quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Cloe de Vries (A)


Tenho antipatia pelo A. Descobri isso a pouco quando, insone, olhei a estante de livros e afrontaram-me, de tal modo, entediados, aquela infinidade de livros de títulos ostentando logo no início esse artigo definido e antipático que achei melhor deixá-los de lado e prosseguir noite a dentro sozinha.

Na verdade, às vezes, sou mordida por uma antipatia pungente por qualquer letra ou semelhante. É que me aborreço quando estas se amontoam, embaralham sem sentido algum, enquanto, eu tenho urgência como um vulcão desperto de me esvaziar em lava espessa de significados. Mas acabo por soprar uma leve fumaça que nada significa.

Pausa.

O que será de mim nessa noite em que preciso lhe falar, embora você possa estar tão distraído que eu toda te escape? Eu amontoada em letras, quase sufocada por imagens que seriam indizíveis e, no entanto, nada do que te escrevo faz sentido. Antevejo que você um pouco surpreso pensará em silêncio quase audível ‘Eu estou te lendo’.

Pausa. Dúvida.

Tenho que confessar que esse meu texto é morno e onde nada habita. Você que me lê a espera de uma revelação, perdoa-me, mas é que as palavras todas se rebelaram. Nessa noite estéril, eu preciso de companhia que não se desagrade do silêncio, porque esta noite é mais uma daquelas que não consigo manipular nem ao menos o vazio de estar existindo completamente só.

Sentimento de ser um artigo indefinido.
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Sobre a autora
Cloe de Vries é uma mulher que gosta de viajar. Nasceu no Brasil, mas não revela a data. Já viveu na Índia, Egito e agora mora em uma pequena província na Holanda. Gosta de colecionar pesos de papéis e cartas antigas.
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Meu Livro Está Pronto e Agora ?


Completar um livro é alcançar o cume de uma montanha que até agora só você enxergou. Não é tarefa fácil, mas você conseguiu. Após as revisões e o registro de sua obra na Biblioteca Nacional (ou no órgão responsável pelos Direitos Autorais em seu país), chega a hora de enfrentar outro obstáculo, ainda mais difícil que o primeiro.

AS DIFICULDADES DO AUTOR

Por certo você já ouviu falar das dificuldades que os autores encontram para conseguir uma editora. Ainda assim, você imprime algumas cópias de seu livro (ou vai até a copiadora mais próxima) e as envia para três ou quatro editoras que você vê como ideais para ele. Meses depois, você tem as respostas. Em cartas polidas, agradecem a oportunidade de analisar sua obra, percebem o seu valor, mas preferem não publicá-la naquele momento. Você seleciona outras oito ou dez editoras e segue novamente para a copiadora mais próxima (ou compra novos cartuchos de tinta para sua impressora). E o ciclo se repete, inclusive com as posteriores cartas de recusa. No fundo, você não acreditava que pudesse ser tão difícil. Acaba sendo inquietante ver que, meses ou anos após a conclusão de sua obra, ela ainda permanece na gaveta.

Esta é a história real de 199 em cada 200 obras produzidas. Mesmo assim, você não deve desistir. São muitos os BEST-SELLERS que só alcançaram o mercado após dezenas de rejeições. O grande problema é o custo deste processo para o autor.

AS RAZÕES DO PROBLEMA

Do outro lado desta questão está a outra vítima: a editora. Mesmo não sendo, em sua maioria, grandes corporações, as editoras precisam processar centenas de novos originais a cada mês. Em uma primeira triagem, percebe-se que muitas das obras enviadas sequer são compatíveis com a linha editorial da empresa. Editoras de livros de medicina recebem coletâneas de poesia, editoras de livros de ficção recebem obras jurídicas, e assim por diante. Mesmo dentre as obras corretamente direcionadas à editora, muitas abordam temas que não interessam à empresa naquele momento, enquanto outras trazem textos notadamente mal escritos. Realizada mais esta seleção, ainda restam dezenas de obras que precisam ser lidas, o que obriga a editora a arregimentar pareceristas para julgá-las. Veja o trabalho de manter constante este esforço de análise, aplicando-o a tudo o que chega. E chegam pilhas todos os dias.

Perceba que existe um fator de oportunidade nesta relação. Uma mesma editora pode rejeitar ou aprovar um mesmo livro em momentos diferentes. Isso significa que, além de mostrar competência, ambos os lados precisam contar com a sorte para que seu encontro se dê na hora certa e da forma adequada. Você sabe o trabalho que teve para escrever seu livro; encontrar uma boa editora para ele não deveria ser comparável a uma cara loteria.

Fonte:
http://www.mesadoeditor.com.br/

Douglas Lara questiona: Antologia, para que serve?



"Fui me encantando com o trabalho e percebendo que, discretamente, os 'antologistas' buscam uma tribuna"

No último ano, trabalhei com coletâneas de textos de aproximadamente cem escritores e poetas. Pude ler biografias e textos de muitos autores, num total de mil páginas, provenientes de quatorze países em quatro continentes.

Tentava identificar o que desejavam estes escritores que, cooperativados, colocavam suas obras-primas para divulgar o que andam dizendo e escrevendo os não muito famosos, tendo também a oportunidade de mostrar suas ideias e ideais.

Fui me encantando com o trabalho e percebendo que, discretamente, os "antologistas” buscam uma tribuna.

Isso me lembrou de uma conversa com o Blota Junior e a Baby Garroux, no primeiro programa de entrevistas Dia-a-Dia da TV Bandeirantes, quando eu era um dos entrevistados. Tinha certos conhecimentos que os produtores do programa acharam que valia a pena colocar no programa de estréia.

Antes de começar o programa, tive a oportunidade e o prazer de trocar algumas palavras com o Blota Junior, experiente entrevistador, apresentador de programas de muita audiência (ele tinha a experiência de âncora nas principais TVs da época, tinha sido deputado estadual e era mestre de cerimônias dos principais eventos no país).

Aproveitei para perguntar por que ele não se aposentava da TV, agora que sua esposa (Sônia Ribeiro, também conhecida) tinha acabado de falecer.

Com sua elegância e educação, respondeu:

- Para ter minha tribuna e poder levar minhas mensagens e pensamentos aos telespectadores. Se não tiver uma tribuna para me manifestar, acabo morrendo de agonia, por não poder botar pra fora o que penso.

E, levantando-se:

- Vamos então?

- Pra onde? Perguntei.

Gentilmente, esclareceu:

- Para nossa entrevista, esqueceu? Agora a tribuna é sua...
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Douglas Lara é bacharel em Ciências Contábeis com mestrado em Controladoria e Gestão de Processos Comunicacionais. Idealizador e organizador da antologia internacional Roda Mundo e da Semana Internacional do Escritor de Sorocaba.

Fonte:
O Autor

Palavras e Expressões mais Usuais do Latim e de outras linguas (Letra T)

tabula rasa
Latim: Tábua raspada. Expressão muito empregada em linguagem filosófica de origem aristotélica. Aristóteles admitia que o espírito humano era, antes de qualquer experiência, inteiramente vazio como as tabuinhas cobertas de cera em que nada fora escrito.

taedium vitae
Latim: Tédio da vida; desgosto de viver.

tantae molis erat
Latim: Era tamanha a dificuldade. Expressão usada por Virgílio (Eneida, I, 33), descrevendo as dificuldades da fundação de Roma.

tanto tienes, quanto vales
Espanhol: Tanto tens, tanto vales. Expressão que coloca o dinheiro acima dos valores morais e intelectuais.

tantum ergo
Latim: Palavras iniciais da penúltima estrofe do hino Pange Língua, cantada antes da bênção do Santíssimo Sacramento.

tarde venientibus, ossa
Latim: Ossos para os que chegam tarde. Aplica-se àqueles que, por desídia ou inépcia, perdem um bom negócio.

taxi-girl
Inglês: Moça-taxa. Empregada de boate e outros lugares de diversão que recebe uma importância, para o estabelecimento, cada vez que dança com um dos freqüentadores.

te Deum
Latim: A ti Deus. Rel e Mús 1 Hino sacro de ação de graças que começa com Te Deum laudamus (A ti, ó Deus, louvamos) e é atribuído a Santo Ambrósio, ou a este e a Santo Agostinho, que, segundo a tradição, num rapto de fervor religioso, o improvisaram na Catedral de Milão, entoando alternadamente os seus versículos. 2 Cerimônia que acompanha essa ação de graças. 3 Solenidade religiosa em ação de graças, geralmente pública.

tempo di marcia
Italiano: Tempo de marcha. Movimento musical que regula o passo militar ordinário.

tempora si fuerint nubila solus eris
Latim: Se os tempos forem nublados estarás só. Reflexão triste mas verdadeira, de Ovídio (Tristes, I, 1-40).

tempus edax rerum
Latim: Tempo devorador das coisas. Pensamento de Ovídio (Metamorfoses, XV, 234).

tempus est optimus judex rerum omnium
Latim: O tempo é o melhor juiz de todas as coisas.

tempus lenit odium
Latim: O tempo abranda o ódio.

tenere lupum auribus
Latim: Ter o lobo pelas orelhas. Vencer uma grande dificuldade, mas encontrar-se embaraçado em conseqüência desse mesmo triunfo.

terminus ad quem
Latim: Termo a que. Ponto que determina o fim de uma ação.

terminus a quo
Latim: Termo do qual. Ponto que marca o início de uma ação.

testis unus, testis nullus
Latim: Testemunha única, testemunha nula. Aforismo antigo, recusado pelo Direito brasileiro, o qual admite, em determinadas circunstâncias, a validade do depoimento de uma só pessoa.

thalassa! Thalassa!
Grego: Ó mar! Ó mar! Exclamação de alegria dos soldados de Xenofonte, ao avistarem as praias do Ponto Euxino, durante a retirada dos dez mil.

that is the question
Inglês: Esta é a questão. Expressão shakespeariana no monólogo de Hamlet.

the right man in the right place
Inglês: O homem certo no lugar certo. Para indicar a competência de quem ocupa determinado cargo ou posto.

tibi quoque
Latim: A ti também. Frase designativa dos bacharéis de Coimbra que colavam grau por decreto, sem prestar exames.

time is money
Inglês: Tempo é dinheiro.

timeo Danaos et dona ferentes
Latim: Temo os gregos ainda quando oferecem presentes. Episódio da Eneida, II, 49, que se refere ao famoso cavalo de Tróia, deixado como oferta aos deuses. Virgílio atribui a frase ao sacerdote de Laocoonte.

timeo hominem unius libri
Latim: Temo o homem de um só livro. Santo Tomás de Aquino empregou esta expressão para dizer que temia aquele que não tinha uma cultura vasta, mas era adversário temível quando se aprofundava no estudo de uma especialidade.

to be or not to be
Inglês: Ser ou não ser. Assim inicia Shakespeare o monólogo de Hamlet (III, l) que caracteriza a existência de um indivíduo ou de um povo, em jogo.

totum continens
Latim: Que contém tudo. Expressão designativa de um indivíduo que tem ou pretende ter muitas aptidões.

tour de mains
Francês: Passagem de mãos. Contradança em que os pares se dão as mãos e as soltam em determinados momentos.

tour de promenade
Francês: Passeio.

tous les genres sont bons, hors le genre ennuyeux
Francês: Todos os gêneros são bons, fora o gênero aborrecido. Frase de Voltaire para justificar-se de ter escrito uma comédia.

tout passe, tout casse, tout lasse
Francês: Tudo passa, tudo quebra, tudo cansa.

tout est bien qui finit bien
Francês: Tudo que termina bem é bom.

trade marke
Inglês: arca de fábrica. Expressão impressa em produtos industriais, para garantia de sua procedência.

traduttori, traditori
Italiano: Tradutor, traidor. Trocadilho nada honroso para os tradutores considerados como infiéis ao pensamento do autor.

trahit sua quemque voluptas
Latim: Cada qual tem o seu prazer que o arrasta. Palavras de Virgílio nas Éclogas.

trompe l'oeil
Francês: Engana-olho. Pintura que produz, através de artifícios de perspectiva, a ilusão de objetos em relevo.

trop de zèle
Francês: Muito zelo. Zelo comprometedor.

tua res agitur
Latim: Trata-se de coisa tua. É de teu interesse (Horácio, Epístola I, 18, 84).

tu duca tu signore e tu maestro
Italiano: Tu guia, tu senhor, e tu mestre. Palavras de Dante a Virgílio (Inferno, II, 14).

tu es ille vir
Latim: Tu és aquele homem. Palavras com que Natan repreendeu a Davi por seu adultério com a mulher de Urias, a quem mandou matar (II Samuel, XII, 7).

tulit alter honores
Latim: Outro teve as honras. Queixa de Virgílio por ver outros colherem os frutos do seu trabalho.

tu quoque fili!
Latim: Tu também, filho! Exclamação de César ao ver Bruto, considerado seu filho, entre os conspiradores.

tutti frutti
Italiano: Todas as frutas. Alimento preparado com todas as frutas.

tutti quanti
Italiano: Quantos outros. Segue-se a uma enumeração e tem, muitas vezes, sentido irônico.

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LETRA A http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA B http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_07.html
LETRA C http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/10/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_21.html
LETRA D http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do.html
LETRA E http://singrandohorizontes.blogspot.com/2008/11/palavras-e-expresses-mais-usuais-do_28.html
LETRA F http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
LETRA G-H http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/05/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do.html
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LETRA S http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/11/palavras-e-expressoes-mais-usuais-do_21.html

Fonte:
Por Tras das Letras
http://www.portrasdasletras.com.br

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Trova LXXIX - Aparício Fernandes (Rio de Janeiro/RJ)

Montagem da trova sobre capa de Livro de Geografia e Livro Tratado Geral dos Chatos.

Trovas Mensageiras

Fonte:
Jornal Mensageiro da Poesia - Fortaleza, CE - outubro de 2009 - ano XXI n. 275.
Enviado por Nilto Maciel.

Virginia Fulber (Virgínia Além Mar)



AMOR INOCENTE

Andarilho Poeta, cúmplice silente
Ouvidor da escrita dos montes
Suplica baixinho ; não quero que me contes
Deixe guardado segredo inocente !

Dos ecos como lâmina fria e pungente
Atravessaram-me ânsias das fontes...
Escutei tanto desejo aflito e ardente
Sei, pela vileza aniquilaram-se pontes...

Estou repleto das entranhas; do solo ardente
Das profundezas dos mares
Das estrelas antigas...

Povoam-me, inclusive, não nascidos luares
Também lamentos dos lares, disfarçados em cantigas
Dai-me o justo silêncio e, amarei -te docemente...

R O M A N C E

Quando a lua aconchegou-se ao mar
Avolumou-se entre as pedras carícia
Fogueira acesa, cumplicidade e delicia
Além de confidencias, promessas do amar...

Em meio as águas naus e o sonhar
Líquidos corpos isentaram-se de malicia
Na aura do amantes cristalino colar...
Diamante equivalia-se ao beijo de Letícia !

Jamais alguém o fizera ancorar ...
Com delicadeza inigualável a desejara
Ele, que ao naufrágio até então ansiara

Marcelo, suavemente, sussurrava a amada...
Oceano calou-se para decorar palavra rara
Das brumas do romance, conta-se nasceu Clara...

AURORA

Será pecado gastar hora em contemplação ?
Entregar-se à embriaguez e ao espanto ?
Sacrilégio insano penso, desperdiçar-se em pensamento
Quando Sabiá na manhã reclama atenção

Aos Curiós, Bem te vis, em sublime canção
Anunciando Primavera e encantamento !
Desperta mais cedo dia em oração
Inexiste tempo ao lamento

No bocejo da aurora abre-se a flor do coração
Renascimento anunciado
Olhar, ouvido, enfim sentidos impregnados

É tempo de viver alucinado
De amor pelos seres iluminados
Que em inocência conduzem-nos à compreensão

P L U M A G E M

Condecorado com dorso luminoso
Não se abstém de exibi-lo à luz
Impermeável , permeável, verde lilás reluz
Companheiro cuja pena desconhece chapéu mimoso

Meio dia do teclado e da leitura formoso
Fru- fru, pic-pic, beijo em flor seduz
Ao linguajar devaneante, ao condão misterioso
Imagem deslumbrante ao esplendor conduz

Dizem-no mensageiro do despertar glorioso
Frágil ligeiro, vens se convidado !
Beija Flor querido por ti aprendi a cultivar jardim

Buscando conhecer singelo ensinamento sobre cuidado
Arrisquei-me em vales perigosos em busca de Jasmim
Linhagem compreendo; é tecido sem nó o laço amoroso...

R E N O V A Ç Ã O

Quando o ar se fez caliente
Entre as folhas iniciou-se o burburinho
Pequeninos preparavam ninho
Olhar e terra acolheram semente

Esquecidos do sábado e do presente
Viam-se flores e sorvia-se vinho
Espera-se que o lar resista, permanente
Ao luar, às crises ao linho...

Quando o azul fez-se mais brilhante
Multiplicavam-se como pipas, coloridas
Pássaros, sorrisos guirlandas

E, a nudez pálida pariu voz comovida
Ao sabor de casais de Corruíras nas varandas...
Primavera fez-se visível no semblante
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Folclore de Portugal – Distrito de Leiria (O Lidador ou a Lenda da Porta da Traição)


Numa noite sem luar, cercava o exército de D. Afonso Henriques a fortaleza de Óbidos onde os mouros resistiam já há cerca de dois meses. D. Afonso Henriques e Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, tinham decidido que o ataque seria realizado na madrugada do dia seguinte antes de se retirarem para as suas tendas.

Dormia já o Lidador quando foi acordado por uma voz de mulher que lhe pedia para ser conduzida à tenda do rei de Portugal, pois tinha algo de importante a comunicar-lhe.

A jovem vivia no castelo dos mouros mas não sabia se era moura porque nunca tinha conhecido os seus pais. Temendo uma cilada dos mouros, foi com alguma relutância que o Lidador a conduziu à presença do rei, perante o qual a jovem revelou o sonho que se repetia há três noites. Neste sonho, aparecia-lhe um homem novo de barbas castanhas e olhar doce que a incumbiu de transmitir uma mensagem para o rei de Portugal: o rei deveria reunir os soldados e liderá-los num ataque surpresa na parte fronteiriça do castelo, enquanto que o Lidador se deveria dirigir com dez homens às traseiras onde a jovem donzela abriria uma porta para os deixar passar. O homem de olhar doce prometia Óbidos aos cristãos e a salvação à jovem donzela.

Apesar da hesitação do Lidador, D. Afonso Henriques já não se atrevia a duvidar dos desígnios divinos após o Milagre de Ourique. Na manhã seguinte, Óbidos foi conquistada conforme o sonho da misteriosa jovem que nunca mais foi vista. A porta que franqueou a entrada dos cristãos ficou para sempre conhecida como a Porta da Traição.

Fontes:
http://lendasdeportugal.no.sapo.pt/
Imagem = http://correioalentejo.com

Isaac Asimov (O Demônio de Dois Centimetros)



Conheci George em uma convenção literária, faz muito tempo. O que me chamou mais a atenção foi a expressão de honestidade e inocência que havia naquele rosto redondo, de meia-idade. Era o tipo de pessoa – pensei – que a gente deixa tomando conta da carteira quando vai dar um mergulho.

Ele me reconheceu pelas fotografias que saem na quarta capa dos meus livros. Cumprimentou-me jovialmente, dizendo que adorava meus contos e romances, o que, naturalmente, me convenceu de que se tratava de uma pessoa inteligente e de bom gosto.

Apertamos as mãos cordialmente e ele disse:

- Meu nome é George Bimnut.

- Bimnut – repeti, para gravá-lo melhor. – É um nome diferente.

- É dinamarquês – explicou -, e muito aristocrático. Descendo de Cnut, mais conhecido como Canuto, um rei dinamarquês que conquistou a Inglaterra no início do século XI. Um dos meus ancestrais era filho dele, nascido do lado errado das cobertas, é claro.

- É claro – murmurei, embora não entendesse bem o que havia de evidente em tal afirmação.

- Ele recebeu o nome de Cnut em homenagem ao pai – prosseguiu George. – Quando foi apresentado ao rei, o monarca perguntou:

“”Homessa, este é o meu herdeiro?”

“Não, majestade”, disse o cortesão que segurava no coIo o pequeno Cnut. “Ele é um filho ilegítimo. A mãe é aquela lavadeira que Vossa Majestade…”

“”Ah! Ainda bem!”, exclamou o rei. Daquele dia em diante, meu ancestral passou a ser conhecido como Bemcnut. Apenas por este nome. Herdei-o por sucessão direta, mas com o tempo o sobrenome mudou para Bimnut.

Nesse momento, seus olhos azuis olharam para mim com uma espécie de ingenuidade hipnótica que me impediu de duvidar de suas palavras.

- Quer almoçar comigo? – disse para ele, fazendo um gesto na direção de um restaurante muito enfeitado, que obviamente cobrava preços extorsivos.

- Não acha que ele parece muito vulgar? – observou George. – Talvez a lanchonete do outro lado da rua seja…

- Como meu convidado – acrescentei.

George lambeu os lábios e disse:

- Agora que estou olhando para o restaurante de um ângulo melhor, ele parece ter uma atmosfera aconchegante.

- Está bem, vamos até lá.

Enquanto comíamos, George comentou:

- Meu antepassado Bimnut teve um filho de nome Sweyn. Um típico nome dinamarquês.

- Eu sei – disse eu. – O nome do pai do rei Cnut era Sweyn Forkbeard. Nos tempos modernos, o nome geralmente é escrito Sven.

George franziu a testa e protestou:

- Não há necessidade, meu velho amigo, de ficar se exibindo para mim. Aceito o fato de que você tem os rudimentos de uma educação.

- Desculpe – respondi, sentindo-me envergonhado.

Ele fez um gesto complacente, pediu outro copo de vinho e disse:

- Sweyn Bimnut era fascinado por mulheres jovens, uma característica que todos os Bimnuts herdaram, e fazia muito Sucesso com elas, também… o que parece ser um traço de família. Contam que as mulheres o viam passar e comentavam: “Oh, como ele é lindo!”. Ele também era um arquimago. – Fez uma pausa e depois perguntou, muito sério: – Sabe o que é um arquimago?

- Não – menti, sem querer ofendê-lo de novo com meus conhecimentos. – Explique para mim.

- Um arquimago é um grande mago – disse George, com o que me pareceu ser um suspiro de alívio. – Sweyn havia estudado as artes ocultas. Naquela época, isso ainda era possível. As pessoas não eram céticas como hoje em dia. A intenção dele era descobrir maneiras de persuadir as jovens a se comportarem daquela forma dócil e gentil que só faz enaltecer a feminilidade e a deixarem de lado qualquer atitude in-transigente e pouco cooperativa.

- Ah.

- Para isso, precisava de demônios. Descobriu que podia conjurá-los queimando certos arbustos e pronunciando palavras místicas.

- E deu certo, Sr. Bimnut?

- Chame-me de George, por favor. Claro que deu certo. Havia um bando de demônios trabalhando para ele, porque, como costumava observar, em tom queixoso, as mulheres de sua época eram céticas e indelicadas; recusavam-se a acreditar que fosse neto de um rei e faziam observações desairosas a respeito da sua genitora. Depois que um dos demônios entrava em ação, porém, tudo se tornava diferente; elas passavam a compreender que um filho natural é uma coisa muito natural.

- Tem certeza de que o seu antepassado realmente conseguia conjurar demônios, George?

- Tenho, sim. No verão passado encontrei o livro dele de receitas para chamar demônios. Estava em um velho castelo inglês que hoje não passa de uma ruína mas já pertenceu à minha família. Havia uma lista com os nomes dos arbustos, a maneira de queimá-los, as palavras a serem lidas, tudo. Estava escrito em inglês antigo (anglo-saxão, você sabe), mas estou estudando filologia e…

Não pude esconder um certo ceticismo.

- Você deve estar brincando – observei.

George olhou para mim, ofendido.

- Por que pensa assim? Por acaso estou rindo? Era um livro autêntico. Testei as receitas pessoalmente.

E conseguiu um demônio.

- Isso mesmo – declarou, apontando para o bolso de cima do paletó.

- Está ai dentro?

George apalpou o bolso e preparava-se para fazer que sim com a cabeça quando seus dedos sentiram (ou deixaram de sentir) alguma coisa. Olhou para dentro do bolso.

- Ele sumiu – declarou, aborrecido. – Desmaterializou-se. Mas a culpa não é dele. Veio me visitar ontem à noite porque estava curioso para saber como era uma convenção, você entende. Dei-lhe um pouco de uísque com um conta-gotas e ele gostou. Talvez tenha gostado até demais, porque começou a puxar briga com uma cacatua que estava em uma gaiola, perto do bar, chamando-a de nomes horrorosos. Felizmente, adormeceu antes que o pássaro ofendido resolvesse tomar uma atitude. Esta manhã, não estava com uma cara muito boa. Deve ter ido para casa, curtir a ressaca.

Eu me sentia um pouco ofendido. Será que ele esperava que eu acreditasse naquilo?

- Está me dizendo que havia um demônio no bolso do seu paletó?

- Seu poder de dedução é impressionante – disse George.

- Qual é a altura dele?

- Dois centímetros.

- Mas isso é menos que uma polegada!

- Absolutamente certo. Uma polegada tem 2,54 centímetros.

- Quero dizer: que tipo de demônio tem dois centímetros de altura?

- Um demônio pequeno, é claro. Mas, como diz o velho ditado, é melhor um demônio pequeno do que nenhum demônio.

- Depende do tipo de demônio.

- Oh, Azazel {é o nome dele) é um demônio bonzinho. Desconfio que é desprezado pelos colegas, porque se mostra extremamente ansioso para me impressionar com seus poderes. Entretanto, recusa-se a usá-los para me tornar rico, o que não seria nada de mais, considerando que sou seu único amigo terrestre. Não, ele insiste em que seus poderes devem ser usados apenas para fazer o bem a outras pessoas.

- Ora, vamos, George. Esta certamente não é a filosofia do inferno.

George levou o dedo aos lábios.

- Não diga coisas como essa, amigo velho. Azazel fica ria muito ofendido. Ele garante que sua terra é simpática, decente e altamente civilizada, e fala com enorme respeito do governante dele, a quem se refere simplesmente como o Todo-poderoso.

- Ele faz mesmo coisas boas?

- Sempre que pode. Veja o caso da minha afilhada, Juniper Pen…

- Juniper Pen?

- Isso mesmo. Posso ver pela expressão de curiosidade no seu rosto que você está doido para conhecer a história, e , terei muito prazer em contá-la.

Juniper Pen [disse George] estava no segundo ano da faculdade quando a história que vou lhe contar começou. Era uma mocinha doce e inocente, fascinada pelos jogadores do time de basquete, todos rapazes altos e simpáticos.

Entre eles, o que mais lhe atraía a atenção era Leander Thomson, alto, esguio, com mãos grandes, capazes de segurar com facilidade uma bola de basquete ou qualquer coisa com a forma e o tamanho de uma bola de basquete, o que por alguma razão me faz pensar em Juniper. Ele era sem dúvida o objeto dos gritos dela quando se sentava na arquibancada para assistir aos jogos.

Juniper conversava comigo a respeito dos seus sonhos, porque, como todas as jovens, mesmo as que não são minhas afilhadas, sentia que eu era uma pessoa merecedora de toda confiança. Minha postura digna, mas solícita, convidava a confidências.

- Oh, tio George – costumava dizer -, certamente não é errado sonhar com um futuro para nós dois. Posso ver Lean como o maior jogador de basquete do mundo, como o mais cobiçado de todos os profissionais, como o dono do maior contrato da história do esporte. Não sou muito ambiciosa. Tudo que quero da vida é uma pequena mansão coberta de hera, um pequeno jardim na frente, estendendo-se até onde a vista puder alcançar, uma modesta criadagem, dividida em pelotões, todas as minhas roupas arrumadas em ordem alfabética para cada dia da semana e para cada mês do ano, e… Fui forçado a interrompê-la.

- Meu anjo, existe uma pequena falha no seu plano – disse para ela. – Leander não é um dos melhores jogadores do time. Acho pouco provável que seja contratado por um salário nababesco.

- Isso não é justo! – protestou minha afilhada, fazendo beicinho. – Por que ele não é um dos melhores jogadores?

- Porque é assim que o universo funciona. Por que não se apaixona pelo melhor jogador do time? Ou, melhor ainda, por um jovem corretor de ações de Wall Street que tenha acesso a informações confidenciais?

- Já pensei nisso, tio George, mas gosto mesmo é de Leander. Existem ocasiões em que penso nele e digo para mim mesma: será que o dinheiro é tão importante assim?

- Que é isso, meu anjo! – exclamei, chocado. As meninas de hoje dizem cada bobagem…

- Mas por que não posso ser rica, também! É pedir muito?

Pensando bem, seria mesmo? Afinal, eu era amigo de um demônio. Um demônio pequeno, é verdade, mas com um grande coração. Certamente estaria interessado em colaborar para a consolidação de um amor verdadeiro, em levar a felicidade a duas almas cujos corações bateriam em uníssono enquanto pensavam em beijos mútuos e fundos mútuos.

Quando o chamei, usando a palavra mágica apropriada, Azazel ouviu a história com muita atenção. (Não, não posso lhe contar qual é a palavra. Você não tem nenhum senso de ética?) Como estava dizendo, ele me ouviu com atenção, mas não com a simpatia que eu estava esperando. Admito que o trouxe para a nossa realidade no momento em que tomava alguma coisa parecida com um banho turco, pois estava enrolado em uma pequena toalha e tremia dos pés à cabeça. Sua voz parecia mais fina e esganiçada do que nunca. (Na verdade, não penso que seja realmente sua voz. Acho que ele se comunica comigo por telepatia, mas a voz que imaginei ouvir era fina e esganiçada.)

- Que é basquete? – perguntou. – Algum tipo de esporte? Como se joga?

Tentei explicar, mas, para um demônio, Azazel às vezes consegue ser incrivelmente obtuso. Ficou olhando para mim como se eu não estivesse explicando cada detalhe do jogo com clareza transparente.

Afinal, propôs:

- Será que eu não podia ver um jogo de basquete?

- Claro que pode. Por coincidência, vai haver uma partida hoje à noite. Leander me deu uma entrada. Você pode ir no meu bolso.

- Ótimo – disse Azazel. – Pode me chamar quando for sair para o jogo. Agora, preciso terminar meu zymjig (certamente estava se referindo ao banho turco) – concluiu, antes de desaparecer.

Devo admitir que fico irritado quando alguém coloca seus interesses mesquinhos acima das questões transcendentais em que estou envolvido… o que me faz lembrar, amigo velho, que O garçom parece estar tentando atrair a sua atenção. Acho que quer lhe entregar a conta. Pegue-a, por favor, e deixe-me continuar a história.

Naquela noite, fui ao jogo de basquete levando Azazel no bolso. Para poder ver a partida, ele teve de colocar a cabeça para fora, o que teria causado uma verdadeira comoção se alguém estivesse prestando atenção em nós. Sua pele é vermelha e ele tem dois pequenos chifres na cabeça. Ainda bem que só a cabeça estava de fora, porque sua grossa cauda, de mais de um centímetro de comprimento, é simplesmente repugnante.

Eu mesmo não entendo muito de basquete, de modo que deixei por conta de Azazel entender o que estava acontecendo na quadra. Sua inteligência, embora demoníaca em vez de humana, é bastante desenvolvida.

Depois do jogo, ele me disse:

- Pelo que pude deduzir do comportamento dos indivíduos corpulentos, desajeitados e totalmente desinteressantes que se movimentavam na arena, o objetivo do jogo é fazer aquela bola esquisita passar por dentro de um aro.

- Isso mesmo – concordei. – Isso se chama fazer uma cesta.

- Então seu protegido se tornaria um ás deste jogo estúpido se conseguisse fazer a bola passar por dentro do aro todas as vezes que tentasse?

- Exatamente.

Azazel balançou a cauda pensativamente.

- Isso não deve ser difícil. Preciso apenas ajustar os reflexos do rapaz para que ele possa avaliar corretamente o ângulo, a força do arremesso…

Ficou em silêncio por um momento e depois acrescentou:

- Acontece que eu aproveitei o jogo para registrar o seu complexo de coordenadas pessoais… Sim, pode ser feito… Na verdade, já está feito. Daqui em diante, seu amigo Leander não terá a menor dificuldade para fazer a bola passar por dentro do aro.

Eu estava um pouco nervoso enquanto esperava o jogo seguinte. Não disse nada para minha afilhada Juniper, porque nunca havia recorrido aos poderes demoníacos de Azazel e não estava inteiramente certo de que fosse capaz de fazer tudo que afirmava. Além do mais, queria surpreendê-la. (No final das contas, fiquei tão surpreso quanto ela.)

Afinal, chegou o dia do jogo, e que jogo! A nossa faculdade, a Escola de Engenharia de Buraco Quente, em cujo time de basquete Leander desempenhava um papel tão apagado, estaria enfrentando os brutamontes da Universidade e Reformatório Al Capone, no que prometia ser um combate épico.

Mas ninguém esperava que fosse tão épico. O quinteto da Capone assumiu a dianteira na contagem, enquanto eu observava Leander atentamente. Ele parecia não saber direito o que fazer e a princípio suas mãos deixavam escapar a bola toda vez que tentava fazer uma jogada. Era como se seus reflexos tivessem sido tão alterados que não se sentia mais em condições de controlar os próprios músculos.

De repente, porém, foi como se tivesse se acostumado com o novo corpo. Agarrou a bola e ela pareceu escorregar-lhe das mãos… mas de que forma! Descreveu uma curva no ar e entrou na cesta sem tocar o aro.

A torcida começou a comemorar, enquanto Leander olhava para a cesta, como se não estivesse entendendo nada.

A cena se repetiu uma segunda vez… e uma terceira… e uma quarta. No momento em que Leander tocava na bola, ela saltava no ar. Depois, descrevia uma curva elegante e entrava na cesta. Tudo acontecia tão depressa que não dava tempo nem para Leander fazer pontaria. Interpretando isso como uma demonstração de perícia, a torcida ficou ainda mais histérica.

Logo em seguida, porém, o inevitável aconteceu, e o jogo se transformou em um caos total. Os aplausos deram lugar às vaias; os alunos mal-encarados que torciam pelo reformatório Al Capone começaram a xingar a torcida adversária e várias brigas irromperam na arquibancada.

O que eu tinha me esquecido de explicar a Azazel, achando que era evidente, e que Azazel não percebera, era que as duas cestas de uma quadra de basquete não eram idênticas, que uma delas era a do time local e a outra dos visitantes, e que cada time tinha de acertar a bola em uma cesta diferente. A bola de basquete, como a lamentável ignorância de um objeto inanimado, se dirigia para a cesta que estivesse mais próxima do local onde Leander a segurara. O resultado era que muitas vezes Leander fazia cestas contra seu próprio time.

Ele continuou a insistir nessa prática suicida a despeito da& advertências que o técnico de Buraco Quente, Fritz Schmitt, mais conhecido como Alemão, proferia através da espuma que lhe cobria os lábios. Schmitt cerrou os dentes em sinal de tristeza por ter de tirar Leander da partida e começou a chorar quando tiraram seus dedos da garganta de Leander para que o jogador pudesse ser removido da quadra.

Meu amigo Leander nunca mais foi o mesmo. Eu havia imaginado, naturalmente, que ele procuraria refúgio na bebida, tomando-se um bêbado filosófico e respeitável. Isso seria compreensível. Entretanto, ele se degradou mais ainda. Dedicou-se aos estudos.

Diante dos olhos desdenhosos, e às vezes até pesarosos, dos colegas de faculdade, passou a freqüentar as salas de aula, enfiou a cara nos livros e mergulhou nas profundezas sombrias da erudição.

Mesmo assim, Juniper não o deixou. “Ele precisa de mim”, disse-me ela, com os olhos úmidos. Em um gesto de supremo sacrifício, casou-se com Leander logo que se formaram. Continuou com ele mesmo quando desceu até o fundo do poço, adquirindo um ignominioso doutorado em física.

Hoje em dia, ele e Juniper vivem em um pequeno apartamento de subúrbio. Ele ensina física e faz pesquisas na área de cosmogonia. Ganha menos de 60.000 dólares por ano, e aqueles que o conheceram quando era um sujeito respeitável cochicham às suas costas, em tom escandalizado, que está cotado para receber o prêmio Nobel.

Juniper nunca se queixa, mas permanece fiel ao seu ídolo caído. Jamais demonstrou sua decepção, nem por pensamentos nem por atos, mas não pode enganar seu velho padrinho. Sei muito bem que, de vez em quando, pensa com tristeza na mansão coberta de hera que jamais poderá ter e no jardim a perder de vista que permanecerá para sempre fo-ra do seu alcance.

- Esta é a história – disse George, enquanto recolhia o troco que o garçom havia trazido e copiava o valor da conta (para descontar do seu imposto de renda, suponho). – Se eu fosse você – acrescentou -, deixaria uma gorjeta generosa.

Obedeci automaticamente, enquanto George sorria e se afastava. Não me incomodei por ele haver ficado com o troco. Ocorreu-me que George lucrara apenas uma refeição, enquanto eu tinha uma história que podia contar como se fosse minha e me poderia render várias vezes o preço de uma refeição.

Na verdade, decidi continuar a jantar com ele de vez em quando.

Fonte:
ASIMOV, Isaac. Azazel. RJ: Record, 1988.

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XIII



I. A demanda do Santo Graal

1. — Generalidades

Para a Idade Média, o Graal é a taça de que se serviu Jesus durante a Ceia. Nela, José de Arimatéia colheu o sangue do Senhor ferido pelo centurião romano Longin. Os genoveses expuseram em 1101, depois da tomada de Cesaméia, um prato de vidro, venerado pelo nome de “Sacro-Catino”. Prato ou vaso, objeto radiante em ouro ou em cristal, o graal tanto pode ser essa esmeralda celeste ou o livro sagrado tal como o evangelho perdido de São João.

Esses objetos mágicos evocam os dos contos de Mil e uma noites mas no embaralhamento desses temas, a descrição da cena do cortejo continua primordial. Estudaremos antes de tudo a evolução do ciclo.

2.- Os temas

a) Chrétien de Troyes, Parsifal — Chrétien de Troyes, natural de Champanha, teve que compor Perceval ou le conte du Graal a pedido de Filipe da Alsácia, conde da Flandres, noivo da protetora do poeta: Marie de Champanha.

Não sabemos onde Chrétien tirou os seus dados; o texto teria sido escrito entre 1180-1183; Wilmotte diz que foi antes do 14 de maio de 1181. Eis o assunto:

Parsifal é criado por sua mãe num domínio solitário Depois de uma aprendizagem bastante rudimentar, recebe a ordem de cavaleiro e liberta Branca Flor então sitiada. É recebido no castelo mistérioso, pelo rei-pecador paralisado por uma lançada na coxa. Espectador ingênuo assiste ao desenrolar de uma estranha cerimônia: o anfitrião entrega-lhe uma espada. Um mordomo leva-lhe uma lança toda branca cuja ponta está embebida de sangue; mais longe, uma jovem carrega o graal (cálice) de ouro muito puro, guarnecido de pedras preciosas e que difunde uma claridade sobrenatural; depois outra jovem carrega um prato de prata. Parsifal estupefacto cala-se; no dia seguinte, afasta-se do castelo deserto. Uma jovem ter-lhe-ia revelado que devia perguntar sobre a significação da cena; com suas palavras libertadoras teria curado o rei enfermo e o encantamento da região adormecida e estéril teria cessado; Parsifal recusa então dormir duas noites seguidas debaixo do mesmo teto. Durante cinco anos realiza as mais perigosas aventuras; esses episódios fabulosos dependem do fantástico e são de uma iniciação ritual cujo verdadeiro sentido nos escapa. Um eremita — seu tio — aconselha-lhe então a caridade, a humanidade e lhe transmite uma oração secreta que lhe permitirá, talvez, encontrar o graal.

Assim termina o romance de Chrétien, de dez mil e sessenta e um versos octossilábicos. Entre os prosseguidores a parte “pseudo-Wauchier” se estende até o verso 21.916 (edição Potvin) e se ocupa de Gauvain. Wauchier de Denain — ou um autor anônimo — trata das propriedades da espada entregue a Parsifal (verso 34.934) e faz da lança uma relíquia divina. Manessier, em 1225, a pedido de Jeanne de Flandre, termina essa obra: Parsifal torna-se o guardião do Graal (versos 34.934 a 45.379). Muitos outros poetas participam com a sua contribuição pessoal, tais como Gerbert de Montreuil que compôs dezessete mil versos insuficientes para que Parsifal pudesse recolher a sucessão do rei-pecador. Ferdinand Lot analisou essas obras (Romania, I. VII, 1931).

Obra enigmática com Chrétien, o tema — assume uma significação mística e religiosa. O graal — que não era o Graal — não era nem uma relíquia santa, nem um tacho de abundância; nenhum capelão assiste ao desfile da lança que sangra. O tema goza rapidamente de um êxito prodigioso e inspira outros poetas.

b) Wolfram d’Eschenbach et Guiot — Wolfram d’Eschenbach compõe Parzival entre 1200 e 1210. Diz ele: “Mestre Chrétien de Troyes contou essa história, alterando-a e Kyot que nos transmitiu o conto verdadeiro irrita-se e com razão. O Provençal...” Discutiu-se muito sobre a existência desse poeta Guiot ou Kyot. Para Schreiber e San Marte trata-se de Guiot de Provins, o acre satírico da Bíblia. Wilmotte pensa no autor de um Miracle de la Vierge (Milagre da Virgem) entre 1150-1180. Será que Guiot precede Chrétien? A questão permanece sem solução. Com Wolfran o cerimonial do desfile se complica, lembrando-nos a coreografia de um ballet. O Graal é então uma pedra santificante dada por Deus a Adão (era a esmeralda frontal de Lúcifer). Seth, terceiro filho de Adão, obteve licença para entrar no Paraíso a fim de retomar a pedra. Lá ficou quarenta anos — número da expiação — e esse cálice será entregue por Pôncio Pilatos a José de Arimatéia que nele recolheu o Sangue Divino; depois de quarenta anos de prisão e depois de Vespasiano haver destruído Jerusalém, José, acompanhado por sua irmã Enigéia e de seu cunhado Bron, se estabeleceu na Grã-Bretanha, no país de Hofelise onde constrói o castelo Aventureux; a cidade de Corbenic se estendeu em volta. Pela linhagem de seu sobrinho Josafá, será concebido Galaad.

A ordem misteriosa dos Templeisen é encarregada de guardar essa pedra; Parsifal sucederá a seu tio Anfortas. Le nouveau Titurel — poema de seis mil duzentas e sete estrofes — atribuído a Albreht de Scharpfenberc (por volta de 1280), adapta para o alemão a história de Merlin conforme Robert de Boron. A base mística do conto se desenvolve; Montsalvage, lugar santo, seria Montségur na França ou Montserrat na Espanha.

c) Robert de Boron — O Saint-Graal ou Joseph d’Arimathie é uma narrativa curta, de três mil quinhentos e catorze versos e baseada em narrativas apócrifas. — A lenda de José alcançou grande celebridade em Lorraine. Depois do verso 2.357 o autor dá livre curso à sua fantasia. Esse romance que recebeu a influência das abadias de Fécamp e de Glastonbury e por meio delas, de Gautier Map, foi composto entre 1212-1214 (F. Lot, Romania, 1931; Hoepffner, Lumière du Graal, 1951). Eugene Hucher (1875), Suchier (1892) procuraram a origem de Robert de Boron; de anglo-normando passou-se a considerá-lo atualmente franco-condado.

O grande mérito de Boron é haver transformado a lenda fazendo do Graal um símbolo da divina graça a qual aspira a alma humana. A tendência é ascética e corresponde ao ideal monástico cisterciense.

Parsifal em prosa também é atribuído a esse poeta e é conhecido por Didot-Parsifal.

d) Gautier Map. A demanda do Santo Graal — La queste del Saint-Graal, atribuída d Gautier Map, teria sido composta entre 1225-1230. Os estudos de Pauphilet (Étude sur la queste, Champion, 1921) de Etienne Gilson (Romania, L. I. 1925; Vrin, 1932) iam provar a influência cisterciense, a doutrina mística de São Bernardo e estabelecer uma relação com Robert de Boron. Parsifal é substituído pelo cavaleiro casto Galaad, messias arturiano. O Graal torna-se o símbolo de Deus. Neste “evangelho aventuroso” (Pauphilet), a exploração terrestre termina com a descoberta de uma revelação planetária. Obra espiritual, é a história de uma alma à procura de Deus. Esse conhecimento, com suas divulgações habilmente graduadas, conduz à humildade, à contemplação e à compreensão. A suprema beatitude, o êxtase levam Galaad para o céu. A Demanda que se ergue veementemente contra o assassínio, as festas cavaleirescas e os torneios, transformou o cortejo tradicional num ofício religioso; o Santo Graal se desloca pela força invisível de Deus e a missa celebrada em Corbenye é dita por Josephes, o primeiro bispo.

Gauvin é a imagem do mau cavaleiro. É assim que o Lancelot en prose (Lancelote em prosa) imporá duras provas a este cavaleiro falho de fé; o mesmo se dá com Bohort.

Lancelote, considerado como o melhor dos cavaleiros, não pode tampouco triunfar. Suas aventuras galantes, seu amor sacrílego pela rainha tornam-no indigno dessa conquista bem sucedida pelo seu filho Galaad, descendente de José de Arimatéia por sua mãe. Esse puro entre os puros termina essa busca do infinito.

Aí está a busca da perfeição terrestre onde os desejos humanos são satisfeitos:

e) Perlesvaus — Perlesvaux, atribuído a Manessier (1225-1230) conta a aventura de Parsifal conforme o poema de Chrétien. Sob a influência dos monges de Cluny — esta obra — de menos valor do que a Queste — interpreta pela primeira vez a mística do sangue divino: o sangue da lança escorre dentro do Santo Graal. Enfim o silêncio do neófito é explicado aqui pelo seu êxtase no momento da passagem dos objetos sagrados.

3. — Sucessão literária

O ciclo bretão é novamente trazido à moda no século XVIII pelo conde de Tressan. O entusiasmo romântico dele se apodera; Wagner o difunde com suas preocupações metafísicas. Paulin Paris decifra os textos; Gast on Paris os confronta. Oscar Summer estabelece uma notável compilação: La vulgate Lancelot (Washington, 1909); Douglas Bruce estabelece a bibliografia (The evolution of Arthurian Romance, Baltimore, 1923), completada pelos cuidados da Sociedade internacional arturiana que reside em Paris. As grandes universidades americanas publicam interessantes trabalhos.

Georges Burectud (Lumière du Graal, 1951) estabelece um paralelo entre D. Quixote e o tema do cavaleiro santo, mas sua comparação entre o Graal e a Divina Garrafa do Pantagruel de Rabelais me parece mais engenhosa. O segredo supremo do “Vin de Verité” (Vinho da verdade) assemelha-se ao sangue universal; a Santa Fonte que corre conforme a curva de uma espiral logarítmica (movimento da vida que se enrosca), fornece o vinho desejado e mergulha o conviva num delírio báquico próximo ao arrebatamento.

Georges Bureaud descobre ainda esse tema em Milosz nos seus poemas dogmáticos e metafísicos do Sangue universal (Ars Magna, Arcanes); e na obra de Péladan, Léon Bloy, Péguy o no Château d’Argol de Julien Gracq.

4. — Origem

A origem da lenda tem muitas controvérsias. A Matéria da Bretanha é para uns insular (Gaston Paris, Histoire Littéraire de la France, t. XXX). Os celtistas alemães refutam a transmissão dos temas arturianos por via anglo-normanda e Zimmer se pronuncia a favor de uma origem armórica e não galesa. Esse sistema é prosseguido por Foerster e Brugger, contestado por. F. Lot (Romania, XXIV, XXVIII) e por Loth (Kritischer Jahrest bericht, I, 271). Vendryes encontra nesses temas uma sobrevivência da literatura céltica (Cahiers do Sud); Max Gilbert e principalmente Jean Marx (La légende arthurienne), mostram que a contribuição da Bretanha armórica foi muito pobre mas que a literatura galesa introduziu temas admiráveis. Jean Marx escreveu: “Essa lenda arturiana de origem pagã e profana ia, de início, sob influências certamente inglesas (Glastonbury), e em seguida francesas (Clairvaux) tomar uma tonalidade cada vez mais cristã.”

Blochet (Les sources orientales de la Divine Comédie (1901) (As fontes orientais da Divina Comédia), mostrava a civilização preponderante da Irlanda que conhecia Bizâncio por intermédio das repúblicas italianas.

Todavia, outros pontos permanecem litigiosos: as relações entre as obras, a data em que foram feitas, o autor. Apesar do minucioso estudo dos dezesseis manuscritos conservados sobre o Graal, essas questões parecem insolúveis.

5. — Interpretações

Apesar de Jean Blondel haver escrito: “Li conte de Brétaigne sont si vain et plaisant”, parece que esses mitos exprimem verdades veladas assimiláveis pelo iniciado. Sentimos, na obra literária, surdirem outras interpretações.

a) Interpretações astrológicas e naturistas — Wolfram preocupava-se com a astrologia. Ora, o nome de Artur seria oriundo de Arthos, isto é, “ours” (Ursa) no simbolismo astrológico da constelação polar. Esse palácio astrológico torna-se o centro do mundo e Guénon (Le roi du monde, 1927), imagina os doze signos zodíacos que gravitam em torno do sol como os doze cavaleiros que rodeiam Artur. Saint-Yves evoca a zona zodíaca; nela Lotus Péralté encontra os princípios druídicos de Crom-Lek. Loomis, diante das esculturas da catedral de Modena, evoca também a teoria solar.

Miss Jessy L. Weston (Cambridge, 1920) insiste sobre o aspecto ritualista e liga ao vegetal uma interpretação pelos órgãos genitais. Observou que os ferimentos atingem as partes viris do rei.

b) interpretações tiradas de fontes orientais — Georges Dottin aponta na literatura irlandesa, motivos tirados da literatura grega e na sucessão das provas aproxima-se das narrativas hindus. Hannah Closs (Lumière du Graal) pensa na lenda de Bagavata Purana. Baseando-se no edifício circular e irradiante que é o Templo do Graal, pensamos na arquitetura dos templários idêntica à das igrejas armênias e à dos templos iranianos.

Otto Rahn localiza o castelo Aventureux em Montségur — outros em Glastonbury — e Hannah Closs, pela descoberta de cerâmicas que aí se fez, pensa no maniqueísmo. Guénon, (Le roi du monde) estabelece relação entre o Sangue Divino — beberagem da imortalidade — e o Soma dos hindus ou o Haoma dos persas; depois compara a esmeralda caída da fronte de Lúcifer — que tornou-se a taça — a Urna, pérola frontal e terceiro olho de Civa.

Chrétien menciona o gavião, representação oculta da consciência; ora, o gavião simboliza o grande Horo egípcio.

Finalmente, como na fábula antiga, os animais exprimem as paixões dos homens, e a cada animal liga-se um simbolismo.

c) Interpretação religiosa — Essa obra mística tornou-se finalmente a glorificação do sacramento eucarístico. Os evangelhos apócrifos vindos de Bizâncio — e principalmente o Apocalipse, apontam esse tema (observemos os algarismos rituais 3, 7, 12 e a cor branca). O homem se liberta da fatalidade antiga e prostra-se diante do mistério da redenção. Chrétien considera os acontecimentos históricos (transporte da galheta com o Santo-Sangue a Bruges por Thierry d’Alsace; descoberta da Santa-Lança em Antioquia.); a carne se submete à alma e a alma, ao espírito. O herói da Queste — primeiro livro filosófico — seria a representação mística do Cristo. Mas Jean Marx (La légende arthurierine) mostra que a igreja não adotou a aventura do Graal que continua sendo obra de um sacristão inspirado pela doutrina espiritual de São Bernardo. Se a Igreja se houvesse apoderado dessa lenda, os textos teriam sido conservados nos mosteiros; mas guardados nas bibliotecas dos nobres, perderam-se em parte. A Igreja, lembrando-se dessa origem pagã, não lhe deu muito lugar na representação artística. Otto Rahn (Croisade contre le Graal (Cruzada contra o Graal), Stock conclui que foi contra o Graal que se mobilizou a cruz por ocasião da cruzada albigense.

Lotus Péralté (L’ésotérisme de Parsifal (O esoterismo de Parsifal, Perrin, 1914), diz que o princípio druídico é visível na Queste. Todavia, ignora-se quase tudo sobre as grandes comunidades visitadas por São Patrício no século IV, ficando o país de Gales ao abrigo das influências estrangeiras. O prolongamento do druidismo foi encontrado no século XII na igreja culdeana e seu ensinamento é básico na instituição da igreja de Roma.

d) Interpretação esotérica

1) Generalidades — Valores esotéricos e iniciáticos podem se sobrepor ao sentido exterior. René Guenon (Esotérisme du Graal (Esoterismo do Graal) observa que esse simbolismo é disfarçado e que as dúvidas, as contradições aparentes têm talvez por objetivo desviar a atenção dos profanos. Teriam sido os autores iniciados? Não saberíamos responder; mas a organização iniciática presente — druídica e depois cristã — não quis que a lenda se tornasse um ritual de iniciação ou de vulgarização. A perda do Graal parece ser o obscurecimento do centro espiritual secundário e a iniciação deve fazer com que seja encontrado.

Victor-Emile Michelet: Les secrets de la chevalerie (Os segredos da cavalaria, Bosse, 1928), busca o simbolismo na forma da Távola redonda com os druidas, quadrada com José de Arimatéia, o arcano subsiste para a da Ceia que Leonardo da Vinci representou sob a forma de um retângulo oblongo. Percebe-se um significado nesses símbolos e pensa-se em Gauvain que leva o pentáculo do Tarot. A cor preta na indumentária de certos cavaleiros isenta-os de uma influência malsã; é o pentáculo mágico.

A Igreja esotérica revela dessa forma um dos aspectos da sua face interior, o esoterismo. Esses caracteres encontram-se em Dante e no Romance da rosa.

2) 0 centro supremo — Para Guénon (Le roi du monde (O rei do mundo, 1927), Graal quer dizer ao mesmo tempo vaso (grasale) e livro (gradale ou graduale); Monsalvat — o monte da Salvação — ilha sagrada ou montanha polar, terra da imortalidade que se identifica com o Paraíso Terrestre. A lança torna-se o eixo do mundo e o sangue que dela provém é o orvalho que se emana da Árvore da Vida. Artur é raptado em Avallon, ilha hiperbórea, sede da realeza e da dinastia dos padres Jean; esse Paraíso Terrestre é ainda, simbolicamente, designado pela Índia.

Julius Evola diz que o país do Graal não é a Inglaterra mas sim o centro nórdico primordial, Thulé. Evola pensa também na ordem dos Templários, cujos últimos representantes, os Rosa-Cruz, conservam o mito da citadela solar.

Guénon imagina a representação do centro do mundo no princípio central de Omphalos e que é também o centro de uma roda. Sua representação material continua a ser a pedra sagrada — o menir — para os celtas — morada da Divindade. A Irlanda fornece grande número de dados relativos a Omphalos. Guénon, observa, enfim, a equivalência simbólica existente entre o crescente, o navio e a taça; eis porque o Graal é designado pelo nome de Santo Vaso.

3) 0 poder oculto do sangue — Chrétien teria pretendido traduzir exotericamente uma lenda esotérica na qual o sangue continua a ser um poder oculto excelente pela sua figuração misteriosa. Base de todo o princípio vital é o arcano da profecia, da evocação, dos batismos em certos mistérios. Marca a descendência hereditária e pelo seu princípio racial a desigualdade no casamento, o adultério, são punidos com a morte. Essa pureza de sangue é a virtude do indivíduo, do clã, da nação, da raça.

Para Chrétien, o sangue sublinha a alvura do cisne moribundo, esse cisne, símbolo da pureza, que está no limiar da primeira iniciação. O sangue está ainda presente no ferimento do rei pecador: leva em si todos os desejos violentos da carne. O problema do sangue, licor solar, força impulsiva, vontade cósmica foi mencionado por Théophile Briant (Le Goéland, dez. 1953). Mas talvez seja também a sede da alma. A presença do arcano nas cerimônias religiosas é a base dessa demanda do Graal que continua válida para todos nós.
4) 0 rito da iniciação — Elie Lebasquais (Études traditionnelles, 1939), é de opinião que A demanda do Santo Graal, Fausto, Rolando, são rituais de iniciação da mesma categoria que O Pequeno Polegar. O herói, para chegar ao estado superior, busca um personagem, um tesouro ou um objeto mágico. No simbolismo de Hiram, três mestres procuram os restos do Grande Arquiteto. Esses ritos proviriam “de tradições antigas, de formas tradicionais desaparecidas, conservadas pela memória coletiva mais ou menos subconsciente do povo” (Guenon). Essa iniciação visaria aqui a conquista de estados sobre-humanos.

5) A alquimia e a cavalaria — Na linguagem secreta a pedra filosofal representa a salvação; o ouro nada mais é do que o hieróglifo da espiritualidade e das forças psíquicas de Deus. A demanda é então uma busca semelhante à dos alquimistas que eram filósofos herméticos; citemos Alberto, o Grande, Roger Bacon, São Tomás de Aquino, Nicolas Flamel.

O arcano é a base da ordem da cavalaria — que deu origem ao companheirismo operário — e à arte heráldica. “O brasão é a chave da história da França”, diz Gérard de Nerval. Nessa cavalaria histórica, os Templários foram os guardiães do Baphomet; os cavaleiros errantes eram atacados pelos dragões, símbolos do guarda da entrada, ou pelo leão animal solar, alegoria da paixão interior. O alquimismo é a conseqüência final dessa cavalaria mágica e essa viagem de aventuras de uma epopéia religiosa e científica é a mesma que a da Demanda do Santo Graal.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores