabalhando na cidade?

O PESCADOR
Sim, patrão. Há muito que não sei dele. Então, como estava me dando saudade, pedi ao Anfilóquio para escrever uma carta.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quem sabe se ele não anda doente?

O PESCADOR
A última vez que tive notícias, ele estava bem forte e saudável. Mas lá na cidade os homens caem depressa. Ah! Patrão! Criança é o castigo da gente! (Olha para Dona Sinfonia, que concorda com a cabeça.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Aqui ele já era meio extravagante. Ficava a jogar bilhar até as dez horas.

O PESCADOR
Eu, na idade dele, era um bicho... era um bicho para tudo. Tinham medo, tão bravo que eu era no trabalho.

JOAQUIM AGUACEIRO
Hoje ainda.

O PESCADOR
Qual! Tenho andado doente. Foi uma resfriadela que apanhei. (Olha para o céu.) O tempo não está bom para reumatismo... Está assim cozinhando... Mas vamos ter chuva. (Olha ao longe.) A lagoa está brilhando.

JOAQUIM AGUACEIRO
Trabalhou muito hoje?

O PESCADOR
Assim. A pesca não foi lá das melhores. E, para atravessar a lagoa, meu bote só pega três pessoas. A gente precisa suar muito para ganhar pouco. Ah! Se eu tivesse todo o dinheiro que perdi, já estava remediado.

JOAQUIM AGUACEIRO
Agora vai pra casa?

O PESCADOR
Vou sim, patrão. (Pausa. Ele não se move.) Vou, sim... (Permanece imóvel. Afinal, dá um passo e pára. Mostrando a casa ao longe, com a cabeça:) Ainda estão lá dentro?

DONA SINFONIA
Estão, sim. Há mais de uma hora.

JOAQUIM AGUACEIRO
Ele é capaz de descobrir a coisa.

O PESCADOR
Ah! Com o Dr. Aprígio ninguém escapa. Moleque feio tem de entrar nela.

DONA SINFONIA
Não se ouve nada.

O PESCADOR
Nada. Está tudo fechado. Parece que estão a velar um defunto.

DONA SINFONIA
Desde a manhã, ninguém saiu.


CENA II

(Os mesmos, o Boticário) (O Boticário, chegando pausadamente, aperta a mão de Joaquim Aguaceiro, cumprimenta cerimoniosamente Dona Sinfonia, e, de alto, o Pescador.)

O BOTICÁRIO
Boas tardes, senhor aguaceiro.

JOAQUIM AGUACEIRO
Como passa, Sr. Simplício?

O BOTICÁRIO
Sempre bem. Deixei um instantinho a botica para comprar uns selos. Dona Eudóxia está?

JOAQUIM AGUACEIRO
Está. Ela anda um pouco atarefada. Desde manhã cedo teve gente como quê.

O BOTICÁRIO
Dona Sinfonia não largou a janela.

DONA SINFONIA
Estou com dor de cabeça... Preciso respirar.

O BOTICÁRIO
Tenho um bom remédio para dor de cabeça.

DONA SINFONIA
(Continuando, sem responder) Preciso respirar. Não posso ficar trancada.

JOAQUIM AGUACEIRO
(Olhando para a casa e piscando) Trancados estão eles.

O BOTICÁRIO
Já devem estar cheirando a mofo. (Pausa) Que estarão fazendo? Ouviu alguma coisa, Dona Sinfonia?

DONA SINFONIA
Não ouvi nada, Sr. Simplício. Não costumo meter-me na vida dos outros.

O PESCADOR
Quem viu foi o Geraldino.

DONA SINFONIA
(Largando o crochê) Ah! Ele viu?

O BOTICÁRIO
(Sem afetação) Viu?

O PESCADOR
Viu, sim. Ele ficou de me procurar depois do serviço pra me contar a coisa. O doutor delegado já conversou com ele.

DONA SINFONIA
Ah! Conversou?

O PESCADOR
(Importante) Conversou, sim. E agora está lá dentro com eles todos. Ah! Com aquele homem é preciso andar na linha. Senão, está tudo à toa.

DONA SINFONIA
(Olhando para a casa) À-toa é ela. Santa Bárbara!


CENA III

(Os mesmos, Dona Eudóxia, a Agente do Correio) (Dona Eudóxia aparece à porta do Correio. Joaquim Aguaceiro, com indiferença afetada, vai se aproximando da casa fechada e passa lentamente rente às janelas.)

O BOTICÁRIO
Como tem passado, Dona Eudóxia?

DONA EUDÓXIA
Vou indo, Sr. Simplício. Dona Quintanilha está boa?

O BOTICÁRIO
Está, obrigado.

DONA EUDÓXIA
Deseja alguma coisa?

O BOTICÁRIO
Preciso de uns selos. Mas não há pressa... não há pressa...

DONA EUDÓXIA
Não quer entrar um pouquinho?

O BOTICÁRIO
Prefiro ficar aqui mesmo.

DONA EUDÓXIA
Então, não quer sentar-se?

O BOTICÁRIO
Aceito o seu convite, Dona Eudóxia. Sinto-me cansado.

JOAQUIM AGUACEIRO
Foram as emoções desta noite.

DONA SINFONIA
Ah! Cruzes!

DONA EUDÓXIA
Deixe lá o seu crochê, Dona Sinfonia. A esta hora, vai estragar a vista. (Falando para dentro) Moleque! Traga uma cadeira!

(O Moleque Jenipapo aparece com uma cadeira. O Boticário senta-se nela; os outros no banco. O Pescador fica em pé. Aproxima-se Joaquim Aguaceiro.)

O BOTICÁRIO
Por onde anda, seu compadre?

DONA SINFONIA
Ouviu alguma coisa?

JOAQUIM AGUACEIRO
Nada. Está tudo calado.

O BOTICÁRIO
Não é como esta noite.

DONA SINFONIA
Ah! Que barulheira!

O BOTICÁRIO
A Quintanilha até chorou de susto.

DONA EUDOXIA
Ah!

O BOTICÁRIO
Tive de lhe dar água de flor de laranja com umas gotas e... Urna composição minha. (Pausa.)

DONA EUDÓXIA
(Voltando-se para a casa ao longe) Dizem que “ela” embarca no trem das sete.

O PESCADOR
Das sete.

DONA SINFONIA
Ela terá de passar por aqui.

JOAQUIM AGUACEIRO
Decerto.

O BOTICÁRIO
Homem! Já que vim até cá, estou quase a me demorar um pouco.

DONA SINFONIA
Até as sete.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quero ver o seu jeito, quando ela passar.

DONA EUDÓXIA
Quem havia de dizer? Urna mulher assim tão direita!

O BOTICÁRIO
Oh! Eu sempre desconfiei... Essa gente calada...

DONA SINFONIA
E velha que ela é!

DONA EUDÓXIA
Velha, não!

DONA SINFONIA
Como não?

JOAQUIM AGUACEIRO
(Ao Pescador) Que idade tem ela? (Aos outros) Candonga sabe.

O PESCADOR
Ela ,já deve estar capinando os seus trinta e cinco.

DONA SINFONIA
(De mãos postas) Trinta e cinco!

O BOTICÁRIO
E três filhos.

JOAQUIM AGUACEIRO
O Julinho já anda pelos seus quinze.

DONA EUDÓXIA
Coitado!

DONA SINFONIA
Pois eu também vou esperar para vê-la passar... Ia agora para casa, mas como todos ficam...

DONA EUDÓXIA
Não querem tomar café?

O BOTICÁRIO
Aceito, Dona Eudóxia.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não vale a pena.

O BOTICÁRIO
Bem que vale.

DONA EUDÓXIA
Já está feito, Sr. Joaquim. E só trazer. Vou chamar o Jenipapo. (Chamando) Moleque! Moleque! (Olhando para dentro) Onde se meteu esse moleque? (O Moleque Jenipapo entra correndo pelo fundo. Ele esteve atrás da casa fechada.) Ah! Ele tinha ido espiar! (Ao Moleque) Traga o café, depressa.

O BOTICÁRIO
(Fazendo-o parar) Viste alguma coisa, moleque?

O MOLEQUE JENIPAPO
Não, senhor, senhor não. A casa está toda escura. (Sai.)

DONA EUDÓXIA
Uma casa que parecia tão feliz! Lembra-se, Sr. Joaquim? Havia sempre flores às janelas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Parece que esta noite ele arrebentou até as flores.

O PESCADOR
Viu que estava desgraçado. Então foi desgraçando tudo.

DONA EUDÓXIA
É isso mesmo... Oh!

DONA SINFONIA
Que é?

DONA EUDÓXIA
Acendeu!

TODOS
Acendeu?

DONA EUDÓXIA
Vejam. (Todos olham para a casa fechada. Com efeito, unia réstia de luz filtra pelas venezianas. Longo silêncio, durante o qual eles contemplam, imóveis, aquele feixe luminoso.)

O BOTICÁRIO
(Murmura.) Que será?

DONA SINFONIA
Não ouvem nada? (Todos escutam. Pausa.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Nada. (Pausa.)

DONA EUDÓXIA
Eu também preciso acender. (Entra, acende o interior da casa e volta a ter com os outros.)

DONA SINFONIA
Vê-se ainda. (A uma senhora que chega) Oh! Ritoca! Há quanto tempo não a encontrava!


CENA IV
(Os mesmos, Ritoca)

DONA RITOCA
(Saudando a todos e abraçando Dona Sinfonia) Como vai sua obrigação?

DONA SINFONIA
Estou boa. E você?

DONA RITOCA
Não estou passando muito bem.

JOAQUIM AGUACEIRO
Pois não parece. Quando atravessava o largo, há pouco, estava dengosa como seriema no capim.

O BOTICÁRIO
Se não está boa, eu recebi da cidade uma pílulas que curam num instante. ~ só pedir.

DONA RITOCA
(Abraçando Dona Eudóxia) Vim até cá para ver se não havia cartas à minha espera.

DONA EUDÓXIA
Bem sabe que, quando há, sempre lhe mando levar. Não precisava incomodar-se. (Entra o Moleque com uma bandeja.) Toma café conosco?

DONA RITOCA
Não sei se tenho tempo... (Mais baixo, rapidamente) Ela já saiu?

DONA EUDÓXIA
Não. Vai pelo trem das sete.

DONA RITOCA
Ah! (Alto) Pois aceito... Uma canequinha.

DONA SINFONIA
Café nunca se recusa.

DONA EUDÓXIA
(Ao Moleque, que acaba de servir o café) Uma cadeira! Depressa. (Ele traz a cadeira e dirige-se, depois, para o lado da casa fechada, atrás da qual desaparece. Todos bebem o café aos goles.)

DONA RITOCA
Estavam falando da Maria das Dores?

JOAQUIM AGUACEIRO
Estávamos. Quem havia de dizer?

DONA RITOCA
Eu não sei ao certo o que houve. Que foi, heim, Sr. Aguaceiro?

O BOTICÁRIO
(A Dona Eudóxia) Ela já deve saber de cor. Desde manhã cedinho que se agarra a toda a gente para que lhe contem.

DONA SINFONIA
Quem conhece bem o caso é o Geraldino.

DONA RITOCA
O barbeiro?

O PESCADOR
Sim, senhora, Dona Ritoca. Tanto que ele ficou de me procurar, depois do serviço... Ele viu tudo, e já conversou com o doutor delegado. (Passa ao fundo uma criança arrastando um papagaio. Quando chega diante da casa fechada, ergue-se na ponta dos pés e procura espiar. Depois, segue o caminho.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Não sei como é que ele não apareceu.

O PESCADOR
Ainda não acabou o serviço. (Pausa.)

DONA RITOCA
(Olhando para a casa) E ele? Não se sabe afinal quem é?

O BOTICÁRIO
Ela não quis dizer... Por nada. Ao senhor delegado talvez...

DONA SINFONIA
Parece até impossível.

DONA RITOCA
Não valia a pena fazer tanto xodó para acabar assim!

DONA EUDÓXIA
Que pena, meu Deus! Que pena!

DONA RITOCA
Lembra-se, Dona Sinfonia? Quando o coronel Fulgêncio passou uma tarde por aqui... Papai tinha preparado em casa um café de estalar a língua... Toda a gente à espera. Pois fizeram tanta intriga que o coronel acabou indo tomar café em casa da Maria das Dores.

DONA SINFONIA
Uma mulher que nem punha chapéu pra missa das dez!

JOAQUIM AGUACEIRO
Sim. O Matias está hoje desfalcado; mas já teve alguma coisa; e a Maria das Dores ainda hoje tem ar assim de gente grossa.

DONA EUDÓXIA
Quando ela entrava na igreja com seu grande xale preto, lembrava uma princesa...

O BOTICÁRIO
Pois está fresca, a princesa!

DONA RITOCA
Papai nunca perdoou o café do coronel. (Pausa.)

JOAQUIM AGUACEIRO
(Olhando para a casa) E nada...?

O BOTICÁRIO
Até agora, nada. (Silêncio.)

DONA SINFONIA
Que vai ser dela, sozinha, na capital?

DONA RITOCA
Ora!

O BOTICÁRIO
Com o perdão da palavra, vai cair na malandragem.

O PESCADOR
Ela tem umas primas por lá.

DONA EUDÓXIA
Coitada da Maria das Dores!

DONA SINFONIA
Coitada quê, Dona Eudóxia? Coitado do Matias!

DONA EUDÓXIA
Ele era muito bruto.

JOAQUIM AGUACEIRO
Qual bruto qual nada! Mulher precisa é andar na linha.

O BOTICÁRIO
Pancada traz amor.

DONA EUDÓXIA
(Apontando o Mendigo) O pai Tobias é que vai sentir falta. Acabou-se a janta.

O BOTICÁRIO
Onde vais comer agora, heim, pai Tobias?

O MENDIGO
(Fita-os sem responder, e, após um silêncio, gravemente) Deus é que sabe! (Pausa.)

O BOTICÁRIO
Antes não comer que comer o pão do pecado.

O PESCADOR
Ah! Isso também não!

DONA SINFONIA
(De repente) Oh! (Todos olham. Vê-se entreabrir a porta da casa, donde sai o delegado seguido pelo escrivão. O Moleque Jenipapo, que espiava, escondido, atravessa a rua correndo. Todos calam, cumprimentam o delegado. Este toca de leve o chapéu e sai.)

O PESCADOR
Ele saiu.

DONA EUDÓXIA
Que terá havido, meu Deus!

DONA RITOCA
Mais logo vamos saber.

DONA SINFONIA
Está começando a esfriar, não acham?

DONA EUDÓXIA
Podemos entrar.

DONA RITOCA
Estamos muito bem aqui.

O BOTICÁRIO
Estamos, sim.

JOAQUIM AGUACEIRO
(Puxando o relógio) Pouco falta para as sete.

DONA SINFONIA
E a estação fica tão perto!

OPESCADOR
Aí vem o Geraldino!

TODOS
Ah!

DONA RITOCA
Afinal!

CENA V
(Os mesmos, Geraldino)

JOAQUIM AGUACEIRO
Então, Geraldino? Teve serviço até agora?

GERALDINO
Fui até a estação. (Cumprimenta a todos.) Boas tardes!

O BOTICÁRIO
Já se pode dar boa-noite.

(Geraldino saúda com a mão o Pescador, que corresponde.)

DONA EUDÓXIA
Há muita gente na estação?

GERALDINO
Está cheia... Assim... Todos querem ver.

DONA SINFONIA
Que gente bisbilhoteira!

DONA RITOCA
Eu é que não me mexo.

GERALDINO
Também, ela tem de passar por aqui.

O BOTICÁRIO
Ela irá mesmo?

GERALDINO
Vai, pois não. Só se ela quiser dizer quem foi.

DONA EUDOXIA
O senhor delegado saiu agora mesmo.

GERALDINO
(Importante) Sei. Já estive com ele hoje à tarde. (Todos olham para o Geraldino, esperando que ele fale.)

O PESCADOR
Mas você viu mesmo tudo, seu Dino?

GERALDINO
Vi, decerto.

DONA SINFONIA
Tudo?

GERALDINO
Tudo, tudo, não.

DONA RITOCA
Oh! Conte... Conte...

GERALDINO
Mas vosmecê já me ouviu contar hoje duas vezes. (Todos se riem.)

O BOTICÁRIO
(A Dona Eudóxia) Está vendo?

DONA RITOCA
(Zangada) Eu? Onde? Onde?

GERALDINO
Esta manhã, perto da vacaria, quando eu explicava a coisa ao Zé Menezes; e, antes das duas...

DONA RITOCA
Oh! Eu passava tão depressa... Não ouvi quase nada.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não se zangue, Dona Ritoca.

DONA RITOCA
Não. Mas parece assim que sou curiosa!

GERALDINO
(Dispondo-se a contar) Então, vá lá!

JOAQUIM AGUACEIRO
Quer pitar?

GERALDINO
Pois sim.

O BOTICÁRIO
Eu aceitava mais uma canequinha.

DONA EUDÓXIA
Moleque!... Café para o seu Simplício! (Pouco depois entra o Moleque, com o café.)

DONA SINFONIA
Então? Como foi isso?

GERALDINO
Foi assim... Eram onze horas. Eu passava pelo Beco das Formigas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Às onze horas pelas ruas, seu malandro...

GERALDINO
Ora, não me interrompa...

O BOTICÁRIO
Deixe falar o Geraldino!

GERALDINO
Vinha da casa do Tinoco... A casa nova...

O PESCADOR
Um sujeito que outro dia mesmo estava arrancando mato, e depois ficou rico tão ligeiro!

GERALDINO
Assim não conto nada!

DONA RITOCA
Ora!

O BOTICÁRIO
Sossega! Gente!

GERALDINO
Está bom. (A Joaquim) Dê cá fogo! (Acende o cigarro, que se apaga.) Passava lá pelos fundos do beco, quando me pareceu ouvir ao longe uma qualquer coisa de especial dentro da casa do Matias. Paro para ouvir. De repente, bate a janela com toda a força, e vejo um vulto a pular.

DONA SINFONIA
A pular?

GERALDINO
Fiquei assim indeciso, sem saber. Pensei a princípio num ladrão. Mas, enquanto estava a cismar, ele desata a correr que nem veado e cai no mato.

DONA EUDÓXIA
Por que não correu atrás?

DONA RITOCA
E não reconheceu?

GIRALDINO
Não pude.Vi só que era um rapaz novo, esperto... Mas não reconheci.

DONA SINFONIA
Novo... Esperto... Quem sabe se não era o Alcino?

O BOTICÁRIO
O Alcino ontem estava de cama. Melhorou com um xarope meu, excelente.

JOAQUIM AGUACEIRO
Quem sabe se o Antônio Ferraz ...

DONA RITOCA
Ah! O António Ferraz!

O PESCADOR
Qual! O Nico bem que andava a rondar a casa do Matias, — não arranjou nada. Ela nem olhava para ele!

DONA RITOCA
(Resmungando) Não olhava... Não olhava...

DONA SEFONIA
Então, a gente nunca há de saber?

GERALDINO
Só se ela disser...

O PESCADOR
(para si) Por que é que ela não diz...?

O BOTICÁRIO
Adiante, Geraldino!

GERALDINO
Fui chegando de mansinho até a janela,que tinha ficado entreaberta, e espiei lá para dentro. Gente! Estava o Matias com os olhos a saltar, agarrado à mulher, torcendo-lhe os braços. E batendo-lhe com a cabeça no chão... (Redobra a atenção de todos)

DONA RITOCA
E ela gritava?

GERALDINO
Nem um pio. Ela não queria acordar os filhos.

DONA RITOCA
Ora veja!

GERALDINO
Parece que todas as noites, quando o Matias estava adormecido, ela ia devagarinho abrindo a porta da casa... Sabem que de dia ela não podia sair...

DONA EUDÓXIA
Que noites terríveis deviam ser aquelas!

O BOTICÁRIO
Ela com os filhos ao lado. Com a certeza de ser um dia apanhada.

DONA RITOCA
Ela não tinha medo de acordá-los?

JOAQUIM AGUACEIRO
Como é que a Maria das Dores, tão sossegada, tão refletida, foi desnortear assim, depois de velha?

DONA SINFONIA
Isso não se explica.

GERALDINO
São coisas!

JOAQUIM AGUACEIRO
Mas por quê?

DONA EUDÓXIA
(Timidamente) A gente, às vezes, sente-se tão só!

DONA RITOCA
Só... com um marido e três filhos!

DONA EUDÓXIA
(Viva mente) Não foi isso que eu quis dizer

O BOTICÁRIO
Que foi que a senhora quis dizer, Dona Eudóxia?
(Silêncio.)

DONA EUDÓXIA
(Depois de hesitar) Quis... (Pára um instante.) Eu bem sinto cá dentro, mas não sei explicar... Não sei... (Olham para Dona Eudóxia. Pausa.)

DONA SINFONIA
Uma grande sonsa é o que ela era.

JOAQUIM AGUACEIRO
Não tem desculpa o que ela fez.

DONA RITOCA
Que acha o Sr. Simplício?

O BOTICÁRIO
Uma desavergonhada... Pior que uma cadela.

DONA SINFONIA
E fingindo-se de boa! Quando penso, senhor aguaceiro, que, o mês passado, ela foi tratar da minha Ruth, na ocasião da tal epidemia! Eu também estava doente. Seis noites que ela passou na cabeceira da pequena, maculando com seu contato impuro aquele anjinho de inocência! Quando penso nessa desgraça...

DONA EUDÓXIA
Mas a menina salvou-se.

DONA SINFONIA
Graças à Divina Providência.

DONA RITOCA
Com certeza, ao sair, ela ia se encontrar com o tal rapaz.

O BOTICÁRIO
Ora se ia!

JOAQUIM AGUACEIRO
O tratamento era o pretexto.

DONA SINFONIA
Ah! Aquela mulher é um monstro. Não é, Sr. Geraldino?

GERALDINO
Decerto.

O BOTICÁRIO
Forca é o que ela merece. (Nesse momento, o velho mendigo deixa cair o cajado. Joaquim Aguaceiro volta-se para ele ao ouvir o ruído e exclama:)

JOAQUIM AGUACEIRO
E você, pai Tobias, que acha disso tudo?

O MENDIGO
(Olhando-os, lentamente, depois de apanhar o cajado) Essas coisas cá da terra a gente nunca
pode explicar.., nem julgar... Deus é que sabe... (Silêncio.)

DONA RITOCA
(Ao Barbeiro) E depois?

GERALDINO
Depois...? Ele puxava-lhe os cabelos, torcia-lhe os braços, sacudindo-a e repetindo sempre com raiva: “Diga o nome... Diga o nome..."

O PESCADOR
(Consigo mesmo) Mas por que é que ela não disse?

O BOTICÁRIO
Pudera! Se o Matias pegasse o rapazinho, esborrachava-o com um soco.

GERALDINO
(Prosseguindo) Então, corno ela não queria falar, ele apanhou à parede um grande chicote de couro e começou a bater-lhe, a bater-lhe até mais não poder. A princípio ela gemia baixinho, mas depois pegou a gritar, a gritar que era um gosto. Ele só repetia: “Diga o nome... Diga o nome...” E ela nada... Até que o sangue começou a pingar.

DONA RITOCA
O sangue?

DONA EUDÓXIA
Cruzes! (Todos se aproximam do Geraldino, ofegantes. Os peitos arfam, os olhos brilham no crepúsculo.)

GERALDINO
Sim. A cada chibatada, aparecia uma fitinha vermelha que ia escorrendo pelo corpo. Não sei se o Matias tinha dó, mas ele chorava também. E continuava, de chicote em punho, a dizer, chorando: “O nome... O nome... Diga o nome... Ela torcia-se no chão, feito cobra. Arrastava-se, agarrava-se a ele, gritando:“ Tem pena! Tem pena! Matias, eu te amei também!...” Quando o Julinho entrou no quarto, ela estava toda encharcada...

DONA SINFONIA
Encharcada?

GERALDINO
O assoalho estava vermelho, como se tivessem amassado goiaba... (Nesse momento, Dona Ritoca desanda a rir nervosamente. Todos olham, estupefatos. Geraldino interrompe-se. Mas a risada continua, cada vez mais nervosa, mais estridente.)

O BOTICÁRIO
Que é, Dona Ritoca?

DONA EUDÓXIA
Está incomodada?

DONA SINFONIA
Quer ir lá pra dentro?

DONA RITOCA
(Insistindo, e continuando a rir-se, diz, com palavras entrecortadas e ofegantes:) Não... Não... Mas... Eu imaginava a Maria das Dores, oferecendo chá ao coronel, com seus ares de princesa.., e ontem... o chicote... e o sangue... (E ri-se, ri-se sem parar. Todos entreolham-se, em silêncio, com certo constrangimento. Longa pausa.)

DONA SINFONIA
Coitada da Ritoca! ~ tão sensível!... (A Dona Eudóxia) Não tem um pouco de vinagre?

DONA EUDÓXIA
Sim. (Entra e volta com o vinagre, que faz respirar a Dona Ritoca, enquanto a conversa recomeça.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Foi só o Julinho que entrou?

GERALDINO
As pequenas também. Elas estavam com medo, mas o Matias arrastou-as até o quarto e disse à mulher: “Olha bem, pela última vez... Se não queres dizer o nome, amanhã tu sais desta casa para sempre, e nunca mais verás teus filhos... Nunca..."

O BOTICÁRIO
E ela não disse?

GERALDINO
Não.

O PESCADOR
(Meditando) Mas por quê?

DONA SINFONIA
Que mãe sem entranhas!

DONA EUDÓXIA
No entanto, bem extremosa que ela era!

O PESCADOR
Era, sim. E ela vai deixar os filhos para sempre.

DONA SINFONIA
Disfarce!

DONA EUDÓXIA
Mas, Sr. Geraldino, por que é que o senhor não entrou no quarto quando viu isso?

GERALDINO
Oh! Dona Eudóxia... Eu não me meto nas brigas de casais... Não me casei, foi para não brigar.

DONA EUDÓXIA
Que noite horrorosa! Fui acordada em sobressalto pelo Julinho.

DONA RITOCA
Ah! O Julinho esteve aqui?

DONA EUDÓXIA
Veio pedir-me um remédio para a mãe, que não podia mais...

O BOTICÁRIO
Em vez de ir à botica... E a senhora deu?

DONA EUDÓXIA
Pois não.

O BOTICÁRIO
Não posso deixar de estranhar essa atitude, Dona Eudóxia! A senhora... uma funcionária exemplar, de vida tão correta, pretender aliviar o castigo de uma criminosa!...

DONA EUDÓXIA
Desculpe, Sr. Simplício. Não tive em vista desgostá-lo. Mas, quando uma criatura sofre, acho que é sempre digna de piedade.

O BOTICÁRIO
São idéias subversivas, Dona Eudóxia. Ai de nós se todos assim pensassem!

DONA EUDÓXIA
Tanto mais que o Matias era longe de ser um marido exemplar. É um homem...

O BOTICÁRIO
E um homem. E o dono. Tem todos os direitos.

JOAQUIM AGUACEIRO
Isso tem.

DONA EUDÓXIA
E possível. Não sei. Não sei me exprimir... Mas isso assim não está direito.

DONA SINFONIA
Não acha justo o castigo?

DONA EUDÓXIA
Não sei. Mas a Maria das Dores, que foi, durante tantos anos, tão boa mãe, tão boa esposa, tão boa para todos... Como é que perde tudo assim, num dia só... Isso não é justo... Não é justo...

O BOTICÁRIO
Pois eu acho que ele foi até bem bom. Não é? (Volta-se para Joaquim Aguaceiro, que aprova com a cabeça.)

GERALDINO
Eu matava.

DONA EUDÓXIA
Oh! Sr. Geraldino!

JOAQUIM AGUACEIRO
(Ao Pescador) E você, Candonga? Que diz?

O PESCADOR
(Começando a falar, sem responder) Lá pelo sertão de Minas, morava um primo meu, o Xicão. Estava casado com uma mulher linda... Eu a conheci... Uma noite, ele ouve barulho dentro de casa... Levanta-se, pega a garrucha e vai ter até o sótão. (Cospe.) Lá, ele topa com a mulher nos braços dum rapaz, um desses cometas vagabundos que andam a correr pelas estradas.

DONA SINFONIA
Matou os dois?

DONA RITOCA
(Pegando-lhe o braço, súplice) Oh! Deixe falar...

O PESCADOR
Ele atracou o rapaz. Era um valente, o Xicão, e forte, como o Matias. Amarrou o homem aos pés da cama, enterrou-lhe um lenço na boca para que não pegasse a gritar...

DONA SINFONIA
E depois...?

O PESCADOR
Depois?... Fez esquentar um ferro na trempe. Quando esteve em brasa, deu-o à mulher, mostrou-lhe o rapaz amarrado e disse: “Vai... Espeta!”

DONA EUDÓXIA
Ah! Que horror!

DONA RITOCA
E ela?

O PESCADOR
Ela a princípio não queria. Ele então encostou-lhe a garrucha na testa e disse: “Espeta ou eu atiro!...” (Pausa.) Então ela espetou.

DONA EUDÓXIA
Oh!

O PESCADOR
Espetou a noite inteira. O Xicão não tinha pressa... Ele dizia: “Espeta aqui... estes braços que te abraçaram... aqui esta boca que te beijou... Espeta!” De vez em quando ele mandava parar, pra esticar... Quando o rapaz desfalecia... ele deixava que acordasse para continuar... A carne cheirava... De madrugada, furou-lhe os olhos...

DONA EUDÓXIA
Oh!

O PESCADOR
(Calmo) Ele tinha deixado os olhos pro fim... Até que o outro morreu. Já nem parecia gente.

DONA RITOCA
E a mulher?

O PESCADOR
O Xicão matou-a logo em seguida. Enterrou-a na fazenda. Mas o corpo do rapaz ficou pros urubus.

O BOTICÁRIO
Ah! O Xicão era um homem.

O PESCADOR
Um sujeito às direitas.

JOAQUIM AGUACEIRO
Vêem que o Matias ainda foi bem manso.

O BOTICÁRIO
(Puxando o relógio) Já são quase horas do trem...

DONA SINFONIA
Ela é capaz de não ir.

GERALDINO
Vai, sim.

DONA EUDÓXIA
E se ela disser o nome?

GERALDINO
Não diz, não. Mulher quando bate o pé... (O Pescador faz um gesto de quem não compreende.)

CENA VI

(Os mesmos, o Acendedor de Lampiões) (Ele vai entrando devagar e acende lentamente o lampião.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Oh! Velho Aprígio!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Boas noites!

O BOTICÁRIO
Acenda bem, Aprígio... que nós precisamos ver direito...

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
(Acendendo) Pronto.

JOAQUIM AGUACEIRO
Que luz desgraçada!

GERALDINO
Qual, meu velho! Sua luz não presta!

O PESCADOR
Não se vê nada.

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Minha luz é muito boa... Vocês é que não sabem ver.

O PESCADOR
Está bom... Não se zangue... Pare um tiquinho conosco para apreciar uma coisa bonita!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
Não posso parar. Tenho que seguir caminho... Há muita gente no escuro que espera pela luz...

O PESCADOR
Então, boa noite!

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
(Saindo) Boa noite!

CENA VII

(Os mesmos, menos o Acendedor de Lampiões, depois, o Filho)
O BOTICÁRIO
(Murmura) Velho maluco! (Ouve-se o sino da estação e, ao longe, o arfar surdo do trem.)

DONA RITOCA
O trem vai chegar!

DONA SINFONIA
E ela não embarca!

O BOTICÁRIO
Embarcará, sim, à última hora... correndo...

JOAQUIM AGUACEIRO
De vergonha...

DONA SINFONIA
Eu nem hei de olhar para ela!

DONA RITOCA
(A Dona Eudóxia) Dê-me o seu xale, Dona Eudóxia. Estou sentindo frio... (Dona Eudóxia).
vai buscar o xale, que estava numa mesa perto da porta. Dona Ritoca entra com ela.).

GERALDINO
(De repente) Ela está saindo! (Aponta para a casa. Com efeito, a porta abriu-se. Todos olham com ânsia. Mas quem sai da casa é um rapazinho em mangas de camisa. Desce lentamente os degraus da porta e, sem olhar para ninguém, vai encostar-se ao muro que separa o jardim da rua, com a cabeça descansando nos braços.)

DONA SINFONIA
(Baixo) É o Julinho.

O BOTICÁRIO
O Julinho, sim. (Sussurro geral.)

DONA SINFONIA
Que é que ele veio fazer?

O MOLEQUE JENIPAPO
(Surgindo de repente) Ela já vem! Ela já vem! (Movimento de todos.)

JOAQUIM AGUACEIRO
Você viu?

O MOLEQUE JENIPAPO
Espiei, sim. Ela acabou de preparar a trouxa. Vai sair.

DONA SINFONIA
(Gritando para dentro) Ritoca! Ritoca! Ela vai passar! (Aparecem Dona Ritoca e Dona Eudóxia, em seguida.)

GERALDINO
Quer sentar, Dona Ritoca?

DONA RITOCA
Em pé vê-se melhor. (Ouve-se o silvo do trem que está chegando.)

O BOTICÁRIO
Ela é capaz de perder o trem.

DONA EUDÓXIA
Qual! Esses trens... a gente nunca perde...

DONA SINFONIA
(Chamando) Venha aqui, Ritoca!

DONA EUDÓXIA
E ela não verá mais os filhos?

O BOTICÁRIO
Nunca!

O PESCADOR
(Só para si) Mas por que é que ela não disse o nome?

TODOS
Oh! Oh! Oh!

CENA VIII
(Os mesmos, Maria das Dores).
(Abre-se de novo a porta, e, destacando-se, no fundo luminoso da sala, aparece no limiar o vulto de Maria das Dores. Um grande xale preto cobre-lhe a cabeça e cai até os joelhos. Na mão, uma pequena trouxa. Ela começa a caminhar, rígida, de rosto fechado, sem olhar para ninguém. Ouve-se um sussurro no grupo. Mas alguém faz “Pst” e o silêncio torna-se geral. Todas as personagens estão na penumbra. Só o velho mendigo iluminado pela luz do lampião. Quando Maria das Dores passa por ele, ele ergue-se e tira o chapéu. Então, no meio do silêncio mortal, ouve-se um soluço abafado e desesperado. E o filho que está chorando, encostado ao muro. Ela tem um longo estremecer do corpo todo. Atrasa insensivelmente o passo um segundo, mas continua a caminhar sem um gesto e sem se voltar. Todos a acompanham com os olhos. Ouve-se novamente o silvo da locomotiva. Então, a voz do velho mendigo eleva-se na noite, grave e lenta.)

O MENDIGO
Deus é que sabe... Deus é que sabe...
FIM

Fonte:
GOMES, Roberto. A Casa Fechada. In: Teatro da Juventude. Ano IV, nº. 26. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria de Cultura. São Paulo: Imprensa Oficial, 1999.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Alerta


Hoje não haverão postagens. Estou enviando por e-mail o índice das postagens de junho, com acesso direto pelo documento anexo.
Caso queira receber todo início de mês o índice do mês anterior, envie e-mail para pavilhaoliterario@gmail.com
Breve estarei fazendo o índice de todas os textos postados (até o momento 2515).
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Obrigado

José Feldman

terça-feira, 30 de junho de 2009

Trova XXXIII

Inglês de Sousa (A Quadrilha de Jacob Patacho )

Palavras negritadas veja vocabulário ao final do texto
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Eram sete horas, a noite estava escura, e o céu ameaçava chuva.

Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente.

- Ouvem? - perguntou.

O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos:

- É uma canoa que sobe o rio.

- Quem há de ser?

- A estas horas, - opinou a sora Maria dos Prazeres, - não pode ser gente de bem.

- E por que não, mulher? - repreendeu o marido, - isto é alguém que segue para Irituia.

- Mas quem viaja a estas horas? - insistiu a timorata mulher.

- Vem pedir-nos agasalho, redargüiu. - A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.

A sora Maria continuou a mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas. Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido.

Mas o ruído do bater dos remos n'água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos:

- Onde vais, ó Felix?

Os rapazes lançaram vistas cheias de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com bom chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram o movimento, do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e para os irmãos.

Ouviram-se passos pesados no terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas uma voz rústica saiu das trevas.

- Boa-noite, meu branco.

Quem está aí? - indagou o português. - Se é de paz, entre com Deus.

Então dois caboclos apareceram no círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam calças e camisa de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós.

Tranqüilo, o português afastou-se para dar entrada nos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua modesta ceia, perguntou-lhes donde vinham e para onde iam.

Vinham de Santarém, e iam a Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à boca da noite, e eles, receando a escuridão e a pouca prática que tinham daquela parte do rio, haviam deliberado parar no sítio de Salvaterra, e pedir-lhe agasalho por uma noite. Se a chuva não desse, ou passasse com saída da lua para a meia-noite, continuariam a sua viagem.

Os dois homens falavam serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado, baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a criatura mais inofensiva deste mundo.

Depois que a sora Maria mostrou ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os restos da ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas de dormir. O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em busca da pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido naquele dia. Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava cerimoniosamente - seu João - levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a qual posto que muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma galeota grande. Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo ver que a noite estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo companheiro, insistiu. Nada, que as fazendas não eram dele e seu Pinto era um branco muito rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não andavam bons, havia muito tapuio ladrão aí por esse, acrescentava como um riso alvar, e de mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma gaiola. Quanto à chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as fazendas: ele tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota.

No fundo quadrava perfeitamente à sora Maria a resolução do seu João, não só porque pensava que mais vale um hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os dois viajantes na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao marido:

- Deixa lá, homem, cada um sabe de si e Deus de todos.

O caboclo abriu a porta e saiu acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu. Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoutavam nuvens negras que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado.

- Agasalhe-se bem, patrício, - gritou o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de pau, veio ter com a família.

Logo depois desejavam boa-noite uns aos outros; o hóspede que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rede, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra seu João, já a sora Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do dia, acalentado pela calma de uma consciência honesta.

A Anica depois de rezar à Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um roubo, e sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis que lhe lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido nas sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona.

E por uma singularidade, que a rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a tragédia feroz que o cérebro imaginava.

Pouco a pouco, procurando provar a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que sonhara, e que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e inofensivo, examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a convicção de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que se arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim, era aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas, aquela boca imunda e servil, a cor azinhavrada, a estatura baixa e vigorosa, sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde? Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o sentia. Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio também não fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e acomodaram-se em uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito mais recente. Bem; parecia recordar-se agora. Fora em Santarém, havia coisa de dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa popular, o sahiré. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto, patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva.

Neste ponto de suas reminiscências, a Anica foi assaltada por uma idéia medonha que lhe fez correr um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do famigerado tenente de Jacob Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, e cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da quadrilha inflingia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera germinar o sentimento da piedade?

A idéia da identidade do tapuio que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho, gelou-a de terror. Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça inclinada para trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta da sala; mas de repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro; convinha não perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma; eram todos homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos eram dois apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria resistência. Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais valia estarem os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem o risco de serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e correu para a porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como prevenir o pai, sem correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que este se aboletara interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para chegar ao dormitório dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do caboclo, que não podia deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos enferrujados da porta que, por exceção e natural recato da moça, se fechara aquela noite. E se acordasse seria ela talvez a primeira vítima, sem que o sacrifício pudesse aproveitar à sua família.

Um silvo agudo, imitante do canto do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta, pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela, rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano quando cogitou de estar o outro tapuio, o seu João, perto da casa para responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela, espreitando pelo vão.

A noite estava belíssima.

O vento forte afugentara as nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura.

A princípio a rapariga, deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu vultos de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados, que se dirigiam para a casa.

Eram quinze ou vinte, mas à rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua imaginação fazia um homem.

Não havia que duvidar. Era a quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio.

Todo o desespero da situação em que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar pela janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a denunciaria aos bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência preciosa seria cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e sem que pudessem defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos do feroz Saraiva, e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento salvador. Que fazer? A donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror, com o olhar fixo nas árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito, tomando uma resolução heróica, resumindo todas as forças em um supremo esforço, fechou rapidamente a janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis:

- Aqui d'el-rei! Os de Jacob Patacho!

A sua voz nervosa repercutiu como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então silenciosa, rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca e mal segura de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga voltou-se para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de ferro, ao passo que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana carícia, tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser pressentido.

A indignação do pudor ofendido e a repugnância indizível que se apoderou da moça ao sentir o contato dos lábios e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico delicado parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela branca e rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de cobre, dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos e afilados da vítima.

Mas se a sensualidade feroz do Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as circunstâncias em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um movimento de reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás dos troncos de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de forças, mas teve ainda ânimo para gritar com suprema energia:

- Acudam, acudam, que me matam!

Bruscamente o Saraiva largou a mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça advertindo-se do intento, atravessou-se no caminho, com inaudita coragem, opondo-lhe com o corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio, se nesse momento, abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a Félix Salvaterra, seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes que o tenente de Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em sangue com uma valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da arma.

O português e os filhos mal despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e da surpresa, expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam perfeitamente a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência do cão de guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso, mais ainda do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao despertar o nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam vencido o último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao peito do tapuio que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes de volúpia, Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a porta de entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar de havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os dois homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde.

Seu João, o companheiro de Saraiva mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida, voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o grito de guerra da cabanagem:

- Mata marinheiro! Mata! Mata!

Os bandidos correram e penetraram na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios armados de terçados e de grandes cacetes quinados de massaranduba, e os três portugueses que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que, depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças.

O Saraiva recebeu um tiro à queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo do pior deles, ainda que por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha, agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo selvagem.

Quando passei com meu tio Antônio em junho de 1932 pelo sítio de Félix Salveterra, o lúgubre aspecto da habitação abandonada, sob cuja cumeeira um bando de urubus secava as asas ao sol, chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e entrei na casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranqüila morada do bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os modestos trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido ao instinto selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os restos de cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus, enchiam a atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se.

Só muito tempo depois conheci os pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da desgraça.

A sora Maria dos Prazeres e a Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana, lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada existência.
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Vocabulário
Sora – senhora
Alumiava – iluminava
Ciciar – sibilar, sussurrar
Pacoveira – bananeira
Cabanagem – violência, selvageria
Galeota – canoa provida de toldo onde se fazem comércio itinerante
Japá – esteira tecida de folhas de palmeira, que serve como toldo em pequenas embarcações, para cobrir barracas, alpendres etc. ou para fechar portas e janelas
Herdades – fazendas; quintas
Azinhavrada – coberto de azinhavre, camada esverdeada que se forma em objetos de cobre ou latão devido à umidade.
Mucama – no Brasil e na África portuguesa, escrava ou criada negra, ger. jovem, que vivia mais próxima dos senhores, ajudava nos serviços caseiros e acompanhava sua senhora em passeios; ama de leite dos filhos dos seus senhores.
Aboletara – acomodara-se, instalara-se
Cumeeira – parte mais elevada de um telhado.
Deletéria – insalubre, nociva

Fonte:
SOUZA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: Martin Claret, 2006.

Antônio Cândido da Silva (Bar do Zizi)

Pintura de Talles Cabral
A última telha importada de Marselha
Virou pó na dureza do cimento.
Resta somente o espaço, o pó e o tempo
levando tudo para o esquecimento.

E a tristeza nos arquivos da memória
guarda mais um registro de saudade
misturada com indignação
e o sentimento de impotência
diante de que tem nas mãos
a força do poder.

Levanta do silêncio Guapindaia,
Doutor Tanajura, Mario Monteiro
e Bohemundo Álvares Afonso.
Protesta Professor Carlos Mendonça,
Doutor Celso Pinheiro
e Rui Brasil Cantanhede
que o prédio finalmente concluiu.

Venham ver o que fizeram do mercado
e da luta de vocês que foi em vão.
Ninguém se levantou pra defender
o pedaço de nossa história
que teimava em não cair.
Segismundo se calou, nem Zé Catraka
botou "Lenha na Fogueira" e se apagou.
Zizi, nosso velho Zizi, tombou cansado depois de tanto tempo resistir.

A última telha de Marselha virou pó.
Guarde a sua lembrança com carinho
pois o passado perdeu a realeza.
Só nos resta mandar nossa saudade
convocar Ernesto Melo
pra cantar nossa tristeza.

Do livro inédito: "Passarela de Emoções"
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Antônio Cândido da Silva (5 Novembro 1941)



Nasceu no dia 5 de novembro de 1941, na cidade Amazonense de Humaitá. Filho de Artur Elpídio da Silva e Raimunda Cândida da Silva. Veio para Porto Velho em 10 de maio de 1945.

Iniciou seus estudos no Colégio Dom Bosco e passou pela Escola Normal Carmela Dutra. Em 1980 concluiu o 2º Grau no Colégio Dom Bosco.

Como o próprio autor auto-biografa-se, alguém escreveu:
“Antônio Cândido nasceu num seringal meio perdido lá para as bandas do “Igarapé dos Botos” no Município de Humaitá – AM, mudando-se para Porto Velho ainda criança, onde fixou residência e permanece até hoje.

Sua primeira experiência artística foi no teatro, com apenas 10 anos de idade. Logo em seguida mergulhou pela poesia e dela nunca emergiu. Tornou-se a própria.

Considerado o poeta de Porto Velho, tanto nas suas colaborações literárias publicadas no jornal Alto Madeira, como no seu livro “Marcas do Tempo”, Antônio Cândido canta Porto Velho com seus bairros, ruas, travessas, vielas e outros logradouros.

Antônio Cândido criou a bandeira e o brasão do município de Porto Velho; a bandeira e hino do município de Costa Marques e os hinos dos municípios de Jarú e Cerejeiras.
Recebeu homenagens da Câmara Municipal com o Título – Amigo de Porto Velho, e a comenda José do Patrocínio, alusiva aos 100 anos da Abolição da Escravatura.

Intelectual com rara capacidade de percepção, bem antes de a Ecologia “entrar na moda”, o poeta, nas rodas de amigos, já defendia o meio ambiente”.
Sua grande paixão pela cidade de Porto Velho é demonstrada no poema que tem seu nome, além da história da legendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, toda contada em poesia, no livro “Madeira-Mamoré – O Vagão dos Esquecidos”.

É membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia.

Além de inúmeros trabalhos publicados nos jornais literários, escreveu os livros "Marcas do Tempo" e "Madeira-Mamoré – O Vagão dos Esquecidos" (1ª Edição, 1998; 2ª Edição, 2000).

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia

Samuel Castiel Jr. (Flor Tropical)


Flor tropical, soberba e encantadora
Que cresce e floresce em terrenos hostis
Como guardiã desafiadora
Do belo nativo e essências sutis!...

Como brisa que soprou todas as vidas
Nascestes bela, livre e agreste,
Repartindo-te em pétalas coloridas
Invejam-te o crisântemo e o cipreste...

Não queiras nunca te tornar rainha
Pois sempre foste à preferida minha!
Fascinam-me teu porte, tua cor...

Quero- te sempre assim bela e formosa
Como um livro escrito em verso e prosa
Como a mulher que me ensinou o amor!
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