sexta-feira, 26 de março de 2010

João Felinto Neto (Antologia Poética)


CABAZ

Um cesto envernizado
no qual eu guardo os frutos do meu delírio.
Um livro anunciado
e nunca editado,
intitulado de cabaz.
Um sonho engavetado e esquecido.
A cada dia acrescido de uma página,
uma a uma,
em poemas despertos pela inspiração.
Depois de escritos,
adormecidos no escuro de uma gaveta,
iluminados pela luz da imaginação.
Quem sabe ao amanhecer
possa me surpreender,
e agradar-me o resultado.
As páginas que eram antes separadas,
estejam editadas
em um livro encapado.

AUTO-RETRATO

Sou de nascimento,
humano.
De substância,
eterno.
Na poesia,
anônimo.
No comportar-se,
lépido.
De índole,
excessivo.
De convivência,
sentimental.
Na multidão,
passivo.
No aspecto,
normal.
De opinião,
inverso.
De ambição,
um pouco.
Na devoção,
incrédulo.
No pensamento,
um louco.

GRAMATICAL

Só em letras imprimo minha alma.
Mais do que texto
sou contexto indecifrável.
Meu sinônimo é antônimo de si mesmo.
Um sujeito indefinido
que é objeto de um erro
gramatical.
Entre modos e tempos,
triste verbo
que ecoa na forma nominal.
Orações que são subordinadas
aos meus vícios de linguagem.
Um início em letras ordenadas
e um fim
numa expressão oral.

AFLORA UM POETA

Assim se fez um poeta.
Como talhe na madeira
esculpi minha poesia.
De uma maneira fria
infundi minha alma no papel.
Nas costas de um corcel
cavalguei por entre versos;
muitas vezes sem regresso,
o poema, me tornei.
De um sono despertei
enquanto escrevia,
da caneta então flua
as idéias que sonhei.
Quem sabe se eu errei?
Foram mais de trinta anos,
foram tantos desenganos
que poeta, me tornei.

ABSTRAÇÃO

Meu paradeiro,
não me pergunte,
é ermo.
Meu erro,
um desengano.
Meu abstrato querer
é verdadeiro.
O meu agora,
é quando.
Por ser em parte,
não sou inteiro.
O meu tinteiro
é preto e branco.
Apenas passo pelo primeiro,
mas sou o último plano.

IMAGINAÇÃO

A metade de mim
é sonho.
Do que sonho,
metade sou.
Eu não sou
metade do sonho
da metade
que não sonhou.

SOU EU

Estou eu no mundo
em um lugar em que ninguém me entende.
Movo os lábios e parece
que ninguém me escuta,
somente um louco que para mim sorri
parece entender o que eu digo.
Ao reconhecer que o único que me entende
é um louco,
aproximo-me um pouco,
maior é meu espanto
ao descobrir que o louco
agora em pranto
sou eu.

VIVO

Viver
é para mim
distanciar-me
dos que são como eu
distantes.
É não procurar ombro.
É simplesmente chorar
por alguns instantes,
por não ficar.
É querer então estar
em mim presente,
para ver em seus olhos
que não estou ausente
da eterna ilusão
de que vivo.
Viver
é para mim,
seu riso.

EU POETA

Eu, poeta, choro agora,
as lágrimas de outrora,
de hoje e de amanhã.

Eu, poeta, sou inteiro.
Sou último e primeiro
em minha poesia vã.

Eu, poeta, sou reverso.
Sou verso do anverso
de ilimitadas versões.

Eu, poeta, sou um homem.
Minhas ambições somem
quando perco as ilusões.

Eu, poeta, não existo.
Sou um ato fictício
de minha própria criação.

INGÊNITO

Seguir os passos
a um lugar perdido na distância;
entrar na dança
de um ritual de acasalamento;
sentir nas mãos
o instintivo dom
que vem de dentro;
ouvir o som
de vozes ecoadas;
e nas entonações
das poesias declamadas,
revelar-se poeta.

DIMENSIONAL

No meu olhar
está o meu desfecho.
Sendo eu meu próprio eixo,
não consigo me deter
no movimento circular
do ser.
Volto a me ver
numa rua sem fim,
numa curva enfim,
volto ao mesmo lugar.
Olho as paredes sólidas,
diviso uma janela,
vejo-me nela
numa visão secular
como figura temporal
traçada no esboço do anormal.
Sou assim,
em mim,
dimensional.

DOR DE CABEÇA

Não consigo decifrar-me no enigma da vida.
Desconheço a mim
no escuro sono inconsciente da noite.
Talvez meus sonhos
tentem revelar-me ao meu próprio eu.
Estou sempre questionando
se são minhas as verdades ou as mentiras.
Descobrir-me
é meu eterno problema,
é minha dor de cabeça.
Serei culpa de um mundo avesso
no qual devemos todos ser direitos.
Posso até estar do lado errado.
Mas qual seria o certo
se errado não houvesse?
Sou uma língua estranha.
Não consigo traduzir-me.

VERSÃO DE MIM

Falo de mim,
ao mesmo tempo
diante de mim,
eu me calo.
Meus olhos me vigiam com vagar,
e devagar,
a divagar sobre um princípio
chego ao meu fim.
Começo a me despir de mim,
sem embaraço,
falando que enfim
eu me pareço
com o que eu mesmo sou,
antagonicamente pessoal.

AMPLIDÃO

Meu rosto já não cabe em minhas mãos
por ser meu pranto
bem maior que minha face.
Eu sou em parte,
parte de mim
que em mim não cabe;
sou amplidão.
Ponho na mão
o mundo que nela não cabe.
Peço perdão
à parte que ainda cabe em mim,
por meu sorriso,
é por saber que nada sabe.

ATRAVÉS DOS OLHOS

Inquieto,
meu pensamento
movimenta-se por trás dos olhos fixos.
Compenetrado,
absorto em uma ampla sala,
guarda minhas recordações.
Volta
no piscar dos olhos castanhos claros
e percebe o mundo à sua volta,
desordenado
pela ordem natural do caos.
E torna-se real
no obscuro mundo das idéias,
a síntese de tudo
que sou.

APELOS

O que desejo,
acaba sempre em lágrimas.
Meus beijos,
em despedida.
Ainda não vejo
para minhas mágoas
uma saída.
Os meus apelos,
que o mundo não saiba.
Nunca deixei de amar
por um só dia.
Já que a voz
no tempo em mim se cala,
que minha dor
não dure a minha vida.

ILUSÃO

Não abdico de quem sou,
não por que sou,
mas por me acostumar a ser.
Esta é a forma que o mundo me ver,
não a maneira de saber quem sou.

Sou por extenso e rubricado.
Sou um grande número cadastrado
em um pequeno pedaço de papel.
Sou uma foto três por quatro
resguardada por um véu
de plástico.

Uma imagem revelada
do negativo de um sobrenome.
Uma figura desbotada
com o passar dos anos.

Sobre as linhas de minhas digitais,
rabisquei demais
meu nome.

Sendo assim,
tornei-me enfim,
a ilusão de acreditar
quem sou.

FRACOS, FORTES E LOUCOS

Os fracos se suportam
por serem fracos,
os fortes se sufocam
tentando superar
uns aos outros,
e os loucos
toleram a ambos.
Pois os loucos sabem
que na solidão
a saudade é companhia lúgubre,
as horas se intensificam,
e os amores se distanciam.
Sou um fraco na dor,
sufocar-me-ia sem amor,
sou um louco.

CORES

Foram pedaços de lápis
que pintaram minha vida.
Em preto,
em branco,
pintaram meu pranto.
Em vermelho,
minha ideologia.
Em verde,
o interesse pelo campo.
Em amarelo,
um sol que brilha.
Em azul,
um mundo em céu
com um arco-íris
de utopia.

Em cores vivas,
em cores mortas,
são minhas dores.

Não há borracha
de tempo
que apague
minhas cores.

EXPOSTO

Eu pedi
que meu sorriso
fosse exposto,
mesmo a contra-gosto,
no caderno de tristeza.

Que servissem à mesa
com o meu cardápio,
mesmo que meu gosto
fosse amargo.

Que meus lábios
fossem lidos
pelos ouvidos
que não me escutam.

E que tudo que pedi
me fosse negado.

INCOMPREENSÃO

Pensei encontrar uma brecha,
um buraco,
uma fresta
no lençol de estrelas,
e espiar para fora
dessa redoma de cor.
Rasgar o céu
como uma folha de papel
azul.
Rasgar o véu
para ver a forma
de seu corpo nu,
num branco virginal
de flor.
Iluminando caminhos,
hei-me facho de luz.
Na dor,
sacrificar-me-ei por nós.
Suas datas
são minhas lições de casa.
Suas falas
são meus verbos perdidos.
Na ausência do ser,
não sou.
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Fonte:
João Felinto Neto. Cabaz.

João Felinto Neto (1966)


No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. São seus pais Maria Dália Pinto, natural de Apodi e Francisco Felinto Neto, natural de Pombal.

Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975.

Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios.

Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho.

Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de Laboratório do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia.

Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991, ano em que se casa com Lucineide Régis Felinto. O primeiro filho do casal, João Vítor Regis Felinto, nasce em 1997.
Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.

Poesia:

Por minhas mãos (2003) – Fundação Vingt-um rosado (Coleção mossoroense)
Opalina (2004) - Fundação Vingt-un Rosado (Coleção mossoroense)
Reticências desfeitas (2006) – Litteris – Quártica editora
Olhos de guri (2006)- Infanto-juvenil – Editor/Autor
Alguns degraus (2007) – Editor/Autor
Poesia no lixo (2007) – Editor/Autor
Páginas de ontem (2007) – Editor/Autor
Cálice (2007) – Editor/Autor
Pax – vóbis (2007) – Editor/Autor
Megalíticos (2008) - Editor/Autor
Espinhos do deserto (2008) - Editor/Autor
Composições sem cifras (2008) - Editor/Autor
Árvore morte (2009) - Editor/Autor

Narrativa em verso:

O herege (2006) – Editor/Autor
A caveira & a rosa (2007) – Editor/Autor
Um pedaço de pangéia (2007) – Editor/Autor

Crônica:

Estranhas narrativas (2007) – Editor/Autor
Crônicas dispersas (2007) – Editor/Autor
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quinta-feira, 25 de março de 2010

Trova 132 - Nilo Aparecido Pinto (Caratinga/MG)

Bueno de Rivera (Antologia Poética)


A CABEÇA

O mágico equilíbrio
da cabeça no espaço!
Meus olhos me fitam,
se espraiam no corpo,
mas roupas, botões,
nos longos sapatos.
Neus olhos na febre
me buscam, não estou.
Mas vejo a cabeça
tão vaga, distante,
tão minha, tão próxima!
O universo em síntese
no pescoço-base.

Ai! como sofrem
os meus pensamentos!
O suor nas pálpebras
ou na testa infinita
de que fonte virá?
Da fonte das lágrimas?
Dança a cabeça,
agita-se em sonhos
mas cai desolada

nas mãos inocentes.
E cabeças há tantas
expostas ao luxo,
brinquedo de fígaro;
o pente nas ondas,
o mar de loções,
tesouras voando
como aves marinhas
nos claros espelhos.

Tão longe vivo,
tão distante vou,
que o resto é apenas
abstração... -
A gravata louca,
as meias de cores,
as solas macias
tão simples enfeites.
Meus olhos aflitos
me buscam, não estou.
Irmãos, eu vos digo,
Meu corpo não há.

Apenas a cabeça
como estranha lâmpada
na imensa torre
vela os tormentos.
Sinto a tragédia
do irmão do mundo.
Triste mensagem
chega, abafada
pelos gemidos
de alguém pedindo
pão e calor.

Cabeça inquieta,
mundo pequeno
em vão pousado
na paina quente.
Insônia amarga
que espera ansiosa
a luz tranqüila
da aurora próxima.

O beijo amoroso
da mãe ou da amiga
pergunta em silêncio.
A cabeça, no entanto,
não pode dizer.
Na sombra do quarto
acende-se em febre
no doce delírio
de um mundo melhor.

NOTURNO MINEIRO

Boa Viagem
dos velhos tempos de Minas.

0 alvo carregador
põe as lembranças no ombro,
recebe o abraço e a gorjeta.
0 chefe apita com força.
Não há lenços, há. camisas
rôtas, meninos e fraldas
acenando nos quintais.

As estrelas da vidraça
e a cara do itinerante
dançam nos óculos
do bacharel disponível.

Na luz morna do carro
a memória acende o olho.
Sinto a primeira viagem,
o trem do oeste, as vacas
descendo a serra, a fazenda
com gente amável no alpendre
e as lavadeiras no vale
como aves mansas pousadas
no córrego claro.

Congonhas do Campo. A cabeça
na janela espia o templo.
Os profetas do Aleijadinho
viajam na segunda classe
mas os museus não percebem.

A madrugada no túnel
acorda os heróis.
A tarde traz a fumaça do
mar. Um homem sozinho.
O mineiro pensa na vida
sentado no cais.

POEMA SIMPLES PARA O ÓRFÃO

Chora. A tua mãe levou nos olhos mortos
a tua madrugada.

Sentirás saudades do carinho perdido
e olharás com tristeza o crepúsculo
sobre o mundo vazio.

Tua mãe é tua infância,
não volta mais.

O MICROSCÓPIO

O olho no microscópio
vê o outro lado, é solene
sondando o indefinível.

Dramática a paciência
do olho através da lente,
buscando o mundo na lâmina.

A tosse espera a sentença,
o Ieito aguarda a resposta.
0 tísico pensa na morte.

O silencio é puro e o frio envolve
o laboratório.
Os frascos tremem de susto.

0 infinito dos germes
reflete no olho imenso
que pousa na objetiva.

0 avental se levanta.
Os dedos inconscientes
escrevem a palavra ríspida.

0 resultado terrível
entra nos óculos do medico
e ele diz: positivo.

0 doente tira o lenço.
Aperta a mulher e o filho,
chora no ombro da esposa.

Imagina a reclusão
no sanatório, a saudade
e o vento no quarto branco.

olha o papel: positivo.
Cresce a palavra com a tosse.
A febre queima a esperança.

0 microscopista, no entanto,
conta anedotas no bar.
Esta alheio e feliz.

Não sabe que o olho esquerdo
ditou a sentença e a morte.
Paga o café e caminha.

MANHÃ

O pão entre as flores de janela,
a vasilha de leite sob o orvalho.
As rosas e as crianças nuas
esperando o sol no alpendre.
Leio no jornal a frase mágica
"Glória aos que amanhecem !"

Galo do vizinho, a lua ainda
perdida no céu claro,
A água fresca no rosto

as idéias como espuma
Amanhece no meu espírito.
sinto as alegrias, os afetos
como corolas acesas.
A gravata como um símbolo.
As roupas leves conduzem
o meu corpo pelas ruas.
Vamos apagar o ódio
da face dos semelhantes.
Vamos rasgar a história.
Façamos de conta, irmãos,
que este dia tão puro
é o primeiro de mundo!

Olho o relógio e a folhinha,
A cabeça cai nas mãos.
Não adianta a alegria
amorosa da manha,
nem os eflúvios, os arroubos.
Amanhece no pássaro, na flor,
no trabalho das abelhas,
na pureza dos meninos,
mas cai a tarde nos ombros,
anoitece nos espíritos.
O homem acorda a nao sabe
que a vida espera na esquina.

O HOMEM DO MUNDO

Quando acordei, nao vi mais os tempos de meu pai
a face de minha mãe não falou de orações.
minha avó rezando na tempestade

e o vulto do Monsenhor entre as rosas da praça.
As perdidas casuarinas no crepúsculo vago,
lembrança de mortos no soluço do vento.

Onde estas, vitrola do bilhar deserto?
Onde arquivaste os discursos de quatorze?
Agora, ouço apenas o clamor dos vivos
unindo os continentes.

Não sou mais o homem do interior, sou o homem do mundo.
Hoje, o meu coração é um alfinete no mapa,
aceso também na hora solidária.

Adeus, alegrias inúteis! A dor bateu às nossas portas.
Temos os olhos enxutos, estamos conscientes.

A DISCOTECA

0 passado surge nos discos,
a voz profunda ressuscita.
Há cavatinas gemendo,
melodias brancas, soluços
do violino em conserva.

A mão nervosa, a batuta
dança no estúdio. Silencio.
A pauta sugere as notas.

Schubert morrendo tísico,
Patápio nas serenatas.
Caruso da um suspiro
no fundo da cera mágica.

A agulha fere o mistério.
Um beijo de lua desce.

Catulo abraça Beethoven
e o luar a doce a limpo
na modinha e na sonata.

Contralto em gestos macios,
sopramos em amplos lamentos.
A tristeza envolve o rosto
do tenor com a flor no peito.

Cansado das vozes mortal
da minha vitrola dócil,
abro a janela, recebo
o forte rumor da noite.
Pregões, gritos na praça,
casal lutando no alpendre
crianças chamando a mãe

O céu grava em cera virgem
o choro vivo do mundo.
________

Fonte:
J.G . de Araujo Jorge. Antologia da Nova Poesia Brasileira. 1. ed. 1948.
- Montagem da imagem = José Feldman

Bueno de Rivera (1911- 1982)


Odorico Bueno de Rivera Filho, mais conhecido por Bueno de Rivera (3 de abril de 1911, Santo Antônio do Monte, Minas Gerais — 25 de junho de 1982, Belo Horizonte) foi um radialista e poeta surrealista brasileiro

Tendo freqüentado apenas o primário, revelou-se um dos melhores de todo o Modernismo brasileiro. Em busca de futuro foi ainda moço para Belo Horizonte, onde aprendeu tipografia e trabalhou no ramo durante vários anos. Mais tarde foi microscopista no serviço de saúde pública e aí se motivou para escrever o marcante poema "O Microscópio".

Bueno de Rivera foi também um dos mais famosos speakers de Minas,tendo atuado longamente na histórica Rádio Mineira. Sabe-se que, ouvindo sua voz no rádio, dona Ângela se enamorara do poeta, antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente, e viria a ser depois, para sempre, a sua companheira.

Pela editora José Olympio, publicou Mundo Submerso (1944) e Luz do Pântano (1948); pela Imprensa Oficial de Minas Gerais publicou - mais de 20 anos depois - Pasto de Pedra (1971).

Bueno de Rivera viveu 71 anos. Em 25/06/1982 veio a falecer, deixando viúva dona Ângela, os filhos Isaac e Clara, oito netos e sete irmãos.

Fontes:
- J. G. de Araujo Jorge. Antologia da Nova Poesia Brasileira. 1a ed. 1948.
- Wikipedia

terça-feira, 23 de março de 2010

Trova 131 - Arlene Lima (Maringá/PR)

Rita Elisa Seda (Garimpagem Literária)



Hoje peguei uma linda caixa que normalmente só abro uma vez por mês, ou melhor... algumas vezes por ano (poucas). Ela é toda de madeira texturizada em ocre e na tampa há uma roseta de gesso. Coloquei-a devagar em cima da cama, removi a tampa e vislumbrei os envelopes, de todas as cores, vários tamanhos e selos diversos. Uma alegria. Foi como puxar um fio condutor que nos leva direto ao passado. Tenho uma amiga que diz que sou muito organizada... olhando para aquela montoeira de cartas eliminei essa idéia – não sou assim, tão organizada! Os envelopes deveriam, pelo menos, estarem empilhados cronologicamente. Ainda bem que estavam fora de tempo e num espaço restrito.

Meu Deus! quantas lembranças içadas, várias sensações relembradas, muitas tristezas choradas, inúmeras alegrias conquistadas e o melhor foi reconhecer a evolução das amizades. Li algumas, escondi outras, mas não rasguei alguma. Sei que tudo tem seu momento e que um dia vou querer reler as que deixei de lado.
Foi quando já conseguia ver o fundo da caixa, tirando um enorme envelope pardo, vi a famigerada, a mal-amada, a terrorista das letras, a devoradora de idéias: a senhora dona traça! Lembrei-me do primeiro conselho que recebi quando comecei a escrever – os dois maiores inimigos de uma escritora são: sua morte e a traça. Sendo que a traça leva alguns anos para devorar um livro, mas o viúvo acaba com tudo em 1 minuto. Voltemos à traça! Ela estava gordinha, escura, serelepe se escondeu embaixo da ultima carta. Fui lá, sem dó nem piedade, e zás, esmaguei-a. Adeus corpinho movido por celulose e tinta. Olhei para o lado, encostada na parede, sob a janela, minha mala goiana. E, se nela também estivessem traças? Ainda pior... nos meus baús?! Afinal são vários espalhados em toda casa e dentro deles vários livros, vários é pouco... muitos livros. Verdadeiras preciosidades.

Nessa ciranda onde uma coisa puxa a outra, vieram algumas soluções, coisas simples para serem colocadas nas malas, caixas e baús: laranja sachê espetada de cravos da índia, velas de citronela (apagadas, é claro!), spray mata tudo (apelação) e o golpe final – naftalina. Quem é que agüenta um cheiro desse? Eu, não! mas sei que acaba com a traça, tão sensível, tão culta, com tanta informação em seu corpo, tanta que em sua veia não corre sangue, correm letras. Se duvida, mate uma traça para ver, ou melhor – ler. Decidi apelar, os sprays atuais são ecologicamente corretos; a não ser pelo fato de matar insetos. Chiiiiiiiiiiiiii, por todo canto. E, para que eu não morresse, também, precisei sair de casa.

Aproveitei para ficar no banco Roma, dando nó na ponta dessa ciranda. Como foi que Fernando Pessoa conseguiu eliminar as traças de seu baú? Sim... em Portugal também há traças. A Sônia Gabriel tem uma enorme mala Sheherazade onde podemos ficar mil e uma noites lendo seus contos. Será que por lá apareceu alguma traça? Melhor daqui por diante praticar o que era do feitio de Cora Coralina, a melhor maneira de se guardar livros é... colocando-os na geladeira! Isso mesmo, sempre, a vida toda, a geladeira da poeta era repleta de livros. Uma bela alternativa, economizo luz e tenho uma biblioteca na cozinha. Só sei que a hora que eu puder retornar à minha casa, quando lá o ar estiver respirável novamente, vou fazer algumas mudanças significativas... para as traças!

Fonte:
http://www.entrementes.com.br

Milton T. Mendonça (O Retrato de Ludmila)


Ao entrar no ateliê para mais uma seção de pintura, hoje pela manhã, a placa com os dizeres: livrai-me senhor dos abestados e dos atoleimados, que peguei emprestado de Hilda Hilst (Os dizeres e não a placa, infelizmente não a conheci pessoalmente), que coloco em cima da porta para espantar os espíritos de porco, olhou-me alerta esperando me pegar desprevenido. Meu sorriso foi inevitável. Imaginei-a sentada na sala, encurvada sobre a mesa de tampo redondo e brilhante, escrevendo seus textos, a lucidez estalando, vibrando a sua volta como uma descarga elétrica, fazendo saltar todos aqueles que raso na suas intenções entravam desavisados em seu horizonte. Meu sorriso se estendeu, senti ímpeto de gargalhar. Por algum motivo, quando percebo aquela placa, que há anos está no mesmo lugar, o dia fica diferente, é como se algo bom fosse acontecer. O dia começara bem.

Alegre voltei meus olhos para a tela sobre o cavalete. Fazem mais de duas semanas que o retrato está sendo elaborado, pensei que terminaria em dez dias como os outros, mas não deu, este é diferente. Faz parte da série de convidadas que estou pintando. É o segundo da série. Convidei-as por serem especiais, são algumas das mulheres que se preocupam com a cultura joséense, todas se esforçam para, de uma maneira ou de outra, deixar o povo menos atoleimado e isso para mim é uma causa muito nobre.

Parei em frente ao cavalete e aqueles olhos verdes, enormes, irradiando inteligência me olharam inquiridores. Faltam apenas algumas pinceladas para terminar. Essa é a parte mais difícil. Como já sei o que fazer, termino rapidamente.

A arte consiste em saber finalizar. O propósito caminha até o ponto da concretização, não podemos ultrapassa-lo ou ele se perde caindo no caos. Assino, está pronto. Não posso mais acrescentar nada. Esta é uma regra que para o bem do meu equilíbrio mental não quebro em hipótese alguma. É a minha gravidade.

Coloquei meus óculos para enxergar de longe e analisei o quadro com cuidado. Fiquei feliz por ter assinado assim que me sento, outra alternativa para construir a mão surge espontânea em minha imaginação, mas não sinto vontade de pegar o pincel. A força descomunal que me fez pintar aquele retrato extinguiu-se. Sinto-me tranqüilo e espantado por ter conseguido terminar. É uma sensação extremamente agradável apesar de contraditórias.

A luz da lanterna que o interlocutor joga sobre o rosto da sacerdotisa que me olha da tela, se espalha para todos os lados chocando-se e refletindo, voltando a chocar-se até criar a imagem que estou vendo, ela é única exatamente por só poder ser vista por mim. Sabemos que a luz só é percebida quando incide diretamente sobre a pupila, somente eu posso vê-la, portanto, preciso ser honesto na hora de retrata-la. Calculo os possíveis ângulos da luz rapidamente, poderia ter colocado mais sombra ali, mais luz acolá, percebo incomodado, mas não sinto vontade de me levantar, está terminado. No próximo acrescento, prometo cansado, sei que este é apenas um estudo.

Quando recebi a foto que ela me mandou, fiquei preocupado, era um close. Como colocar aquele rosto em uma tela cinqüenta por setenta? – perguntei-me ansioso. A sacerdotisa pagã, meio Celta, meio cigana veio a minha mente quase imediatamente. A Ludmila é assim: uma sacerdotisa do século XII, obrigada a viver no século XXI por força do tempo que não para.

Não gosto de fazer retrato baseado em fotografia. A fotografia é uma arte por si só, essa tal de releitura é um negócio que ainda não digeri direito. Sempre imagino estar em frente ao modelo – claro que tem exceção – o primeiro retrato desta série, o da Sônia Gabriel, por exemplo, copiei descaradamente da foto. O fotógrafo, apesar de ter recém entrado na adolescência, conseguiu captar a luz ideal, um verdadeiro olhar de gênio.

Pretendo pintar nove telas, ou quase isso, minhas convidadas são arredias e, como demorei em criar coragem para expor minha arte ao público, sou um senhor desconhecido e isto espanta os colaboradores. Infelizmente o ser humano gosta mesmo é de acompanhar a opinião da maioria. Faz parte da genética acho. Lembranças de aventuras imemoriais. Deu certo com um é provável que de certo com muitos – algo assim.

A calma invade meu corpo e saboreio a visão do retrato por um longo tempo. Será que ela vai gostar? – pergunto-me preocupado mas logo afasto a duvida. Ela me deu carta branca, não poderá reclamar. Mas não creio que emitirá sua opinião, se contentará com um franzir de nariz ou um comentário sarcástico sobre a minha idealização, não espero mais que isso. Estou satisfeito.

Levanto-me e vou a procura da máquina fotográfica. Ela será a primeira a receber a imagem. Uma pequena deferência pelo imenso prazer que me proporcionou.

Fonte:
http://www.entrementes.com.br/

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Decisão)



Quero curtir o tempo que me resta,
Deixar de lado a dor que eu senti,
Trazer no peito um coração em festa,
Recuperar momentos que perdi.

Jogar no lixo o resto da saudade,
Que por maldade se apossou de mim,
Fazer as pazes com a liberdade
E não lembrar que tudo tem seu fim.

Quero cantar um canto encantado,
Amar o mundo como nunca amei;
Quero esquecer o tempo já passado
E resgatar a vida que sonhei.

Quero da brisa o toque de frescor,
Sentir no peito toda esperança,
Reconquistar todo aquele amor
Que ainda guardo comigo na lembrança.
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Fonte:
Colaboração do Autor

Branca Tirollo (Não Brinque com o Fogo)


Notei a porta entreaberta. Não era o vento a tocá-la. O ar estava parado, e as folhas do coqueiro, silenciosa. Levantei-me do sofá e caminhei até a varanda. Então, notei uma luz bem pequenina por trás das montanhas. Não havia estrelas no céu, nem a lua estava exposta. Havia algumas nuvens escuras.

A luz me atraia cada vez mais, e lentamente caminhando, cruzei a avenida.

Do outro lado havia uma arvore pequena e enquanto voltei meus olhos para ela, a pequenina luz desapareceu. De repente tudo escureceu e na negridão da noite eu me senti perdida. Pensava estar caminhando de volta, mas sentia que o caminho de volta ficava mais distante.

Caminhei, caminhei, e quando dei por conta, estava à beira de um grande rio. Quase não enxergava, mas ouvia nitidamente o som das águas que bravas desciam para o mar.

Meus pés estavam machucados. Não tinha colocado os sapatos quando fui atraída pela porta se abrindo.

Eu não reconhecia o rio e tinha certeza de que não estava em minha cidade, pois lá não havia nenhum rio grande.

Mas eu lembrei de um fato muito importante: eu tinha deixado alguma coisa no fogão, acho que estava cozinhando algo. Só não me lembrava o que era.

Cada minuto que passava, sentia que a água daquele rio misterioso subia com muita força. Já estavam molhados, os meus pés. Ainda estava escuro e eu não enxergava nada.

De repente ouço um estouro: PUF!

Nossa! Eu tinha adormecido no sofá que fica na copa, observando o gás aceso.

Lá tinha se ido a minha panela de pressão. Hilariante! Precisei gastar muita água para limpar a sujeira, mas foi bem melhor do que estar perdida num lugar qualquer.

Fonte:
Colaboração da autora.