sábado, 26 de junho de 2010

Amaury Nicolini (Poemas Avulsos)


O FIM DO VERSO

Eu sei que, no futuro, estas poesias
ficarão abandonadas numa estante,
retratos do passado, de outros dias
de quem a vida fez sofrer bastante.

Serão somente papéis amarelados,
histórias a que o tempo trouxe fim,
talvez por consideração guardados
de uma maneira displicente assim.

A ninguém vai importar o conteúdo,
saber quem um dia amou alguém
ou o desfecho que teve essa paixão.

Será nada o que um dia já foi tudo,
e os versos que pensavam ir além
só estarão vivos num velho coração.
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ARQUIVO DO CORAÇÃO

O meu arquivo é bem organizado,
dividido por assuntos, por setores.
Por exemplo: esta pasta é do passado,
e esta outra aqui, dos meus amores.

Aqui eu guardo os sonhos de criança,
mais adiante as ilusões perdidas;
esta gaveta é cheia de esperança
e na de cima sobram despedidas.

Esta organização, que eu admiro
não impede, no entanto, que o arquivo
tenha um papel que a mim é negativo.

Não importa qual a pasta que retiro
porque em todas, ou seja, de A a Z,
tem sempre uma saudade de você.
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O REFÚGIO DO SONHO

Quando o sono vencer a ansiedade,
adormece também os teus segredos
e verás como se sonha de verdade
ao fechares os olhos aos teus medos.

Quando o sono chegar devagarinho,
deixa que voe a mente assim liberta,
e pensamentos vaguem no caminho
sem a angústia que te prende alerta.

Quando o sono, enfim, for benfazejo
e servir como intervalo para as dores
que te ferem e te tornam amargurado,

da vontade de sonhar faz teu desejo
porque sonhando lembrarás amores
que foram os teus sonhos no passado.
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O NASCER DO LIVRO

Quando o livro vai tomando forma,
a qualquer hora, e do próprio punho,
o escritor debruça-se e transforma
muitas de suas idéias no rascunho.

Às vezes são até os personagens
que mudam, se revezam em vai e vem,
buscando o equilíbrio das imagens
que ao correr da história lhes convem.

É uma verdadeira arquitetura,
que torne interessante a leitura
e momentos de lazer proporcione.

E para isso o escritor não pára;
lapida a pedra até torná-la rara
porque é um filho que lhe leva o nome.
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SEM PALAVRAS

Há muito tempo eu não lhe encontrava,
apesar de ainda manter minha rotina
indo aos lugares que a gente frequentava
sempre esperando a entrada repentina

daquela que marcou tanto a minha vida
qual tatuagem indelével no meu peito,
tatuagem que eu queria removida
mas que, pelo que parece, não tem jeito.

Só que agora você entrou aqui na sala
e à sua simples visão minha alma cala
me reduzindo a um nada, um moribundo.

E eu chego então à triste conclusão
de que todas as fugas foram em vão:
eu só vou lhe esquecer no fim do mundo.

Fonte:
Recanto de Letras.

Amaury Nicolini


Amaury Nicolini, carioca, 69 anos. Desde sua juventude, como aluno do Colégio Militar, destacava-se no aprendizado e utilização do idioma, sendo eleito presidente da Sociedade Literária por 3 gestões e publicando seus primeiros trabalhos poéticos na revista do Colégio Militar e em jornais da época.

Concluindo o curso e não desejando seguir a carreira militar, iniciou-se no que seria a sua verdadeira vocação, como redator publicitário e criador de comerciais para tv. Os anos seguintes foram uma escalada de trabalhos escolhidos pela crítica especializada e pelo público como os melhores de cada período.

Sem abandonar a redação, passou a ser Diretor de Criação em algumas das principais agências de propaganda do eixo Rio - São Paulo - Belo Horizonte. Especializou-se em varejo, e criou a propaganda de redes nacionais como Mesbla, Bemoreira, Ducal, Casa Masson, Brastel e outras.
Sua especialização em varejo levou a uma variante profissional.

Foi contratado como Gerente de Desenvolvimento Técnico da Confederação Nacional dos Lojistas, passando a coordenar simpósios, seminários e convenções em todos os estados brasileiros, além de editar a revista Diretor Lojista, voltada para o empresário do comércio. Foi alguns anos depois contratado como Diretor Executivo do Clube de Diretores Lojistas de Fortaleza, permanecendo aquela capital nordestina por 3 anos.

De volta ao Rio, e após temporada como Coordenador de Marketing da TV Manchete, criou sua própria empresa de propaganda, que durante 10 anos foi extremamente atuante na praça do Rio de Janeiro.

Após retirar-se do mercado, passou a prestar serviços eventuais de planejamento e redação, aproveitando o tempo livre para desenvolver sua produção literária, que hoje já alcança um total de 29 livros publicados, abrangendo poesia, prosa e temas técnicos.

Conquistou vários prêmios em concursos literários, participou de diversas antologias e escreve artigos para revistas especializadas em comércio, como O Empresário Lojista.

Ocupa uma cadeira na Academia Virtual Brasileira de Letras e tem posse prevista em agosto/2010 como membro vitalício da Academia de Letras do Brasil.

Por sua contribuição à cultura, foi distinguido com a Cruz de Cavaleiro da Ordem do Mérito do Instituto dos Docentes do Magistério Militar.

Entre seus livros, incluem-se: Salada de Poesia / Um Verso Viajante / Poesia Mínima / Quinquilharias / Velhos Carnavais / Passagem Secreta / Céus e Terras / Dicotomia / Vale o Escrito / Pela Janela / Os Astros Não Mentem / Tempus Fugit / Há Muito Tempo... e outros.

Fonte:
Recanto das Letras

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Trova 156 - Apollo Taborda França (Curitiba/PR)

Fonte:
Montagem realizada sobre imagem do site Saci Perere.

Lucilene Machado (Coreografia Invisível)


Não sei o que pensam os pássaros quando, nas tardes de sábado, dormem sobre os fios de alta tensão. Os pássaros têm sábados frustrados. Todas as coisas que podiam ter sido, não foram. Também não sei o que pensam os homens enquanto dormem os pássaros pelos sábados adentro. Sei que os homens têm insônia e fecham janelas. Instituem a escuridão, apagam as palavras e desintegram-se em longos silêncios. As coisas que podiam ter sido? Não têm importância. Em qualquer tempo há fios de alta tensão e pernas de mulheres com sangue fervendo. Tantas que chegam a ser ignoradas. Despojos do amor? A desproporção criou homens-deuses vulgares e divinizados. Criou profissionais especialistas em argumentação. Braços em torno do pescoço, bocas de estátuas coladas e música para preencher os vazios. Mas o objeto deste texto é o amor. O sujeito também. Amor em construção. Quatro paredes lentas e penosas do lado de cá do horizonte onde pretendo improvisar ninhos e desprender pássaros do sonho.

Mas o tempo urge, razão pela qual me deito, mesmo, à terra. Todas as coisas se revelam e se negam continuamente. Finjo não perceber. Repouso minha cabeça sobre o seio da ignorância. A metafísica rodeia os meus limites. Há coisas se encontrando também fora de nós. A ficção quer escrever minha história. Que imagem faria? Oh! vida, esse tempo desperdiçado dentro do olhar. Minha única tristeza não é triste. Incongruência? Limpe os olhos que este texto tem a loucura da forma. Plasticidade e linguagem. Os literatos, os eruditos e eu, e nada de concreto. Que sabemos sobre os pássaros frustrados sobre o fio de alta tensão? Somos carentes de amor, sexo e sonhos. Somos carentes de sabedoria. Um dia Deus apareceu homem entre os homens e o crucificaram. Daí meu medo de existir. Daí esse silêncio áspero de Sábado. Meus conflitos me apequena. Gritos surdos por dentro. Somente as palavras são capazes de secar as lágrimas. Palavras e dedos. Dedos escalavrados pelo tempo percorrendo traços e linhas do meu rosto. Doce ternura para quem partiu todos os espelhos e já não mais se reconhece. Eu que tenho em mim o movimento dos outros, o conhecimento dos outros, o idioma dos outros, a reação dos outros... eu sulcada pelos outros e estrangulada pelas minhas próprias mãos. Só o amor me salva. Só o amor produz essa lentidão sagrada de observar pássaros cheio de vôos. O amor sabe de cor os vôos e os movimentos. Conhece o lugar, o istmo onde os homens choram. Os homens são belos, sobretudo, quando choram. Homem-mar numa ilha de chuva. Uma imagem onde me completo. Não totalmente. Uma mulher satisfeita traz em si um ponto final. Eu tenho vocação para reticências e excessos. Amanheço e todas as bocas se abrem. Famigerada fome de idealismo. Não nos basta a vida?

O pássaro olha com todos os olhos mas nada avista. Tem os sentidos esquecidos. Esqueceu-se de quem era, de como era... só sabe cantar, cantar. Se respirasse uma idéia, tornar-se-ia gente com todo niilismo inerente. Gente que nega qualquer coisa a qualquer hora. Que nega a palavra, a raça, as idéias.. gente que nega a cruz, a história, a colonização... gente que ignora as tardes de sábado quando discretamente um pássaro voa estabelecendo ligações entre as coisas visíveis.

Fontes:
Academia Sul-Mato-Grossense de Letras

Antonio Augusto de Assis (Tábua de Trovas)


1.
Sorria, amigo, sorria!
Pois, neste tempo de tédio,
qualquer sinal de alegria
é sempre um santo remédio!
2.
Sorriso não paga imposto;
esbanja, portanto, o teu.
Sorrindo com graça e gosto,
acendes também o meu!
3.
Irmanemos nossas vidas
em comunhão generosa,
tal como vivem unidas
as pétalas de uma rosa!
4.
Sonho um mundo redimido,
que, movido a coração,
lance flechas de Cupido,
não petardos de canhão!
5.
Eu tenho fé nas pessoas,
em todas, sem exceção,
que todas elas são boas,
quando lhes damos a mão!
06.
De quantas bênçãos se tecem
as vidas fortes, sofridas,
que de si mesmas se esquecem
para cuidar de outras vidas!
07.
Criado por Deus, o rio
nasce limpo e, como nós,
traz consigo o desafio
de limpo chegar à foz.
08.
Jardineiro, que me encantas,
que bonito é o teu labor!
Tens o dom de com mãos santas
do esterco extrair a flor!
09.
Bem-te-vi que bem me vês,
bem-visto sejas também,
hoje e sempre e toda vez
que bem me vires… Amém!
10.
Eu sei por que o passarinho
canta gostoso e se inflama:
é que ele tem no seu ninho
uma família que o ama!
11.
Valente, o verde resiste
à foice, ao fogo, ao trator.
– É a vida que, dedo em riste,
enfrenta o seu matador!
12.
Quem ama não mata a mata;
quem ama planta, recria.
Quem ama protege e acata
o verde, a vida, a alegria!
13.
Dói muito ver um canário
cantando humilhado e triste
em troca do vil salário
de um punhadinho de alpiste!
14.
Treme o mundo e se consome
ao som de um terrível brado:
– o grito que sai com fome
da boca do injustiçado!
15
Jogado no mundo, ao léu,
rezava o orfãozinho assim:
– Cuida bem, Papai do Céu,
dos que não cuidam de mim!
16.
Matam crianças na rua,
hoje ainda, que que é isto?
– É que Herodes continua
caçando o Menino-Cristo!
17.
“Bem-vinda à vida, criança!”,
diz o parteiro sorrindo.
E a frase é um hino à esperança,
no seu momento mais lindo!
18.
É mais que um beijo, é uma prece,
aquele beijo miudinho
com que a mãe afaga e aquece
os seus filhotes no ninho!
19.
Ouvi um menino uma vez
mandar aos pais um recado:
– Eu sou o amor de vocês
que se fez carne… Obrigado!
20.
Cuide bem do seu bebê;
forme-o forte, sábio e puro.
Ele é a porção de você
que vai viver no futuro!
21.
Brincam na praça os pequenos:
castelos, canções, corrida…
São seus primeiros acenos
aos grandes sonhos da vida!
22.
Nas costas, leva a criança
seus livros numa sacola;
nos olhos, leva a esperança
como colega de escola!
23.
O agricultor que semeia
o arroz, o milho, o feijão
trabalha com Deus à meia
na Obra da Criação.
24.
O sol engravida a chuva,
e a terra se faz seu ninho;
no ninho se faz a uva,
e a uva desfaz-se em vinho!
25.
O fruto é um santo produto
do mais generoso amor.
Por isso é que antes de fruto
quis Deus que ele fosse flor.
26.
Numa harmonia perfeita,
completam-se o fruto e a flor:
ele alimenta, ela enfeita;
ele dá força, ela o amor!
27.
Deus fez a Terra… e, ao fazê-la,
deu-lhe o toque comovente:
fez o céu para envolvê-la
num pacote de presente!
28.
Belo sonho o que aproxima
estrelas e pirilampos…
– Elas são eles lá em cima;
eles são elas nos campos!
29.
Mesmo soltas e espalhadas,
as pétalas são formosas;
porém somente abraçadas
é que elas se tornam rosas!
30.
Ó Deus, que nos deste a flor,
e as crianças e as estrelas,
dá-nos agora, Senhor,
a graça de merecê-las!
31.
De dia caleja a palma
o irmão que cultiva o chão.
De noite alivia a alma
nas cordas de um violão!
32.
A vida jamais se encerra…
e é bom sermos imortais.
– Amar você só na Terra
seria pouco demais!
33.
– Quantas águas, canoeiro,
o senhor já canoou?…
– Talvez menos, seresteiro,
que as que o senhor já chorou!
34.
As almas, se generosas,
percorrem árduos caminhos…
Só no céu elas e as rosas
ficam livres dos espinhos!
35.
É quando a ofensa mais dói
que o perdão tem mais encanto:
– nele há a nobreza do herói
e a fortaleza do santo!
36.
Feliz o idoso que, esperto,
se ampara nesta verdade:
quanto mais velho, mais perto
das bênçãos da eternidade!
37.
Trate o velho com respeito;
dê-lhe o amor que possa dar.
Mas não lhe roube o direito
de a si mesmo governar!
38.
Todo idoso é um professor;
curvo-me e beijo-lhe a mão.
No mínimo, ensina amor,
hoje máxima lição!
39.
Certeza só têm os rios
sobre aonde vão chegar…
Por mais que sofram desvios,
seu destino é sempre o mar!
40.
Ismo, ismo, ismo, ismo…
e o medo está sempre em alta…
– Experimentem lirismo,
que talvez seja o que falta!
41.
O lírio, a lira, o lirismo;
o amor, a festa, a canção…
Que pena que o consumismo
transforma tudo em cifrão!
42.
Anoitece… Bela e nua,
a rosa põe-se a orvalhar-se…
– Um raiozinho de lua
virá com ela deitar-se!
43.
Astronauta, não destrua
meu direito de sonhar…
Deite e role sobre a Lua,
porém me deixe o luar!
44.
Tem muito mais graça a vida
quando a gente tem com quem
repartir bem repartida
a graça que a vida tem!
45.
De barro se faz o homem,
e de luz principalmente.
O barro, os anos consomem;
a luz eterniza a gente!
46.
Na porta da eternidade,
documento não tem vez.
– O cartão de identidade
é o bem que em vida se fez!
47.
O livro mudou o enredo
da história da humanidade:
– Antes dele, a treva e o medo;
depois dele a liberdade.
48.
Na biblioteca há mil sábios
a nosso inteiro dispor.
– Sem sequer abrir os lábios,
cada livro é um professor!
49.
Vai, riozinho, sem pressa…
lembra ao mar, sem raiva ou mágoa,
que ele é grande, mas começa
num modesto olhinho d’água!
50.
Acaso fizeste a Lua?
Acaso fizeste a rosa?
Então que ciência é a tua,
tão solene e presunçosa…
51.
Milhões e milhões de estrelas…
Que utilidade terão?
– Só sei, meu irmão, que ao vê-las
sinto Deus no coração!
52.
Olhem a rosa os que ainda
costumam dizer-se ateus.
– Ela é a resposta mais linda
quanto à existência de Deus!
53.
Quem tem amigos leais
tem muito o que agradecer:
bons amigos valem mais
que o mais que se possa ter.
54.
Coragem de gente grande
é aquela em que se distingue
alguém assim como Gandhi,
São Francisco, Luther King!
55.
Ave-Maria, uma prece
tão gostosa de rezar,
que às vezes mais me parece
cantiguinha de ninar!
56.
Ouço ainda, ao longe, o canto
de um velho carro de boi…
– Lembrança de um tempo e tanto,
que há tanto tempo se foi!
57.
Vestem-se as águas de prata,
saltam no espaço vazio.
Findo o show da catarata,
sereno refaz-se o rio…
58.
Olha lá o ipê florindo,
ele sozinho, na praça…
Florindo, lindo, se rindo
para a cidade que passa!
59.
Leves, ao longe, ora em bando,
ora dispersas, esparsas,
parecem anjos brincando
de lenços brancos – as garças!
60.
Curvada ao peso da idade,
a vovó, serena e bela,
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela…
61.
Ah, meu rio, de repente,
o que foi feito de nós?
Ficou tão longe a nascente…
vemos tão próxima a foz!
62.
Como é bom saber que o filho
vida afora alegre vai,
dando forma, força e brilho
aos sonhos do velho pai!
63.
A bênção, queridos pais,
que às vezes sois mães também.
Em nome de Deus cuidais
dos filhos que d’Ele vêm!
64.
Quanto mais rápido passa
o tempo a mim concedido,
mais grato eu sou pela graça
de cada instante vivido!
65.
Vem, vem, onda bela, vem
nossas lágrimas lavar…
Leva-as todas, lava-as bem,
faz delas um novo mar!
66.
Em resposta à ofensa e à intriga,
ensina o amor: “Faça o bem!”
– O amor é sábio: não briga,
perdoa cem vezes cem!
67.
Num lugar pequenininho,
fez o amor uma capela.
Veio a fé e fez um ninho
de esperanças dentro dela!
68.
Se aos heróis e aos grandes sábios
devemos tão bela herança,
muito mais a quem nos lábios
traz o canto da esperança!
69.
O grande tenor se cala
ante o pássaro silvestre.
– É o discípulo de gala
querendo escutar o mestre!
70.
Quantas bênçãos traz a chuva
quando rega a plantação:
benze o trigo, benze a uva,
benze a vida em cada grão!
71.
Importa pouco a mobília,
importa pouco a fachada…
O amor que envolve a família
é só o que importa, e mais nada!
72.
Não “Pai meu”; “Pai nosso” eu digo,
e ao próximo estendo a mão.
Lembro assim que, mais que amigo,
o próximo é amigo e irmão!
73.
Morre o sábio… enorme bem
perde o mundo em tal momento.
O que ele tinha, herda alguém;
não no entanto o seu talento!
74.
Palavras produzem fartas
e tão belas construções:
com elas fez Paulo as Cartas,
fez os seus versos Camões!
75.
A palavra acalma e instiga;
a palavra adoça e inflama.
– Com ela é que a gente briga;
com ela é que a gente ama!
76.
Há de chegar o momento
da correção dos papéis:
mais valor terá o talento
do que as pedras dos anéis!
77.
Trabalhas tanto, formiga,
enquanto, ó cigarra, cantas.
No entanto, basta de intriga:
– são duas tarefas santas!
78.
Se alguém se torna importante,
por certo alguém o ajudou.
Mesmo o Amazonas, gigante,
de afluentes precisou!
79.
Ninguém se julgue o primeiro
a fazer seja o que for.
Bem antes do jardineiro,
já havia no mundo a flor!
80.
Hoje é simples ir à Lua,
fica ali… basta um voozinho…
Proeza é cruzar a rua
para abraçar o vizinho!
81.
Cidadania é civismo,
sobretudo é comunhão;
é ajuda mútua, é altruísmo,
partilha justa do pão.
82.
Grande mesmo é quem descobre
que ser grande é ser alguém
que abre espaço para o pobre
tornar-se grande também.
83.
Que alegre alívio provoca,
na alma e no coração,
o abraço que a gente troca
numa troca de perdão!
84.
Um vaga-lume, isolado,
é só uma pobre luzinha;
no entanto, aos outros somado,
clareia a roça inteirinha!
85.
Deus não vem na grande nave;
Deus não vem no furacão.
Deus vem qual brisa suave,
e entra em nosso coração!
86.
Terno, amigo e generoso,
quis Deus se configurar
no abraço do pai saudoso
no filho que volta ao lar!
87.
Deus não põe ponto final
na biografia da gente.
– Quer nossa alma, imortal,
junto à d’Ele, eternamente!
88.
A vida no mundo é um treino,
a etapa em que o Treinador
nos prepara para o reino
definitivo do amor!
90.
Quando criança eu queria
ser piloto de avião…
Fiz-me poeta, e hoje em dia
meus vôos bem mais alto vão!
90.
Olhe os poetas e as aves…
Veja que, embora não plantem,
Deus lhes retira os entraves
e apenas pede-lhes: – Cantem!
91.
Tão bela, tão generosa,
símbolo eterno da paz,
pede desculpas a rosa
pelos espinhos que traz!
92.
Se lhe derem mais apoio;
se ele vir que o bem faz bem,
tenha certeza: há de o joio
tornar-se trigo também!
93.
Com que suave ternura
tece a canária o seu ninho!
– Mãe é assim, dengosa e pura…
a nossa e a do passarinho.
94.
Hoje eu sei qual a razão
de a planta gerar a flor:
É a sua retribuição
a quantos lhe dão amor!
95.
O verbo se faz beleza:
faz-se estrela e chuva e flor;
faz chamar-se Natureza,
e nela se faz expor!
96.
Quem preza a vida divide-a,
como o cedro acolhedor
que adota por filha a orquídea,
e dá-lhe suporte e amor!
97.
Benditas sejam as vidas
que, alegres, serenas, santas,
vivem a vida envolvidas
em levar vida a outras tantas!
98.
Todos vós que estais cansados,
vinde a mim – diz o Senhor.
Vinde e vede, irmãos amados,
como é grande o meu amor!
99.
Vem vindo um tempo sem bombas,
sem tanques e sem canhões.
Falcões darão vez às pombas,
e os fuzis aos violões!
100.
Dirá Deus: “Faça-se a paz,
e todos dêem-se as mãos!”
E então, meu filho, verás
que lindo é um mundo de irmãos!

Fonte:
ASSIS, Antonio Augusto de. Tábua de trovas. Maringá – 2004.

Maria Adélia (O Conto e Suas Implicaturas)


Histórico

No que se refere às origens, o conto remonta aos tempos antigos, representado pelas narrativas orais dos povos, passando pelos gregos e romanos, lendas orientais, parábolas bíblicas, novelas medievais, pelas fábulas francesas de Esopo e La Fontaine.

A origem do conto está na transmissão oral dos fatos, no ato de contar histórias, que antecede a escrita e nos remete aos citados tempos remotos.

No Ocidente, século XIV, Canterbury Tales (As mil e uma noites), e Giovanni Bocaccio (O Decamerão), são considerados precursores deste gênero.

O ato de narrar um acontecimento oralmente evoluiu para o registro escrito desta narrativa. E o narrador também evoluiu de um simples contador de histórias para a figura de um narrador estudioso e preocupado com os aspectos-normas da língua escrita, criativos e estéticos.

O conto é um texto narrativo centrado em um relato referente a um fato ou determinado acontecimento. Sendo que este pode ser real ou fictício, ou seja, resultante da imaginação do autor.

É nos conjuntos das Revoluções Burguesas- meados da Idade Moderna [século XVIII] que o conto se consolida como literatura, nos primórdios da revolução industrial ou capitalismo industrial [iniciado na Inglaterra],quando se deu a substituição da ferramenta pelas máquinas , resultando também na criação e expansão das gráficas e tipografias.

O conto foi identificado pela primeira vez nos EUA, por volta de 1880, e denominado como Short Story.

As formas atuais do conto foram diretamente influenciadas pelos contistas clássicos, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant e Anton Tchekóv.

Araripe Junior assim caracterizara o conto:

“O conto é sintético e monocrômico, diverso do romance que é analítico e sincrônico; desenvolve-se em tempo pretérito, como feito consumado, onde os fatos filiam-se e percorrem uma direção linear, em forma de narrativa. É uma espécie de começos de romances abortados”

Araripe destaca com rara precisão as feições primordiais do conto:- exigência de um só ambiente, sequência linear e temporalidade.

Pautando-nos nas assertivas de Araripe sobre a tríplice fundamentação do conto procede demonstrar tal argumento em um dos contos mais perfeitos de Machado de Assis:

–Um homem célere [em Várias Histórias], focando a figura de Pestana- o polquista.

A temática básica desse conto é a oposição entre vocação e ambição. Sua personagem principal, Pestana, é um famoso compositor de polcas, um estilo bastante popular de música, conhecido e louvado por todos que o cercam, mas ele vive um dilema pessoal:- odeia suas composições e toda a popularidade que elas lhe proporcionam. Seu grande sonho é produzir música erudita no nível dos grandes mestres, como Chopin, Mozart, Haydn, é “compor uma peça erudita de alta qualidade, uma sonata, uma missa, como as que admira em Beethoven ou Mozart”. A busca pela perfeição estética marca a trajetória de Pestana, que vê todas as alternativas lhe serem negadas no decorrer da vida, “aspira ao ato completo, à obra total”. No entanto, eram as polcas, sempre as polcas, que lhe vinham à cabeça durante os momentos de composição. Machado narra de forma impecável a ânsia da personagem, sua alma impotente, seu ímpeto de alçar vôos mais altos, ao desejar ser um gênio da música, mas seus sonhos não sobem, porque ele possui apenas cotos.

Ao se estudar Um Homem Célebre, a focalização, o tempo e o espaço, três importantes componentes do discurso narrativo, muito mais do que identificar os elementos desses processos, pode-se levantar sua importância na narrativa, ou seja, o efeito que as escolhas feitas pelo narrador, sobre esse três aspectos, surtiu no leitor.

Nos contos Machadianos, a brevidade, dá, por tradição, forte atenção aos elementos narrativos. Não há espaço, pois, para digressões, tudo é rápido e econômico. No entanto, no grande autor em questão o mais importante é o psicológico, o que permite caminho para características marcantes do escritor, como intertextualidade, metalinguagem e até a digressão, entre tantas, tornando a leitura muito mais saborosa.

Segundo José Oiticica:- “os caracteres do conto, foram de certa forma firmados, porém discriminados por Araripe”, convém, portanto à bem da clareza, completá-los, visto que o conto, não é uma escritura menor se comparado ao romance ou a novela.

Assim vejamos:
1. Conceito
1.1. Narração falada ou escrita de um acontecimento.
1.2. Narração de uma história ou historieta imaginadas.
1.3. Fábula

Etimologicamente, sobre a origem do termo podemos citar:

- conto vem de contar, do latim computare – inicialmente a enumeração de objetos, passou a significar metaforicamente, enumeração de acontecimentos;

-conto deriva de contu (Latim), ou do grego kóntos (extremidade da lança);

-conto tem sua origem no termo commentum (Latim), significando "invenção", "ficção".

A ambiguidade presente nas diferentes hipóteses etimológicas indica alguns dos aspectos que mencionamos como a própria abrangência do conto, sua antiguidade, sua ficcionalidade e transformações históricas.

O escritor e contista Júlio Cortázar afirma que o conto é "um gênero de difícil definição, nos seus múltiplos e antagônicos aspectos".

Segundo Nádia Battella Gotlib in “Teoria do conto”, obra pautada na impressão de vários autores, podemos afirmar que:

- o segredo do conto é promover a captura do leitor, prendendo-o num efeito que lhe permite a visão em conjunto da obra, desde que todos os elementos do conto são incorporados no texto.

Nesta apreensão ocorre entre o conto e o leitor uma força de tensão, com os elementos do conto, em que cada detalhe é significativo.

No conto o conflito dramático é teatralizado pelo narrador, em cada gesto, em cada ambiência, dentro de uma construção simétrica de um episódio, num espaço determinado.

A narrativa contempla um acidente de vida, cercado sistematicamente de um antes e de um depois, como enuncia Oiticica. O que se dá de tal forma que a ação descrita somente adaptável a este gênero e não a outro, por seu caráter de contração.

2. Brevidade

Considerando que o conto é o gênero de menor tamanho, a questão da brevidade é fundamental na sua construção.

Nas palavras de Anton Tcheckov "é preferível não dizer o suficiente a dizer demais".

Portanto, é importante limitar o número de personagens e episódios, eleger os detalhes primordiais e evitar explicações em demasia.

Economicidade nos meios narrativos: - uma fórmula para a brevidade é a máxima onde o menos é mais. Tudo que não for essencial para alcançar o efeito desejado – toda informação que não convergir para o desfecho, deve ser suprimida.

3. Intensidade

Este, outro, aspecto fundamental do conto.

Existem duas metáforas criadas por Júlio Cortázar, que definem bem o elemento intensidade:

“O conto está para a fotografia como o romance está para o cinema.”

“No conto o autor vence o leitor por nocaute, enquanto no romance a luta é vencida por pontos.”

4. Efeito

Uma narrativa só é suficientemente intensa a ponto de causar impacto no leitor se tiver unidade de efeito. Para alcançar esta unidade é preciso que o autor tenha em mente durante a construção do conto o efeito deseja causar no leitor.

5. Significante x Significado

Como na fotografia o conto necessita selecionar o significativo. Uma narrativa só se torna significativa quando transcende a história que conta abrindo-se para algo maior.

6. Tensão

A tensão é uma forma diferente de imprimir densidade à narrativa. Em vez de os fatos se desenrolarem de forma abrupta, o autor vai desvendando aos poucos o que conta, usa a técnica do suspense, adia a resolução da ação e instiga a curiosidade do leitor.

7. Temática

Pode se dizer que a temática do conto é praticamente ilimitada. Quase tudo pode ser objeto para um conto. Mas em princípio a idéia de conto está ligada aos acontecimentos. É preciso que algo aconteça, mesmo que o acontecimento seja o nada acontecer.

8. Ápice

É importante que exista algo especial na representação do recorte da vida que gera o conto, o flagrante de um determinado instante que de alguma forma interesse ao leitor. Seja pela novidade, pela surpresa, pelo inusitado, pelo cômico ou pelo trágico de uma situação.

9. Combinação

Aliar os recursos tradicionais com aqueles que vão surgindo é uma boa forma de combinar tradição e modernidade. A narrativa ganha qualidade quando mistura os acontecimentos à investigação psicológica das personagens que os vivenciam ou presenciam.

10. Desfecho

Todo o enredo deve ser elaborado para o desfecho, cada palavra deve confluir para o desenlace. Só com o desfecho sempre à vista é possível conferir a um enredo o ar de conseqüência e causalidade.

"Sem “conflito não há teatro” é uma idéia bastante difundida em dramaturgia”.

A semelhança entre a estrutura do conto e do teatro é exatamente esta, o conflito dramático, fundamental em ambas as formas. Assim como o conflito é a alma de um texto teatral, a crise é primordial na construção do conto.

Conclusão:

Concluímos, considerando que o estudo do conto é um debate sem fim, que a grande explosão criativa do conto moderno em inúmeras vertentes e autores não dilui a significância das unidades constantes. Os clássicos são clássicos porque, relidos, sempre nos oferecem bases de sustentação para o ato da escrita, e para o enriquecimento de idéias. Toda arte se alimenta da história, porém, para que o novo surja é necessário saber criar e recontar o que já foi contado, usando a alquimia infinita das ferramentas da linguagem.

Resumindo este estudo, elencamos aqui uma síntese dos elementos do conto, no que tange a sua estrutura básica.

Analiticamente, podemos considerar como implicaturas fundamentais do conto:

1. Enredo:

Circunscrito, rejeita digressões e extrapolações, exige objetividade na descrição dos fatos, ou de um enigma, onde as palavras sejam usadas de modo a suprir o estritamente necessário para se dizer dos fatos, não mais nem menos.

2. Espaço:

Restrito, palco estreito em que ocorre a ação dramática [sem nenhum ou grandes deslocamentos, prejudiciais à intensidade dramática].

3. Tempo

Curto, breve e limitado, apresentados sinteticamente, o suficiente para 'posicionar' o drama ou conflito

4. Tom

Harmonia estrutural entre as partes da narrativa, por sua unidade de objetivo rumo à unidade de impressão.

5. Personagem

Número reduzido de personagens, de caráter simples e pouco evolutivas.

6. Linguagem

Direta, admitidas metáforas de curto espectro, a linguagem, no conto, deve ser despida de abstração, de prolixidade, garantindo assim a concisão.

7. Diálogo

O dialogo é base expressiva do conto, fala direta das personagens, representada, na escrita.

8. Narração

A narração relata acontecimentos ou fatos, a ação, o movimento e o transcorrer do tempo.

9. Descrição

Caracteriza, tipifica um objeto ou personagem, no tempo e no espaço, ligeiramente.

10. Dissertação

Como exposição de idéias e pensamentos no conto a dissertação, deve ser minimizada.

11. Focos Narrativos

O escritor–narrador "vê" e "sabe" tudo; mas deve manter distância ao extremo, visto que no conto ele é apenas um figurante ou observador, não faz parte do núcleo dramático, é um espectador da trama.

Para escrever um conto, o autor além de um leitor assíduo, um estudioso das normas e cânones lingüísticos, deve ser um observador atento dos fatos e ocorrências do cotidiano, pois o conto tem seu nascedouro nas ocorrências do viver, oriundas dos fatos reais, ou imaginários, que o olhar sobre a vida propicia.
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Maria Adélia é mineira de Juiz de Fora, orientadora educacional, concluíu diversos cursos de extensão em Teoria Literária , livre pensadora, articulista de jornais estudantis, e ensaista da Teologia da Libertação em vários grupos da Renovação Carismática.

Fonte:
http://literaciacentrodeestudos.blogspot.com/

Fátima Reis (O Pescador de Estrelas)



Era assim todos os dias.

Bartolomeu acordava de manhã bem cedinho e dava de comer às rolinhas.

Gostava de vê-las bem gordinhas, os papinhos cheios de miolo de pão, de farelo de milho,de restinho de biscoito de polvilho feito pela avó.

No meio do dia, Bartolomeu se rendia as leituras da sua vida:

Á escola, à amizade dos amigos, às risadas das travessuras, às suavidades da natureza, às alegrias escondidas nas brincadeiras de meninos, que só são felizes quanto mais sujos e empoeirados estão.

Estes eram outros mundos no meio da jornada.

No final da tarde, o olho comprido se estendia até alcançar os passos cansados do pai, que chegava com os bolsos carregados de gomos de cana.

Bem maduros e tão doces quanto o mel...

Bartolomeu media as horas pelo azul do céu.

Espiava pelo corredor, e quando sua mãe trazia as travessas com a comida miúda daquele dia sabia que a noite se aproximava.

E enquanto todos se preparavam para dormir, Bartolomeu ao contrário, arregalava os olhos, andava inquieto, contando os minutos para ouvir os primeiros roncos do pai.

Era assim todas as noites.

Enquanto todos descansavam das labutas do dia, e sonhavam dias tranquilos e fartos, Bartolomeu saía de fininho, fechando a porta com cuidado para não perturbar os sonhos e nem despertar os pesadelos.

Ele então tomava fôlego e corria para o rio.

O mesmo rio que ele nadava durante o dia.

O mesmo rio que ele pescava peixes.

Este era um outro segredo ensegredado.

Nas noites de lua de porcelana, Bartolomeu içava o barco, e lá no meio do rio quando tudo serenava, ele pegava o seu caderninho e escrevia pensamentos, inventava histórias, fantasiava mundos...

Nas noites de céu muito estrelado, quando a lua refletia nas águas igual espelho, Bartolomeu içava a vara e dava de pescar estrelas.

Estes eram outros dias.

Mas mesmo depois de crescido, Bartolomeu não tomou jeito.

Anda por aí inventando mundos, criando histórias, fantasiando pensamentos.

Eu mesma ouvi dizer que numa noites dessas, de noite clara de porcelana, Bartolomeu foi visto feliz e cheio de sossego com uma cesta carregadinha de estrelas saltitantes.

Fonte:
http://literaciavozesdaescola.blogspot.com/

Fátima Reis


Fátima Reis é pedagoga, poeta, escritora, contadora de histórias e trabalha com Educação Etnoambiental na Secretaria de Educação de Japeri-RJ .

Em 2000, inicia sua carreira com o lançamento do texto Mariazinha Zinha zinha na Antologia Grandes Escritores do Rio de Janeiro. Publica em 2004, o Livro de poesias "Na Rota" e em 2005 "Outras Poesias".

Ainda em 2005, conquista o 2º lugar no I Concurso Mercosul de Contos para Crianças na Argentina em abril de 2005 com o livro "O menino que queria chorar estrelas.

Em 2008, publica seu primeiro livro infatil online " http://ameninaqueoerdeuojuizo.blogspot.com/ .

Em 2009 publica a historia infantil “ O Amor de Pigmaleão” na antologia internacional Curumim 4 que contou com a participação de autores do Brasil, Cuba, Argentina e Uruguay.Em 2010 lança o infantil “A História de Chico Mendes par Crianças” pela Prumo Editora.

Literatura Brasileira (Parte 4 = O Arcadismo)



O Arcadismo no Brasil começa no ano de 1768, com dois fatos marcantes: a fundação da Arcádia Ultramarina e a publicação de "Obras", de Cláudio Manuel da Costa. A escola setecentista, por sinal, desenvolve-se até 1808, com a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, que, com suas medidas político-administrativas, permite a introdução do pensamento pré-romântico no Brasil.

No início do século XVIII dá-se a decadência do pensamento barroco, para a qual vários fatores colaboraram, entre eles o cansaço do público com o exagero da ex-pressão barroca e da chamada arte cortesã, que se desenvolvera desde a Renascença e atinge em meados do século um estágio estacionário (e até decadente), perdendo terreno para o subjetivismo burguês; o problema da ascensão burguesa superou o problema religioso; surgem as primeiras arcádias, que procuram a pureza e a simplicidade das formas clássicas; os burgueses, como forma de combate ao poder monárquico, começam a cultuar o "bom selvagem", em oposição ao homem corrompido pela sociedade.

Gosto burguês - Assim, a burguesia atinge uma posição de domínio no campo econômico e passa a lutar pelo poder político, então em mãos da monarquia. Isso se reflete claramente no campo social e das artes: a antiga arte cerimonial das cortes cede lugar ao poder do gosto burguês.

Pode-se dizer que a falta de substitutos para o Padre Antônio Vieira e Gregório de Matos, mortos nos últimos cinco anos do século XVII, foi também um aspecto motivador do surgimento do Arcadismo no Brasil. De qualquer forma, suas características no país seguem a linha européia: a volta aos padrões clássicos da Antigüidade e do Renascimento; a simplicidade; a poesia bucólica, pastoril; o fingimento poético e o uso de pseudônimos. Quanto ao aspecto formal, a escola é marcada pelo soneto, os versos decassílabos, a rima optativa e a tradição da poesia épica. O Arcadismo tem como principais nomes: Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, José de Santa Rita Durão e Basílio da Gama.

Fonte:
http://www.vestibular1.com.br/

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Trova 155 - Lupicinio Rodrigues (Porto Alegre/RS)

Constelação de Trovas


A mais triste solidão
que um ser humano já tem:
vasculhar seu coração
e não encontrar ninguém!
ADEMAR MACEDO – Natal/RN

Dar um livro de presente
sempre é gesto bem feliz:
quem o dá fica contente,
quem recebe pede bis.
AFONSO JOSÉ DOS SANTOS – Moji Guaçu/SP

Duas rimas simplesmente,
sete sílabas certinhas,
uma idéia, e a nossa mente
vai brincando em quatro linhas!
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO – São Paulo/SP

Sem querer ser feminista,
a verdade vou contar:
a mulher é quem conquista,
mas se deixa conquistar!
ALBA HELENA CORREA – Niterói/RJ

É primavera, querida!
Deixemos para depois
as nossas rusgas da vida...
que a vida somos nós dois...
ALFREDO BRASÍLIO DE ARAÚJO – Baependi/MG

De uma forma desmedida,
muita gente, a toda hora,
dizendo gozar a vida,
vai jogando a vida afora!...
ALFREDO DE CASTRO – Pouso Alegre/MG

No palco da vida, atuante,
junto a comédias e dramas
o destino, ator brilhante,
vai tecendo suas tramas...
ANGÉLICA VILLELA SANTOS – Taubaté/SP

O agricultor que semeia
o arroz, o milho, o feijão,
trabalha com Deus à meia
na Obra da Criação.
ANTONIO A. DE ASSIS – Maringá/PR

Superando os meus problemas,
descubro que os teus abraços
são elos com que me algemas
no presídio dos teus braços!
ANTONIO COLAVITE FILHO – Santo André/SP

Se de barro fomos feitos
nesta olaria divina,
somos dois corpos perfeitos,
partilhando a mesma sina!
ANTÔNIO FACCI – Maringá/PR

Velhos sinos badalando
anunciam minha dor...
- Cada toque ressoando
no meu presente sem cor...
ANTONIO MANUEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ

Ao reler o livro antigo,
grande emoção me tomou:
deu-me na impressão de um amigo
que de repente voltou.
AUROLINA ARAÚJO DE CASTRO – Manaus/AM

É verdade, neste inverno,
vou dar tudo a quem não tem,
porque sei que para o inferno
nunca vai quem faz o bem.
+CECIM CALIXTO – Tomazina/PR

Todo livro, quando aberto,
é pólen, é flor, é fruto...
fechado: é sombra, é deserto,
é silêncio, é campa, é luto.
CYRO ARMANDO CATTA PRETA – Orlândia/SP

O nosso pracinha que era
simples jovem a sonhar
lutou tal qual uma fera
voltou glorioso ao seu lar.
CYROBA RITZMANN – Curitiba/PR

Na esperança verde e bela
há o otimismo de luz!
Se a porta fecha, a janela
se abre em par e sol reluz!
DINAIR LEITE – Paranavaí/PR

Sigo a vida, e meu caminho
foi produto e fecundo
mas não troco teu carinho
por qualquer prêmio do mundo.
DJALDA WINTER SANTOS – Rio de Janeiro/RJ

O nosso amor escondido,
sem papel, sem aliança,
tem o sabor proibido
da fruta da vizinhança...
DOMITILA BORGES BELTRAME – São Paulo/SP

No tear da solidão,
rendeiro em dias tristonhos,
basta um fio de ilusão
para tecer os meus sonhos!
ELISABETH SOUZA CRUZ - Nova Friburgo/RJ

Revendo a foto esquecida
num álbum velho, tristonho,
vejo a saudade escondida
Por detrás daquele sonho...
FERNANDO CÂNCIO ARAÚJO – Fortaleza/CE

Nas lembranças em cadeia,
a verdade me angustia:
Ver luzir a lua cheia,
na varanda tão vazia.
FERNANDO VASCONCELOS – Ponta Grossa/PR

Os homens aqui na Terra,
em sua saga funesta,
vão passando a motosserra
no pescoço da floresta.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – Porto Alegre/RS

Ciúme é como se fosse
um veneno sedutor,
amargo, se mostra doce,
matando aos poucos o amor.
FRANCISCO PESSOA – Fortaleza/CE

Nosso reino de nobreza,
nós dois podemos cria-lo:
meu amor te faz princesa,
teu amor me faz vassalo.
HÉRON PATRÍCIO – São Paulo/SP

É no rosto da criança
que o sorriso é mais bonito:
- tem a força da Esperança
e o tamanho do infinito!
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP

O imortal desaparace
desta vida transitória,
mas seu verso permanece
nas letras vivas da história.
JOAMIR MEDEIROS – Natal/RN

Foi pela guerra enlutada,
mas a ilusão de Maria
fincava os olhos na estrada
quando a porteira batia.
JOSÉ MESSIAS BRAZ – Pouso Alegre/MG

Fugir, poeta, não queiras
do que a vida preceitua:
teu destino é abrir fronteiras
e deixar que o sonho flua!
JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP

Esquece a luta perdida
porque, mais que insensatez,
lembrar fracassos na vida
é fracassar outra vez!
JOSÉ TAVARES DE LIMA – Juiz de Fora/MG

Quando os vejo, todo o dia,
sempre me espanta, não nego,
perceber, no olhar do guia
a luz dos olhos do cego!
LACY JOSÉ RAYMUNDI – Garibaldi/RS

A paz é conquista interna,
pura ausência de ansiedade,
tranqüilidade que externa
prazer e felicidade.
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE – Pinhalão/PR

No mundo por onde andei,
nestes anos que vivi,
as minhas culpas paguei,
tudo o que semeei – colhi!
+ LEONARDO HENKE – Curitiba/PR

Para a alma aliviar
na dor, conflito, paixão,
a lágrima acalma o olhar,
um poema, o coração.
MARIA ELIANA PALMA – Maringá/PR

Entre os véus da noite, imerso,
insone, em meu travesseiro,
escrevo apenas um verso
e a saudade...um livro inteiro!
MARIA LÚCIA DALOCE – Bandeirantes/PR

Não te atenhas tanto ao sono
porque o trabalho te espera,
pois quem não planta no Outono,
não colhe na Primavera.
+ MÁRIO MONTEIRO – Bauru/SP

O amor chega de mansinho,
como quem está brincando...
Mostra a flor, esconde o espinho,
e acaba nos machucando!
MAURÍCIO LEONARDO – Ibiporã/PR

O tempo não traz perigo
à verdadeira amizade;
quem não é mais teu amigo,
jamais o foi na verdade.
MIGUEL RUSSOWSKY – Joaçaba/SC

Neste mundo passageiro,
a vida, que vai fluindo,
é um intervalo ligeiro,
dois silêncios dividindo...
MILTON NUNES LOUREIRO – Niterói/RJ

Cavalgando sem rodeios
por galáxias estreladas,
o poeta, em seus anseios
tece trovas requintadas.
NILTON MANOEL – Ribeirão Preto/SP

Passou...Bonita de fato!
E o mar, ao vê-la tão bela,
sentiu não ser um regato
para correr atrás dela...
ORLANDO BRITO – São Luis/MA

Desço caminhos tristonhos
tentando, em vão, descobrir
algum vestígio dos sonhos
que desprezei ao subir!...
RODOLPHO ABBUD – Nova Friburgo/RJ

Nossa gente faladeira,
que tanto esfrega e ensaboa,
pra lavar a língua inteira
esvaziou a Lagoa!
RONALDO AFONSO FRANCO JÚNIOR – Sete Lagoas/MG

A leveza de seu verso,
fez-me voar até o céu.
E de lá só lhe arremesso,
estrelas como troféu.
ROSALY AP. CURIACOS A. LEME – Piracicaba/SP

Saudade, algema de amor,
que ao coração se derrama,
tem sempre o mesmo fulgor
no silêncio de quem ama.
SARAH RODRIGUES – Belém/PR

A Trova que se revela
em sua forma e magia
é uma pequena aquarela
na tela da Poesia.
SEBAS SUNDFELD – Tambaú/SP

Nesta vida alucinante
e de ilusões passageiras,
às vezes, um breve instante
vale mais que horas inteiras.
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA – São Paulo/SP

O mendigo solitário
perambula pela rua.
Ao redor, só o cenário
de uma imensa e fria lua.
VANDA ALVES DA SILVA – Curitiba/PR

Revezam-se em nossas rotas
sombra e luz, contras e prós
e as vitórias e derrotas
começam entre de nós...
VANDA FAGUNDES QUEIRÓZ – Curitiba/PR

Navegam os trovadores
em e-mails de ilusões,
computando riso e dores,
conectando as emoções...
VÂNIA MARIA SOUZA ENNES – Curitiba/PR

Um velho colchão de palha...
Teus braços por cobertor;
não há fortuna que valha
a fortuna deste amor!...
WANDA DE PAULA MOURTHÉ – Belo Horizonte/MG

Literatura Brasileira (Parte 3 = O Barroco)



O Barroco no Brasil tem seu marco inicial em 1601, com a publicação do poema épico "Prosopopéia", de Bento Teixeira, que introduz definitivamente o modelo da poesia camoniana em nossa literatura. Estende-se por todo o século XVII e início do XVIII.

Embora o Barroco brasileiro seja datado de 1768, com a fundação da Arcádia Ultramarina e a publicação do livro "Obras", de Cláudio Manuel da Costa, o movimento academicista ganha corpo a partir de 1724, com a fundação da Academia Brasílica dos Esquecidos. Este fato assinala a decadência dos valores defendidos pelo Barroco e a ascensão do movimento árcade. O termo barroco denomina genericamente todas as manifestações artísticas dos anos de 1600 e início dos anos de 1700. Além da literatura, estende-se à música, pintura, escultura e arquitetura da época.

Antes do texto de Bento Teixeira, os sinais mais evidentes da influência da poesia barroca no Brasil surgiram a partir de 1580 e começaram a crescer nos anos seguintes ao domínio espanhol na Península Ibérica, já que é a Espanha a responsável pela unificação dos reinos da região, o principal foco irradiador do novo estilo poético.

O quadro brasileiro se completa no século XVII, com a presença cada vez mais forte dos comerciantes, com as transformações ocorridas no Nordeste em consequência das invasões holandesas e, finalmente, com o apogeu e a decadência da cana-de-açúcar.

Uma das principais referências do barroco brasileiro é Gregório de Matos Guerra, poeta baiano que cultivou com a mesma beleza tanto o estilo cultista quanto o conceptista (o cultismo é marcado pela linguagem rebuscada, extravagante, enquanto o conceptismo caracteriza-se pelo jogo de idéias, de conceitos. O primeiro valoriza o pormenor, enquanto o segundo segue um raciocínio lógico, racionalista).

Na poesia lírica e religiosa, Gregório de Matos deixa claro certo idealismo renascentista, colocado ao lado do conflito (como de hábito na época) entre o pecado e o perdão, buscando a pureza da fé, mas tendo ao mesmo tempo necessidade de viver a vida mundana. Contradição que o situava com perfeição na escola barroca do Brasil.

Antônio Vieira - Se por um lado, Gregório de Matos mexeu com as estruturas morais e a tolerância de muita gente - como o administrador português, o próprio rei, o clero e os costumes da própria sociedade baiana do século XVII - por outro, ninguém angariou tantas críticas e inimizades quanto o "impiedoso" Padre Antônio Vieira, detentor de um invejável volume de obras literárias, inquietantes para os padrões da época.

Politicamente, Vieira tinha contra si a pequena burguesia cristã (por defender o capitalismo judaico e os cristão-novos); os pequenos comerciantes (por defender o monopólio comercial); e os administradores e colonos (por defender os índios). Essas posições, principalmente a defesa dos cristão-novos, custaram a Vieira uma condenação da Inquisição, ficando preso de 1665 a 1667.

A obra do Padre Antônio Vieira pode ser dividida em três tipos de trabalhos: Profecias, Cartas e Sermões.

As Profecias constam de três obras: "História do futuro", "Esperanças de Portugal" e "Clavis Prophetarum". Nelas se notam o sebastianismo e as esperanças de que Portugal se tornaria o "quinto império do Mundo". Segundo ele, tal fato estaria escrito na Bíblia. Aqui ele demonstra bem seu estilo alegórico de interpretação bíblica (uma característica quase que constante de religiosos brasileiros íntimos da literatura barroca). Além, é claro, de revelar um nacionalismo megalomaníaco e servidão incomum.

O grosso da produção literária do Padre Antônio Vieira está nas cerca de 500 cartas. Elas versam sobre o relacionamento entre Portugal e Holanda, sobre a Inquisição e os cristãos novos e sobre a situação da colônia, transformando-se em importantes documentos históricos.

O melhor de sua obra, no entanto, está nos 200 sermões. De estilo barroco conceptista, totalmente oposto ao Gongorismo, o pregador português joga com as idéias e os conceitos, segundo os ensinamentos de retórica dos jesuítas. Um dos seus principais trabalhos é o "Sermão da Sexagésima", pregado na capela Real de Lisboa, em 1655. A obra também ficou conhecida como "A palavra de Deus". Polêmico, este sermão resume a arte de pregar. Com ele, Vieira procurou atingir seus adversários católicos, os gongóricos dominicanos, analisando no sermão "Por que não frutificava a Palavra de Deus na terra", atribuindo-lhes culpa.

Fonte:
http://www.vestibular1.com.br/

Folclore Africano (Napi, os Homens e os Animais)



No início do mundo nasceu o Sol, e depois dele surgiu Napi, o criador, o guardião da vida. Um dia Napi descansava perto de uma fonte. Olhou para a terra úmida e teve uma idéia: pensou que seria divertido moldar pequenas criaturas de argila. Primeiro modelou um animalzinho. Gostou dele e continuou a criar, e fez aparecer todos os animais que até hoje vivem na face da terra. Quando terminou, deu a cada animal um lugar para habitar. Por último moldou o homem e lhe disse:

- Você deve viver na floresta, é o melhor lugar para você.

Depois, fechou os olhos e tentou descansar. Mas não conseguiu.

Poucas horas mais tarde os animais voltaram para reclamar.

Ninguém estava feliz. O touro parecia furioso:

- Não posso viver na montanha, Napi. Preciso de pasto!

O antílope também estava aborrecido:

- Napi, não posso viver no pântano, meu sonho ‚ correr pelos campos!

Até mesmo o sensato camelo tinha uma queixa:

- Napi, detestei o deserto! Será que você não pode me mudar de lugar?

O homem, então, não parava de reclamar. Queria viver viajando, queria conhecer todos os lugares. Era muito curioso para ficar só na floresta. Napi suspirou e respondeu:

- Minhas queridas criaturas, vou lhes dar outros territórios! Calma! E depois disse:

- Touro, vá para os pastos! - E para o antílope: - Vá para a savana correr com liberdade.- E, finalmente, para o camelo: - Vá para perto de um oásis, onde o ar é fresco.

E quando chegou o homem, Napi lhe sugeriu diversos lugares para morar, mas o homem nunca ficava contente. Até que o guardião da vida se cansou e disse apenas:

- Você é mesmo impossível, meu filho! Tudo bem, vá para onde quiser!

É por isso que todos os animais têm seus territórios preferidos, mas o homem, essa criatura sempre insatisfeita, espalhou-se pelas montanhas, florestas, rios e mares, e até hoje continua procurando novos lugares para morar.

Fonte:
http://www.esnips.com

Rosa Maria Graciotto Silva (Revisitando as Fadas com Lobato)


1. Considerações preliminares

A literatura infantil surgiu no Ocidente por volta do final do século XVII, época que também registrou o apogeu dos contos de fadas. Oriundos da tradição oral e não tendo, originalmente, a criança como público-alvo, os contos inseriram-se, com o tempo, no acervo literário infantil, ocupando um lugar definitivo.

É em 1697, com a publicação de uma coletânea de oito contos em prosa, que o escritor francês Charles Perrault marca a ascensão de um gênero que terá ampla receptividade no leitor-criança. Esses contos, prescindindo às vezes da presença das fadas, mas envolvidos na áurea do maravilhoso, encontraram larga difusão na segunda metade do século XVII e meados do século XVIII, retornando com vigor no século XIX, principalmente na Alemanha com os contos dos Irmãos Grimm, e na Dinamarca, com os contos de Hans Christian Andersen.

Gênero que saltou da oralidade para perpetuar-se na literatura escrita, os contos de fadas avançaram fronteiras e já no século XIX, encontramos em terra brasileira a proliferação desses contos através das traduções de Alberto Figueiredo Pimentel e Carlos Jansen, que tiveram o cuidado de promover uma adaptação da linguagem, tornando-a próxima da língua portuguesa falada no Brasil.

A Carlos Jansen, alemão radicado no Brasil, coube a difusão de obras em que o elemento maravilhoso se fazia presente como se verifica, por exemplo, em Contos seletos das mil e uma noites (1882) e As aventuras do celebérrimo Barão de Münchausen (1891), ao lado de histórias de aventuras como Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888) e D. Quixote de La Mancha (1901). Entretanto, foi Figueiredo Pimentel o grande divulgador dos contos de fadas, reunindo principalmente contos de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen nas obras: Contos da Carochinha (1894), Histórias da Avozinha (1896), Histórias da Baratinha (1896) e Contos de Fadas (1896).

Segundo Arroyo (1986:177) Contos da Carochinha, com o subtítulo Contos populares morais e proveitosos de vários países, traduzidos e recolhidos diretamente da tradição local, reunia 61 histórias seguindo o modelo de Charles Perrault que, em 1697, designara os Contos da mamãe gansa como Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades. A exemplo, portanto, da literatura infantil européia, a nossa literatura, que nesse primeiro momento era somente nossa quanto ao fato de ser traduzida em língua portuguesa abrasileirada, trazia em seu bojo a preocupação com o aspecto formativo da literatura. Diferenciava-se, entretanto, da literatura veiculada nas escolas, marcada por ideais pedagógicos e sem qualquer alusão ao elemento maravilhoso. Saindo do âmbito escolar e visando a um público emergente, os contos de Figueiredo Pimentel resgataram o popular e o mundo das maravilhas, suprindo uma carência então vigente: o conhecimento dos clássicos europeus através de uma linguagem solta, livre, espontânea e bem brasileira para o tempo subvertendo, assim, os cânones da época ( Arroyo, 1986: 178).

É pelos fins do século XIX, que ganha pulso em nossa recém-criada República, a viabilização de um projeto educativo que via no texto infantil e na escola a possibilidade de contribuir para a formação de futuros cidadãos. Juntando-se a isso a preocupação generalizada com a carência de obras adequadas à criança brasileira e que fossem feitas por brasileiros, é que nasce a nossa literatura para crianças. Entre os escritores que se prontificaram a concretizar esse projeto situam-se Coelho Neto, João do Rio, Tales de Andrade, Arnaldo de Oliveira Barreto, Júlia Lopes de Almeida, Francisca Júlia, Olavo Bilac, Manuel Bonfim, Júlio César da Silva e outros (Lajolo, 1984).

Olavo Bilac e Manuel Bonfim, no prefácio de Através do Brasil (1910) explicitam a ligação da nossa incipiente literatura com os ideais pedagógicos ao afirmarem que a obra fora elaborada com o intuito de constituir-se no único livro de leitura para o curso médio das Escolas Primárias do Brasil, a fim de trazer às crianças o conhecimento necessário para a sua formação cultural, moral e cívica (apud Zilberman, 1986:18).

Nos laços entre a literatura e a escola, não havia espaço para a fantasia. E é ainda Olavo Bilac quem, no prefácio de sua obra Poesias Infantis (1904), adverte o leitor dos perigos existentes em histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a credulidade das crianças, fazendo-as ter medo das coisas que não existem (apud Zilberman,1986:273).

A produção literária nacional atenta à difusão dos ideais de glorificação à Pátria, enaltecimento da natureza, valorização de heroísmos, preocupação com os registros cultos da língua portuguesa, se ganhou notoriedade devido à sua vinculação à escola, garantia certa de sucesso mercadológico, não servira, entretanto, para suprimir a divulgação dos contos maravilhosos, provenientes do acervo europeu. Prova disto são as obras de Figueiredo Pimentel que, convivendo no mesmo espaço de tempo com os chamados livros de leitura escolar , alcançaram um número significativo de edições, sendo que somente sua primeira obra Contos da Carochinha obtivera, entre 1894 a 1931, o número de cem mil exemplares colocados no mercado ( Lourenço Filho, apud Zilberman, 1986:322).

Paralelamente às histórias de Perrault, Grimm e Andersen divulgadas por Figueiredo Pimentel e que foram traduzidas diretamente dos originais, vicejavam no Brasil os contos pertencentes à tradição oral, transmitidos de geração à geração, principalmente, pelos imigrantes europeus e seus descendentes que aqui aportaram. Inseridos no cotidiano brasileiro, em um ambiente culturalmente diversificado pelo encontro de múltiplas vozes (alemã, francesa, portuguesa, espanhola, italiana e africana) esses contos passaram a se diferenciar do berço de além-mar, ganhando novas versões.

Em Câmara Cascudo (1956), que procedeu à recolha de contos da oralidade, vamos encontrar, por exemplo, A Gata Borralheira, um dos mais conhecidos de Charles Perrault, miscigenado a outros contos. Bicho de Palha, versão encontrada na tradição oral do Rio Grande do Norte, mescla dois contos de Perrault: o já referido A Gata Borralheira e Pele de Asno, a que se acrescenta o toque popular, quer relacionado à denominação do conto e ao nome da heroína (Maria), quer na inserção da religiosidade, pois a entidade mediadora que auxilia a protagonista não é uma fada, mas sim, Nossa Senhora. Similarmente, nos contos recolhidos por Sílvio Romero (1954), A Gata Borralheira transforma-se em Maria Borralheira, numa história que lembra tanto A Gata Borralheira quanto As fadas de Perrault, sem deixar de inserir, também, o elemento religioso. Aqui, a velhinha de As fadas é substituída por Nosso Senhor e a varinha de condão atua não pela magia de uma fada, mas pela intercessão do poder divino.

Ao findar do século XIX e primeiras décadas do século XX, a literatura infantil brasileira depara-se ante duas vias. A primeira, adotando o processo mimético europeu, cativa o leitor pela presença do maravilhoso, entretanto lhe faltam as raízes brasileiras. É um produto importado que embora passando por um processo de adaptação com relação à língua e apresentando histórias resultantes da intertextualidade de outras, como Bicho de Palha e Maria Borralheira, continua sendo um acervo de histórias alheias. Se por um lado, a simbologia presente nos contos atende aos anseios que são universais ao ser humano, como quer Bettelheim (1980), por outro lhe falta a representação da criança brasileira, em suas peculiaridades. A segunda via abre caminho para uma literatura caracterizada como brasileira, isto é, feita por brasileiros e para a criança brasileira. Entretanto, os seus propósitos não convencem o leitor-criança e muito menos o adulto, gerando insatisfações como a expressa por Monteiro Lobato:

A nossa literatura infantil tem sido, com poucas exceções, pobríssima de arte, e cheia de artifício, – fria, desengraçada, pretensiosa. Ler algumas páginas de certos “livros de leitura”, equivale, para rapazinhos espertos, a uma vacina preventiva contra os livros futuros. Esvai-se o desejo de procurar emoções em letra de forma; contrai-se o horror do impresso. (Cavalheiro, 1962:182, V. II)

2. As reinações de Lobato

Optando por uma terceira via, surge a literatura infantil de Monteiro Lobato mostrando que é possível produzir obras que seduzam o leitor-criança, explorando o lado mágico da vida, utilizando em larga escala o elemento maravilhoso sem deixar, entretanto, de focalizar a criança brasileira e o contexto em que está inserida.

Com A menina do Narizinho arrebitado, obra publicada em 1920 e levada às escolas em 1921 como “segundo livro de leitura” e já com o título Narizinho Arrebitado, Lobato consegue um fato inédito no âmbito do mercado livreiro: esgotar 50.000 exemplares em cerca de oito a nove meses (Cavalheiro, 1962:147, V. II).

Rompendo com a literatura tradicional, Lobato angaria, na época, comentários como os feito por Breno Ferraz:

... um livro absolutamente original, em completo, inteiro desacordo com todas as nossas tradições “didáticas”. Em vez de afugentar o leitor, prende-o. Em vez de ser tarefa, que a criança decifra por necessidade, é a leitura agradável, que lhe dá a amostra do que podem os livros (...) a historieta fantasiada por Monteiro Lobato, falando à imaginação, interessando e comovendo o pequeno leitor, faz o que não fazem as mais sábias lições morais e instrutivas: desenvolve-lhe a personalidade, libertando-a e arrimando-a para cabal eclosão, fim natural da escola. (apud Cavalheiro, 1962:146, V.II)

Durante a década de 20, Monteiro Lobato cria outras dez histórias que, somadas à primeira, resultam no livro Reinações de Narizinho, publicado em 1931. Promovendo uma fusão entre realidade e fantasia, anulando os limites de espaço e de tempo, Lobato faz com que o sítio de dona Benta transforme-se na morada, não só dos habitantes do sítio, como também dos integrantes do mundo das maravilhas. Já na primeira história, Narizinho Arrebitado, encontramos o Pequeno Polegar fugindo de seu mundo e de dona Carochinha, a fim de vivenciar novas aventuras:

... Ando atrás do Pequeno Polegar [...] Há duas semanas que fugiu do livro onde mora e não o encontro em parte nenhuma. Já percorri todos os reinos encantados sem descobrir o menor sinal dele. [...] tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda vida presos dentro delas. Querem novidades. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o marquês de Carabás e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix. Branca de Neve vive falando em tingir os cabelos de preto e botar ruge na cara. Andam todos revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam fugir e o Pequeno Polegar já deu o exemplo. [...] Tudo isso [...] por causa do Pinóquio, do Gato Félix e sobretudo de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer.(Reinações de Narizinho, p.11)

Cansado das velhas histórias emboloradas pelo tempo, Polegar abre o caminho para a vinda das demais personagens do mundo encantado: Cinderela, Branca de Neve, Rosa Branca e Rosa Vermelha, Chapeuzinho Vermelho, Gato de Botas, Barba Azul, Patinho Feio, Hansel e Gretel, o Soldadinho de Chumbo, o Alfaiate Valente, Ali Babá, Aladino, Lobo Mau, os heróis gregos Perseu e Teseu, além de Xeerazade e todo o séquito das mil e uma noites. A estes heróis do passado juntam-se outros da contemporaneidade de Lobato, como Tom Mix e Gato Félix, que saem das fitas de cinema e histórias em quadrinhos interagindo com os habitantes do sítio e do mundo maravilhoso. Se as personagens dos contos antigos visitam o sítio, rompendo o espaço geográfico e temporal, os moradores do sítio também se aventuram, empreendendo, tal como Polegar, visitas a outros reinos. É desta forma que visitam em Pena de Papagaio a terra das fábulas e seus fabulistas famosos La Fontaine e Esopo, presenciando as fábulas acontecendo e participando ativamente de outras como em Os animais e a peste, que traz como resultado a vinda de mais um morador para o sítio: o burro falante. E as incursões continuam. Próxima aventura: as terras do barão de Münchausen e com a participação do mundo adulto, pois D. Benta acompanha as crianças na nova empreitada.

Em Reinações de Narizinho o mundo maravilhoso passa a fazer parte do cotidiano das crianças. Assim é que Narizinho em suas incursões pelo Reino das Águas Claras vivencia um conto de fadas, transformando-se pelas “mãos” mágicas de dona Aranha numa princesa que se prepara para o encontro com o príncipe que se é escamado, é, acima de tudo, encantado. O esplendor de seu vestido ofusca os de Pele de Asno e de Cinderela descritos por Perrault e Irmãos Grimm. Suas maravilhosas vestes, tanto as do primeiro encontro ( p.14-15), quanto as confeccionadas para a celebração de seu casamento com o príncipe (p. 61), resultam da interação de elementos que fogem do domínio do real. Dona Aranha, a costureira de cerca de mil anos de idade, assim metamorfoseada por uma fada má, vale-se de um tecido tramado pela fada Miragem, cortando-o com a tesoura da Imaginação e cosendo-o com a linha do Sonho e com a agulha da Fantasia (p. 63).

Tem-se aí a identificação dos recursos utilizados pela costureira Aranha com os selecionados e organizados por Lobato para sua recriação dos contos maravilhosos, em que a miragem, a imaginação, a fantasia e o sonho deixam o campo da abstração e concretizam-se nas aventuras vividas por Narizinho e sua comitiva, nas onze histórias que compõem a obra Reinações de Narizinho.

Se no Reino das Águas Claras, presentificado nas histórias Narizinho Arrebitado e O casamento de Narizinho, Lobato promove o encontro do antigo com o contemporâneo de sua época, maior ênfase se encontra nas peripécias que ocorrem no Sítio do Picapau Amarelo. É na festa organizada para recepcionar os integrantes do mundo maravilhoso (Cara de Coruja), que Lobato proporciona uma verdadeira fusão entre o real do sítio e a ficção dos contos. Desse encontro resulta um maior conhecimento por parte dos habitantes do sítio e, concomitantemente, do leitor. Através da curiosidade de Emília fica-se sabendo o porquê de os sapatinhos de Cinderela ora serem de cristal, ora de camurça. Ou ainda, elucida-se o verdadeiro final desta história, se é o contado por Perrault ou o dos Irmãos Grimm. Estas e outras questões são levantadas buscando respostas dos diretamente envolvidos nas histórias. Resgatam-se portanto, histórias antigas que retiradas da fixidez da escrita, transformam-se em histórias reais, possibilitando que o sítio se transforme, como disse Dona Benta, num livro de contos da carochinha.

As idas e vindas de personagens de diferentes histórias e diferentes autores, assim como as aventuras do pessoal do sítio por outras paragens, revelam ao leitor um mundo em que ele pode interagir, de tal forma que os seus sonhos e suas fantasias passam a ser possíveis de uma real concretização. E isto se torna possível pela atuação das personagens do sítio que, representando o anseio dos pequenos leitores, estabelecem comparações entre uma história e outra, apontam defeitos, buscam soluções, questionam e obtém respostas. Com isso, Lobato transforma em realidade um de seus sonhos: transformar o sítio (leia-se sua obra) na morada de seus leitores.

Convidado a participar desse jogo em que o real e o imaginário se fundem ou se confundem, o leitor se vê enredilhado nas tramas tecidas pelo mestre Lobato, que marotamente, na voz de Peninha revela que o mundo das maravilhas existe por toda parte e para nele ingressar basta ter imaginação: [...] O mundo das maravilhas é velhíssimo. Começou a existir quando nasceu a primeira criança e há de existir enquanto houver um velho sobre a terra (p. 134).

Entre os recursos empregados por Lobato que viabilizaram os novos rumos da literatura infantil brasileira, destaca-se a centralização dos eventos na personagem-criança. Esta, que até então ocupava um patamar inferior na literatura a ela endereçada, passa a ser o foco de interesse da obra lobateana, acarretando modificações significativas tanto no campo ideológico quanto no estético. Priorizando a criança “reinadeira”, sempre pronta a vivenciar novas aventuras e, ao mesmo tempo, ávida em adquirir novos conhecimentos, Lobato indica ao leitor o caminho a ser trilhado pela imitação dos heróis-mirins Narizinho, Emília e Pedrinho. Intrepidez, criatividade e imaginação fértil caracterizam o perfil infantil lobateano em oposição ao modelo inculcado pela literatura escolar, que promovia a fidelidade à criança exemplar, totalmente dependente dos ditames do mundo adulto. Se, nos contos antigos transmitidos pela literatura escrita e oral, as personagens ( em geral jovens casadoiros ) mostravam-se passivas, dependentes de auxílio externo para conseguirem superar obstáculos ou obterem ascensão social, Lobato resolve tal problema, retomando essas histórias e promovendo a rebeldia das personagens:

Esquecidas de que eram famosas princesas, foram correndo receber o pequenino herói. Era ele o chefe da conspiração dos heróis maravilhosos para fugirem dos embolorados livros de dona Carocha e virem viver novas aventuras no sítio de dona Benta. Polegar já havia fugido uma vez, e apesar de capturado estava preparando nova fuga –– dele e de vários outros. ( p.96 )

O recurso usado por Lobato, em que os habitantes do sítio interagem com as personagens do mundo maravilhoso, tem como conseqüência o reforço no propósito que une as personagens dos dois mundos e que, evidentemente, deverá atuar de forma eficaz no destinatário da obra. Após a leitura de Reinações de Narizinho, o leitor terá acrescido à sua história não só conhecimentos, mas, sobretudo, a reflexão necessária para se tornar um leitor dotado de um olhar mais crítico, quer com relação ao mundo ficcional que lhe é ofertado, quer com relação ao mundo real de que faz parte.

Ao privilegiar a ótica infantil, Lobato elege como prioridade o ludismo que perpassa, sobremaneira, todas as histórias. Ludismo este que se encontra no inusitado das cenas compartilhadas pelas crianças, animais e objetos antropomorfizados e pelos adultos que compactuam com as personagens-mirins, aceitando e vivenciando o jogo do faz-de-contas.

Criando cenas bem-humoradas, o narrador convida o leitor para compartilhar da brincadeira, como se observa no desenrolar da primeira história, no momento em que o besouro discute com o príncipe do Reino das Águas Claras a respeito da “misteriosa elevação”, onde estão apoiados:

[...] Abaixou-se, ajeitou os óculos no bico, examinou o nariz de Narizinho e disse:
–– Muito mole para ser mármore. Parece antes requeijão.
–– Muito moreno para ser requeijão. Parece antes rapadura –– volveu o príncipe.
O besouro provou a tal terra com a ponta da língua.
–– Muito salgada para ser rapadura. Parece antes...( p.08)

O espaço vazio, representado pelas reticências, surge como um convite à entrada do leitor, indicando-lhe a continuação do diálogo.

Essa interação do leitor com o texto, espraia-se pela obra. E, se uma das intenções de Lobato era recuperar os contos tradicionais sob uma nova ótica, o leitor é, novamente, solicitado a colaborar. Desta feita, como se participasse de um jogo de “quebra-cabeças”, cabe-lhe identificar os contos famosos de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen, pelas pistas que são inseridas na construção do texto. Assim, [...] O peixinho, porém, que era muito valente permaneceu firme...(p. 09) lembra O soldadinho de chumbo de Andersen; [...] a baratinha de mantilha, de nariz erguido para o ar como quem fareja alguma coisa. [...] Estou sentindo o cheirinho dele (p. 13) lembra O pequeno polegar de Perrault e Joãozinho e Maria dos Grimm; [...] –– Estou vendo uma poeirinha lá longe! ( p. 93) remete ao conto O Barba-Azul de Perrault.

Reservando um lugar para o leitor no relato, convidando-o para ingressar no mundo mágico da ficção, onde tudo é possível, a obra lobateana cumpre o seu papel revolucionário. Recuperando caminhos esquecidos, traçando veredas, ampliando as já existentes e abrindo outras, Lobato criou um mapa de um mundo ficcional que se transforma a cada instante, sempre a espera de um novo traçado.

Fonte:
XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.

Anton Tchekhov (O Vingador)


Logo depois de haver surpreendido sua mulher em flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e Cia, a escolher o revolver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava ira, dor e decisão irrevogável.

“Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando os fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu, como cidadão e como homem honrado, devo ser o vingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amante e finalmente suicidar-me-ei”.

Não havia ainda escolhido o revolver e nem sequer assassinara alguém, mas na imaginação já se lhe apresentavam três cadáveres ensangüentados, de crânios triturados, os miolos a flutuarem... Barulho, ruído de curiosos e autópsia.

Possuído pela insensata alegria do homem ofendido, calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a decomposição dos fundamentos da família.

O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de ventre pequeno e colete branco, apresentava-lhe os revólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:

- Eu aconselharia a Mousieur que levasse este magnífico modelo do sistema Smith & Wesson. É a última palavra na ciência das armas. Possui três propulsores e pode-se dispará-lo a uma distância de seiscentos passos. Chamo também a atenção de Mousieur para a limpeza do acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemos diariamente dezenas deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro é preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher e o amante. Quanto aos suicidas, Mousieur, não conheço, para eles, melhor sistema.

E o empregado, apertando e soltando o gatinho, soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse uma arma tão maravilhosa quanto aquela.

- E qual o preço? – perguntou Sigaev.

- Quarenta e cinco rublos, Mousieur.

- Hum! É muito caro, para mim.

- Neste caso, Mousieur, posso oferecer-lhe algo mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e de todos os preços... Este, por exemplo,
do sistema Lefrauché, que custa somente 18 rublos. Porém... – o empregado fez um muxoxo de pouco caso – é um sistema, Mousieur, demasiadamente antiquado. Quem o
compra são os pobres de espírito e os psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher com um Lefauché é considerado atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somente uma Smith & Wesson.

- Não necessito matar-me ou a alguém – mentiu, com acento sombrio, Sigaev. – Compro-o simplesmente para a minha casa de campo... Para assustar os ladrões.

- Não nos interessa o seu motivo – sorriu o empregado, baixando modestamente os olhos – Se, em cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos ter fechado a loja.

Para espantar os corvos, Mousieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído um tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistola Mortimer, das chamadas para duelos.

“E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pela cabeça de Sigaev. “Porém... não... Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos matá-las, como cachorros...”

O empregado, revoluteando graciosamente e em pequenos passos, sem deixar de sorrir e de conversar, apresentou-lhe todo o monte de revólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto mais sólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. A imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um pé convulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e o estupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.

“Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a mim em seguida, porém ela... deixaria viver. Que morra do arrependimento e do desprezo dos que a cercam! Para natureza tão nervosa quanto a sua, será martírio maior que a morte!”

Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o ofendido, estendido no ataúde, com um sorriso bondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelos remorsos, caminhando atrás do féretro, como uma Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores, lançados pela multidão indignada...

- Vejo, Mousieur, que lhe agrada o Smith & Wesson – comentou o empregado, interrompendo o devaneio – Se o acha muito caro, posso fazer uma redução de cinco rublos, embora tenhamos outros mais baratos.

A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre os próprios tacões e alcançou na prateleira outra dúzia de estojos com revólveres.

- Aqui está outro, Mousieur. O preço, trinta rublos. Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e que os direitos alfandegários sobem cada dia mais... Juro-lhe, Mousieur, que sou conservador, porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifa da alfândega são o motivo de que somente os ricos possam adquirir armas!

Para os pobres nada mais resta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são uma desgraça! Se alguém pretender disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenas consegue atingir a própria omoplata...

Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de morrer e não contemplar os sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é doce quando existe a possibilidade de ver e tocar seus frutos. Pois, que sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!

“E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, ver tudo e depois me suicidar?... Sim. Porém... antes do enterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem...

O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu... enquanto não decorra um certo tempo, não me matarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestar declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade, toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria por absolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver... Então....

Um minuto depois, pensava:

“Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se eu me matar... E, depois, para que suicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio é covardia.

Então, o que farei será matá-lo, deixá-la viver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurará como testemunha... Veremos seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meu advogado! Por certo que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão ao meu lado!...”

Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a expor a mercadoria e considerava de seu dever, entreter o comprador.

- Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que recebemos há pouco. Porém, previno-o, Mousieur, de que todos os sistemas empalidecem diante do Smith & Wesson.

Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um militar que comprara um Smith & Wesson em nossa casa, e que o usou contra o amante... E que imagina tenha acontecido? A bala atravessou primeiro o amante, alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o piano de cauda e deste, como uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou a esposa... As conseqüências foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está preso agora... Por certo o condenarão a trabalhos forçados!... Em primeiro lugar, porque temos leis muito antiquadas , em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido do amante. Por quê? Muito simples, Mousieur. Porque também o jurado, os juízes, o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e mais tranqüilos estão quando sabem de que um marido há na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah! Mousieur! Não pode o senhor imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais contemporâneos!... Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causa tanto prazer quanto filar cigarros os outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes... Significa que os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos forçados – e o empregado, olhando em torno de si, sussurrou: - E quem é o responsável, Mousieur? O Governo!

“Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não, não é razoável”, refletiu Sigaev. “Se me condenam aos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de enganar também ao segundo marido. O lucro será todo dela! O que farei então será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele... Devo imaginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo e encetarei escandaloso processo de divórcio...”

- Aqui está, Mousieur, um sistema novo – comentou o empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. – Chamou-lhe a atenção para o mecanismo original do cão...

Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não mais necessitava de revólver. Em compensação, o empregado, cada vez mais inspirado, não cessava de mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, o sujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.

-Bem – balbuciou. – Será melhor que eu volte mais tarde ou mande alguém...

Conquanto não visse a expressão do rosto do empregado, compreendeu que, para suavizar a violência da situação, não havia outra saída que comprar algo. Porém, o que? Seus olhos percorreram as paredes da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde, pendurada junto à porta.

- E isso? Que é isso? – perguntou.

- É uma rede para caçar codornas.

- Qual o preço?

- Oito rublos.

- Pois pode mandar embrulhar.

O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a mão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido, saiu da loja.

Fonte:
Anton Tchekhov. O Beijo e outros contos.
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