quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte VIII


2. A POPULARIDADE DA POESIA ATRAVÉS DA MÚSICA

Alguns estudiosos da literatura afirmam que a poesia vive hoje o seu apogeu no mundo artístico através da música popular. Muitos compositores ou mesmo intérpretes se valeram de trechos encontrados em poemas de autores conhecidos e mesmo desconhecidos da poesia universal. Nos poetas da antigüidade descobrimos a conjunção da poesia e do teatro cênico, representada nas grandes tragédias e declamadas ao som da lira, como recurso único de elevação do espírito poético e provocação da emoção da platéia presente.

Robert Burns, poeta camponês e glória da literatura escocesa, levou uma vida atribulada e miserável, mas entre bebedeiras e prostitutas, compôs centenas de canções líricas e satíricas, que se adaptavam às melodias tradicionais correntes na Escócia de seu tempo e que são cantadas até hoje pelos escoceses; muitas delas, no entanto, mereceram composições originais – Mendelssohn ((Pianista, compositor e músico alemão do Século XIX) musicou algumas.

Apollinaire, estudado no capítulo Os Grandes Poetas, foi um dos primeiros a registrar seus poemas em disco com seu célebre poema “ Le Pont Mirabeau ” e descobriu que música e poesia estão intimamente ligadas. Discorrendo aqui por minha conta e risco, ao desenvolver o capítulo pareceu-me muito familiar a associação existente entre poesia e música, do ponto de vista cultural e artístico, ao lembrar as composições da nossa própria terra, expressa nos versos de Ari Barroso, Noel Rosa, Pixinguinha, Chico
Buarque, Milton Nascimento ou mesmo nos contemporâneos como Renato Russo e Herbert Viana entre outros.

Quem não consegue enxergar a poesia em estado puro presente nos versos da composição de Pais e Filhos, grande sucesso musical de Renato Russo, líder do conjunto Legião Urbana, falecido recentemente ?

“ É preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã ”
.

Ou então nos versos inesquecíveis de John Lennon, ex-integrante dos Beattles quando, já separado de seus companheiros, foi capaz de exprimir em versos tudo que a população da Terra sentia, ao final da Guerra do Vietnã, através da composição Imagine, em 1970 :

Imagine there´s no heaven
(Imagine que não existe o céu)
It´s easy if you try
(é fácil se você tentar)
No hell below us
(nem inferno abaixo de nós)
Above us only sky
(acima de nós apenas o céu)
You may say I´m a dreamer
(você pode dizer que sou um sonhador)
But I´m not the only one
(mas eu não sou o único)
I hope someday you´ll join us
(Eu espero junte-se a nós algum dia)
And the world will be as one . . .
(e o mundo será somente um)

Não dá para separar a música do poema. Seguramente, a união é indissolúvel, existe a música e a poesia e uma sem a outra talvez não tivesse feito tanto sucesso nem surtido o efeito necessário para promover a reflexão e trabalhar a emoção dos ouvintes, nem seria eternizada na memória e na cultura do povo inglês e todos aqueles o idolatram.

Grandes compositores como Mozart, Schubert, Strauss, Vivaldi e Bach curvaram-se à exploração da poesia como forma de enriquecer suas músicas e ao ouvirmos as composições, lembramos e até chegamos a comprovar o conceito formal de poesia descrito no início da monografia, de autoria do estudioso e poeta Eno Teodoro Wanke : “ Quando ... o artista consegue transmitir sentimento, fazer com que o leitor, o ouvinte se sinta comovido, sublimado, arrebatado, terá ele atingido a poesia ”.

No Brasil, Noel de Medeiros Rosa, reconhecidamente O Poeta da Vila, era um carioca impenitente e acabou unindo o útil ao agradável quando resolveu musicar seus versos de amor à Vila Isabel, bairro famoso do Rio de Janeiro, e sensibilizou a alma do povo, não somente pela melodia contagiante, mas, sobretudo, pelo sabor dos seus versos. Em seu versos, o poeta Noel Rosa procurava retratar, ainda que metaforicamente, um país ilhado em pobreza, com a fome e a miséria alastrando-se como praga. Foi parabenizado pela originalidade de suas letras e engenho sidade do seu samba, que ele próprio cantava com graça e especial sabor, imprimindo sua marca pessoal, notável principalmente pelo fraseado, pela habilidade com que pronunciava, nítida e rapidamente, os versos longos nos quais um intérprete menos ágil tropeçaria.

Rendo aqui minha singela homenagem também ao poeta Luiz Gonzaga do Nascimento, o Rei do Baião , cantor, músico e compositor nordestino que popularizou a poesia de sua terra em todo o Brasil, tornando-se um dos artistas mais admirados no país. Asa Branca, toada de 1947, consagrou-se um hino nordestino e foi adaptada em diversas línguas, flagrante do folclore e espírito do povo do nordeste.

Em seu extenso reinado da música, o Rei do Baião gravou 192 discos e deixou um precioso legado musical. Com Asa Branca, soube transmitir com emoção todo sofrimento de um povo castigado pela seca e miséria :

Quando olhei a terra ardendo
qual fogueira de São João,
eu perguntei a Deus do céu,
por que tamanha judiação ?

Por fim, Vinícius de Moraes e Tom Jobim se revelaram os maiores expoentes da poesia aliada à musica no Brasil. Suas famosas canções, escritas em parceria, são dotadas da mais profunda inspiração poética, aliadas ao ritmo, balanço, melodia e harmonia existente entre os dois compositores. Vinícius sempre soube deixar as gerações para trás quando se sentia envelhecido. Ao sentir que a grande poesia estava tirando o vigor do seu coração, mudou de turma e soube perseguir o tempo sem perder o passo. Seus novos parceiros atuaram como zeladores do compromisso da experiência com a poesia.

Há quem afirme que a dupla Tom/Vinícius se desfez por ciúmes do encontro de Vinícius com novos parceiros. Tom nunca se afastou completamente de Vinícius. Em 1977, quando já contabilizam 56 músicas em parceria, os dois subiram ao palco do Canecão para mais um dos shows inesquecíveis da casa.

Tom Jobim nunca negou que devia tudo, ou quase tudo, ao sentimentalista poeta Vinícius de Moraes e tinha medo de que a música viesse a incomodar os versos e a poesia do amigo e companheiro. Vinícius sempre renegou a posição de mestre. Tom testemunhou que para o poeta, o mais atroz de todos os enigmas era a mulher, que tantos versos lhe inspirou. Juntos, unindo música e poesia, criaram belas canções como Garota de Ipanema, O Grande Amor, Eu Sei Que Vou te Amar e A Felicidade, aqui representada pelo seu refrão inesquecível : “Tristeza não tem fim, felicidade sim “.

Num curto espaço de tempo, consigo lembrar razoavelmente de alguns poucos mestres provável e perfeita união entre música e poesia, mesmo deixando diversos poetas-compositores de lado, por falta de tempo para aprofundar-me num assunto extremamente rico e cativante. Diversos artigos que consultei nos periódicos mais expressivos do país, tratam a música quase sempre como impossível de ser realizada sem a junção com a poesia, mesmo que não expressa em versos e somente no interior
daquele que se responsabilizou pela união de ambas.

Como exemplo, cito alguns títulos de reportagens envolvendo poetas e músicos ao mesmo tempo ou de músicas expressando poesias :
“ A VIVA VOZ - Poesias de Helena Kolody vão ser lançadas em CD até o final do ano”“ (Gazeta do Povo, 30/08/97).
“ AO SOM DA POESIA DA LETRAS BRASILEIRAS ” (O Estado do PR, 07.09.97).
“ O BARDO MULTIMÍDIA - Poesia Musical de Arnaldo Antunes ” (Folha de São Paulo, 05.12.97).
“ TOM E VINÍCIUS - Os Poetas compositores e parceria “ (Jornal Revista da Poesia, Ano III, N.º 10, Curitiba).

Muito mais encontraríamos, certamente, mas encerramos o capítulo com a mais profunda certeza de que poesia e música se completam, e talvez seja este o motivo que faça a poesia resistir a todas as tormentas provocadas pela mudança na cultura dos povos, divididos entre a leitura e o computador, a miséria e a riqueza, a paz e a guerra.

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Mario Pontes (1932)



Mario Pontes nasceu em Novas Russas/CE (1932).

Reside no Rio de Janeiro desde 1958.

Além de contista, é romancista e ensaísta. É outro que, vivendo há muitos anos longe do Ceará, tem seu nome poucas vezes citado nos artigos e ensaios de literatura cearense.

Tornou-se jornalista aos 16 anos de idade. Durante meio século trabalhou em revistas culturais e suplementos literários, como o do Jornal do Brasil, que editou por muitos anos.

Estreou em 1977, com o volume Milagre na Salina, embora catalogado como romance. No entanto, o próprio Mario Pontes explica, em nota prévia, o que é seu livro: “histórias da Salina”.

Em 1999 editou pela Bertrand Brasil, do Rio de Janeiro, o volume Andante Com Morte – Quatro Ficções, composto das novelas “A Morte Infinita”, “Sentinelas da Noite”, “A Engrenagem Universal” e “A Nova Rota da Seda”, catalogadas como contos.

Tem traduzido importantes obras filosóficas e literárias, entre as quais do Prêmio Nobel espanhol Camilo José Cela e textos teatrais de Julio Cortázar.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Panorama do Conto Cearense.

Mário Pontes em Xeque


A história de Mario Pontes dava para escrever um romance. Ele nasceu, há 74 anos, numa pequena cidade no Ceará chamada Nova Russas, e conta que houve um período na história recente do Brasil em que era necessário cautela quando tinha de dizer o nome daquela cidade: “Muita gente confundia Russas com Rússia”, lembra.

Filho de um carpinteiro interessado em livros, aprendeu a ler nos jornais que o pai levava para casa. Os grandes assuntos da ocasião, a Guerra Civil Espanhola e, depois, a Segunda Guerra Mundial, despertaram nele o sonho do jornalismo. Ainda adolescente, quando se mudou de sua cidade para outra maior, onde havia uma daquelas pequenas porém selecionadas bibliotecas do Instituto Nacional do Livro, extinto no governo Collor, passou a ler dezenas de volumes por ano, o que também ajudou a introduzir a literatura em sua corrente sangüínea.

Nesta entrevista a Associação Brasileira de Imprensa (ABI Online), Mario — que, algumas vezes, de longe em longe, também pinta aquarelas relacionadas com seus contos — revela, entre outras coisas, que sua preocupação com as mudanças climáticas vêm de longe. No Caderno Especial do Jornal do Brasil publicou muitos textos sobre assuntos como o fracasso da chamada Revolução Verde, que destruiu muitas terras nos países pobres, graças aos seus experimentos de produção acelerada. Nos anos 90, seu livro de ficção “Andante com morte” (publicado pela Bertrand), continha uma pequena novela sobre sangrentas guerras entre pedestres e motoristas, que aconteceriam neste século XXI, o fim do petróleo e a elevação dos mares. O título da novela era “A nova rota da seda”.

ABI Online — Antes de mais nada, por que esse nome, Nova Russas?

Mario Pontes — No Leste do Ceará há uma cidade muita antiga chamada Russas, do tempo das guerras holandesas. E no Oeste, então, tem Nova Russas, quase na divisa com o Piauí, em pleno sertão, sertãozão daqueles. Nasci ali, em 32.

ABI Online — Sertão muito pobre...

Mario — Sim. Lá, o progresso era representado unicamente pela a estrada de ferro (hoje dedicada somente ao transporte de cargas) que nos assegurava o contato com o mundo. Aprendi a ler com meu pai. Ele gostava de ler os jornais que, três vezes na semana, o trem trazia de Fortaleza. Aprendi a ler, lendo as notícias das guerras. Em 38, já lia muito bem. Foi bom, porque muito cedo comecei a adquirir uma consciência da História e do que se passava ao redor. Durante muito tempo os jornais foram, praticamente, minha única fonte de leitura. A cidade não tinha biblioteca, não tinha livraria.

ABI Online — Vivia longe dos livros e da escola?

Mario — De fato. Mas em 39, um jovem intelectual do Crato — uma cidade antiga, aristocrática, situada no Sul do Ceará — foi parar em Nova Russas e criou ali um colégio que, segundo seu plano, ensinaria até o segundo grau. O nome dele era Pedro Teles. Ele havia estudado no célebre seminário de sua cidade, pelo qual passaram rebeldes de 1817, mas na última hora desistiu da batina. Um tio meu, que estava em situação bem melhor do que nós, ofereceu-se para pagar meus estudos. E foi assim por dois anos. Mas em 41 houve uma grande seca e meu tio disse que não poderia mais pagar o colégio. Como meu pai também não tinha dinheiro, eu ia ficar sem escola. A essa altura, Pedro Telles resolvera mudar-se para Fortaleza, e tinha trazido do Crato um rapaz que já havia concluído seus estudos pré-universitários. Alderico Damasceno e eu descobrimos imediatamente que havia várias pontes entre nós: eu, como já disse, era filho de um carpinteiro e ele, de um telegrafista de estrada de ferro. Naquele tempo havia uma forte associação entre o telégrafo e a ferrovia. Alderico foi à minha casa e disse a meu pai que por falta de dinheiro eu não deixaria de estudar. Em troca, sempre que pudesse, meu pai devia fazer umas carteiras para os alunos do colégio.

ABI Online — São esses pequenos milagres que acontecem...

Mario — Pois é. E foi assim que completei o primário. O Alderico revelou-se, pelo menos para mim, uma figura notável, um mestre e não um mero professor. Ele me ensinou o francês — que acabei de aprender, mais tarde, lendo os romances e as peças de Sartre — e um pouco de inglês. Ele me emprestava livros de sua estante. O primeiro foi um volume sobre Viriato, o herói português na luta contra os romanos. Depois, passou a me emprestar biografias de grandes filósofos.

ABI Online — A família toda se mudou para Crateús?

Mario — Lá, nossa situação financeira continuou precária. Meu pai era muito pobre e tive de ajudá-lo de alguma forma. Mas havia uma biblioteca maravilhosa, daquelas distribuídas, naquela época, pelo Instituto Nacional do Livro. Foram criadas pelo poeta gaúcho Augusto Meyer, que tinha vindo para o Rio de Janeiro, no fim do Governo Vargas, para dirigir a Biblioteca Nacional. O Instituto tinha um sistema de distribuição de livros e criação de bibliotecas no interior, numa época em que o livro era uma coisa muito rara. Foi uma das grandes iniciativas em favor da leitura neste País. Augusto Meyer deveria ter um monumento que o lembrasse por isso.

ABI Online — Então leu muito em Crateús?

Mario — Em pouco mais de quatro anos, li quase todos os 400 livros da biblioteca, começando por “O mandarim”, de Eça, e terminando por “Sagarana”, de Guimarães Rosa. Aquela biblioteca foi minha universidade. Os livros — de história, literatura brasileira e estrangeira — eram muito bem selecionados pelo INL. Um dia, voltando a Nova Russas, fui visitar o professor Alderico. Ele quis saber o que eu estava lendo. Citei vários títulos. Ele me perguntou: “Já leu ’Dom Quixote’?” Respondi que não. “Então venha cá.” Tirou da prateleira o livro de Miguel de Cervantes, e disse: “Sente aí. Leia o que puder. Depois procura ler o resto.” Logo depois, de volta a Crateús, aconteceu uma coisa importante: me tornei tipógrafo. Trabalhava com uma caixa de tipos móveis e um prelo manual.

ABI Online — Nessa caixa, os tipos não são distribuídos conforme uma ordem lógica.

Mario — De fato. Era uma “caixa” francesa, e nela a distribuição é mais ou menos a seguinte: no alto à esquerda as maiúsculas, à direita às letras acentuadas, embaixo as minúsculas. Nas caixas inglesa e alemã a distribuição é diferente. Graças a estes conhecimentos, pude ir para Fortaleza, onde trabalhei, primeiramente, na tipografia do jornal O Democrata. Seis meses depois, já estava no linotipo.

ABI Online — Onde aspirou aqueles “saudáveis” gases de chumbo.

Mario — E onde levei um choque elétrico violento, quase morri. Logo depois me levaram para a redação e me tornei repórter. O Democrata circulava com seis páginas diárias. Era um pequeno jornal de esquerda e de oposição ao Governo do estado. De vez em quando, o Governador não gostava do que o jornal dizia e mandava empastelar as páginas já enramadas e dar umas cacetadas em que estivesse na redação e nas oficinas. Nesses dias o jornal não saía. Isso aconteceu várias vezes. Mas a editora tinha outros títulos registrados e, no dia seguinte, lá estava o jornal na banca, com outro nome. Meus começos foram por aí.

ABI Online — Um começo com choque elétrico e sopapos.

Mario — Cheguei a secretário de redação e fiquei naquele jornal de 49 a 56, o ano do levante dos húngaros contra a União Soviética. Em Fortaleza, fui para O Estado, que não existe mais; depois trabalhei em dois jornais dos Diários Associados — o matutino Unitário (fundado no século XIX por João Brígido, figura lendária e pioneira no jornalismo cearense, um homem de coragem que trabalhava com o bacamarte em cima da mesa) e no vespertino Correio do Ceará. Por ter passado pelos Diários Associados, também fiz um pouco de rádio, na Verdes Mares, sempre nos noticiários. Em 59 vim para o Rio.

ABI Online — Aqui, estreou onde?

Mario — No Diário Carioca, como copidesque. Trabalhei algum tempo na Petrobras, editando revistas, livros e outras publicações. Comecei a experimentar a tradução em O Detetive, uma revista do grupo O Cruzeiro. Em 69, fui para a Editora Vozes, onde me tornei editor de livros leigos,por vários anos. Uma grande experiência. Lá editei e traduzi livros sobre vários assuntos. Trabalhei também com os Bloch, para quem também traduzi dois livros, um deles de natureza filosófica. Em 69 fui para o Jornal do Brasil. Me tornei redator do Departamento de Pesquisa, formado por um grupo que tinha de ser necessariamente de bom nível intelectual. Quando saí do JB, traduzi muitos livros, principalmente para as editoras Zahar e Bertrand.

ABI Online — Como se faz tradução?

Mario — Hoje há cursos que ensinam como traduzir. Alguns, pelo que se publica sobre eles, me parecem muito teóricos. Traduzo com base nos meus conhecimentos, meu gosto pela literatura e a filosofia e minha curiosidades pelas línguas. Como sei que nunca é possível se saber de tudo, tenho muitos dicionários, perto de 300. Uns 20 de inglês, o mesmo de francês e de espanhol, e um monte de dicionários de línguas que não sei. Afora os temáticos.

ABI Online — Para evitar surpresas?

Mario — Posso estar traduzindo um livro sobre história dos gregos e topar, de repente, com um termo turco ou sânscrito. Como traduzir corretamente esses termos se não tiver um dicionário de turco e pelo menos um de sânscrito? Tenho dicionários muito específicos. Por exemplo, vários de expressões próprias de regiões da América Latina. Um dicionário de expressões usadas em Honduras...

ABI Online — Os hondurenhos têm um linguajar muito característico. A capital, por exemplo, eles chamam de “Teguz”.

Mario — Pois é, eles chamam Tegucigalpa desta forma mais curta e têm uma linguagem interiorana, do campo, muito diferente daquela que se fala nas cidades. Mesmo na Espanha isso acontece. Traduzi alguns livros do Camilo José Cela, que morreu em 2002; mesmo sendo membro da Real Academia Espanhola, nunca deixou de ser um galego. Quando escrevia, ele misturava as línguas e enchia o texto com palavras e expressões galegas, que eu não conhecia. Tive de aprender o essencial da língua galega para traduzir corretamente. Comprei gramática de galego, dicionários de galego...

ABI Online — E quanto tempo se gasta numa tradução?

Mario — Depende. Eu sempre gasto muito tempo, porque sou metódico. Apesar de os computadores informarem quantos milhares de letras ou palavras acabei de escrever, minha referência continua sendo a lauda de 30 linhas com média de 72 batidas cada. É com ela que meço meu trabalho.

ABI Online — Mas, digamos, um livro de 200 páginas...

Mario — Depende do livro.

ABI Online — Um mês?

Mario — Não, eu não seria capaz de fazer em um mês. Levo mais tempo, sou perfeccionista. Tenho amigos que traduzem em um mês. Eu não consigo.

ABI Online — Qual é a sua rotina? Vai de manhã para o escritório e...

Mario — Dedico umas seis horas por dia ao meu trabalho. Mais que isso não agüento. A exigência intelectual é muito grande. Há um livro que fiquei mais de um ano e meio traduzindo. Foi um dos últimos que traduzi, e ainda não está publicado, deve sair este ano, para a Bienal. Intitula-se “O saber grego”. Deverá sair pela Editora Bertrand, com a qual me dou muito bem. É uma obra de 1.200 páginas, dividida em três partes. A primeira dedicada aos filósofos gregos, dos primeiros até os do fim da Antigüidade. A segunda parte é dedicada aos outros saberes gregos. Medicina, matemática, cosmologia. Traduzir o capítulo sobre cosmologia foi de enlouquecer, porque, para os gregos, a Terra era o centro do Universo. A ginástica mental que eles fizeram para provar isso...

ABI Online — A teoria geocêntrica...

Mario — Os artifícios criados pela inteligência grega para comprovar essa tese são de deixar a gente tonta. Já a parte final do livro é dedicada às escolas que se desenvolveram a partir do pensamento dos filósofos abordados no início. Tivemos na primeira parte um grande capítulo sobre Aristóteles; agora, na última, outro sobre o aristotelismo. O mesmo no caso de Platão, Várias pessoas tinham olhado para aquele “tijolo” e desistido. Para mim era um desafio. Queria testar a que ponto havia chegado, provar a mim mesmo que havia adquirido cultura suficiente para encarar uma tarefa como aquela.

ABI Online — Quantos livros já traduziu?

Mario — Exatamente 30. Conheço colegas que já traduziram mais de 500. Mas nós, que trabalhávamos na pesquisa do Jornal do Brasil, estávamos sempre traduzindo textos estrangeiros, às vezes bem difíceis. Não sei quantos traduzi lá.

ABI Online — Dizem que um livro traduzido pelo senhor é tão bom quanto o original.

Mario — Não é verdade. Veja, ali está um livro que traduzi (aponta para a prateleira): “Verdade ao amanhecer”, do (Ernest) Hemingway, um original que a família publicou 50 anos depois de sua morte. Como tudo de Hemingway, tem passagens muito boas. E outras nada boas. Por causa da pressa. Porque Hemingway estava descontente com a vida, com tudo. Neste caso, claro, uma ou outra passagem da tradução pode ser melhor que o original. Mas isso é único na minha lista de traduções.

ABI Online — E os livros que o senhor escreveu?

Mario — Durante muitos anos não pude escrever os livros que tinha em mente, porque, no meu caso. sempre foram muito difíceis as condições de trabalho no JB. E foram 25 anos! Durante muito tempo, editei sozinho o caderno Livro. Não tinha ninguém para ajudar e por isso fiquei quatro anos sem tirar férias. Somente em 77, quando eu já tinha 40 e tantos anos, lancei meu primeiro livro, “Milagre na Salina”, um conjunto de contos. Publiquei pouco depois, pela Codecri, um volume de estudos sobre a poesia popular do Nordeste: “Doce como diabo”. Em 99, a Bertrand editou o volume “Andante com morte”, composto de quatro ficções mais ou menos curtas: “A morte infinita”, “Sentinelas da noite” e “A engrenagem universal” e “A nova rota da seda”. As três primeiras histórias dizem respeito ao sertão e as mudanças que lá vêm ocorrendo. Um resenhador de São Paulo disse que eu era conservador, só escrevia sobre coisas antigas... A última história — que, literariamente, considero um pouco fraca — prevê que, em algum momento desta primeira metade do século XXI, o excesso de automóveis fará explodir uma guerra violenta e sem fim, entre pedestres e motoristas, provocando milhares de mortes em cada grande cidade do mundo. A indústria automobilística cria, então, para os que têm mais dinheiro, uma gigantesca rodovia, que sai do centro da Europa, passa pela Turquia e chega até a China, com muitas pistas para o motorista reprimido e desesperado com os eternos engarrafamentos, correr a 300, 400 quilômetros por hora e morrer do jeito que quiser.

ABI Online — A rota da seda de Marco Pólo...

Mario — Só que, quando ela começa a alegrar a morte dos gloriosos suicidas da gasolina, o petróleo se acaba e as grandes potências, ou melhor, a grande potência vai lá e toma tudo ou o restinho que sobrou. A essa altura, as calotas polares já derreteram e os oceanos inundaram quase tudo. Um brasileiro da Baixada Fluminense, que vai para a Europa num navio velho, é quem conta como se chega à Nova Rota da Seda, a rota do embuste. Ele se associa a um grupo de vagabundos, liderados por um filósofo. Aquele mesmo resenhador, que disse que os três primeiros contos refletiam um pensamento atrasado, classificou este último de um devaneio do meu futurismo apocalíptico de nordestino...

ABI Online — Os três primeiros eram muito atrasados e este era muito moderno...

Mario — Tudo o que eu disse ali está agora em todas as manchetes do mundo. O petróleo vai acabar logo e estão aí o efeito estufa, o derretimento das calotas... Os mares vão subir exatamente como se descreve no meu conto. Ninguém mais tem dúvida de que este será o século de radicais mudanças climáticas. Este é, hoje, o maior problema da humanidade. Todos os estudos apontam nesse sentido. Até o Arnold Schwarzenegger — apesar de pertencer ao partido republicano — já tenta controlar as emissões de carbono na Califórnia, contra a vontade do Bush. Ele se opõe à política ambiental da Casa Branca. É um absurdo meter a cabeça na areia, tentar ignorar o problema. Tenho a impressão de que, em termos de ficção, fui o primeiro a escrever, no Brasil, sobre esses desastres que nos esperam. Parece que muitas pessoas têm medo de tocar certos assuntos como o do ambiente, encarar certas verdades. Parece que têm medo dos poderoso, sei lá.

ABI Online — Vamos falar agora sobre o JB.

Mario — Trabalhei dez anos na Editora Vozes. Um ano em Petrópolis, os outros nove no Rio, dividindo o dia com o JB. Na editora dos franciscanos, meu trabalho mais constante era o de participante da editoria da Revista de Cultura Vozes, dirigida por frei Clarêncio Neotti e editada por Moacy Cirne. Para mim foram anos de muita liberdade, muita criatividade. Como não podíamos falar sobre as coisas óbvias que aconteciam embaixo do nariz da gente, recorríamos à antropologia, à sociologia, à lingüística, para dizer pelo menos um pouco daquilo que nos era vetado. Em 69 fui para o Departamento de Pesquisa do JB, quando aquela editoria estava em um bom momento. Éramos oito redatores. Tínhamos de escrever bons textos sobre os mais diferentes assuntos. Era um trabalho que exigia muito, muito mesmo. Numa segunda-feira, ao chegar no jornal, mandaram que me apresentasse ao editor, Alberto Dines. Ele me disse: “Está vendo este livro? Quero que você vá pra casa e o leia. Sexta-feira você volta e me escreve uma página dupla do Caderno Especial.” Era um livro de umas 300 páginas, intitulado “The american way of war”, uma variação do conhecido american way of life. O livro tratava da idéia norte-americana de estratégia, das guerras da Independência até o Vietnã, a guerra deles naquele momento

ABI Online — Não era um assunto dos mais simples...

Mario — Não. Li tudo e, na sexta, voltei para o jornal com as páginas prontas. A gente trabalhava muito, mas tinha orgulho de pertencer ao grupo. Nem assinávamos as matérias. Saía só o crédito “Pesquisa JB”. Éramos anônimos, mas gostávamos do que fazíamos. Cada dia era um desafio intelectual para cada um de nós. Quando o Dines saiu, o Departamento — tal como existia — acabou. Fui para o Caderno B, onde fiquei vários anos como subeditor. O jornal publicava o suplemento Livro, criado em 72 e editado pelo Remy Gorga Filho. Sempre achei muito bom o trabalho do Remy, que, para variar, fazia aquilo sozinho, não tinha redator. Em 77, ele saiu do jornal e eu fui escolhido para editar o caderno, só que com várias restrições: na prática, ele passava a publicar unicamente resenhas, pequenas resenhas, conforme o modelo de The New York Times. E, como todos sabem, era uma época de censura e auto-censura. Muitos professores, escritores, pessoas que tinham o que dizer, não queriam ou não podiam escrever para o suplemento. Então, pensei: vou procurar jovens escritores e mexer com o orgulho deles. Eu lhes dizia mais ou menos o seguinte: “Dou a você uma oportunidade de aparecer; mas, como você não tem experiência de escrever para jornal, me autoriza a ‘mexer’ em sua resenha, não para mudar suas idéias, mas para torná-las mais legíveis. Uns 99% deles aceitaram.

ABI Online — Foi até quando isso?

Mario — Acho que até meados de 86. Creio que foi naquele ano que o Zuenir Ventura foi para lá, editar a Revista de Domingo e, em seguida, o Caderno B. Nesse meio tempo, fui cooptado para escrever editoriais, tarefa que não consegui desempenhar por muito tempo. Não é fácil tentar convencer todo o dia o leitor a aceitar como sua uma idéia que não é sua.

ABI Online — É a do jornal.

Mario — Pois é... Voltei para a editoria do B. Nesse meio tempo, Zuenir tinha transformado o Livro em Idéias — um tablóide com linha menos estrita. E que tinha, pelo menos, dois redatores para editá-lo: o Luciano Trigo e a Vivian Wiler. Com a saída do Zuenir e do Trigo, lá fui eu, de novo, para os livros e a literatura. Fiquei uns tempos fazendo o caderno, mais uma vez sozinho. Mas a certa altura adoeci gravemente, e então a editoria do caderno passou para outras mãos. Permaneci apenas como redator. Depois, a editoria do Idéias dividiu-se: na quinta editava-se um Idéias dedicado aos livros (publicado aos sábados), e na sexta, outro Idéias, que era o Caderno Especial de cara nova (publicado no domingo). Nessa época, trabalhei com três bons editores, Zé Castello, uma pessoa muito culta, Wilson Coutinho, um companheiro estimulante, com excelentes conhecimentos de filosofia, e o Cláudio Bojunga, que além de culto e experiente, sempre foi uma pessoa finíssima e de temperamento muito estável. Mas, para mim, essa junção de editorias significou, antes de tudo, um pouco mais de trabalho...

ABI Online — E quando o senhor deixou o JB?

Mario — Saí em meados dos anos 90 e me aposentei.
ABI Online — Vamos falar sobre meio ambiente, um tema que lhe interessa muito.

Mario — É um sinalzinho que apareceu muito cedo em minha consciência. Nasci num lugar muito seco. E, por causa da devastação secular, mais pobre de vegetação do que naturalmente era. Aprendi a valorizar a água, a árvore, o lagarto, a coruja. Foi uma coisa natural. E esse homem (aponta para a foto de Alderico Damasceno) também tinha essa consciência e se esforçava para que cada um de nós a adquirisse em alguma medida. Estive no ano passado em minha cidade. Fui lá para o aniversário do último tio que me resta, um homem muito inteligente que teve apenas 15 dias de escola. Foi lavrador, comerciante, e conseguiu juntar algumas propriedades. Agora, depois de velho, resolveu escrever. No primeiro livro, suas memórias. Ele me mandou os textos e eu tive de “traduzi-los” para o português, porque ele escreve em “outra coisa”... Mas fiz aquilo com o maior prazer, pois tenho muita admiração por ele, é um grande homem e uma boa pessoa. Mesmo sem ser muito religioso, sem ser beato, está sempre preocupado com o próximo. No segundo livro revela suas preocupações com a cidade e elogia aqueles que a construíram, os carreteiros, os sapateiros... O lançamento foi no clube da cidade. Estavam lá o vice-prefeito e o Secretário de Educação; teve sermão do padre, projeção de um pequeno documentário etc. Pelo programa, eu tinha de dizer algumas palavras sobre o meu tio e acabei pedindo desculpas para falar também algumas verdades que estavam entaladas na minha garganta.

ABI Online — Não podia perder a chance...

Mario — Pedi licença para falar, primeiro, do pequeno rio da cidade, que era bonito e hoje é um banco de areia com um filete d’água; da mata ciliar — com suas grandes árvores, como a oiticica, e arbustos, alguns deles aromáticos — que destruíram pelo simples prazer de destruir. A 200 metros da Prefeitura, eu tinha visto uma pirâmide de lixo, com milhares de garrafas “pet”. “Não sei como se consegue conviver com tanta sujeira”, disse. Se eu pudesse, teria procurado os estudantes da cidade a fim de convencê-los a replantar o que foi devastado. Porque isso — eu também disse na solenidade – deve ser feito pelo povo, pelos cidadãos. A experiência diz que não se deve esperar por nenhum dos governos, seja federal, estadual ou municipal.” Bem antes desse episódio, eu havia começado a pesquisar nos jornais e revistas do Rio e São Paulo, tudo que encontro sobre ecologia e meio ambiente. Recorto e envio para uma senhora, Dona Terezinha, que distribui esse material nas escolas.

ABI Online — E a garotada já adquiriu alguma consciência?

Mario — Olha, diz ela que algumas escolas estão conseguindo progressos com seus alunos. Mas isso não se consegue de uma vez. Nossa família — eu, meus cinco irmãos que vivem em Brasília e mais alguns parentes — criou em Nova Russas uma escola de música para tirar os meninos das ruas e lhes ensinar uma profissão. A escola funciona em um salãozinho da Sociedade São Vicente de Paula. Durante a semana, os meninos têm aulas regulares. No sábado e domingo, aprendem música. Antes, os instrumentos eram da própria Prefeitura. Mas eram muito ruins, mal conservados. Eu me lembro da primeira vez que fui vê-los. Fiquei absolutamente pasmo com o progresso dos meninos. Em dois anos de aprendizado, eles estavam tocando Pixinguinha, que compôs uma música supercomplexa. Um estava tocando o clarinete quando, de repente, metade do instrumento caiu no chão. As duas partes estavam ligadas com cera de abelha. Tirei o dinheiro que tinha no bolso e disse para os outros: bem, completem e comprem um clarinete para aquele menino. Nem que seja de segunda mão. Eu estava muito emocionado.

ABI Online — Em breve será uma orquestra.

Mario — Já conseguimos, aqui e ali, quase todos os instrumentos. O importante, porém, é que vários adolescentes já foram admitidos em orquestras populares de cidades vizinhas. Ou seja: estão empregados Também tirei 2.300 livros das minhas estantes e doei à prefeitura, para que criasse uma biblioteca. Tem uma área na cidade, onde funciona a Secretaria da Educação, que foi transformada em campus avançado de uma universidade regional, com sede em Sobral. Soube que agora temos uma faculdade nesse campus avançado. As coisas estão melhorando.

ABI Online — Hoje o senhor se considera mais tradutor, mais jornalista ou mais ambientalista?

Mario — Não sei o que sou. Traduzo, mas não penso só em tradução. E escrevo também. Às vezes me pedem colaboração para o Idéias, mas, em termos de jornalismo, a única coisa que estou fazendo com regularidade é escrever para um pequeno jornal de Minas, chamado O Cometa Itabirano. Uma folha que o Drummond prezava muito. Soube até que ele deixou uma cláusula no testamento, segundo a qual o Cometa pode sempre utilizar qualquer coisa dele sem ter de pagar direitos autorais. Mas como eles lá são muito sóbrios, raramente se valem desse direito. O jornalzinho estava no fim, mas alguns amigos, jornalistas e publicitários de Belo Horizonte, se juntaram e resolveram salvá-lo, editando-o gratuitamente, conseguindo alguns anúncios para garantir, pelo menos, a compra do papel. Eles me convidaram para colaborar gratuitamente e me deram um espaço para escrever com toda a liberdade. É claro que, aos 74 anos, já não sinto necessidade daquela ênfase juvenil. Digo mais com a razão.

ABI Online — O senhor também foi professor de Jornalismo?

Mario — Puro acaso. Nos anos 70, Moacy Cirne, Muniz Sodré e Antonio Sérgio Mendonça deram a partida ao Curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). A Nadiá, mulher do Antonio, o Samuel Katz e o Nelson Pereira dos Santos eram professores da faculdade de Comunicação. Havia lá uma cadeira de Desenho Jornalístico, que tem a ver com a história e uso dos tipos, a criação da página, a programação visual de um livro, uma revista, um jornal etc. Eles me chamaram para substituir um professor que morrera de repente. Ponderei que não tinha curso nenhum — apenas o primário. Apelaram lá para a brecha do “notório saber” e acabei contratado. Subia na barca com aqueles livros debaixo do braço, e na sala de aula tudo o que eu tinha era giz e um quadro-negro. Se houvesse algo que eu quisesse mostrar à turma, tinha de passar o volume de mão em mão. Disse ao Antonio Sérgio e ao Muniz que ficaria somente um ano. Quando fui legalizar minha situação, tive que ir ao Departamento de Ordem Política e Social.

ABI Online — Para ter o famigerado atestado ideológico...

Mario — Exato. O Dops se recusou a me dar o tal atestado. Eu tinha trabalhado no Ceará naquele jornal de oposição em que comecei a vida. E me demitiram da Petrobras sem dizer porquê. Resultado: trabalhei um ano inteiro na UFF e não recebi um centavo. Seis anos depois, já no processo da “abertura democrática”, conseguiram me pagar. Mas o dinheiro recebido só deu para convidar o Muniz e o Antonio Sérgio e pagar um almoço. A inflação tinha comido os meus salários.

ABI Online — Como nasceu “Milagre na Salina” e em que se baseia este seu primeiro livro?

Mario — Num dos momentos mais difíceis da vida de nossa família, lá em Nova Russas, fomos parar numa pequena rua de casas de taipa. A rua se chamava da Salina, porque, originariamente, aquelas casinhas tinham sido utilizadas por um rico comerciante como armazéns de sal grosso. O sal é um produto precioso no sertão. Como quase não há agricultura, a pequena pecuária é o mais comum. O fazendeiro mata o boi, e o preparo da carne-de-sol requer muito sal. A vaca também precisa de sal na sua alimentação, para melhorar a qualidade do leite. Enfim, o sal é importante, e aquela rua passou a ser conhecida como da Salina. Para todos nós era muito humilhante morar ali, até porque, antes do sal, algumas casinhas tinham sido habitadas por mulheres de “vida fácil”. Agora, a maioria dos habitantes era formada por carreteiros, homens fortes que carregavam os vagões dos trens de carga, principalmente com sacos de oiticica. Os americanos tinham perdido a China para os japoneses, o com ela o óleo de tungue, importante na produção de tintas. Mas logo descobriram que a oiticica, árvore do Nordeste brasileiro, produzia um óleo semelhante. Imediatamente criaram companhias para a exploração dos pequenos frutos da oiticica... Aquelas pessoas da Salina se tornaram importantes na minha vida. Mesmo quando saí de lá, eu me recordava de cada uma delas, de sua grandeza, da solidariedade, de como sabiam dividir o pouco que obtinham. O livro fala dessa gente.

ABI Online — Por que o senhor, que circula tão bem nos meios acadêmicos, nunca sonhou com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras?

Mario — Várias vezes estive na ABL, até palestrei lá sobre “O conto em tempo de febre”, uma abordagem jornalística e sociológica do que aconteceu nos anos 70, quando milhares de jovens se transformaram em contistas da noite para o dia, porque necessitavam de um canal para se expressar. Acho que a Academia está em um bom momento, levou muita gente boa para lá nos últimos anos. Quanto a mim. Bem... não consigo me imaginar acadêmico. Pertenço a uma sociedade de cearenses no Rio, que, como outras do mesmo porte, embora seja bem informal, dá a si mesma o nome de “Academia”. Me convidaram muitas vezes para ser um deles. Como eu sempre escapava, puseram-se a dizer que eu esnobava o Ceará. Isso, sim, me incomodava. Assim, acabei por aceitar o convite. Mas, ao contrário de muitos amigos, não me sinto atraído pela vida realmente acadêmica.

Fonte:
Associação Brasileira de Imprensa. Entrevista realizada por Claudio Carneiro, em 12/01/2007. Disponível em http://www.abi.org.br/paginaindividual.asp?id=1814

Vilma Cunha Duarte (Album de Poesias Poetas del Mundo)



Mais versos...

Hoje’u amanheci poesia
Derramando em versos
Amor guardado no peito

Lágrimas salgam a rima
No rosto estrofe saudade
Poema que o vento levou

Ninar a noite...

Tomei a noite nos braços
Pra acarinhar sua insônia
Dos olhos abertos em lua
Faiscando tantas estrelas
Que ninguém sabe contar.

Por que noite não dorme?
Indagam meus devaneios
Acordados pela ansiedade
De adivinhar tais segredos
Que ela esconde da gente.

Noite conhece as histórias
Que dia nem ousa sonhar
Ah! Esses amores insones
E os desamores notívagos
Cochila.Hoje sou teu berço.

Nome de Flor

Se ... renascesse um dia
Com o ofício de ser flor
Ó, bom Deus, qual seria

A rosa rainha encarnada
Rubra paixão enfeitada
Em ramalhetes de amor?

Rosa, nunca eu voltaria
Tem espinhos e poderia
Ferir a beleza com a dor.

Violeta, tulipa agapanto
Consolo vigia no pranto
Cravo, lírio a margarida

Flores mil bem da vida
Têm nome e esplendor.
Se brotasse com alegria

No jardim desse mundo
Com nome Flor-Poesia
Aroma o amor profundo

Florava rimas e versos
Unia poemas dispersos
Para acalentar desamor.
------------------
Fonte:
Poetas del Mundo

Vilma Cunha Duarte



Escritora e Professora de Inglês. Nasceu em Araxá, Minas Gerais.

Fez Curso e Mestrado de Letras: Língua e Literaturas: Brasileira, Portuguesa e Inglesa.
Cursos de Inglês, no Instituto Cultural Brasil Estados Unidos: ICBEU. Instituto de Cultura Inglesa: CCAA; Seminários de Técnicas Modernas para o ensino da Língua Inglesa. Prática do Inglês em estágios no exterior.

Participou de encontros pedagógicos literários e culturais no Brasil e exterior.

Membro fundadora da Fundação Cultural Calmon Barreto de Araxá.

Pertence a Academias Araxaense de Letras,de Araxá, MG; Academia de Letras do Triângulo Mineiro, com sede em Uberaba, MG; Academia Municipalista de Letras de Belo Horizonte e Academia Pan-Americana de Letras e Artes, com sede no Rio de Janeiro.

Secretária da Academia Araxaense de Letras.

Presidente da SABIA. Sociedade dos Amigos da Biblioteca Municipal “Viriato Correia”, de Araxá.

Publicações
Crônicas Semanais no jornal “Correio de Araxá” desde 1984.
Crônicas Semanais no jornal: “O Planalto” desde Janeiro de 2004.

Livros
“Lágrimas de Telha”. 1986.
“Domingos, dias úteis e Santos 1990”.
“Prêmio de Viver, uma história de amor”. 2000.
Antologia Poética Prosa&Verso. Editora On-Line Book
“Pingos de Amor” On-line Book. 2003.
Antologia de Poesias, Contos e Crônicas. “Livre Pensador”. Editora Scortecci. 2004
Antologia. “Círculo de Poesia” Edición bilíngüe. Bianchi Editores. Montevideo -2004- Brasília
Antologia: 'Tertúlia na Primavera' Editora, Espaço do Autor. 2004
Editora On-Line Book: bailando Versos. 2005.

Fonte:
Poetas del Mundo

Andréa Motta (Poetas do Paraná)



Sublimação

Sem medos
abraça-me a alma arrepiada
solta os meus cabelos e toca-me
intensamente
intimamente

Deixa esta onda de calor percorrer-te a pele
não permitas que este momento de sublimação
se perca no tempo

Olha-me a alma por dentro das minhas entranhas
enxerga o invisível dos meus olhos
sente o meu corpo e ouve esta música

Deixa-te desvendar a cada toque sentido
desagua no meu prazer
Faze-me acreditar que o céu me sorri

Deita-te em chamas entre as minhas mãos
deixa-me explodir num orgasmo sagrado
de onde brotem lágrimas de felicidade
-----

[in]quietude

Na linha do destino
sorrisos e pranto
escuridão e luz.

A noite calada registra
as marcas inexoráveis do tempo.
No rastro da estrela-guia : a Paz.
===

Toccata

Não importa o decibel do riso,
Se o guizo do silêncio
No olhar do artista
Reinventa a luz

Pouco importa que o corpo,
Dos toques não traga as marcas
Ou que desperte o desejo
Agreste de amanhecer

Feito implosão de lábios
Pernas e braços.
Importa, que o tempo,
seduzido pelos poetas,

estanca, do amor
os desencontros
P'ra não ficar saudade
Ou romance pela metade.

Importa sim a ousadia
De enfrentar as tempestades
E a abundância de violinos
Enfeitiçando as asas dos colibris.
---------
Fonte:
Poetas del Mundo

Delasnieve Daspet (Tênue Linha)


A areia do tempo começa a cair.
A incerteza reclamando a vida,
A certeza clamando a morte!

Tênue linha separa
O novo e o velho.
A infância. A vida. O medo.
Existirá mesmo o adeus ao velho?
A felicidade no novo?

Lá no horizonte a linha divisória
Está incendiando.
Fogo!
Luz incandescente na noite escura.
Noite sem lua!

Mas é bonita a escuridão
Do ano que chega
Eis que tudo ainda pode ser!

Já o velho - ainda envolto em paetês,
Brilhando nas agrúrias
Segue seu lento caminhar
Rumo à poeira!
Sonhos. Vidas. Amores.
Todos em declínio
No seu rastro de cometa!

Mais um natal.
Festa da cristandade?!
Porque então tanta fome, frio
Injustiças já fazem o novo tão velho,
Os gemidos tão iguais?!

Tenho o espirito da lua.
Nasço e morro todos os dias.
Vivo o ano, vivo a vida,
Só - como todos os seres humanos,
Flutuando tristemente no ar!

Pólen sem abelha!
Flor sem perfume.
Um ano que passa,
Outro que chega,
Tudo - sempre - tão igual!
(17-10-2001 - Campo Grande MS.)
--------------
Fonte:
A Autora.
Delasnieve Miranda Daspet de Souza
Embaixadora Universal da Paz - Genebra - Suiça - Cercle Universel des Ambassadeurs de la Paix – Embaixadora para o Brasil de Poetas del Mundo

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte VII



A UTILIDADE DA POESIA

1. POESIA EM FORMA DE PROTESTO

De alguma forma, a poesia sempre esteve ligada às causas rebeldes, em todos os tempos, desde os grandes dramaturgos até os dias de hoje, nas odes de Píndaro e Temístocles ou nos versos brancos de Thiago de Mello, Ferreira Gullar ou Drummond.

Alceu, poeta do Século VII a.C., contemporâneo e conterrâneo de Safo, pertencia à aristocracia de Lesbos, que entrou em choque com outras forças sociais aspirantes ao poder, representadas pelos chamados tiranos, tais como Melancro, Pítaco e Mirsilo (cuja morte o poeta festejou). Participou intensamente dessas lutas, com seus irmãos. Percorreu o Egito e a Trácia (provavelmente exilado), onde se situa o rio Ebro, celebrado em seus versos. Sua obra, originalmente distribuída em dez livros, apesar de ter chegado a nós muito fragmentada, contém a expressão e a força de suas convicções políticas e de oposição aos governos.

Catulo, já estudado no capítulo anterior, apesar da sua lírica predominante, apresenta em seus textos marcas profundas da sua convicção satírica, jocosa e por vezes irônica mesmo, louvada pela sua simplicidade direta.

Júlio César e seu chefe de estado-maior eram o alvo das farpas de Catulo: “ ambos adúlteros, igualmente ávidos, parceiros na competição pelas mocinhas da cidade “. César, como vimos anteriormente, tinha espírito esportivo. Depois de exigir e receber desculpas, convidou o poeta para jantar.

Cabe, para melhor interpretação da parte inicial do capítulo que estamos estudando, um pequeno trecho do poema mais famoso de Catulo :

Rufo, que acreditei, erroneamente,
ser amigo, de graça (mas, de graça ?
Paguei um alto preço e sofri danos),
Como pôde você insinuar-se,
Abrasar as entranhas deste pobre,
Levar toda a riqueza de uma vida ?
Levou, levou o meu vento ardente,
roubou a praga do meu amor, ai.

Ninguém representou melhor a poesia satírica latina do início do primeiro milênio do que Marcial, poeta espanhol nascido no ano 40 d.C.. Pelo fato de ter vivido uma vida livre e a serviço dos poderosos, foi cronista social obsceno e pornográfico e por isso mesmo muito combatido e perseguido no seu tempo.

Com seu amigo espanhol Juvenal formaram a maior dupla da poesia satírica latina, além de Horácio, no século anterior. Censuradíssimo, só encontrou as primeiras traduções sem maiores empecilhos nos anos 60 e 70, especialmente graças ao trabalho do pioneiro e estudioso de sua obra Guido Ceronetti, do qual muitos historiadores ao longo tempo também se valeram. Abaixo, alguns trechos dos seus famosos epigramas dão razoável dimensão da obscenidade do poeta, despejada sem escrúpulo sobre seus inimigos e, inclusive, sobre aquelas que, embora estivessem na cama dos muitos poderosos, faziam questão de ignorá-lo por sua língua ferina :

I, 24
Veja, Deciano, aquele homem despenteado,
cenho cerrado, que até incute medo,
e que só fala dos varões de antigamente :
Casou-se ontem, acredite : ele era a noiva.

I, 57
De que tipo de garota eu gosto, Flaco ?
Entre a difícil e a fácil, meio a meio.
A namorada ideal é assim que eu quero :
Não infernize a minha vida e não me farte.

Em outro, rebate as críticas de seus contemporâneos que zombam de sua poesia :

Você não publica teus versos, Lélius,
mas critica os meus,
põe fim às tuas críticas
ou publica os teus.

Os poetas latinos do início do século I d.C., salvo algumas raras exceções como Propércio, dedicaram-se a maior parte do tempo a estudar o comportamento de inimigos e desafetos para transformá-lo em verdadeiro objeto de crítica e sátira sem qualquer constrangimento.

Seus protestos ou sátiras eram puras ofensas que, muitas vezes, demoravam a ser compreendidas e chegavam aos ouvidos dos destinatários por outros de maneira distorcida.

Desta forma, não raro os poetas debruçavam-se em réplicas e tréplicas constantes por conta de sua responsabilidade na manutenção da palavra (ou ofensa) perante os cidadãos da época. Catulo e Marcial foram bons no que se propuseram a fazer e por conta de seus protestos muitos imperadores romanos como Júlio César e Cláudio perderam boa parte do seu tempo tentando justificar-se dos insultos e verdades.

Camões, apesar de ter cantado muitos amores, soube servir-se de sua indiscutível capacidade intelectual para atirar suas farpas contra tudo aquilo que julgara inútil em vida. Ao mesmo tempo homem de “armas” e de “ letras “, temperamento aventureiro, ousado e reflexivo, ele é o representante típico de um modelo e ideal de homem que é central para a cultura do século XVI.

Sua vida traz em si a plenitude da experiência da condição humana : soldado, marinheiro, colonizador e estrangeiro, poeta, homem de cultura assombrosa e requintada, universal para os moldes de seu tempo, e em permanente conflito com as vicissitudes do mundo e da vida. E sua obra é, sem dúvida, o espelho fiel desta plenitude e universalidade ” .

Seu espírito rebelde e suas desavenças com o rei de Portugal custaram-lhe anos de exílio e terminaram por obrigá-lo a desempenhar funções longe da terra natal, a serviço da corte, em países onde não tinha a menor afinidade com a língua e costumes. Por este motivo talvez tenha produzido uma obra tão vasta e de caráter turbulento, despejado com fervor em grande parte dos seus poemas, como o que transcrevemos em seguida :

[ TANTA GUERRA, TANTO ENGANO . . . ]
No mar tanta tormenta e tanto dano,
tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
tanta necessidade aborrecida !
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
que não se arme e se indigne o céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno ?

Nosso maior representante da poesia em forma de protesto foi, certamente, Gregório de Matos Guerra, motivo que lhe valeu o apelido de Boca do Inferno e chegou a ser banido para Angola no de 1694. A parte mais significativa de sua obra é lírica, de caráter sacro, porém ficou mais conhecido pela sátira à nobreza e ao clero, escrita nos mais diversos lugares onde estudou e ocupou cargos públicos de destaque. No poema que segue, Gregório de Matos descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia e não poupa elogios (?) aos desmandos de Portugal, embora a interpretação seja difícil somente numa primeira avaliação e leitura de seus versos :

A cada canto um grande conselheiro,
que nos quer governar cabana e vinha.
Não sabem governar sua cozinha
e podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem freqüente olheiro
que a vida do vizinho e da vizinha
pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
para levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
trazidos sob os pés dos homens nobres
posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
todos os que não furtam muito pobres
e eis aqui a cidade da Bahia.

Este soneto dá uma boa idéia da dimensão da produção poética e do comportamento agressivo, mas intelectual e pessoal, do Boca do Inferno. Mais para o nosso século, vamos nos prender aos autores brasileiros que melhor representaram a classe de protestantes (esta definição é nossa, surgiu espontaneamente) do Brasil do início do século até os dias de hoje.

Augusto dos Anjos, mencionado no capítulo dos Grandes Poetas, nunca se filiou a qualquer escola poética, dada sua riqueza de sensações e estilo próprio. O título de seu único livro, Eu, agregado posteriormente a Outras Poesias pelos amigos e estudiosos do poeta, é um monossílabo que fala. Segundo apuramos, três fatores fizeram a profunda tristeza de Augusto dos Anjos : um de caráter individualíssimo, outro mesológico (Relativo a mesologia, a relação entre os seres e seu meio ambiente) e o terceiro espiritual.

Seu protesto era contra a vida, contra tudo e contra todos. Histérico, neurastênico, desequilibrado, a esse tipo de julgamento teve de acostumar o poeta, O Doutor Tristeza.

Cesário Verde, antigo professor da Paraíba, enfurecido com os temas escritos por Augusto dos Anjos no jornal O Comércio, deu-se ao trabalho de mandar imprimir e fazer distribuir pelas ruas da cidade uma “ carta aberta ”, cheia de impropérios, atacando rudemente o Poeta Raquítico , mas a resposta não tardou a chegar, em versos alexandrinos (Versos de doze sílabas, empregados pela primeira vez por Alexandre de Bernay, num poema dedicado a Alexandre, O Grande) , e merece ser lembrada :

BILHETE POSTAL

Ilustre professor da Carta Aberta: - Almejo
que uma alimentação a fiambre e a vinho e a queijo
lhe fortaleça o corpo e assim lhe fortaleça
as mãos, os pés, a perna et coetera e a cabeça.
Continue a comer como um monstro no almoço,
inche como um balão, cresça como um colosso
e vá crescendo e vá crescendo e vá crescendo,
e fique do tamanho extraordinário e horrendo
do célebre Titão e do Hércules lendário;
O seu ventre se torne um ventre extraordinário,
cheio do cheiro ruim de fétidos resíduos,
as barrigas então de cinqüenta indivíduos
não poderão caber na sua ampla barriga;
Não mais lhe pesará a desgraça inimiga,
O seu nome também não será mais Antonio.
Todos hão de chamá-lo o colosso, o demônio,
a maravilha das brilhantes maravilhas.
As hienas carniçais, as leoas e as novilhas,
diante do seu vigor recuarão, e diante
do estribado metal de sua voz atroante
decerto correrão mansas e espavoridas.
Se as minhas orações forem, pois, atendidas,
o senhor há de ser o Teseu do universo.
Seja um gigante, pois; não faça porém, verso
de qualidade alguma e nem também me faça
artigos tresandando a bolor e a cachaça,
ricos de incorreções e erros de gramática,
tenha vergonha, esconda essa tendência asnática,
que somente possui o seu cérebro obtuso -
Esconda-a, e nunca mais se exponha a fazer uso
da pena, e nunca mais desenterre alfarrábios.
Os tolos, em geral, são tidos como sábios,
que sabem calar-se e reprimir-se sabem,
o senhor é palpavo e os palpavos não cabem
no centro literário e no centro político.
Respeite-me, portanto !
O Poeta Raquítico .

Durante a ditadura militar, Carlos Drummond de Andrade já com o peso da idade e os ombros que suportam o mundo (Famoso poema de Drummond incluído em diversos antologias nacionais e internacionais) , sofreu calado, intimidado pelo regime militar que não poupou os manifestos nacionalistas nas suas mais diferentes formas : exílio, tortura, cassação de direitos políticos.

É possível identificar em diversos poemas de Drummond, com um pouco de esforço intelectual, o seu repúdio e ódio pela sistemática do governo ditatorial, intrinsecamente manifestada por uma questão de segurança. Em seus Poema Salário, O Novo Homem, Caça Noturna e O Prisioneiro, o poeta não esconde a insatisfação pelas coisas vis, pelo que considera indigno ao ser humano, que representam o confronto direto entre a sua eterna convicção e tudo o que se produz de ruim no mundo. Certas Palavras resume seu manifesto de oposição e protesto ao sistema controlador da liberdade, do direito à liberdade de vida e expressão, como podemos avaliar a seguir :

Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacramente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.
Entretanto são palavras simples :
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença dos séculos.
É tudo proibido. Então falamos.

Aos 17 anos, o poeta desentendeu-se com seu professor de português no internato onde estudava, exatamente ele, o jovem que nos certames literários do colégio, por sua maestria, era chamado de “general ”. A conseqüência desse incidente é a expulsão do colégio ao término do ano de 1919.

Durante os anos de internato, Drummond descobriu que Itabira era sua : a terra e a livre - seu quarto, infinito. Tristeza, saudades, solidão e rebeldia marcaram este período, duramente protestado em seu poema Fim da casa Paterna, como retratamos abaixo, em um pequeno trecho do poema :

E chegada a hora negra de estudar.
Hora de viajar rumo à sabedoria do colégio.
Além, muito além de mato e serra
fica o internato sem doçura ...
O colchão diferente.
O despertar em série (nunca mais acordo
individualmente, soberano).
A fisionomia indecifrável
dos padres professores.
Até o céu diferente : céu de exílio.

Quase ao mesmo tempo, Thiago de Mello, embora vivendo no Chile, teve mais oportunidade de combater tudo aquilo que julgou contrário aos seus princípios e preceitos básicos da boa convivência e relacionamento. Por esse motivo, o poeta irrompeu na paisagem da poesia brasileira como um força elementar.

Uma personalidade indomável ; um grande individualista que tinha o direito de falar de si próprio e das suas emoções porque manifestava sentimentos representativos ”. Foi o primeiro grande poeta que o Amazonas deu ao Brasil e um cidadão aberto aos anseios coletivos do povo brasileiro. Thiago de Mello colocou seus versos a serviço dos oprimidos e humilhados porque imaginou que a redenção deles marcaria a sua e a nossa liberdade.

Em abril de 1964, quando optou pelo exílio no distante Chile (onde desempenhava a função de adido cultural da embaixada brasileira), a ter de se sujeitar aos desmandos da ditadura militar instalada no Brasil, o poeta produziu um das jóias raras da poesia nacional, seu célebre poema Os Estatutos do Homem, uma espécie de Ato Institucional Permanente, como ele mesmo definiu, dedicando-o a Carlos Heitor Cony, seu amigo das letras.

No poema, Thiago de Mello desabafa toda sua indignação contra o novo regime e, ao contrário do que se tentava implantar no país, pregou a liberdade com maestria e a valorização da ética e do bom senso, protestando sem ironia e com muita esperança contra tudo aquilo que jamais desejou para o povo brasileiro.

Vejamos, então, seu protesto calado, ou parte dele, hoje traduzido em várias línguas e momento da resistência do povo brasileiro contra a opressão :

ARTIGO I
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira . . . .

ARTIGO II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo . . . .

ARTIGO III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança . . .

ARTIGO V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura das palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

ARTIGO XII
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo Único:
Só uma coisa fica proibida : amar sem amor.

ARTIGO FINAL
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Ao inserir a pérola poética de Thiago de Mello, encerro o capítulo com o sentimento do dever cumprido, ou seja, o de enaltecer o valor da poesia como instrumento de protesto e resistência aos mais diferentes tipos de opressão acumulada em milênios da existência humana, por conta de corruptos e tiranos detentores do poder em todas as épocas, muitas vezes tomado à força. Naturalmente, não fui capaz de avaliar cada poeta em particular à altura dos grandes estudiosos e críticos do mundo literário, mas descobri, em curto espaço de tempo, a força de suas palavras, a profundidade de suas mensagens e reconheço na sobrevivência poética de todos o verdadeiro valor que representavam para o seu povo, caso contrário, teriam caído no esquecimento e não seria possível tomar conhecimento de suas obras.

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Trova XCVI - Héron Patrício (São Paulo/SP)

Trova sobre imagem da internet capturada de http://chargedodiemer.blogspot.com

Poesias Gauchescas II



Antônio Pereira Mello
QUERÊNCIAS

Gauchada rio-grandense
Sou um gaúcho mui sério
Tenho alma de gaudério
Um dia tomei consciência
Piquei o pingo na espora
E saí estrada afora
Pra conhecer outras querências.

Um dia subi a serra
Saí de casa cedinho
Meu destino - sobradinho -
Queria conhecer tudo
Naquela serra bacana
Arroio do Tigre, Ibirama,
E a cidade de Agudo.

Depois fui pra fronteira
Eu vos digo agora aqui
Que lá no velho Itaqui
Tem muita prenda aragana
Eu lembro a todo momento
De Sant'ana do Livramento
E também de Uruguaiana.

Querências do meu Rio Grande
Umas conheço, outras não
Nesse imenso rincão
Que é o nosso pampa gaúcho
Onde tem prendas decentes
E a gauchada valente
Que agüenta qualquer repucho.

Rio Grande, terra querida
Querência que eu amo tanto
Uma coisa eu te garanto
Eu sou um índio sem luxo
Meu orgulho é ser gaúcho
Filho desse pago santo.
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Apparício Silva Rillo
GAÚCHO VELHO

Gaúcho velho que foste menino
nos entreveros de noventa e três!
Brigaste a vida toda com o destino
e o destino apanhou mais de uma vez!

Está na hora de largar o flete
para a invernada das melhores águas,
e pra lembrança, pelo mesmo brete,
teu passado de risos e de mágoas!

Quanta geada no cabelo escasso
do tapejara que caiu no laço
que a mão do tempo lhe atirou por trás!

Culatra de uma tropa caborteira
que deixou fama e rastro na poeira
pra tropa nova que vem vindo atrás…
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Autor Desconhecido
ARROZ DE CARRETEIRO

Prato simples que sustenta,
O arroz de carreteiro
É rude manjar campeiro
Com sabor tradicional.
Esta iguaria bagual,
Dos tempos de antigamente,
Ganhou fama e, de repente,
É prato tradicional.

Arroz gaúcho, amarelo.
Charque gordinho, cebola
Daquela roxa, crioula
E o verde é salsa picada.
Panela preta areada,
Água quente na cambona,
Colher de pau, Mangerona,
Parece não faltar nada.

Charque picado a capricho
Tem que ser bem escaldado,
Escorrido e colocado
Na panela novamente.
Quando corar, simplesmente
Bote a cebola picada,
Quando esta ficar dourada
Ponha um pouco de água quente.

Baixe o fogo e bote a tampa
Enquanto o charque cozinha.
De vez em quando, uma agüinha
Pra que não fique queimado.
Aí o arroz é lavado
E a Mangerona tem vez,
Mais uma agüinha, talvez,
Garantindo o cozinhado.

Estando o charque macio,
Bote o arroz pra que se aquente.
Revive continuamente
Com calma e muita paciência.
Baixe o fogo, por prudência.
Bote água na cambona,
Prove o sal e a Mangerona
Que são, do gosto, a essência.

Quando o arroz ficar cozido
E ainda estiver molhado,
Tire a panela de lado,
Ponha a salsa e deixe estar.
Chame a turma pra almoçar
E sirva até o bem do fundo
Pra contentar todo mundo
Com delicioso manjar.
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Autor Desconhecido
CHIMARRÃO


Oh! filtro misterioso e ardente
De solilóquios companheiro.
Teu convívio tão prazenteiro
Transforma-te em meu confidente.

Ao sorver-te alegre ou triste,
Alio aos meus sentimentos
alegrias, desalentos,
tudo que em minh'alma existe.

Na eloqüência do teu mutismo
colho a censura com humildade,
recebendo o aplauso sem vaidade,
teus conselhos com altruísmo.

Velha herança guarani!
Oh! meu mate-chimarrão!
Agridoce infusão que resuma até:
amizade, amor, fé.
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Autor Desconhecido
RIO GRANDE

Ser gaúcha não precisa
ter nascido aqui no sul
basta amar o céu azul
e gostar do mate-amargo
do sopro do minuano
que vem nos fazer afago
Este ventinho nativo
que faz parte deste pago.

Ser gaúcha meus senhores
é trazer dentro do peito
com todo amor e respeito
a gloriosa tradição
usar vestido de chita
dançar xote e chimarrita
nos fandangos de galpão.

É trazer no coração
um Rio Grande assim pequeno
molhado pelo sereno
no frescor da madrugada
é gostar da gauchada
é amar o joão-barreiro
e ter a simplicidade
deste povo hospitaleiro!

Amar o cheiro da terra
misto de agreste e selvagem
é o gado na pastagem
pra enfeitar as campinas
são as águas cristalinas
numa incansável viagem
indo ao encontro do mar
levando doce mensagem

E o grito do quero-quero
autêntico sentinela
é o barulho da cancela
do peão voltando pra estância
é ter no peito esta ânsia
de vida paz e esplendor
é cantar todo encanto
Rio Grande feito de amor!
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Autor Desconhecido
PRECE DO CAVALO


Ouve, atende tu que és meu dono,
quando te imploro:

Dá-me que comer e dá-me que beber,
trata-me com carinho ao terminar o
trabalho diário que me exiges;
proporciona-me um bom alojamento,
cama limpa e seca, baia larga e espaçosa,
para que eu possa me deitar com comodidade.

Fala comigo.
Tua voz me indicará melhor
o que devo fazer, do que
o teu chicote ou as tuas esporas.

Acaricia-me às vezes senão muitas,
que desse jeito te servirei
com mais alegria e muito mais saberei te amar.

Não puxes inutilmente pelas rédeas,
não me castigues ao subir uma ladeira,
não me obrigue a sofrer
pesos superiores às minhas forças.

Não me castigues jamais quando
te não tenha compreendido;
procura sempre fazer-me
compreender o que de mim queres.

Olha-me com atenção todas as vezes
que eu deixar de fazer o que me ordenas;
vê se há alguma cousa que não me convenha
ou me ofenda nos arreios ou nas minhas patas.

Quando vires que evito comer
ou resisto ao bom governo,
examina os meus dentes e as minhas barras,
talvez seja um dente dolorido
ou a existência de ferimentos nas barras.

Não tenhas presa a minha cabeça em posição forçada,
de modo que me prive de deitar,
nem me prives da minha defesa
contra as moscas e mosquitos
aparando-me exageradamente a cauda
e os pêlos dos esporões e das quartelas.

Enfim, peço-te me livres do mormo e das esponjas.

Quando se esgotarem as minhas forças
para o serviço não me separes de ti
para que eu não morra de fome ou de frio;
não me vendas a um dono cruel
que me vá torturar pela fome
e pelo trabalho que eu não posso mais dar.

Tira-me antes a vida
por meios mais brandos e menos dolorosos.

O teu Deus há de recompensar-te
pela caridade com que tratas
um ser inferior que também
nasceu numa estrebaria.
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João Clímaco Bezerra (A Vinha dos Esquecidos)


Análise da obra

Em A Vinha dos Esquecidos, João Clímaco Bezerra narra a angústia existencial do padre Anselmo, ao mesmo tempo em que conta a história do negro Zacarias, numa perdida cidadezinha do interior. O livro tem 35 capítulos que se alternam entre padre Anselmo (capítulos ímpares) e Zacarias (capítulos pares).

João Clímaco Bezerra consegue tramar bem o seu enredo, a partir da subjetividade dos personagens, nuanças de personalidade, também registrando um contexto histórico em que o modo de vida rural começa a mudar.

O título do romance remete à existência de uma população esquecida, assistida por um padre também esquecido:

(...) Agora as pregações haviam dado uma guinada de extremo a extremo. De tudo proibido passara para tudo permitido. Sinal dos tempos. Padre Anselmo não gostava de ameaças de castigo. Preferia mostrar Jesus, o doce Jesus, como o cordeiro de Deus que viera tirar os pecados do mundo. O Ser Supremo que tudo o todos perdoava. E tinha a predileção especial pela palavra “vinha”. (...)

Na obra, encontramos narrativa heterodiegética com acessibilidade lingüística, número atraente de discursos diretos, além dos discursos indireto e indireto livre, alguns até fazendo uso de palavras de baixo calão; encontramos, não raramente, flash-bach; há personagens bem definidos, abundância de criticidade, regionalismo, intensa intertextualidade bíblica; recorrente uso de latinismos; presença dos dois protagonistas (padre Anselmo e Zacarias); idealização de alguns personagens, como seu Leandro; personagens reais, como o padre Mundoca; discursão acerca de temas polêmicos ou inquietantes, como o segredo de confissão ou a educação sexual; há temas emocionantes como a amizade, o amor, e sociais, como a justiça ou a falta dela.

A Igreja era ligada ao conservadorismo. Logo, padre Anselmo seguia este caminho. Mas com a chegada de um novo padre, padre Pierre, que trazia idéias libertadoras da Europa, todos se vêem escandalizados.

Pode-se apontar portanto, temáticas muito relevantes e recorrentes no romance de Clímaco, como morte, desigualdade social, prostituição, injustiça, segredo de confissão, crises existenciais, racismo, tentação, casamentos formal e informal, religiosidade/crenças em milagres e educação sexual.

Obra de densidade psicológica. Configura-se como um romance de personagens, cuja narrativa se volta para a trajetória de vida de dois personagens. Vê-se ao longo da leitura, que a obra desenvolve o mundo interior das personagens, narrando o que pensam e o que lhes diz a consciência de si mesmas e dos demais.

Tempo

Pelos indício de modernidade que a cidade começa a tomar conhecimento, possívelmente a história ocorre na segunda metade do século XX. Embora haja o tempo psicológico, é o cronológico que ainda norteia a seqüência das ações.

Foco narrativo

O foco narrativo é feito na terceira pessoa, através de um narrador onisciente, que parece filtrar todo o tempo o ponto de vista dos protagonistas. O narrador, em alguns momentos, confunde-se com o protagonista, daí a força do discurso indireto livre para manifestar essa identificação.

O narrador de A Vinha dos Esquecidos não é personagem.

Enredo

A obra é ambientada em um lugarejo perdido sem progresso, abandonado das autoridades, dos homens de negócios, de Deus. Uma "cidadela esquecida até por Deus", na qual histórias simples e outras bastante complexas se mesclam.

A história principal focaliza a personagem Padre Anselmo, homem de Deus que, apesar de sua formação de Seminário, vive um confronto enorme: desde criança gostava de esganar os bichinhos, maltratar os animais. Por não ser um menino de muita atitude, aceitou de pronto a ordem de sua mãe de colocá-lo no Seminário; sem muitas manifestações de contrariedade, Anselmo entra no colégio de sacerdotes e, logo no início de sua formação doutrinária recebe, de um professor, o livro "A Imitação de Cristo", livro que o acompanha em todos os momentos, livro que permanece no bolso surrado de suas roupas simples. É desse livreto que Anselmo retira forças nos momentos de maior aflição e provações.

Ao tornar-se padre é enviado de volta a cidade que nasceu. Perde a mãe muito cedo e passa a ser criado pela negra Joana, que nunca o informa do verdadeiro paradeiro de seu pai. Devido o passado crudelíssimo de maltratar os animais, evita criá-los em sua casa, evita ter contato com eles, então, passa a cuidar de rosas, passa a conversar com elas, entende-as, preocupa-se quando estão doentes, vibra quando estão em plena saúde.

Padre Anselmo tem, embora lute muito contra esse sentimento, gosto por ver os moribundos padecendo, sente prazer pela morte das criaturas.

Um grande acaso atormenta a vida de Anselmo: a morte e estupro de uma garota por Inácio, homem que freqüenta as altas rodas da sociedade, possui um armazém e dinheiro, porém, devido a polícia ter chegado ao local do crime no momento em que Pedrinho, pai de família, honesto, incapaz de realizar tamanha barbaridade, passava. Pedrinho é acusado erroneamente de assassino; O padre, devido às confissões de seus fiéis sabe quem foi o verdadeiro assassino, uma vez que Inácio o confessa, porém fica de mãos atadas por se tratar do segredo da confissão, logo guarda para si uma verdade que não pode vir à tona. Sofre muito ao ver Laura, esposa de Pedrinho aos prantos sem poder fazer nada por ela. Anselmo consegue que Pedrinho saia da cadeia, onde está padecendo, para se cuidado pela esposa, embora provisoriamente.

Nos momentos finais do livro, padre Anselmo contesta Deus em como irá apresentar suas ovelhas diante do Todo Poderoso, sabia que ali eram todos mansos e humildes de coração, mas, que algumas vezes, pareciam mais um conjunto de lobos. O livro termina com padre Anselmo contemplando a cidade em que nascera, e que depois de se tornar sacerdote, voltara para seu povo, agradecia a Deus, embalado pela beleza das estrelas e pelo cheiros das rosas que cativava.

Uma história paralela é a do Negro Zacarias, homem direito, que, quando criança, sofria muito por ver Isaura, sua mãe, ganhar dinheiro como "mulher da vida", recebendo homens em sua casa; Zacarias fazia-se de surdo no seu quarto para não ouvir "os ofegos dos homens em cima de sua mãe". Foi mandado para o colégio público, mas não perseverou; Padre Anselmo manda Zacarias para uma escola particular, porém, ao ser humilhado pelo professor, ameaça-o com um estilete, vai embora e não mais se interessa pelos estudos.


Passa a trabalhar na caldeira da casa de máquinas da fábrica de Seu Leandro, que é um homem muito bom, conversa com os empregados, ajuda-os. Na caldeira mostra-se muito útil e inigualável, com o passar do tempo nutre uma grande amizade por Justino, rapaz com o qual Zacarias muito se identifica, por se parecer com ele, porém, Justino tem muito gosto pelos estudos, de uma família de onze irmão, sonha em ser doutor, quando sai da fábrica vai direto para a aula. Isaura, mãe do negro Zacarias, falece e seu Leandro ajuda bastante nos rituais fúnebres. Agora Zacarias está só, sem ninguém, pois não namorava, era filho único, só tinha a mãe por companheira. No velório de uma funcionária da fábrica, Zacarias conhece Maria, "moça donzela", bem cuidada pela mãe, chega a beber um pouco e a falar besteiras, porém sente algo bom por ela, sente-se leve.


Depois do velório acompanha Maria e a mãe dela até em casa. Passam-se os dias e quando Zacarias se encontra tocando violão em casa, no meio da noite, surge uma mulher bonita, limpa, à porta, era Alice, "uma mulher da vida como Isaura", Zacarias deixa-a entrar e por fim mantém relação sexual na mesma cama em que sua mãe morrera. Zacarias fica muito perturbado quanto a tudo, será que trabalhara até agora para se juntar a uma "sem-vergonha"? Ou será que deveria casar direitinho com Maria e viver em paz?

Em um determinado momento a fábrica pega fogo, porém não acontece um grande acidente, os prejuízos são poucos; é nessa hora que o velho Clarindo intensifica sua cobrança pelo sindicato, reivindicando indenizações, seu Leandro tem uma conversa com ele e, pela maneira serena que seu Leandro tem de falar, o homem muda seu comportamento e a idéia esfria. Após o incêndio, Justino passa a trabalhar no escritório, trabalho leve, e no seu lugar entra Jorginho, seu irmão, porém Zacarias não simpatiza com o garoto, por ele ser muito arredio, muito preguiçoso, ser muito diverso de Justino.

Zacarias fala com Maria e pede-a em casamento, fazem uma promessa de nunca mais tocar no nome de Alice. (O livro relata o noivado, mas nada aborda sobre o casamento e o futuro dessas duas personagens).

Vale salientar que ao final do livro, o autor deixa em aberto os finais das histórias, não se relata se a negra Joana morre, se Padre Anselmo morre, não comenta sobre o casamento de Zacarias e Maria.

A resolução do caso de Pedrinho e Inácio, não dá pra dizer se Inácio se entrega às autoridades, tendo em conseqüência a liberdade de Pedrinho.

Fonte:
http://www.passeiweb.com.br

Machado de Assis (Último Capítulo)


Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o motivo e as circunstâncias que os armam contra ela. Os que se vão calados, raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do cotilhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma semana mais.

Pois apesar da excelência do costume, era meu propósito sair calado. A razão é que, tendo sido caipora em minha vida toda, temia que qualquer palavra última pudesse levar-me alguma complicação à eternidade. Mas um incidente de há pouco trocou-me o plano, e retiro-me deixando, não só um escrito, mas dois. O primeiro é o meu testamento, que acabo de compor e fechar, e está aqui em cima da mesa, ao pé da pistola carregada. O segundo é este resumo de autobiografia. E note-se que não dou o segundo escrito senão porque é preciso esclarecer o primeiro, que pareceria absurdo ou ininteligível, sem algum comentário. Disponho ali que, vendidos os meus poucos livros, roupa de uso e um casebre que possuo em Catumbi, alugado a um carpinteiro, seja o produto empregado em sapatos e botas novas, que se distribuirão por um modo indicado, e confesso que extraordinário. Não explicada a razão de um tal legado, arrisco a validade do testamento. Ora, a razão do legado brotou do incidente de há pouco, e o incidente liga-se à minha vida inteira.

Chamo-me Matias Deodato de Castro e Melo, filho do sargento-mor Salvador Deodato de Castro e Melo e de D. Maria da Soledade Pereira, ambos falecidos. Sou natural de Corumbá, Mato Grosso; nasci em 3 de março de 1820; tenho, portanto, cinqüenta e um anos, hoje, 3 de março de 1871. Repito, sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens. Há uma locução proverbial, que eu literalmente realizei. Era em Corumbá; tinha sete para oito anos, embalava-me na rede, à hora da sesta, em um quartinho de telha vã; a rede, ou por estar frouxa a argola, ou por impulso demasiado violento da minha parte, desprendeu-se de uma das paredes, e deu comigo no chão. Caí de costas; mas, assim mesmo de costas, quebrei o nariz, porque um pedaço de telha, mal seguro, que só esperava ocasião de vir abaixo, aproveitou a comoção e caiu também. O ferimento não foi grave nem longo; tanto que meu pai caçoou muito comigo. O cônego Brito, de tarde, ao ir tomar guaraná conosco, soube do episódio e citou o rifão, dizendo que era eu o primeiro que cumpria exatamente este absurdo de cair de costas e quebrar o nariz. Nem um nem outro imaginava que o caso era um simples início de coisas futuras.

Não me demoro em outros reveses da infância e da juventude. Quero morrer ao meio-dia, e passa de onze horas. Além disso, mandei fora o rapaz que me serve, e ele pode vir mais cedo, e interromper-me a execução do projeto mortal. Tivesse eu tempo, e contaria pelo miúdo alguns episódios doloridos, entre eles, o de umas cacetadas que apanhei por engano. Tratava-se do rival de um amigo meu, rival de amores e naturalmente rival derrubado. O meu amigo e a dama indignaram-se com as pancadas quando souberam da aleivosia do outro; mas aplaudiram secretamente a ilusão. Também não falo de alguns achaques que padeci. Corro ao ponto em que meu pai, tendo sido pobre toda a vida, morreu pobríssimo, e minha mãe não lhe sobreviveu dois meses. O cônego Brito, que acabava de sair eleito deputado, propôs então trazer-me ao Rio de Janeiro, e veio comigo, com a idéia de fazer-me padre; mas cinco dias depois de chegar morreu. Vão vendo a ação constante do caiporismo.

Fiquei só, sem amigos, nem recursos, com dezesseis anos de idade. Um cônego da Capela Imperial lembrou-se de fazer-me entrar ali de sacristão; mas, posto que tivesse ajudado muita missa em Mato Grosso, e possuísse algumas letras latinas, não fui admitido, por falta de vaga. Outras pessoas induziram-me então a estudar direito, e confesso que aceitei com resolução. Tive até alguns auxílios, a princípio; faltando-me eles depois, lutei por mim mesmo; enfim alcancei a carta de bacharel. Não me digam que isto foi uma exceção na minha vida caipora, porque o diploma acadêmico levou-me justamente a coisas mui graves; mas, como o destino tinha de flagelar-me, qualquer que fosse a minha profissão, não atribuo nenhum influxo especial ao grau jurídico. Obtive-o com muito prazer, isso é verdade; a idade moça, e uma certa superstição de melhora, faziam-me do pergaminho uma chave de diamante que iria abrir todas as portas da fortuna. E, para principiar, a carta de bacharel não me encheu sozinha as algibeiras. Não, senhor; tinha ao lado dela umas outras, dez ou quinze, fruto de um namoro travado no Rio de Janeiro, pela semana santa de 1842, com uma viúva mais velha do que eu sete ou oito anos, mas ardente, lépida e abastada. Morava com um irmão cego, na rua do Conde; não posso dar outras indicações. Nenhum dos meus amigos ignorava este namoro; dois deles até liam as cartas, que eu lhes mostrava, com o pretexto de admirar o estilo elegante da viúva, mas realmente para que vissem as finas coisas que ela me dizia. Na opinião de todos, o nosso casamento era certo, mais que certo; a viúva não esperava senão que eu concluísse os estudos. Um desses amigos, quando eu voltei graduado, deu-me os parabéns, acentuando a sua convicção com esta frase definitiva:

— O teu casamento é um dogma.

E, rindo, perguntou-me se por conta do dogma, poderia arranjar-lhe cinqüenta milréis; era para uma urgente precisão. Não tinha comigo os cinqüenta mil-réis; mas o dogma repercutia ainda tão docemente no meu coração, que não descansei em todo esse dia, até arranjar-lhos; fui levá-los eu mesmo, entusiasmado; ele recebeu-os cheio de gratidão. Seis meses depois foi ele quem casou com a viúva.

Não digo tudo o que então padeci; digo só que o meu primeiro impulso foi dar um tiro em ambos; e, mentalmente, cheguei a fazê-lo; cheguei a vê-los, moribundos, arquejantes, pedirem-me perdão. Vingança hipotética; na realidade, não fiz nada. Eles casaram-se, e foram ver do alto da Tijuca a ascensão da lua de mel. Eu fiquei relendo as cartas da viúva. "Deus, que me ouve (dizia uma delas), sabe que o meu amor é eterno, e que eu sou tua, eternamente tua..." E, no meu atordoamento, blasfemava comigo: — Deus é um grande invejoso; não quer outra eternidade ao pé dele, e por isso desmentiu a viúva; — nem outro dogma além do católico, e por isso desmentiu o meu amigo. Era assim que eu explicava a perda da namorada e dos cinqüenta mil-réis.

Deixei a capital, e fui advogar na roça, mas por pouco tempo. O caiporismo foi comigo, na garupa do burro, e onde eu me apeei, apeou-se ele também. Vi-lhe o dedo em tudo, nas demandas que não vinham, nas que vinham e valiam pouco ou nada, e nas que, valendo alguma coisa, eram invariavelmente perdidas. Além de que os constituintes vencedores são em geral mais gratos que os outros, a sucessão de derrotas foi arredando de mim os demandistas. No fim de algum tempo, ano e meio, voltei à Corte, e estabeleci-me com um antigo companheiro de ano: o Gonçalves. Este Gonçalves era o espírito menos jurídico, menos apto para entestar com as questões de direito. Verdadeiramente era um pulha. Comparemos a vida mental a uma casa elegante; o Gonçalves não aturava dez minutos a conversa do salão, esgueirava-se, descia à copa e ia palestrar com os criados. Mas compensava essa qualidade inferior com certa lucidez, com a presteza de compreensão nos assuntos menos árduos ou menos complexos, com a facilidade de expor, e, o que não era pouco para um pobre diabo batido da fortuna, com uma alegria quase sem intermitências. Nos primeiros tempos, como as demandas não vinham, matávamos as horas com excelente palestra, animada e viva, em que a melhor parte era dele, ou falássemos de política, ou de mulheres, assunto que lhe era muito particular.

Mas as demandas vieram vindo; entre elas uma questão de hipoteca. Tratava-se da casa de um empregado da alfândega, Temístocles de Sá Botelho, que não tinha outros bens e queria salvar a propriedade. Tomei conta do negócio. O Temístocles ficou encantado comigo: e, duas semanas depois, como eu lhe dissesse que não era casado, declarou-me rindo que não queria nada com solteirões. Disse-me outras coisas e convidou-me a jantar no domingo próximo. Fui; namorei-me da filha dele, D. Rufina, moça de dezenove anos, bem bonita, embora um pouco acanhada e meio morta. Talvez seja a educação, pensei eu. Casamo-nos poucos meses depois. Não convidei o caiporismo, é claro; mas na igreja, entre as barbas rapadas e as suíças lustrosas, pareceu-me ver o carão sardônico e o olhar oblíquo do meu cruel adversário. Foi por isso que, no ato mesmo de proferir a fórmula sagrada e definitiva do casamento, estremeci, hesitei, e, enfim, balbuciei a medo o que o padre me ditava...

Estava casado. Rufina não dispunha, é verdade, de certas qualidades brilhantes e elegantes; não seria, por exemplo, e desde logo, uma dona de salão. Tinha, porém, as qualidades caseiras, e eu não queria outras. A vida obscura bastava-me; e contanto que ela ma enchesse, tudo iria bem. Mas esse era justamente o agro da empresa. Rufina (permitam-me esta figuração cromática) não tinha a alma negra de lady Macbeth, nem a vermelha de Cleópatra, nem a azul de Julieta, nem a alva de Beatriz, mas cinzenta e apagada como a multidão dos seres humanos. Era boa por apatia, fiel sem virtude, amiga sem ternura nem eleição. Um anjo a levaria ao céu, um diabo ao inferno, sem esforço em ambos os casos, e sem que, no primeiro lhe coubesse a ela nenhuma glória, nem o menor desdouro no segundo. Era a passividade do sonâmbulo. Não tinha vaidades. O pai armou-me o casamento para ter um genro doutor; ela, não; aceitou-me como aceitaria um sacristão, um magistrado, um general, um empregado público, um alferes, e não por impaciência de casar, mas por obediência à família, e, até certo ponto, para fazer como as outras. Usavam-se maridos; ela queria usar também o seu. Nada mais antipático à minha própria natureza; mas estava casado.

Felizmente — ah! um felizmente neste último capítulo de um caipora, é, na verdade, uma anomalia; mas vão lendo, e verão que o advérbio pertence ao estilo, não à vida; é um modo de transição e nada mais. O que vou dizer não altera o que está dito. Vou dizer que as qualidades domésticas de Rufina davam-lhe muito mérito. Era modesta; não amava bailes, nem passeios, nem janelas. Vivia consigo. Não mourejava em casa, nem era preciso; para dar-lhe tudo, trabalhava eu, e os vestidos e chapéus, tudo vinha "das francesas", como então se dizia, em vez de modistas. Rufina, no intervalo das ordens que dava, sentava-se horas e horas, bocejando o espírito, matando o tempo, uma hidra de cem cabeças, que não morria nunca; mas, repito, com todas essas lacunas, era boa dona de casa. Pela minha parte, estava no papel das rãs que queriam um rei; a diferença é que, mandando-me Júpiter um cepo, não lhe pedi outro, porque viria a cobra e engolia-me. Viva o cepo! disse comigo. Nem conto estas coisas, senão para mostrar a lógica e a constância do meu destino.

Outro felizmente; e este não é só uma transição de frase. No fim de ano e meio, abotoou no horizonte uma esperança, e, a calcular pela comoção que me deu a notícia, uma esperança suprema e única. Era o desejado que chegava. Que desejado? um filho. A minha vida mudou logo. Tudo me sorria como um dia de noivado. Preparei-lhe um recebimento régio; comprei-lhe um rico berço, que me custou bastante; era de ébano e marfim, obra acabada; depois, pouco a pouco, fui comprando o enxoval; mandei-lhe coser as mais finas cambraias, as mais quentes flanelas, uma linda touca de renda, comprei-lhe um carrinho, e esperei, esperei, pronto a bailar diante dele, como Davi diante da arca... Ai, caipora! a arca entrou vazia em Jerusalém; o pequeno nasceu morto.

Quem me consolou no malogro foi o Gonçalves, que devia ser padrinho do pequeno, e era amigo, comensal e confidente nosso. Tem paciência, disse-me; serei padrinho do que vier. E confortava-me, falava-me de outras coisas, com ternura de amigo.

O tempo fez o resto. O próprio Gonçalves advertiu-me depois que, se o pequeno tinha de ser caipora, como eu dizia que era, melhor foi que nascesse morto.

— E pensas que não? redargui.

Gonçalves sorriu; ele não acreditava no meu caiporismo. Verdade é que não tinha tempo de acreditar em nada; todo era pouco para ser alegre. Afinal, começara a converter-se à advocacia, já arrazoava autos, já minutava petições, já ia às audiências, tudo porque era preciso viver, dizia ele. E alegre sempre. Minha mulher achava-lhe muita graça, ria longamente dos ditos dele, e das anedotas, que às vezes eram picantes demais. Eu, a princípio, repreendia-o em particular, mas acostumei-me a elas. E depois, quem é que não perdoa as facilidades de um amigo, e de um amigo jovial? Devo dizer que ele mesmo se foi refreando, e dali a algum tempo, comecei a achar-lhe muita seriedade. Estás namorado, disse-lhe um dia; e ele, empalidecendo, respondeu que sim, e acrescentou sorrindo, embora frouxamente, que era indispensável casar também. Eu, à mesa, falei do assunto.

— Rufina, você sabe que o Gonçalves vai casar?

— É caçoada dele, interrompeu vivamente o Gonçalves.

Dei ao diabo a minha indiscrição, e não falei mais nisso; nem ele. Cinco meses depois... A transição é rápida; mas não há meio de a fazer longa. Cinco meses depois, adoeceu Rufina, gravemente, e não resistiu oito dias; morreu de uma febre perniciosa. Coisa singular: — em vida, a nossa divergência moral trazia a frouxidão dos vínculos, que se sustinham principalmente da necessidade e do costume. A morte, com o seu grande poder espiritual, mudou tudo; Rufina apareceu-me como a esposa que desce do Líbano, e a divergência foi substituída pela total fusão dos seres. Peguei da imagem, que enchia a minha alma, e enchi com ela a vida, onde outrora ocupara tão pouco espaço e por tão pouco tempo. Era um desafio à má estrela; era levantar o edifício da fortuna em pura rocha indestrutível. Compreendam-me bem; tudo o que até então dependia do mundo exterior, era naturalmente precário: as telhas caíam com o abalo das redes, as sobrepelizes recusavam-se aos sacristães, os juramentos das viúvas fugiam com os dogmas dos amigos, as demandas vinham trôpegas ou iam-se de mergulho; enfim, as crianças nasciam mortas.

Mas a imagem de uma defunta era imortal. Com ela podia desafiar o olhar oblíquo do mau destino. A felicidade estava nas minhas mãos, presa, vibrando no ar as grandes asas de condor, ao passo que o caiporismo, semelhante a uma coruja, batia as suas na direção da noite e do silêncio...

Um dia, porém, convalescendo de uma febre, deu-me na cabeça inventariar uns objetos da finada e comecei por uma caixinha, que não fora aberta, desde que ela morreu, cinco meses antes. Achei uma multidão de coisas minúsculas, agulhas, linhas, entremeios, um dedal, uma tesoura, uma oração de São Cipriano, um rol de roupa, outras quinquilharias, e um maço de cartas, atado por uma fita azul. Deslacei a fita e abri as cartas: eram do Gonçalves... Meio-dia! Urge acabar; o moleque pode vir, e adeus. Ninguém imagina como o tempo corre nas circunstâncias em que estou; os minutos voam como se fossem impérios, e, o que é importante nesta ocasião, as folhas de papel vão com eles. Não conto os bilhetes brancos, os negócios abortados, as relações interrompidas; menos ainda outros acintes ínfimos da fortuna. Cansado e aborrecido, entendi que não podia achar a felicidade em parte nenhuma; fui além: acreditei que ela não existia na terra, e preparei-me desde ontem para o grande mergulho na eternidade. Hoje, almocei, fumei um charuto, e debrucei-me à janela. No fim de dez minutos, vi passar um homem bem trajado, fitando a miúdo os pés. Conhecia-o de vista; era uma vítima de grandes reveses, mas ia risonho, e contemplava os pés, digo mal, os sapatos. Estes eram novos, de verniz, muito bem talhados, e provavelmente cosidos a primor. Ele levantava os olhos para as janelas, para as pessoas, mas tornava-os aos sapatos, como por uma lei de atração, interior e superior à vontade. Ia alegre; via-se-lhe no rosto a expressão da bem-aventurança.

Evidentemente era feliz; e, talvez, não tivesse almoçado; talvez mesmo não levasse um vintém no bolso. Mas ia feliz, e contemplava as botas. A felicidade será um par de botas? Esse homem, tão esbofeteado pela vida, achou finalmente um riso da fortuna. Nada vale nada. Nenhuma preocupação deste século, nenhum problema social ou moral, nem as alegrias da geração que começa, nem as tristezas da que termina, miséria ou guerra de classes; crises da arte e da política, nada vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as, ele reluz com elas, ele calca com elas o chão de um globo que lhe pertence. Daí o orgulho das atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranqüilidade olímpica...

Sim, a felicidade é um par de botas. Não é outra a explicação do meu testamento. Os superficiais dirão que estou doido, que o delírio do suicida define a cláusula do testador; mas eu falo para os sapientes e para os malfadados. Nem colhe a objeção de que era melhor gastar comigo as botas, que lego aos outros; não, porque seria único. Distribuindo-as, faço um certo número de venturosos. Eia, caiporas! que a minha última vontade seja cumprida. Boa noite, e calçai-vos!

Fonte:
ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.