quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Marli Savelli de Campos (A Personagem do Romance)



Quando lemos um romance, fica a impressão de uma série de fatos organizados em enredo e de personagens que vivem estes fatos. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos dos romances, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam. Portanto os três elementos centrais de um desenvolvimento novelístico são: o enredo, a personagem e as idéias, que juntos formam um conjunto elaborado pela técnica, por isso são elementos inseparáveis nos romances bem realizados.

Um erro freqüente é pensar que o essencial do romance é a personagem, como se este pudesse existir separado das outras que lhe proporcionam vida. Pode-se dizer que, este é o elemento mais atuante, mas a construção estrutural é a maior responsável pela força e eficácia de um romance.

A personagem é um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. É uma relação entre o ser vivo e o fictício que se concretiza através do personagem. Entre o ser vivo e a ficcção há tanto diferenças como afinidades e ambas são extremamente importantes para criar o sentimento de verdade que é a verossimilhança. Para isso é preciso uma investigação sumária sobre as condições de existência essencial do personagem, começando por descrever do modo mais empírico possível a nossa percepção do semelhante.

Os seres são por sua natureza misteriosos, inesperados, daí concluímos que a noção a respeito de um ser elaborada por outro ser, é sempre incompleta. Por isso, no romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável que é a lógica do personagem. Podemos dizer então que, embora mais lógica e fixa não seja mais simples do que o ser vivo. O personagem é complexo e múltiplo porque o romancista pode combinar os elementos de caracterização organizados segundo uma certa lógica de composição que cria a ilusão do ilimitado.

No romance moderno percebemos a complicação crescente da psicologia das personagens imposta pela necessidade de caracterização, tratando os personagens de dois modos principais:

Seres íntegros delimitáveis: marcados com certos traços que os caracterizam.
Seres complicados: não se esgotam nos traços característicos, podendo jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério.

Na técnica de caracterização definem-se duas famílias de personagens: os personagens de costumes de Fielding, e os personagens de natureza de Richardson.

Personagens de Costume: são muito divertidos e podem ser compreendidos por um observador superficial. São caracterizados por personagens cômicos, pitorescos, sentimentais ou trágicos, dominados por uma característica invariável e desde logo revelada.

Personagens de Natureza: não são imediatamente identificáveis, é preciso mergulhar nos recursos do coração humano. A cada mudança do seu modo de ser, o autor precisa lançar mão de uma caracterização diferente, geralmente analítica e não pitoresca.

Em nossos dias, Forster retomou a distinção de modo mais sugestivo e amplo falando em personagens planas e personagens esféricas.

Personagens planas: eram chamadas “temperamentos”. São construídas em torno de uma única idéia ou qualidade, podendo ser expressa numa frase.

Personagens esféricas: é capaz de nos surpreender de maneira convincente; traz em si a imprevisibilidade da vida.

Forster também estabelece uma distinção pitoresca entre o personagem de ficção e a pessoa viva. É a comparação entre o Homo fictus e o Homo sapiens.O homo fictus é e não é equivalente ao homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de ação e sensibilidade, porém numa proporção e avaliação, diferentes.

Quando estabelecidas as características da personagem fictícia, surge um problema que Forster aborda: o personagem deve dar a impressão que vive, de que é como um ser vivo, para tanto, deve lembrar um ser vivo, isto é, manter relações com a realidade do mundo. E um personagem só nos parece real quando o romancista sabe tudo a seu respeito. É como se a personagem fosse inteiramente explicável e isto lhe dá uma originalidade maior que a vida.

Para François Mauriac, o grande arsenal do romancista é a memória, pois é dela que se extraem os elementos da invenção e isto confere acentuada ambigüidade aos personagens, pois não correspondem as pessoas vivas, mas nascem delas. Ele propõe uma classificação de personagens levando em conta o grau de afastamento em relação ao ponto de partida na realidade:

Disfarce leve do romancista como ocorre ao adolescente que quer exprimir-se.

Cópia fiel de pessoas reais que não constituem propriamente criações, mas reproduções.

Inventadas a partir de um trabalho tipo especial sobre a realidade, sendo esta um dado inicial, servindo para concretizar virtualidades imaginadas.

Tomando o desejo de ser fiel ao real como um dos elementos básicos na criação do personagem, podemos admitir que oscila entre dois pólos de idéias: transposição fiel de modelos e invenção totalmente imaginária. E é essa combinação variável que define cada romancista.

Baseando-se nos dois tipos polares acima referidos, podemos esquematizar, entre outros, do seguinte modo:

Personagens transpostas com relativa fidelidade de modelos dados ao romancista por experiência direta _ seja interior (incorpora a sua vivência, os seus sentimentos); seja exterior (Transposição de pessoas com os quais o romancista teve contato direto, como por exemplo: pai, mãe…)

Personagens transpostas de modelos anteriores, que o escritor reconstitui indiretamente _ por documentação ou testemunho, sobre os quais a imaginação trabalha.

Personagens construídas a partir de um modelo real, conhecido pelo escritor, que serve de eixo ou ponto de partida. O trabalho criador desfigura o modelo que, todavia se pode identificar.

Personagens construídas em torno de um modelo, direta ou indiretamente conhecido, mas que é apenas um pretexto básico, um estimulante para o trabalho de caracterização, que explora ao máximo as suas virtualidades por meio da fantasia, quando não as inventa de maneira que os traços da personagem resultante não poderiam, logicamente convir ao modelo.

Personagens construídas em torno de um modelo real dominante, que serve de eixo, ao qual vem juntar-se outros modelos secundários, tudo refeito e construído pela imaginação.

Personagens elaboradas com fragmentos de vários modelos vivos, sem predominância sensível de uns sobre outros, resultando uma personalidade nova.

Ao lado de tais tipos de personagens, cuja realidade pode ser traçada mais ou menos na realidade, é preciso assinalar aquelas cujas raízes desaparecem de tal modo na personagem fictícia resultante, que, ou não tem qualquer modelo consciente, ou os elementos eventualmente tomados à realidade não podem ser traçados pelo próprio autor.

Para finalizar, é possível dizer que a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista e antes do mais, da função que exerce na estrutura do romance, do modo a concluirmos que é mais um problema de organização interna que à realidade exterior.

Cada traço adquire sentido em função de outro de tal modo que a verossimilhança, o sentimento da realidade, depende da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta organização é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde vida, calor e o faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres vivos.

Fontes:
- CANDIDO, Antonio. A personagem de Ficção. 3º edição. São Paulo. Perspectiva, 19
- http://mscamp.wordpress.com/a-personagem-do-romance/

Anton Tchekhov (A Aposta)


I

Era uma noite escura de outono. O velho banqueiro media a passadas o seu gabinete e recordava como, quinze anos atrás, no outono, dera uma festa. Nessa reunião estivera muita gente inteligente e houvera muitas conversas interessantes. Entre outros assuntos, falara-se da pena de morte. Os convidados, entre os quais havia não poucos sábios e jornalistas, na sua maioria tinham uma atitude negativa para com a pena de morte. Achavam esse método de punição obsoleto, impróprio para os Estados cristãos e imoral. A opinião de alguns deles era que a pena de morte deveria ser definitivamente abolida e substituída pela prisão perpétua.

— Não estou de acordo — disse o banqueiro, dono da casa. — Nunca experimentei nem a pena de morte nem a prisão perpétua, mas, se é possível julgar a priori, a minha opinião é que a pena de morte é mais moral e mais humana do que a prisão. A execução mata duma vez, ao passo que a prisão perpétua mata aos poucos. Que carrasco é, pois, mais humano — aquele que mata de repente ou o que arranca a vida no decorrer de muitos anos?

— Tanto uma coisa como outra são igualmente imorais — observou um dos convidados —, porque ambas têm a mesma finalidade — tirar a vida. O Estado não é Deus. Não tem o direito de tirar aquilo que não pode devolver, se quiser.

Entre os convidados estava um jurista, jovem de uns vinte e cinco anos. Quando lhe perguntaram a sua opinião, ele disse:

— Tanto a pena de morte como a prisão perpétua são igualmente imorais, mas, se me oferecessem a escolha entre a morte e a prisão perpétua, eu certamente escolheria a segunda. Viver de qualquer maneira é melhor do que não viver de todo.

Começou uma discussão animada. O banqueiro, que era então mais jovem e mais nervoso, súbito ficou fora de si, deu um murro na mesa e gritou para o jovem advogado:

— Não é verdade! Aposto dois milhões que o senhor não agüentaria numa cadeia nem cinco anos.

— Se o senhor fala sério — respondeu-lhe o advogado —, eu aposto que posso agüentar a prisão não por cinco, mas por quinze anos!

— Quinze? Aceito! — gritou o banqueiro. — Senhores, eu ponho na mesa dois milhões!

— De acordo! O senhor põe dois milhões, e eu, a minha liberdade! — disse o jurista.

E essa aposta selvagem e insensata realizou-se! O banqueiro, que naquele tempo não tinha conta dos seus milhões, mimado e leviano, estava encantado com a aposta. Durante a ceia, ele pilheriava com o jurista e dizia:

— Caia em si, jovem, enquanto ainda não é tarde. Para mim, dois milhões são uma ninharia, mas o senhor se arrisca a perder três ou quatro dos melhores anos de sua vida. Eu digo três ou quatro, porque o senhor não agüentará mais do que isso. Não esqueça tampouco, infeliz, que a prisão voluntária é muito mais penosa do que a compulsória. O pensamento de que, a cada momento, o senhor pode sair para a liberdade vai lhe envenenar toda a existência na prisão. Eu tenho pena do senhor!

E, agora, o banqueiro, andando dum lado para outro, recordava tudo isso e se perguntava:

— Para que foi essa aposta? Qual era o proveito disso? O jurista perdeu quinze anos de sua vida, e eu jogo fora dois milhões? Será que isso poderá provar aos outros que a pena de morte é pior ou melhor que a prisão perpétua? Não e não — é tolice e insensatez. De minha parte, isso foi um capricho de homem enfastiado, e, da parte do jurista, nada mais que avidez de dinheiro...

E ele continuou recordando o que aconteceu depois da famosa noitada. Ficou resolvido que o advogado passaria a sua reclusão, sob a mais severa vigilância, numa das alas construídas no jardim do banqueiro. Combinou-se que, no decorrer de quinze anos, ele ficaria privado do direito de atravessar a soleira da sua ala, de ver gente, ouvir vozes humanas e receber cartas e jornais. Permitiu-se que ele possuísse um instrumento musical, lesse livros, escrevesse cartas, tomasse vinho e fumasse. Pelo trato, suas comunicações com o mundo exterior poderiam ser apenas mudas, através de uma janelinha especialmente construída para esse fim. Tudo aquilo de que precisasse, livros, notas musicais, vinho e o resto, ele receberia, por intermédio de bilhetes, em qualquer quantidade, mas somente pela janelinha. O contrato previa todos os detalhes e minúcias, que faziam a reclusão rigorosamente solitária, e obrigava o advogado à permanência de quinze anos exatos, das doze horas de 14 de novembro de 1870 até às doze horas de 14 de novembro de 1885. A menor tentativa, da parte do jurista, de quebrar qualquer das condições, ainda que dois minutos antes do término do prazo, libertava o banqueiro da obrigação de pagar-lhe os dois milhões.

Durante o primeiro ano o jurista, conforme se podia julgar pelos seus lacônicos bilhetes, sofreu muito da solidão e do tédio. Da sua ala, constantemente, dia e noite, ouviam-se os sons do piano. Ele recusou o vinho e o tabaco. O vinho, escrevia ele, excita os desejos, e os desejos são os primeiros inimigos do prisioneiro; além disso, não existe nada mais aborrecido do que tomar bom vinho sem ver ninguém. Quanto ao tabaco, poluía o ar do seu quarto. No primeiro ano, mandaram-lhe livros, de preferência de conteúdo leve: romances com complicadas intrigas amorosas, contos policiais e fantásticos, comédias, etc.

No segundo ano, a música silenciou na ala, e o jurista, nos seus bilhetes, exigia somente os clássicos. No quinto ano, novamente ouviu-se música, e o prisioneiro pediu vinho. Aqueles que o observavam através da janelinha diziam que todo esse ano ele só comia, bebia e ficava deitado na cama, bocejava muito e falava consigo mesmo, em tom irado. Não lia livros. Às vezes, durante a noite, ele se punha a escrever, escrevia longamente e, pela madrugada, rasgava em pedaços tudo o que escrevera. Mais de uma vez ouviram-no chorar.

No sexto ano de reclusão, o prisioneiro dedicou-se com afinco ao estudo de línguas, filosofia e história. Ele se entregou a esses estudos com tamanha avidez, que o banqueiro mal tinha tempo de fazer vir os livros necessários. No decorrer de quatro anos, por exigência do prisioneiro, foram importados cerca de seiscentos volumes. No período dessa paixão, o banqueiro recebeu, entre outras, esta carta:

“Meu caro carcereiro! Escrevo-lhe estas linhas em seis idiomas. Mostre-as a pessoas competentes, para que as leiam. Se não encontrarem nem um erro, peço-lhe encarecidamente que mande dar um tiro de espingarda no jardim. Esse tiro me informará que os meus esforços não foram vãos. Os gênios de todos os séculos e países falam línguas diversas, mas em todos eles arde a mesma chama. Oh, se soubesse que inefável felicidade experimenta hoje a minha alma porque agora eu os posso compreender!” O desejo do prisioneiro foi atendido. O banqueiro mandou dar dois tiros de espingarda no jardim.

Mais tarde, depois do décimo ano, o jurista ficou sentado, imóvel, à mesa, e lia somente o Evangelho. Parecia estranho ao banqueiro que um homem que assimilara em quatro anos seiscentos tomos eruditos gastasse um ano inteiro na leitura de um único livro, de fácil compreensão e pouca espessura. Depois do Evangelho, vieram a história das religiões e a teologia.

Nos últimos dois anos de reclusão, o encarcerado leu em quantidade enorme, sem nenhum critério. Ora ele se ocupava de ciências naturais, ora exigia Byron ou Shakespeare. Havia bilhetes seus em que pedia que lhe mandassem simultaneamente uma obra de química, um compêndio de medicina, um romance e um tratado de filosofia ou de teologia. Suas leituras semelhavam algo como se ele, boiando no mar entre os destroços de um navio naufragado e querendo salvar sua vida, se agarrasse convulsivamente ora a um destroço, ora a outro!

II

O velho banqueiro relembrava tudo isso e pensava:

“Amanhã às doze horas ele recuperará a liberdade. Pelo contrato, eu terei de lhe pagar dois milhões. Se eu pagar, tudo estará perdido — eu estarei definitivamente arruinado”.

Quinze anos atrás ele não tinha conta dos seus milhões, mas agora tinha medo de se perguntar o que tinha mais: dinheiro ou dívidas? Jogadas imprudentes na Bolsa, especulações arriscadas e a impulsividade, da qual ele não conseguira se libertar nem mesmo na velhice, pouco a pouco minaram os seus negócios, e o ricaço orgulhoso, destemido e auto-suficiente transformou-se num banqueiro de categoria mediana, que tremia a cada alta ou baixa das ações.

— Maldita aposta — balbuciava o velho, apertando cabeça, em desespero. Por que esse homem não morreu? Ainda está com quarenta anos apenas. Ele me tirará os últimos recursos, casar-se-á, gozará a vida, jogará na Bolsa, e eu, como um mendigo, ficarei a olhá-lo com inveja e a ouvir dele, todos os dias, a mesma frase: “Eu lhe devo toda a felicidade da minha vida, permita-me que o ajude!” Não, isso é demais! A minha única salvação da bancarrota e da vergonha é a morte desse homem!

Soaram as três horas. O banqueiro ficou atento: na casa todos dormiam e só se ouvia, atrás das janelas, o farfalhar das árvores friorentas. Procurando não fazer nenhum ruído, ele tirou do cofre-forte a chave da porta que não fora aberta durante quinze anos, vestiu o capote e saiu da casa.

O jardim estava escuro e frio. Chovia. Um vento áspero e gelado uivava no jardim e não dava sossego às árvores. O banqueiro forçava a vista, mas não conseguia distinguir nem a terra, nem as alvas estátuas, nem a ala, nem as árvores. Aproximando-se do lugar onde ficava a ala, ele chamou o guarda por duas vezes. Não houve resposta. Decerto, o guarda se abrigara do mau tempo e agora dormia em algum canto da cozinha ou do caramanchão.

“Se eu tiver coragem suficiente para executar o meu plano”, pensou o velho, “as primeiras suspeitas recairão sobre o guarda.”

Ele encontrou, tateando no escuro, os degraus e a porta, e entrou no vestíbulo da ala; depois, tateando sempre, entrou no pequeno corredor e acendeu um fósforo. Ali não se via vivalma. Havia uma cama sem colchão e, num canto, a mancha escura de uma estufa de ferro. Os lacres da porta que dava para o quarto do prisioneiro estavam intactos.

Quando o fósforo se apagou, o velho, tremendo de emoção, espiou pela janelinha.

No quarto do prisioneiro ardia a chama baça de uma vela. Ele mesmo estava sentado diante da mesa. Só se viam as suas costas, os cabelos e as mãos, Sobre a mesa, nas duas poltronas e no tapete junto à mesa, espalhavam-se livros abertos.

Cinco minutos transcorreram sem que o prisioneiro se mexesse uma só vez... Quinze anos de reclusão tinham-no ensinado a permanecer perfeitamente imóvel. O banqueiro bateu na janelinha, e o prisioneiro não respondeu às batidas com um movimento que fosse. Então o banqueiro arrancou, com cuidado, os lacres da porta e introduziu a chave no buraco da fechadura. A fechadura enferrujada emitiu um som rouco e a porta rangeu. O banqueiro esperava que imediatamente se ouvisse uma interjeição de espanto e passos, mas transcorreram uns três minutos e atrás da porta tudo continuava silencioso como antes. Ele decidiu-se a penetrar no quarto.

Diante da mesa estava sentado um homem que não se parecia com os homens comuns. Era um esqueleto coberto de pele, com longos cachos femininos e barba hirsuta. Sua tez era amarela, com matizes terrosos, as faces encovadas, as costas longas e estreitas, e a mão que sustentava a cabeça descabelada era tão fina e magra que dava arrepios olhar para ela. Nos seus cabelos já brilhavam fios de prata e, olhando o seu rosto encovado de velho, ninguém acreditaria que ele tinha apenas quarenta anos. Ele dormia... Diante da sua cabeça inclinada, na mesa, estava uma folha de papel, na qual estava escrita alguma coisa em letra miúda.

“Homem lamentável!”, pensou o banqueiro. “Dorme e, decerto, sonha com os seus milhões! E, no entanto, basta que eu segure esse semimorto, atire-o na cama, abafe-o de leve com o travesseiro, e a mais minuciosa diligência policial não encontrará sinal algum de morte violenta. Mas leiamos primeiro o que ele escreveu aí...”

O banqueiro apanhou o papel da mesa e leu o seguinte:

“Amanhã às doze horas eu receberei a liberdade e o direito de comunicação com os meus semelhantes. Mas, antes de deixar este quarto e rever o sol, julgo necessário dizer-vos algumas palavras. Em sã consciência e diante de Deus, que me vê, eu vos declaro que desprezo a liberdade, a vida, a saúde, e tudo aquilo que nos vossos livros é chamado de bens da vida.

“Durante quinze anos estudei atentamente a vida terrena. É verdade que eu não via a terra e os homens, mas, nos vossos livros, sorvia vinhos aromáticos, entoava canções, caçava nos bosques cervos e porcos selvagens, amava mulheres... Beldades, leves como nuvens, criadas pela magia dos vossos poetas geniais, visitavam-me de noite e me sussurravam contos encantados que embriagavam a minha mente. Nos vossos livros, eu escalava cumes do Elbruz e do monte Branco e via de lá como nascia o sol de madrugada e, ao anoitecer, como ele inundava o firmamento, o oceano e os cumes das montanhas de ouro rubro; eu via de lá os relâmpagos fendendo as nuvens por cima da minha cabeça; eu via os campos verdejantes, os rios, os lagos, as cidades, ouvia o canto das sereias e a música das flautas dos pastores, sentia as asas de formosos demônios que vinham conversar comigo a respeito de Deus... Nos vossos livros, eu mergulhava em abismos sem fundo, fazia milagres, matava, queimava cidades, pregava novas religiões, conquistava reinos inteiros...

“Os vossos livros deram-me sabedoria. Tudo aquilo que a infatigável mente humana criou durante séculos está comprimido no meu cérebro num pequeno novelo. Eu sei que sou mais sábio do que todos vós. E eu desprezo os vossos livros, desprezo todos os bens terrenos e a sabedoria. Tudo é mesquinho, perecível, espectral e ilusório, como a miragem. Podeis ser orgulhosos, sábios e belos, mas a morte vos apagará da face da terra, assim como às ratazanas, e a vossa descendência, a vossa história, a imortalidade dos vossos heróis serão congelados ou queimados junto com o globo terrestre.

“Vós enlouquecestes e tomastes o caminho errado. Tomais a mentira pela verdade e a deformidade pela beleza. Vós ficaríeis admirados se, em conseqüência de circunstâncias imprevistas, nascessem, nas macieiras e laranjeiras, em vez de maçãs e laranjas, sapos e lagartixas, ou se as rosas de repente começassem a exalar odores de cavalo suado. Assim eu me admiro de vós, que trocastes o céu pela terra. Não vos quero compreender.

“Para demonstrar-vos na prática o meu desprezo para com tudo o que é a vossa vida, renuncio aos dois milhões com os quais sonhei em outros tempos como se fossem o paraíso que hoje eu desdenho. Para me privar do direito a eles, sairei daqui cinco horas antes do prazo combinado e, desse modo, quebrarei o trato...”

Tendo lido isso, o banqueiro repôs a folha na mesa, beijou a cabeça do estranho homem e, chorando, saiu da ala. Nunca antes, em tempo algum, mesmo após uma perda pesada na Bolsa, ele sentira por si mesmo um desprezo tamanho, como naquele momento. Chegando em casa, ele se deitou na cama, mas a emoção e as lágrimas não o deixaram adormecer...

No dia seguinte de manhã os guardas vieram correndo, pálidos, e lhe comunicaram que tinham visto o homem que vivia na ala se esgueirar pela janela para o jardim, dirigir-se para o portão e desaparecer. O banqueiro dirigiu-se imediatamente para a ala e, diante dos criados, constatou a fuga do seu prisioneiro. Para não dar azo a comentários supérfluos, tirou da mesa o papel com a renúncia e, voltando para o seu gabinete, trancou-o no cofre-forte.

Fontes:
- TCHEKHOV, Anton. O malfeitor e outros contos da Velha Rússia. RJ: Ediouro.

Lygia Fagundes Telles (Seminário dos Ratos)



Seminário dos ratos, é um conto de Lygia Fagundes Telles, e está também presente no livro de mesmo nome. Neste conto a autora também rompe com a realidade e com a lógica racional.

Enredo

Conto em terceira pessoa que apresenta uma alegoria de nossas estruturas político-burocráticas. Trata-se de ratos, pequenos e temerosos roedores, numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos, que invadem e destróem uma casa recém restaurada localizada longe da cidade. Ali aconteceria um evento denominado VII Seminário dos Roedores, uma reunião de burocratas, sob a coordenação do Secretário do Bem-Estar Público e Privado, tendo como assessor o Chefe de Relações Públicas. O país fictício encontra-se atravancado pela burocracia, invertendo-se a proporção dos roedores em relação ao número de homens: cem por um.

O conto aparece em livro homônimo, no ano de 1977, época em que o Brasil se encontrava em um momento histórico de repressão política. No trabalho gráfico da capa da primeira edição do livro Seminário dos ratos, aparecem dois ratos empunhando estandartes com bandeiras à frente de uma figura estilizada – uma espécie de monstro com coroa, um rei no trono, a ser destronado pelos animais?

O próprio nome do conto "Seminário dos ratos" já causa uma inquietação. Um seminário evoca atividade intelectual, local de encontro de estudos, possuindo etimologicamente mesma raiz de semente/sementeira – local para germinar novas idéias. Também traz uma ambigüidade: seminário no qual se discutirá a problemática dos ratos, ou seminário no qual os ratos serão participantes? Essa questão ficará em aberto ao final do conto. A narrativa é introduzida através de uma epígrafe – versos finais do poema "Edifício Esplendor" de Carlos Drummond de Andrade (1955) - da qual já emana um clima de terror, em que os ratos falam, humanizados pelo poeta: Que século, meu Deus! – exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício. A imagem evocada por este verso já traz um efeito em si, remetendo à história de homens sem alma e a construções sem sentido, que não vale a pena conservar, condensando uma perplexidade frente a situações paradoxais daquele século surpreendente. O nome "esplendor" no título do poema é uma ironia, visto que o edifício descrito pelo poeta é pura decadência.

O espaço privilegiado no relato é um casarão do governo, espécie de casa de campo afastada da cidade, recém-reconstruída especialmente para a realização do evento. Portanto, o seminário aconteceria em uma casa de ambiente acolhedor, longe de temidos inimigos como insetos ou pequenos roedores, equipada com todo o conforto moderno: piscina de água quente, aeroporto para jatinhos, aparelhos eletrônicos de comunicação, além de outras comodidades e luxos. A narrativa fantástica transcorre neste cenário insólito com protagonistas ambivalentes que carecem de nomes próprios. Até mesmo os acontecimentos e seus indícios nesta representação espacial transmitem uma sensação ameaçadora ao leitor. A intenção política fica atestada nesta escolha da mansão restaurada no campo, evidenciando um plano físico/espacial expandido ao psicológico: distante, porém íntimo para quem lá está. Embora o processo psicologizante seja lento, a total e inevitável destruição ao final é completamente bem-sucedida.

A primeira personagem apresentada no conto é o Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, que se ruboriza facilmente e possui má audição. Ele pede permissão, através de batidas leves na porta para entrar na sala do Secretário do Bem Estar Público e Privado, a quem chama de Excelência – homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas [...] voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem chefe encontra o secretário com o pé direito calçado, e o outro em chinelo de lã, apoiado em uma almofada, e bebendo um copo de leite. Curiosamente, a personagem do jovem chefe é a única que sobreviverá ao ataque dos ratos, restando ao final da história para contá-la.

As personagens desse conto são nomeadas através de suas ocupações profissionais e cargos hierárquicos, havendo portanto uma focalização proposital nos papéis sociais. Também nesse primeiro momento, há descrição pormenorizada do físico das personagens já apresentadas, que levam a inferências sobre aspectos psicológicos, que permitem conhecer a interioridade.

No caso destas duas personagens, parece que ambos não têm contato com seus selves, nem com o inconsciente. Elas não se apoderam de si mesmas: não está em contato consigo mesma, mas com sua imagem refletida. As individualidades do chefe e do secretário encontram-se completamente confundidas com o cargo ocupado, resultando num estado de inflação, num papel social representado, longe da essência de seus núcleos humanos e de suas sensibilidades. A ênfase dada à ocupação e ao cargo da primeira personagem mostra que se trata do responsável pela coordenação dos assuntos que dizem respeito ao relacionamento com o público em geral. Em outras palavras, sua função está ligada aos tópicos referentes à mídia, à comunicação com o coletivo.

Esta primeira cena do conto já remete a uma dualidade que acentua oposições: embora seja o responsável pelo bem-estar coletivo, o secretário sofre de um mal-estar individual, pois tem uma enfermidade que ataca seu pé - a gota - em cujas crises seu sentido da audição também se aguça. Cria-se uma figura contraditória: um secretário do bem-estar que se encontra mal.

A narrativa apresenta a divisão da unicidade física e psíquica desta personagem, que já vem nomeada com esta cisão de forças antagônicas: o público e o privado. Este índice já pertence ao duplo – um pé esquerdo doente – que desvela a cisão em que se encontra o secretário. Embora aparentemente restrita ao nível físico, há uma divisão da unidade psíquica também. No outro dia ele calçará os sapatos, para aparecer "uno" diante do mundo externo. Através do discurso, revela-se uma bivocalização, uma relação de alteridade, uma interação da voz de um eu com a voz de um outro. Este diálogo que se estabelece entre os dois acontece com um pano de fundo: a crise de artrite que acomete o secretário. A partir deste momento, estabelece-se uma ênfase acentuada nesta parte-sustentáculo do corpo humano, enfermo na personagem. Ao receber em chinelos seu subordinado – que, também detém um cargo de chefia – ele revela sua intimidade, denunciando sua deficiência física e tornando-se vulnerável. Confessa que fará o sacrifício de calçar sapatos, porque não deseja apresentar-se assim aos demais convidados. Dessa forma, o secretário encontra-se destituído de um dos símbolos de sua autoridade: os sapatos.

No conto, o fato de o secretário estar com a saúde do pé abalada, e não poder se locomover (a não ser de chinelos) nem calçar sapatos, parece significar justamente não poder gozar de sua plena autoridade. É uma pessoa fragilizada, com limitações expostas, cuja "persona" não está sintonizada com o exigido, além de beber leite, alimento relacionado com a infância.

Na continuação da conversa, o secretário solicita notícias sobre o coquetel que ocorrera à tarde, ao que o Chefe das Relações Públicas responde ter sido bem-sucedido, pois havia poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável. Continua informando em que alas e suítes estão instalados os convidados: o Assessor da Presidência da RATESP na ala norte, o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas na suíte cinzenta, a Delegação Americana na ala azul. Complementa dizendo que o crepúsculo está deslumbrante, dando indícios do tempo cronológico do conto, que transcorre entre um entardecer e um alvorecer: o ciclo de uma noite completa. A conversa inicia quase às seis horas, indicando um momento de passagem, de transição entre a luz/claridade e a noite, quando a consciência vai pouco a pouco dando lugar ao mundo da escuridão, do inconsciente. Como bem assinala Franz: ...a hora do poente pode ser interpretada como dormir, o apagar-se da consciência.

O secretário solicita explicações sobre a cor cinzenta escolhida na suíte do diretor das classes, por sua vez representando também uma síntese de contrários, e o jovem Relações Públicas explica os motivos de suas escolhas para distribuir os participantes. Depois indaga se o secretário por acaso não gosta da cor cinza, ao que ele responde com uma associação, lembrando tratar-se da cor deles. Rattus alexandrius.

O secretário os chama pelo nome latino, o que sugere um artifício para minimizar a gravidade da situação. Aqui é trazida uma perspectiva polarizada: norte-sul. Entre as duas, uma zona cinzenta. É interessante perceber que o ocupante desta área tem uma responsabilidade contraditória de defender as classes conservadoras com as forças armadas e com as forças desarmadas. No conto, a cor da suíte que lhe é destinada – cinzenta - remete a algo que não é preto nem branco, mas à mescla destas duas cores, como se faltasse uma definição na cor e nas forças que utiliza.

No prosseguimento da conversa entre ambos, o secretário confessa ter sido contrário à indicação do americano, argumentando que, se os ratos são pertencentes ao país, as soluções devem ser caseiras, ao que o chefe objeta ser o delegado um técnico em ratos. Fica evidente a posição política contrária à intervenção americana no país, principalmente porque na época havia suspeitas de que agentes americanos especializados em repressão política vinham ao Brasil treinar torturadores. O secretário aproveita para indicar ao jovem chefe (que está sendo orientado, pois é um candidato em potencial) uma postura de positividade diante dos estrangeiros, devendo esconder o lado negativo dos fatos: mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos. Aqui a personagem expõe sua visão de mundo, suas relações consigo mesmo e com o mundo externo - aspectos que são motivo de orgulho e envaidecimento devem ser mostrados, porém aspectos da psique individual e coletiva que envergonhem e representam dificuldades não. Em outras palavras: o mundo da sombra deve ser escondido.

No discurso sobre as aparências, a personagem relaciona os ratos com os pés inchados e com os chinelos. O aspecto que estes três elementos têm em comum é que são todos indesejáveis para a personagem: o rato, pela ameaça da invasão, epidemia e destruição (além de prejudicarem sua gestão e pôr em dúvida sua competência de zelar pelo bem-estar coletivo), o pé enfermo por denunciar sua deficiência física, e os chinelos, finalmente, por revelarem um status inferior, uma espécie de destituição de seu poder. Também não agrada ao secretário saber que o americano é um especialista em jornalismo eletrônico, solicitando ser informado sobre todas as notícias veiculadas a esse respeito na imprensa a partir dali. Já se encontram no sétimo seminário e ainda não solucionaram o problema dos roedores, porém não desejam ajuda estrangeira. O jovem Relações Públicas conta que a primeira crítica levantada fora a própria escolha do local para o seminário – uma casa de campo isolada -, e a segunda questão se referia aos gastos demasiados para torná-la habitável: tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína....

O chefe continua relatando sobre um repórter que criticou a medida do governo e este torna-se alvo do ataque dos dois homens: estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou, então, amigo dos ratos, diz o secretário. Franz sublinha que a sombra, o que é inaceitável para a consciência, é projetada num oponente, enquanto a pessoa se identifica com uma auto-imagem fictícia e com o quadro abstrato do mundo oferecido pelo racionalismo científico, algo que provoca uma perda constantemente maior do instinto e, em especial, uma perda do amor ao próximo, tão necessário ao mundo contemporâneo.

Entretanto, o jovem chefe salienta a cobrança de resultados por parte da mídia. Acentua que, na favela, as ratazanas é que andam de lata d’água na cabeça e reafirma ser uma boa idéia a reunião se realizar na solidão e ar puro da natureza no campo. Nesta primeira afirmação, percebe-se uma total falta de sensibilidade, empatia, solidariedade e humanidade para com os favelados: tanto faz que sejam as Marias ou as ratazanas que precisem carregar latas d’água na cabeça. Esta parte do conto é reforçada pela citação supracitada. Neste momento, o secretário ouve um barulho tão esquisito, como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto... Não ouviu mesmo?, porém o jovem relações públicas nada ouve. O secretário encontra-se tão paranóico com a questão dos ratos e do seminário, que desconfia da possibilidade de um gravador estar instalado veladamente, talvez da parte do delegado americano. O relações públicas conta ainda que o assessor de imprensa sofrera um pequeno acidente de trânsito, estando com o braço engessado.

No prosseguimento da conversa, um ato falho do secretário faz confundir braço com perna quebrada. Franz faz ver que os braços são em geral os órgãos de ação e as pernas nossa postura na realidade. O jovem chefe diz que o assessor de imprensa dará as informações pouco a pouco por telefone, mas que virão todos ao final, para o que ele denomina "uma apoteose". A tradução do texto latino Finis coronat opus, ou seja, "o fim coroa a obra", evidencia que para ele não importam os meios. Denuncia-se desse modo a falta de princípios éticos das personagens. O secretário confessa se preocupar com a incomunicabilidade, preferindo que os jornalistas ficassem mais perto, ao que o jovem assessor contra-argumenta que a distância e o mistério valorizam mais a situação. A preocupação da personagem é com o mundo externo, com os meios de comunicação, com as boas notícias, mesmo que inverídicas. Entretanto, permanece incomunicável com seu mundo interno, não lhe dando atenção.

O secretário pede inclusive para seu assessor inventar que os ratos já estão estrategicamente controlados. Fica evidenciada no diálogo a manipulação da informação, principalmente na vocalização do chefe: [...] os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle. Além disso, aqui são visíveis os mecanismos da luta pelo poder: o binômio mandante/poder – executor/submissão representa parte de um sistema sócio-político explorador e falso, prevalecendo a atitude de ludibriar.

Novamente, o secretário chama a atenção para o barulho que aumenta e diminui. Olha aí, em ondas, como um mar... Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí..., mas o chefe das relações públicas continua a não escutar. A comparação com forças poderosas e potencialmente destrutivas da natureza mostram o quanto ele estava apreensivo. O barulho desconhecido e esquisito que persegue o secretário aparece como uma ameaça severa, como se algo já existente em potencial estivesse por acontecer.

O secretário afirma que escuta demais, devo ter um ouvido suplementar. Tão fino. e que é o primeiro a ter premonições quando coisas anormais acontecem, evocando sua experiência na revolução de 32 e no golpe de 64. Esta verbalização aponta indícios de que a sede do sétimo seminário é o Brasil, ao menos como inspirador do país ficcional do texto. No entanto, o cenário é ampliado para a América do Sul, com o uso repetido do termo "bueno" pelo jovem assessor, em várias de suas vocalizações, e o nome da safra do vinho, mais adiante analisado. Respira-se uma atmosfera latina em função disto. Em geral há um tom de tragédia, típico da simbologia isomorfa das trevas.

O jovem assessor lança um olhar suspeitoso sobre uma imagem de bronze: aqui aparece, sob a forma de uma estatueta – da justiça – uma figura feminina no conto: tem os olhos vendados, empunha a espada e a balança. Desta, um dos pratos está empoeirado, novamente numa alusão à situação de injustiças em que vive o país. A balança é o elemento mais evidenciado da imagem, como se estivesse em primeiro plano. Através dessa alegoria, há como um convite para refletir sobre as diferentes polaridades que se evidenciam, já que se trata de um instrumento que serve para medir e pesar o equilíbrio de duas forças que se colocam em pratos opostos: bem estar x mal estar, pé sadio x doente, ratos x governo, mansão x ruína.

Os dualismos apontados acabam por sintetizar uma confrontação simbólica entre homens e animais, entre racionalidade e irracionalidade. A espada é o símbolo por excelência do regime diurno e das estruturas esquizomorfas. A arma pode representar a reparação e o equilíbrio entre o bem e o mal. No tecido do conto, a imagem da espada nas mãos da justiça adquire sentido de separação do mal. Neste conto, a correspondência das situações e personagens apresentadas corrobora uma significação dualista, através do uso de antíteses pela escritora.

Somente então o secretário faz menção ao pé enfermo, usando o termo "gota" pela primeira vez na narrativa.

E o jovem assessor de imediato canta Pode ser a gota d’água! Pode ser a gota d’água!, estribilho da canção popular do compositor Chico Buarque de Holanda, na época um crítico dos fatos políticos do país. A associação musical do chefe parece não agradar ao secretário. O jovem chefe defende-se, dizendo ser uma música cantada pelo povo, ao que o secretário aproveita a deixa para declarar que só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma abstração [...] que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou roer os pés das crianças da periferia. O secretário complementa que quando a "imprensa marrom" começa a explorar o fato, aí "o povo passa a existir".

Na afirmação de que o povo não existe enquanto realidade, o secretário parece ser um secretário mais para privado do que para público, porém é forçado a reconhecer o povo quando suas mazelas e infortúnios aparecem nos jornais, expostos em manchetes, o que muito abomina.

Na rede de intertextualidade do Seminário dos ratos, a alusão à canção "Gota d’água" completa uma série de referências presentes no conto a poetas brasileiros: Carlos Drummond de Andrade, Chico Buarque de Holanda, Vinícius de Moraes, presentes no texto. Poderíamos contar ainda com a presença da letra de "Lata d’água", música de carnaval tipicamente brasileira. É como se a narrativa quisesse enfatizar as coisas boas do país, em contraponto com a situação política vigente.

Outra teia intertextual possível é o conto de fadas O flautista de Hamelin: a personagem-título livra a população da peste dos ratos apenas com sua música. A condução/expulsão dos ratos para longe é um contraponto ao texto de Lygia, que, por sua vez, trata da chegada de ratos.

O secretário lembra também que no Egito Antigo, resolveram esse problema aumentando o número de gatos, ao que o assessor responde que aqui o povo já comera todos os gatos, ouvi dizer que dava um ótimo cozido!, em uma resposta claramente irônica, aludindo ao fato de que o povo estaria esfaimado a ponto de comer carne de gato.

Com o escurecer, o jovem relações públicas recorda que o jantar será às oito horas, e a mesa estará decorada com a cor local: orquídeas, frutas, abacaxi, lagostas, vinho chileno. O preparo cuidadoso e aparência requintada do alimento não o afastará de ao final tornar-se comida dos animais. Aqui aparece outro fio intertextual – com a política de outro país da América do Sul, o Chile - pois na narração o nome da safra do vinho é Pinochet, referência explícita ao ditador na época da publicação do conto, recentemente julgado por seus atos.

O ruído retorna de forma bem mais forte: agora o relações públicas identifica-o, levantando-se de um salto. Aparece a satisfação do secretário ao ver confirmadas suas intuições, porém ele mal imagina que esta satisfação logo irá também por sua vez inverter-se, pois é a confirmação de um barulho prenunciador da catástrofe que logo a seguir se abaterá sobre o casarão, o ruído surdo da invasão dos ratos que se articula. Novamente compara com vulcão ou bomba, e o jovem assessor sai apavorado murmurando: Não se preocupe, não há de ser nada, com licença, volto logo. Meu Deus, zona vulcânica?!....

No corredor, ele encontra-se com Miss Glória, secretária da delegação americana, a única personagem feminina do conto, com quem conversa rapidamente em inglês, praticando seu aprendizado de idiomas. Parece haver uma ironia também no nome, pois contrariamente à glória esperada, o seminário parece fadado ao fracasso. Ela tem um papel secundário no seminário, que aparece como um evento de poder eminentemente masculino. O chefe encontra-se em seguida com o diretor das classes conservadoras armadas e desarmadas, vestido com um roupão de veludo verde e encolheu-se para lhe dar passagem, fez uma mesura, ‘Excelência’ e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha veludosa, e ainda lhe admoesta sobre o ruído e o cheiro. Informa-lhe que os telefones estão mudos (no país os meios de comunicação estavam sob censura), o que o surpreende. A comparação que a escritora faz com uma montanha veludosa, em correspondência ao chambre de veludo verde, neste contexto, alude à cor do conservadorismo e do poder. Trata-se de cor muito utilizada pela escritora, já referido em outros contos. O uso desta cor na obra da escritora é tão notável, que mereceu análise de Fábio Lucas no ensaio Mistério e magia: contos de Lygia Fagundes Telles.

Neste momento surge a personagem do cozinheiro-chefe, que anuncia a rebelião dos animais, aparece correndo pelo saguão – sem gorro e de avental rasgado – com mãos sujas de suco de tomate que limpa no peito, a cor vermelha em clara alusão a sangue, revolução, esquerda – dizendo aos gritos que acontecera algo horrível: Pela alma de minha mãe, quase morri de susto quando entrou aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclides! - os ratos haviam comido tudo, só se salvara a geladeira. Relata, como o secretário, que o barulho fora percebido antes, feito um veio d’água subterrâneo. Depois havia sido um apavoramento, um espanto com aquela invasão desproposital e aterrorizante em meio aos preparativos para o seminário. O estranhamento que causa a invasão dos ratos dentro desta atmosfera é abrupta, apesar dos indícios, pois não existe uma explicação lógica da desmesura dos ataques. A violência do ocorrido, de uma certa forma, reflete aspectos "monstruosos" dentro do homem, e que também dá a medida de como a sociedade se constitui. Aqui, o fato fantástico instala-se no âmago do real, confundindo os parâmetros racionais e provocando uma ruptura da ordem do cotidiano. A não resolução da narrativa e o sistema metafórico fazem da narração, um drama e da leitura, um exercício conflitual.

No conto, a comparação com nuvem traz uma alusão ao coletivo de gafanhotos, pois os ratos do conto agiram feito uma nuvem destes insetos, praga que tudo destrói. O cozinheiro-chefe conta que ao tentar defender a comida um rato ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem. Pela alma de minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato!. O vínculo entre o terror e o duplo aparece de modo exemplar aqui, pois há convergência de ambos na figura do animal. A narração promove inversões características de narrativas fantásticas, no sentido de humanizar os ratos. Trata-se do relato de um atributo humano de intimidação, ameaça, arrogância e enfrentamento. E também busca animalizar as personagens, através do uso expressivo de verbos, como farejar e rosnar, para assim conferir atributos animais, relacionados com a postura de pessoas.

Homens com atitudes de ratos e ratos com posturas de homens: a animalidade associada à irracionalidade humana. Às vezes o duplo vinga-se ele próprio. Considera-se essa idéia aplicável a esse duplo corporificado pelos animais (sobrenatural, espectral) que se vinga dos homens destruindo o próprio seminário. Nesse caso do conto, os "outros" eram os ratos, incluindo o fato de que davam uma impressão de humanizados. A trama do conto é bastante óbvia, por suas implicações sócio-políticas, mas nem por isto perde o caráter sobrenatural. Não há dúvidas sobre a existência e o caráter antropomórfico dos ratos, também considerando o alegorismo desse conto. A presença da alegoria, por considerar significados externos ao texto, impediria a reação de hesitação do leitor, que para ele é a característica principal do texto fantástico. Acredita-se que a alegoria de cunho político não prejudica nem descaracteriza o sobrenatural nesse conto.

O jovem assessor preocupa-se com as aparências, pedindo que o cozinheiro-chefe fale baixo, não faça alarde sobre os acontecimentos. A cozinha é, no conto, o local por onde inicia a invasão dos roedores.

Como é sugerido desde o título do conto, os agentes instauradores da estranheza são os ratos, símbolos teriomorfos, uma vez que se constituem responsáveis pela invasão, tomando conta do espaço físico conhecido, e pela destruição do local. Convertem-se no centro das preocupações das personagens e, depois, no ponto deflagrador do pânico. Os atributos desses animais significam o poder destruidor do tempo, possuindo uma grande resistência ao extermínio. Ratos são considerados animais esfomeados, prolíficos e noturnos, aparecendo como criaturas temíveis, até infernal. No conto, os ratos são totalmente subversivos, no sentido de corroerem a ordem e estabelecerem o caos e o terror.

Na seqüência do conto, o jovem chefe tenta que o cozinheiro volte à cozinha, porém este mostra que a gravidade da situação não está sendo compreendida pelo jovem: nenhum carro está funcionando [...] Os fios foram comidos, comeram também os fios, ir embora só se for a pé, doutor. Foram retirados todos os símbolos que remetem à acessibilidade e à comunicação com o mundo exterior, e agora, sem subterfúgios externos para se salvarem, somente restam suas próprias forças e recursos. Os ratos devastaram toda a infra-estrutura do VII Seminário de Roedores. O relações públicas com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível.

Esta imagem é dúbia, não se sabe se o secretário está sendo arrastado junto com o chinelo ou se o chinelo é o que resta do corpo devorado; voltemos à sua premonição: o pé fora roído por ratos como o das crianças pobres? De qualquer forma, o destaque é dado para o chinelo, justamente aquilo que fora desprezado pela personagem: era tudo o que restara de si.

Nesse momento a casa é sacudida em seus alicerces por algo que parece uma avalanche e as luzes se apagam. Invasão total. O texto compara a irrupção dos animais aos milhares, brotando do nada e de todos os lugares, a uma erupção vulcânica, incontrolável. A própria narrativa vai avisando que foi a última coisa que viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se apagaram. Então deu-se a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos.

Do ataque rapidíssimo dos roedores, salva-se somente o chefe das relações públicas, que se refugia entrincheirando-se na geladeira: arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os e, num salto, pulou lá dentro, mantendo-a aberta com um dedo na porta para respirar, logo em seguida substituindo-o pela ponta da gravata. No início do conto, a gravata representa o status, o prestígio, o mundo das aparências. Já no final, aparece como símbolo de sobrevivência. Há aqui, portanto, uma transformação de um símbolo em função das ameaças e do perigo que se apresentaram à personagem, modificando o contexto. E ainda pode-se apontar mais uma inversão: as pessoas fogem espavoridas enquanto os ratos se instalam, e o chefe das relações públicas esconde-se na cozinha (depósito de mantimentos) como se fosse um rato.

Aqui tem-se o início do segundo bloco. Em flashback, avisa-se ao leitor que, após os acontecimentos daquele dia, houve um inquérito – medida obscura que ocorria no panorama do país naquela época. É a única coisa que o narrador conta de concreto após os fatos. O elemento invasor, portanto, conseguiu exterminar o seminário.

A estada do jovem chefe no interior da geladeira parece ter se constituído em um ritual de passagem, até mesmo um cerimonial, pois de um certo modo ele não renasceu? Afinal, somente ele sobreviveu e regressou ao social para relatar, tendo ficado privado de seus sentidos, que ficaram enregelados durante um tempo. A personagem, buscando refúgio na geladeira, tenta sobreviver e se salvar.

Aqui o narrador suspende a história. Este final é ambíguo, talvez em uma alusão aos ratos se reunindo para realizar o VII Seminário dos Roedores, deliberando e decidindo o destino do país em lugar dos homens dizimados... Após a iluminação do casarão, inicia-se uma nova era, governada pelo mundo das sombras, com os ratos assumindo o poder.

Todo o conto é filtrado por indicativos do fantástico, tendo seus limites no alegórico. Predomina a inversão e os animais corporificam o duplo. O clima permanente é o medo apavorante de algo que se desconhece – e principalmente, que não se controla. E sob esta capa do fantástico, Lygia compôs um conto denunciador da situação não menos terrificante em que vivia o país, abordando uma temática sobre as complexas relações entre o bem e o mal-estar coletivo e pessoal. O atributo sobrenatural – a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural, aparece neste conto, fazendo o leitor hesitar ao realizar a interpretação.

Esta narrativa de Lygia é outro exemplo da literatura como duplo, ou seja, o próprio conto como um todo é uma duplicidade de uma situação real. Uma situação política de um país, as forças militares que nele operavam, praticamente toda sua doença social personificadas nas personagens que se desdobram, os ratos como imagem de um povo faminto de liberdade e justiça que refletem (se duplicam) no conto literário. O epílogo do conto prova a existência do povo, sob forma de ratos rebelados, que mostra sua revolta e vingança, ao contrário da crença do secretário, de que ele não existiria. Neste conto, na luta entre os homens do poder e os ratos (os duplos - representantes do fantasmático), os vencedores são aparentemente estes últimos, que conseguem aniquilar com o VII Seminário. Porém, o final ambíguo (com a iluminação da mansão) e a sobrevivência do Chefe das Relações Públicas podem encaminhar a outras possibilidades de interpretação. Porém, a dúvida se instala: se os ratos haviam roído a instalação elétrica, de onde provinha a iluminação? Mais um enigma proposto pelo fantástico.

Este conto, por se tratar de uma temática social, distingue-se dos demais e traz um diferencial. Uma praga sobrenatural de ratos: eis a fantasia de Lygia Fagundes Telles para dizer de sua indignação com a situação do país e com a censura instalada. Os ratos aqui aparecem como elementos que subvertem a ordem estabelecida. A ironia, o humor negro e o sentido crítico perpassam as linhas dessa história satírica, sem abandonar o sentido de uma invasão sobrenatural dos animais. A inversão de papéis realizada entre os animais e os homens apresenta-se como a principal característica do fantástico e do duplo nesse tenso universo representado no conto.

Fonte:
http://www.passeiweb.com

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Reforma Ortográfica 3

(Clique sobre a imagem para ampliar)
Fonte:
Blog do Orlandeli

I Bienal do Livro de Curitiba (Lançamento de livros)


Imagens de Inocência
Autora: Maivillis Amaro
Dia: 28 de agosto de 2009
Horário: 16:00 horas

Tudo é Poesia
Autor: Paulo Gomes
Dia: 29. de agosto de 2009
Horário: das 14:00 às 16:00hs

Sonhos Pluviais
Autor :Ralf Gunter Rotstein, o Poeta da Chuva

Dia 29 de agosto de 2009
Horário: das 14:00 às 16:00hs

Antologia Blablablogue e Jornal Memai
Autores: Marília Kubota e Outros
Dia: 29 de agosto às 19:00hs

Todos os lançamentos ocorrerão na Expo Unimed Curitiba - Espaço de lançamentos
Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300
Campo Comprido - Curitiba - PR - CEP 81280-330
Tel.: (41) 3340-4300 Fax: (41) 3340-4343

Fonte:
Andrea Motta

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Reforma Ortográfica 2

Fonte:
Blog do Orlandeli

Camila Giangrossi Meleke (A Poetisa e sua Poesia)



LEMBRANÇAS

Infância,
Doce, serena…
Lembranças saudosas…
Criança manhosa,
Infância…
Brincadeiras…
Casinha, bola, boneca…
Peão, corrida, peteca…
Realidade imitada, inventada…
Sou mamãe, sou professora, empregada…
Realidade imitada…
Tenho isso ou aquilo, vou onde precisar…
Deixo minha imaginação voar…
Sou poeta, escritora, dona do meu destino…
Faço e aconteço…
Imagino,
Deixo a infância me levar…
Brincadeiras…
Realidade imitada…
Pouco a pouco…
A infância se acaba…
O real se concretiza,
E as lembranças tão saudosas…
Fazem-se pelas mãos da poetisa!
–––––––––––––––

AMORES, AMIGOS, AMANTES…

Amores, amigos, amantes…
Pensamentos enlouquentes, distantes…
Amores,
Proibidos, secretos, platônicos, surreais …
Amigos,
Sinceros, sucintos, leais…
Amantes
Dementes, insanos, carnais…
–––––––––––––––––––––

RECOMEÇO

Chuva,
Escorrendo suave sobre a vidraça…
Olhos fixos no horizonte,
Chuva espessa, caindo sem cessar…
Olhos miúdos, serenos, cansados,
Noite em claro,
Olhos fixos, concentrados…
A espera de um sinal,
Qualquer resquício…
Qualquer esboço,
De um mísero ponto…
No horizonte a brilhar…
Uma esperança!
Por entre as nuvens,
O esboço toma forma, a luz…
Após tamanha relutância,
Desponta, desfila, reacende a esperança…
De mais um dia esplendoroso recomeçar…
Pouco a pouco, vencendo a timidez…
Lá está ele…
No quarto a adentrar, brilhando como nunca…
Expectativas renovadas,
Não há mágoa, não há nada,
E os olhos ralos d’água, já extinguiram o chorar…
Pois o tempo é agora,
E a chuva que outrora…
Deixava-me em agonia…
Já não podes mais molhar…
–––––––––––––-

O IDEAL NÃO MORRE

Sou mais um em meio à multidão…
Sou um grão no meio da porção…
Sou um solitário no descampado…
Estou desacordado…
O lírio miúdo, defronte ao vendaval…
Sou o passista, logo a diante o carnaval.
Sou isso ou aquilo,
O que sei, já não importa…
O que importa já não sei…
A vida está lá fora, que outrora desdenhei,
Ontem, hoje…
Amanhã…
Já não importa…
Estou desacordado,
Agora, sofro calado.
São lembranças, restos, ruídos…
Passado,
A odisséia chegou ao fim…
A idéia se propaga…
Findo é a pequenez…
O ideal não morre, é infinito…
Contudo, estou desacordado…
Já não há sofrimento, lamento ou tormento…
O ideal é infinito…
É imortal.
–––––––––––––––––-
Fonte:
http://camilacg.wordpress.com/
Montagem da imagem = José Feldman

Camila Giangrossi Meleke (Alfabetizar… Quando e Como?)



Introdução

Neste texto irei discorrer um pouco a respeito da alfabetização, das expectativas dos pais, quanto a essa tão sublime fase, as dificuldades enfrentadas pelas crianças e seus mestres, enfim… A palavra alfabetizar vem de “alfabeto”, que por sua vez é o conjunto das letras de uma língua, colocadas em “certa ordem”. A palavra “alfabeto” é formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego ↔ “alfa” e “beta”.

Al•fa•be•ti•zar ↔ v.t.d. Ensinar a ler e a escrever. Partindo desta premissa, será que existe idade ideal para que uma criança seja alfabetizada? Perguntas deste tipo permeiam “a cabeça” de muitos pais, que cheios de expectativas, não veem a hora de tal acontecimento, para poderem se “gabar”, ou melhor, “babar” sobre seu filho querido. Há muita angústia e ansiedade por parte dos pais, que por sua vez acabam depositando toda essa expectativa, muitas vezes, em crianças que ainda não estão preparadas para iniciar sua alfabetização. Sabe-se que não há idade certa para tal ato, o que existe é o momento certo.

Esse caminho começa, desde pequeno, antes mesmo dos seis anos, as atividades de “pré alfabetização” são de extrema importância para que esse processo ocorra da melhor forma possível, com tranquilidade. O que são atividades de pré alfabetização? É quando a criança tem oportunidades de interagir com o mundo letrado, isso já proporciona, para nós adultos e para as próprias crianças, identificar quando “chegou a hora”, ou seja, ela (criança) procura, faz perguntas, além de se mostrar ávida por conhecer, descobrir, vivenciar e experimentar…

As crianças necessitam de muito estímulo, afetividade e integração, não esquecendo o conteúdo. É também, nesta fase, que as brincadeiras dos pequenos se tornam mais intensa, onde transpassam a realidade vista, para o mundo de fantasias e da imaginação, desenvolvendo assim aspectos emocionais, cognitivos e sociais, outra coisa importante a ser analisada é o espaço físico em que essa criança passa a maior parte do tempo, é essencial que a criança, entre dois e três anos, tenha espaço suficiente para desenvolver o lúdico.

Cada criança é única, assim como umas aprendem a andar cedo ou a falar cedo, a alfabetização não é diferente, existem crianças que aos quatro anos já podem ser alfabetizadas, outras com cinco ou seis anos, contudo, há também aquelas que são estão prontas aos oito anos, e isso de forma alguma quer dizer que uma ou outra criança é mais ou menos inteligente, ela só não está madura ainda.

O importante é respeitar o desenvolvimento e o ritmo de cada um, seja qual for sua idade, é claro, que depois de certa idade (9 anos ou mais) os pais e professores devem ficar atentos quanto a aprendizagem da criança, pois existem casos em que há uma certa dificuldade nas aprendizagens ou até mesmo problemas emocionais, que fazem com que esta criança não atinja o objetivo esperado, nesses casos, é necessária ajuda profissional, seja do pedagogo, do psicopedagogo ou até mesmo do psicólogo.

Por onde começar a alfabetização?

Hoje, o mais comum é alfabetizar letrando, o que significa orientar a criança para que ela aprenda a ler e escrever na perspectiva da convivência com práticas reais de leitura e de escrita, porém isso implica “abandonar” o uso das cartilhas (onde o aluno aprende a ser copista e não um leitor ou ledor) e adotar o manuseio de revistas, livros, jornais, enfim, pelo material que irá auxiliar a criança neste processo.

Contudo, é preciso fazer um diagnóstico, ou seja, uma sondagem para saber o nível de conhecimento de palavras e verificar o que a criança já pensa a respeito da escrita.

Valorizando a Prioridade…

Logo no primeiro ano, do ensino fundamental, a prioridade é alfabetizar todas as crianças ou pelo menos grande parte delas. O ato de escrever se torna uma consequência daquilo que a criança já conhece na leitura.

As brincadeiras, o canto, as histórias e os desenhos já fazem parte do cotidiano dos pequenos, no inicio da fase escolar, a leitura e a escrita também, mas é importante ressaltar que, o trabalho é realizado em conjunto educando/educador, ou seja, o aluno deve realizar as tarefas por iniciativa própria, porém o professor deve dar as oportunidades e subsídios para que isso aconteça, o que não se deve pensar é que a criança vai aprender tudo sozinha e por iniciativa da mesma.

Sabe-se que as crianças que convivem num ambiente rico em materiais de leitura, apresentam maior interesse em saber o que está escrito, sendo assim, a criança motivada aprende mais e mais rápido.

A alfabetização e o construtivismo

Segundo Emilia Ferreiro (psicóloga e pesquisadora argentina), o ato de ensinar desloca-se para o ato de aprender por meio da construção de um conhecimento que é realizado pelo educando, que por sua vez passa a ser visto como o sujeito que constrói tal conhecimento a partir daquilo que vivencia, ou seja, é preciso trabalhar com a criança o contexto da própria criança, com textos e histórias que façam sentido para as mesmas.

Vale lembrar que o construtivismo não é um método de ensino, mas sim um processo de aprendizagem que coloca o sujeito dessa aprendizagem como alguém que conhece e que o conhecimento se dá através da ação deste sujeito, não esquecendo que o ambiente exerce papel significativo neste processo.

E para finalizar, outra questão bastante discutida é “em quanto tempo se alfabetiza?”. Partindo do pressuposto de que já foram eliminados todos os “entulhos” do período preparatório, se for clara e objetiva a decifração da escrita, basta apenas uma hora de atividades específicas por dia, em dois ou três meses, e os alunos estarão alfabetizados, é claro que não serão todos, pois sabemos que dependerá do momento de cada um.

“… A minha contribuição foi encontrar uma explicação segundo a qual, por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa.” (Emilia Ferreiro)

Fontes:
http://camilacg.wordpress.com/2009/05/23/alfabetizar/
Imagem =
http://nteitaperuna.blogspot.com

Alcântara Machado (O Filósofo Platão)



(Senhor Platão Soares)

Fechou a porta da rua. Deu dois passos. E se lembrou de que havia fechado com uma volta só. Voltou. Deu outra volta. Então se lembrou de que havia esquecido a carta de apresentação para o diretor do Serviço Sanitário de São Paulo. Deu uma volta na chave. Nada. É verdade: deu mais uma.

- Nhana! Nhana! Nhana!

Nhana apareceu sem meias no alto da escada.

- Estou vendo tudo.

- Ora vá amolar o boi! Que é que você quer?

- Na gaveta do criado-mudo tem uma carta. Dentro de um envelope da Câmara dos Deputados. Você me traga por favor. Não. Eu mesmo vou buscar. Prefiro.

- Como queira.

E foi buscar. Saiu do quarto e parou na sala de jantar.

- Ainda tem geléia ai, Nhana?

- No armário debaixo de uma folha de papel.

- Obrigado.

Escolheu cuidadosamente o cálice. Limpou a colherinha no lenço. Nhana ia passando com o ferro de passar. Mas não se conteve.

- Platão, Platão, você não vai falar com o homem, Platão?

- Calma. Muita calma. Glorinha entregou o ordenado?

Nhana sacudiu a cabeça:

- Sim senhor!

Fingiu que não compreendeu. Raspado o fundo do cálice lavou meticulosamente as mãos. E enxugou sem pressa. Dedo por dedo. Abriu a porta. Fechou. Vinha vindo um bonde a duzentos metros. Esperou. Agora o ônibus. Esperou. Agora um automóvel do lado contrário. Esperou. Olhou bem de um lado. Olhou bem de outro. Certificou-se das condições atmosféricas de nariz para o ar. Marcialmente atravessou a rua.

O poste cintado esperava os bondes com gente em volta. Platão quando ia chegando escorregou numa casca de laranja. Todos olharam. Platão equilibrou-se que nem japonês. Encarou os presentes vitoriosamente. Na lata, seus cretinos. Esfregou a sola do sapato na calçada e foi esperar em outro poste. Chegou de cabeça baixa.

- Boa tarde, Platão.

- O mesmo, Argemiro, como vai você?

- Aqui neste solão esperando o maldito 19 que não chega!

Platão cavou um arzinho risonho. Acendeu um cigarro. Disse sem olhar:

- Eu espero o ônibus da Light.

- Milionário é assim.

Primeiro deu um puxão nos punhos postiços. Depois respondeu:

- Nem tanto...

O 19 passou abarrotado. Argemiro não falava. Platão sim de vez em quando:

- Esse é um dos motivos por que eu prefiro o ônibus da Light apesar do preço. Tem sempre lugar. Depois é um Patek.

Mas era só para moer.

Argemiro deu adeusinho e aboletou-se à larga num 19 vazio. Então Platão soltou um suspiro e pegou o 13 que vinha atrás.

Ficou no estribo. Agarrado no balaustre. Imaginando desastres medonhos. Por exemplo: cabeçada num poste. Escapando do primeiro no segundo. Impossível evitar. Era fatal. Uma sacudidela do bonde e pronto. Miolos à mostra. E será que a Nhana casaria de novo?

- O senhor dá licença?

- Toda.

Não tinha visto o lugar. Pois a mulher viu. Que danada. Toda a gente passava na frente dele. Triste sina. Tomava cocaína. Ora que bobagem.

- Ô Seu Platãozinho!

A voz do Argemiro. Enfiou o rosto dentro do bonde.

- Ô seu pândego!

O cavalheiro do balaústre foi amável:

- Parece que é com o senhor.

- Olá, Argemiro, como vai você?

- Te gozando, Platãozinho querido!

Resolveu a situação descendo.

- Não tem nada de extraordinário3 Argemiro. Não precisava lazer tanto escândalo. Homessa! Então eu sou obrigado a andar de ônibus só? E ainda por cima da Light? E não tendo dinheiro trocado no bolso? Homessa agora! Homessa agora!

- Até outra vez, seu bocó!

Profunda humilhação com o sol assando as costas.

Mas não é que tinha de descer ali mesmo? Praça da República, Rua do Ipiranga, Serviço Sanitário. Esta agora é de primeiríssima ordem. Argemiro sem querer fez um favor. Um grande? Um grandérrimo.

Para a satisfação consigo mesmo ser completa só faltava abrir o guarda-sol. Você não quer abrir. desgraçado? Você abre, desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Abre nada. Nunca viu, seu italianinho de borra? Guarda-sol, guarda-sol, não me provoque que é pior. Desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Platão heroicamente fez mais três tentativas. Qual o quê. Foi andando. Batia duro com a ponteira na calçada de quadrados. De vingança. Se duvidarem muito as costas já estão fumegando. Depois asfalto foi feito ES-PE-CI-AL-MEN-TE para aumentar o calor da gente. Platão parou. Concentrou toda a sua habilidade na ponta dos dedos. É agora. Não e não. Vamos ver se vai com jeito. Guarda-solzinho de meu coração, abra, sim meu bem? Com delicadeza se faz tudo. Você não quer mesmo abrir, meu amorzinho? Está bem. Está bem. Paciência. Fica para outra vez. Você volta pro cabide. Cabide é o braço. Que cousa mais engraçada.

Rua do Ipiranga. Êta zona perigosa. Platão não tirava os olhos das venezianas. Só mulatas. Êta zona estragada.

- Entra, cheiroso!

- Sai, fedida!

Que resposta mais na hora, Nossa Senhora. É longe como o diabo esse tal de Serviço Sanitário. Pensando bem.

- Boa tarde, Seu Platão, como vai o senhor? Ó Dona Eurídice, como vai passando a senho... ora que se fomente!

Olhou para trás. Não ouviu. Que ouvisse. Parou diante da placa dourada. Sem saber se entrava ou não. Não será melhor não? Tanta escada para subir, meu Deus.

O tição fardado chegou na porta contando dinheiro.

- O doutor diretor já terá chegado?

- Parece que ainda não chegou, não senhor.

Aí resolveu subir.

- O doutor diretor ainda não chegou?

O cabeça-chata custou para responder.

- Chegou, sim senhor. Quer falar com ele?

- Ah, chegou?

O cabeça-chata papou uma pastilha de hortelã-pimenta e falou:

- Agora é que eu estou reparando... o Seu Platão Soares... Sim senhor, Seu Platão. Desta vez o senhor teve sorte mesmo: encontrou o homem. Vá se sentando que o bicho hoje atende.

Platão deu uma espiada na sala.

- Xi! Tem uns dez antes de mim.

- Paciência, não é?

Platão se abanava com o chapéu-coco. Triste. Triste. Triste.

- Que é que você está chupando?

- Eu? Eunãoestouchupandonadanãosenhor!

Platão deu um balanço na cabeça.

- Sabe de uma cousa? Aai!.. . Eu volto amanhã...

- O senhor dá licença de um aparte, Seu Platão? Eu se fosse o senhor não deixava para amanhã não. O senhor já veio aqui umas dez vezes?

- Não tem importância. Eu volto amanhã.

- Admiro o senhor, Seu Platão. O senhor é um FI-LÓ-SO-FO, Seu Platão, um grande FI-LÓ-SO-FO!

- Até amanhã.

- Se Deus quiser.

Desceu a escada devagarzinho. Tirando a sorte. Pé direito: volto. Pé esquerdo: não volto. Foi descendo. Volto, não volto, volto, não volto, vol.... to, não vol... to, vol... to! Parou. Virou-se. Mediu a escada. Virou-se. Olhou a rua. É verdade: e o degrau da soleira da porta? Mais um não-volto. Mais um. Porém para chegar até ele justamente um passo: volto. Ai está. Azar. O que se chama azar. Platão retesou os músculos armando o pulo. Deu. De costas na calçada. A mocinha que ia chegando com a velhinha suspendeu o chapéu. A velhinha suspendeu o guarda-sol. O chofer do outro lado da rua suspendeu o olhar. Platão Soares finalmente suspendeu o corpo. Ficou tudo suspenso. Até que Platão muito digno pegou o chapéu. Agradeceu. Ia pegando o guarda-sol. A velhinha quis fechá-lo primeiro.

- Não, minha senhora! Prefiro assim mesmo aberto, por favor. Muito agradecido. Muito agradecido.

De guarda-sol em punho deu uns tapinhas nas calças. Depois atravessou a rua. Parou diante do chofer. Cousa mais interessante ver mudar um pneumático.

E não demorou muito.

- Eu se fosse o senhor levantava um pouquinho mais o macaco, não acredita?

Fonte:
MACHADO, Alcântara. Laranja-da-China. IMESP, 1982.

Folclore Esquimó (O Caminho das Estrelas)



Há muitos séculos, na região do gelo, aconteceu um combate entre o urso negro, que se chamava Wakini, e o urso cinza, que se chamava Wakinu. Ninguém nunca soube exatamente como começou a disputa. Os antigos diziam que os dois grandes amigos ursos se enfrentaram por causa de um pequeno pote de mel. Wakini levara muito tempo colhendo o mel e Wakinu quis arrancá-lo à força do amigo.

Uma furiosa luta teve início, e o vencedor foi Wakinu, o ladrão de mel.

O líder da tribo ficou inconformado com essa vitória. Pensou que seria uma grande injustiça um ladrão se dar bem no final. Por isso, expulsou o urso cinza da comunidade. Mas Wakinu não tinha mau coração: era só um urso muito guloso. Chorou tanto e parecia tão arrependido que toda a tribo sentiu muita pena dele.

Wakinu partiu e caminhou durante vários dias. Mal enxergava, seus olhos estavam turvados de tantas lágrimas. As noites e os dias passavam sem que ele se alimentasse ou parasse para descansar. Até que, de repente, avistou um longo caminho todo prateado. Era uma estrada magnífica que brilhava contra o céu azul-escuro. O urso, pela primeira vez em muitos dias, conseguiu ver nitidamente. O caminho se estendia até as estrelas.

Wakinu experimentou uma profunda alegria e começou a correr por aquele solo prateado, e aos poucos foi se sentindo cada vez mais leve.

Era quase como se ele, um grande urso cinza, fosse só um passarinho.

Nesse mesmo instante, Wakini, seu ex-amigo, sentiu uma vontade imensa de olhar para as estrelas no firmamento. E o viu.

- Vejam! - disse à sua tribo. - É Wakinu! Está correndo no meio das estrelas!

E toda a tribo se reuniu para assistir aquela cena extraordinária.

Wakinu corria, corria, saltava as estrelas, dançava no céu. E alguém comentou:

- Wakinu alcançou o Porto das Almas, o campo das caças eternas!

Depois dessa noite, Wakinu nunca mais voltou. Mas até hoje se conta que, durante sua corrida, Wakinu balançou a grossa pelagem, que ficou cheia de luz, e dela respingaram as lindas estrelas que hoje formam a Via Láctea. Há os que não acreditam nisso, porém, e preferem pensar que Wakinu ainda está vivo, no campo das caças eternas, lugar para onde vão todos os guerreiros no final da vida: o caminho de Wakinu, o ursa cinza, o grande ladrão de mel.

Fonte:
http://www.esnips.com

Tânia Jamardo Faillace (A Porca)

Era uma vez um meninozinho, que tinha muito medo. Era só soprar um vento forte, desses de levantar poeira no fundo do quintal e bater com os postigos da janela; era só haver uma nuvem escura, uma única, que tampasse o sol; era só esbarrar com a pipa d'água e ouvir o rico e pesado sacolejar da água dentro, para que o menino se encolhesse bem no centro de seu ventre, orelhas retesas, olhos muito abertos ou obstinadamente fechados. Depois, o menino levantava, limpava o pó do fundilho das calças e ia para o quintal.

Conhecia as galinhas, os porcos, mas nenhum lhe pertencia. Achava mesmo engraçado quando via os irmãos abraçarem um leitãozinho, a irmã mais nova tentando, por força, enfiar uma de suas saias no bicho. Bicho é bicho, sabia ele. Bicho tem vida sua, diferente da de gente. Os irmãos não sabiam. Fingiam que eram bonecas, criancinhas pequenas e, nos dias de matança, todos já eram petiscos, brinquedo esquecido.

O menino preferia olhá-los de longe. Tremia, quando a velha porca gorda fuçava por entre as tábuas do chiqueiro; corria, se ela estava solta, com sua gorda barriga pendente, seu gordo cachaço lanhado.

A mãe também era gorda. Rachando lenha, carregando água, enorme e pesada bolota de carne. Tinha um rosto comprido, sulcado de rugas, boca sempre aberta, gritando com alguém. A porca não gritava, só roncava, mesmo quando o pai passava e lhe dava um pontapé. Um dia botou sangue — disseram que ia abortar. Ele teve medo de ver. Escondeu-se em casa, na cama, sob a colcha de fustão.

E de repente, foi o grande choque. Cama sacudiu. Lastro despencou, e ele caiu, sufocado pelos travesseiros. Era o pai. A mãe lhe batia com um resto de vassoura... pela loucura... quatorze leitões... quatorze... e todos perdidos... o pai grunhia e protegia a cabeça. Ao redor, tudo era escuro.

Sabia agora o que era um nenê de bicho. Havia sangue. Sempre havia sangue.

Era um dia escuro. E em dias escuros, o menino tinha medo. O escuro era espesso, profundo, pegajoso, e sombras mais escuras eram manchas coaguladas.

Havia um fio de luz, cinza-claro, sobre a pipa d'água. O menino se atreveu a ir bem junto dela. Puxou um banquinho e foi olhar. Como lhe doía a barriga, só de espichar, só de ver... a boca preta da pipa, a água grossa, molhada... E o menino caiu dentro da pipa... Não de verdade, de mentira... E encontrou uma porção de leitõezinhos lá no fundo, mas estavam pretos e encarquilhados.

E ao pular de volta sobre seu banquinho, ao sentir toda a pipa sacudindo, o menino teve a idéia. Balançou forte, cada vez mais forte, a pipa veio pelo chão, despedaçando uma aranha, molhando a lenha, assustando a galinha choca que dormia debaixo do fogão. O pé do menino ficou preso, uma unha esmagada. Mas ele não chorou, fugiu. E fugiu para a rua... Porém o terreiro estava iluminado com uma luz muito pálida, a areia lisa, fina, as bananeiras imóveis e densas... Sentou-se no chão, sobre uma pedra pontuda, um pé em cima do outro, as mãos cruzadas no joelho.

De noite, eram os corpos dos irmãos que se apertavam contra o dele. Mesmo de olhos fechados, sabia quem estava junto de si. A irmã tinha o costume de dar-lhe beliscões, e um dos irmãos sempre esperava que ele se distraísse para puxar-lhe aquilo. Depois ria, dizendo: "Por mais que se puxe, é uma coisinha de nada", e mostrava o seu, orgulhoso.

Às vezes, o menino ia dormir no chão. Esperava que os grandes passassem para trás da cortina, ameaçava os irmãos e ia deitar na cozinha ou contra o cabide. Era pequeno, mas também sabia fazer coisas malvadas.

Escutava o pai e a mãe. Suas vozes eram grossas, por vezes estridentes, e palavras feias estremeciam o ar, penduravam-se nas teias de aranha, nos arremates das mata-juntas. O lastro estalava, e havia risadas, de gengivas descobertas, de profundos ocos de garganta.

Ir embora, era o que o menino desejava. Ir para um lugar onde a água fosse grande e livre, um mar infinito, como ouvira contar certa vez. Não haveria aves, nem porcos nem cachorros, apenas peixes, dourados e lisos...

O menino habituou-se a correr. Corria ao ouvir as xingações da mãe, corria ao ouvir os tamancos do pai, corria ao ouvir as risadas dos irmãos. Corria ainda quando ouviu a voz da porca velha.

Gritava. Não grunhidos, não roncos, mas gritos. O menino sentiu sua barriguinha encolher, aquilo se levantar em franco protesto.

Na esquina da casa, lá estava o grupo: o pai, o empregado, a mãe, um vizinho, e qualquer coisa que rebolava feito doida na areia. As crianças se conservavam longe, as mãos nos ouvidos, as caras estúpidas. A mãe se afobava, a saia descosida arrastando no chão, dando ordens, xingando, gritando mais alto que a porca. O pai se remexia, o chapéu sobre a nuca, o nariz pingando de suor.

E foi a mãe que arrancou a faca das mãos do vizinho num gesto brusco. E como gritava a porca... o menino só lhe via o rabinho e as patas trêmulas.

E num instante, tudo ficou imóvel. Os homens forcejando, a mulher adquirindo impulso, gorda, redonda, enorme, sua saia de grandes flores desbotadas roçando o ventre da porca, os irmãos sumindo ao longe, a barriguinha do menino se retesando.

E foi água que jorrou da porca. Água de fonte, vermelha, impetuosa, que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que explodiu na cara de todos... que sujou de sangue (agora era sangue) o braço da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe... que se esparramou no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes... que cegou o vizinho, sufocou o empregado... foi aspirado por bocas, nariz, escorreu por pescoços e ombros. Agora era o pai quem batia na mãe, descompunha-a... "a camisa... a roupa do empregado, do vizinho... velha porcalhona..."

O menino se agachou atrás da bananeira, com muita dor em sua barriguinha. E nunca mais beijou a mãe.
-------------------
Sobre a autora
Tânia Jamardo Faillace, 63, é gaúcha. Jornalista e escritora, entre suas obras registradas na Biblioteca Nacional está o livro "Beco da Velha", que é composto de 19 volumes (7.748 páginas), escrito durante 10 anos. A obra continua inédita. Publicou, além de Fuga e Adão e Eva, os livros de contos O 35º Ano de Inês, Vinde a mim os Pequeninos e Tradição, Família e Outras Estórias e o romance autobiográfico Mário/Vera. Também participou de mais de 20 antologias no Brasil e no exterior.

Fontes:
- STEEN, Edla Van (org.). O Conto da Mulher Brasileira. SP: Vertente Editora, 1978.

Aparício Fernandes (1934 – 1996)


Aparício, no dizer de João Flavo, "é o maior antologista do mundo pelo volume e expressão das obras que tem organizado". Minha emoção, no entanto, não se restringe à grandeza literária de sua obra, que teremos a oportunidade de apreciar levemente, mas à sua pessoa digna e honrada que poderia no mundo literário ter vencido de forma mais fácil não fosse sua determinação de nunca construir seu êxito sobre o prejuízo de outrem.

Em trova manifesta seu pensamento a respeito:

Se alguém tiver que sofrer
para que eu tenha ouro e glória,
direi com muito prazer:
- Declino dessa vitória.

Nascido na cidade de Acari no Rio Grande do Norte a 16 de dezembro de 1934, às 14 horas, era filho de José Fernandes Oliveira, comerciante próspero e prefeito da cidade de Macau, e de Verônica Fernandes de Oliveira, cuja lembrança lhe ficou imprecisa. pois sua mãe veio a falecer quando ele contava apenas 6 anos de idade.

Minha mãe, quando partiste,
Deus, com imensa piedade,
fez do meu coração triste
um altar para a saudade!

Sobre seu pai, diria em trova:

Meu pobre pai, alquebrado,
- gigante da minha aurora! –
queira Deus dar-te, em dobrado,
tudo o que me deste outrora.

A percepção metafísica sobre a vida e a morte era constante em sua vida:

Vida e morte Deus retrata
em dois poemas de escol:
a Vida, nas alvoradas,
a Morte, no por-do-sol!

Estudou inicialmente com D. Ana dos Prazeres Avelino e conta ele que todo dia levava, pelo menos, meia dúzia de bolos nas palmas das mãos por não fazer corretamente as contas ou não ter decorado as lições. Depois, passou ao Grupo Escolar Duque de Caxias e, mais tarde, interno em vários colégios do nordeste até ingressar no Seminário, onde teve a alegria de conhecer o padre Eugênio Sales que se tornaria, mais tarde, o arcebispo do Rio de Janeiro. Mas, Aparício não tinha vocação sacerdotal e foi expulso do Seminário.

Apreciador do belo sexo, diria em trovas:

Obra prima da Criação,
a mulher - dilema eterno -
é um traço de união
entre o paraíso e o inferno.

Dotada de amor profundo,
meiga e doce em seu mister,
- que graça teria o mundo,
sem a graça da mulher?

Em 1945, estudando no Colégio Salesiano de Recife se impressionou com a cultura do padre Belchior Maria D'Atayde - com quem se encontraria 30 anos mais tarde, admirando-o como escritor. Em 1973, Aparício incluía 100 trovas de Atayde em seu livro "Nossas Trovas". De colégio em colégio passou aos Maristas época de lindas recordações. Em 1952 decidiu vir para o Rio, viajando de navio. Ele nos dirá numa trova de fina inspiração:

Parti do Norte chorando!
Que coisa triste, meu Deus!
Eu vi o mar soluçando
e o coqueiral dando adeus!

De sua terra se recordaria:

Das culminâncias da serra
ao mais profundo grotão,
trago viva a minha terra,
dentro do meu coração!

É o cantor da saudade:

Meu coração sente frio!
- A saudade o transformou
no leito triste e vazio
de um rio que já secou...

Saudade é isto que existe
nos olhos desse velhinho,
quando, embevecido, assiste
aos folguedos do netinho.

Diria de seu estro:

Meu canto é humilde e meu estro,
numa oração triunfal,
rende graças ao Maestro
da harmonia universal!

Sendo essencialmente lírico e filosófico, sabia também ser um fino humorista:

Eu formulo esta sentença
como um libelo à tolice:
antes cego de nascença
do que cego de burrice!

Nome dos mais esquisitos,
que, aliás, não foi bem posto;
há na Rua dos Aflitos
uma calma que faz gosto...

Canta Aparício o amor:

Amor - mistério profundo
que não se pode explicar.
Mesmo, assim, pobre do mundo
se ninguém soubesse amar...

Amor de poeta a todas as mulheres, mas que se eternizou na sua Adelina Maria. Seu soneto "À Minha Esposa" nos diz do seu amor:

À MINHA ESPOSA

Bendita sejas tu que, dentre as criaturas,
em minha alma puseste eternamente o selo
deste amor imortal que encerra mil ternuras,
alimentadas todas pelo teu desvelo.

Bendita sejas tu! As minhas amarguras
foram somente sombras de algum pesadelo;
nuvens de um céu sem cor, nuvens tristes e escuras
não prevalecerão ante o sol do leu zelo.

Bendita sejas tu! ó companheira amada,
porque tu me trouxeste a límpida alvorada
de uma felicidade que jamais senti.

Bendita sejas tu! Por este amor imenso
é que hoje eu vivo e sinto e clamo e sonho e penso:
creio na Vida e em Deus. E mais: eu creio em Ti!

Considerando Adelina sua alma gêmea, em seu canto "Para que mais?'' esboça idéias reencarnacionistas:

PARA QUE MAIS?

A Adelina - minha alma gêmea

Que importa. meu amor, se já não temos
os palácios de outrora, os ouropéis,
nem a bajulação que - bem sabemos -
de tão rasteira, beija os nossos pés!...

Mil vezes viemos e retornaremos
a este mundo de hábitos cruéis,
até que finalmente pratiquemos
os Mandamentos dados a Moisés!

É lei de Deus a reencarnação,
pois só através dela é que a razão
pode explicar destinos desiguais.

De tudo o que passou, nada lamento,
pois foi-me concedido o doce alento
de estares junto a mim. Para que mais?

De sua família nos diz:

"Maria Verônica e André - dois filhos queridos, dois pedaços do meu coração. Juntamente com Adelina formam a família maravilhosa que é o meu refúgio, minha alegria, minha recompensa e meu tesouro ".

Conheceu Luiz Otávio e diz no "Esboço de Autobiografia" de sua Obra Completa publicada em 1983:

A amizade de Luiz Otávio foi preciosa para mim e me trouxe muita coisa boa: desvendou-me os segredos da Trova, entrosou-me com os meios trovadorescos e, direta ou indiretamente, proporcionou-me viagens e passeios, sempre relacionados com a Trova, que ambos cultivávamos. De minha parte, procurei retribuir, favorecendo-o com uma ampla publicidade nas colunas de jornais e programas de rádio que passei a redigir, bem como nos livros que a seguir publiquei.

Continuando, afirma:

Symaco da Costa é outro trovador de quem guardo grandes e boas recordações. Responsável pela primeira publicação de trova de minha autoria, um belo dia fui aos Diários Associados (na Av. Venezuela), onde ele trabalhava, para agradecer-lhe e conhecê-lo pessoalmente. Symaco era funcionário antigo e graduado da empresa jornalística de Assis Chateaubriand. Tínhamos os mesmos pontos de vista no que se refere à publicidade e creio mesmo que, durante algum tempo, Symaco e eu fomos os maiores divulgadores de trovas no Brasil.

Outro amigo de Aparício foi e é Eno Teodoro Wanke. Quando da publicação do seu livro "Sonho Azul" mereceu de Eno a poesia:

AO "SONHO AZUL " DO APARÍCIO

Eno Teodoro Wanke

Agradeço-te de inicio
o livro que a Augusta trouxe
com gosto de amora doce,
meu caro amigo Aparício.

Teu livro, amigo Fernandes,
é coisa que vem de cima.
- Não abusando da rima,
é coisa que vem dos Andes!

A inspiração que ilumina
teus versos sem artifício
é poesia genuína
de um mestre no seu oficio!

Muito grato pela oferta.
Teus versos leio e decoro.
Fie na amizade certa
do teu "chapa " Eno Teodoro.

Sua obra é extensa e preciosa. Além dos Anuários que todos conhecemos e muitos participamos temos em trova: "Sonho Azul", "Trovas do Meu Coração", "Trovadores do Brasil" I°. 2° e 3° volumes, "A Trova no Brasil" e "Nossas Trovas".

Câmara Cascudo se referindo a Trovadores do Brasil: "Esse trabalho, Aparício Fernandes. missão de esforço e obstinação realizadora, positiva o milagre da mais completa concentração floral".

Walter Waeny se referindo a Aparício nos diz: "é o grande poeta que, com prejuízo de sua própria criatividade literária tem trabalhado pela obra de todos com o mesmo amor e a mesma dedicação com que cada autor é capaz de trabalhar, apenas, por si próprio".

Nosso homenageado se despediu da vida material a 9 de janeiro deste ano (nota: ano de 1996). Foi cantar em outra dimensão. Por certo, estará feliz e quem sabe? participando conosco deste momento porque somos imortais, não apenas no sentido Acadêmico.

Em Exortação estabelece a sua filosofia espiritual:

EXORTAÇÃO

Liberto da matéria pela morte,
o espírito procura a perfeição.
O corpo fica entregue à própria sorte
e volta ao pó - que é a sua condição.

Por que chorar quem morre? seja forte,
que a morte, meu amor, é ilusão.
Você crê em Jesus? Pois se conforte,
que é momentânea esta separação.

Um dia, pode crer, na eterna glória,
enfim desvendaremos toda a história
da nossa milenar evolução.

O amor nos unirá eternamente,
viveremos em Deus e Ele na gente,
na apoteose da ressurreição!

Aliás, seu pensamento sobre a morte fica claro em Esfinge, soneto dedicado a Luiz Otávio:

ESFINGE

A Luiz Otávio - in memoriam.

Eis o ponto final chamado Morte!
mas quem pode afirmar com segurança
que Deus não nos reserva uma outra sorte
depois desta existência que nos cansa?

Quem sabe se mais bela, pura e forte,
teremos uma vida de bonança,
que enfim nos esclareça e nos conforte
sobre tanta cruel desesperança?

A Morte, certamente, é uma esfinge
que finge ser cruel, apenas finge,
porque, se é Lei de Deus, é boa e terna.

Bendita seja a Morte, esta impostora,
que a todos, inflexível e redentora,
conduz à luz sem fim da vida eterna!

Fonte:
Palestra de Terezinha Radetic
http://apariciofernandes.tripod.com/palestra.htm