quinta-feira, 29 de julho de 2010

Antonio Candido (Letras e Idéias no Período Colonial) Parte 3


Essa visão transfiguradora se incorporou para sempre à literatura e aos estudos, constituindo um dos elementos centrais da nossa educação e do nosso ponto de vista sobre as coisas. Em meados do século XVIII veio juntar-se a ela uma concepção até certo ponto nova que representa, nas idéias em geral, a influência das correntes ilustradas do tempo; a literatura do Classicismo de inspiração francesa e do Arcadismo italiano. Sem anular as tendências anteriores, as correntes então dominantes no gosto e na inteligência apresentam caracteres diversos. Poderíamos esquematizá-las dizendo:

1) que a confiança na razão procurou, senão substituir, ao menos alargar a visão religiosa;

2) que o ponto de vista exclusivamente moral se completou — sobretudo nas interpretações sociais — pela fé no princípio do progresso;

3) que, em lugar da transfiguração da natureza dos sentimentos, acentuou-se a fidelidade ao real. Em suma, formou se uma camada mais ou menos neoclássica, rompida a cada passo pelos afloramentos do forte sedimento barroco.

Aproximadamente com tais características, ocorreu no Brasil uma pequena Época das Luzes, que se encaminhou para a independência política e as teorias da emancipação intelectual, tema básico do nosso Romantismo após 1830. Historicamente, ela se liga no pombalismo, muito propício ao Brasil e aos brasileiros, e exemplo do ideal setecentista de bom governo, desabusado e reformador. Para uma colônia habituada à tirania e carência de liberdade, pouco pesaria o despotismo de Pombal; em compensação, avultaram a sua simpatia pessoal pelos colonos, que utilizou e protegeu em grande número, assim como os planos e medidas para o nosso desenvolvimento. Algo moderno parecia acontecer; e os escritores do Brasil se destacam no ciclo do pombalismo literário, com o Uraguai, de Basílio da Gama, justificando a luta contra os jesuítas; O desertor, de Silva Alvarenga, celebrando a reforma da Universidade; O reino da estupidez, de Francisco de Melo Franco, atacando a reação do tempo de D. Maria I. Isto, sem contar uma série de poemas ilustrados de Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, formulando a teoria do bom governo, apelando para as grandes obras públicas, louvando o governante capaz: Pombal, Gomes Freire de Andrada, Luís Diogo Lobo da Silva.

Daí resultou incremento do nativismo, voltado, agora, não apenas para a transfiguração do país, mas para a investigação sistemática da sua realidade e para os problemas de transformação do seu estatuto político. As condições econômicas eram outras, impondo-se a libertação dos monopólios metropolitanos — sobretudo o do comércio — num país que sofrerá o baque do ouro decadente e necessitava maior desafogo para manter a sua população. As revoluções norte-americana e francesa, o exemplo das instituições inglesas, o nascente liberalismo oriundo de certas tendências ilustradas completariam o impacto do pombalismo, formando um ambiente receptivo para as idéias e medidas de modernização político-econômica e cultural, logo esboçadas aqui com a presença da Corte, a partir de 1808. No Brasil joanino conjugaram-se as tendências e as circunstâncias, tornando inevitável a autonomia política.

Estas considerações visam sugerir que, no período em questão, houve entrosamento acentuado entre a vida intelectual e as preocupações político-sociais. As diretrizes respectivas — conforme as entreviam os nossos homens de então nos modelos franceses e ingleses — se harmonizavam pela confiança na força da razão, considerada tanto como instrumento de ordenação do mundo, quanto como modelo de uma certa arte clássica, abstrata e universal. A isto se juntavam:

1) o culto da natureza, que favoreceu a busca da naturalidade de expressão e sinceridade de emoção, contrabalançando a sua eventual secura;

2) o desejo de investigar o mundo, conhecer a lei da sua ordem, que a razão apreendia;

3) finalmente, a aspiração à verdade, como descoberta intelectual, como fidelidade consciente ao natural, como sentimento de justiça na sociedade.

No caso brasileiro, estes pendores se manifestaram frequentemente pelo desejo de mostrar que também nós tínhamos capacidade para criar uma expressão racional da natureza, generalizando o nosso particular mediante as disciplinas intelectuais aprendidas com a Europa. E que havia uma verdade relativa às coisas locais, desde a descrição nativista das suas características, até a busca das normas justas, que deveriam pautar o nosso comportamento como povo.

A passagem a esta nova maneira de ver é clara na diferença entre dois grêmios, que se sucederam na segunda metade do século XVIII. A Academia dos Renascidos, fundada na Bahia em 1759 por um grupo de legistas, clérigos e latifundiários, abordava temas literários e históricos, — de uma história lendária e próxima à epopéia, ou de uma crônica mais ou menos ingênua de acontecimentos. Dela resultaram os Desagravos do Brasil, de Loreto Couto, a História militar, de José Mirales, as Memórias para a história da capitania de São Vicente, de frei Gaspar da Madre de Deus. A Academia assinala um instante capital na formação da nossa literatura, ao congregar homens de letras de várias partes da colônia, num primeiro lampejo de integração nacional.

A Academia Científica, fundada no Rio em 1771 por médicos, e reformada sob o nome de Sociedade Literária em 1786, para durar intermitentemente até 1795, propagou a cultura do anil e da cochonilha, introduziu processos industriais, promoveu estudos sobre as condições do Rio e acabou criticando a situação da colônia, com base em Raynal e inspirações também em Rousseau e Mably.

Nos escritores deste período encontramos os que representam uma passagem, ou mistura, de Barroco e Arcadismo; os que manifestam diferentes aspectos de um nativismo que vai deixando de ser apenas extático para ser também racional; os que procuram superar a contorção do estilo culto por uma expressão adequada à natureza e à verdade; os que passam da transfiguração da terra para as perspectivas do seu progresso.

Muito interessantes como sintoma são os Diálogos político-morais (1758), de Feliciano Joaquim de Sousa Nunes, ou antes a sua introdução, onde vem claramente expresso o tema do ressentimento dos intelectuais brasileiros, que desejavam ser reconhecidos a par dos metropolitanos e se apegavam, como defesa, à teoria de que o critério da avaliação deveria ser o mérito, não as circunstâncias de naturalidade ou posição social.

Esta atitude ocorre também em Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), escritor de transição entre o cultismo e as novas tendências, representando de algum modo o início de uma atividade literária regular e de alta qualidade no seu país. Contemporâneo dos fundadores da Arcádia Lusitana (1756), que empreendeu a campanha neo-clássica em Portugal, reajustou conforme os seus preceitos a forte vocação barroca, encontrando a solução numa espécie do Neoquinhentismo — parecendo um novo Diogo Bernardes pela síntese da simplicidade clássica e certo maneirismo infuso. Há muita beleza nas suas éclogas, apesar da eventual prolixidade; mas nos sonetos está o melhor do seu estro, como forma e elaboração dos dados humanos.

Apegado à terra natal, é visível nele a impregnação em profundidade dos seus aspectos típicos, naturais e sociais: rocha, ouro, mineração, angústia fiscal. Neste sentido, empreendeu cantar numa epopéia a vitória das normas civis sobre o caos da zona pioneira de aventureiros, narrando a história da capitania de Minas. O resultado foi mau, não chegando a publicar o referido poema — VILA RICA — embora o tivesse aprontado antes de 1780.

Seu amigo Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744-1793) deixou obra pequena, próxima da sua pela forma e as preocupações políticas, e igualmente embebida na realidade mineira. Com Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), companheiro de ambos em Ouro Preto, o Arcadismo encontrou no Brasil a mais alta expressão. Na sua obra há um aspecto de erotismo frívolo, expresso principalmente nas poesias de metro curto, anacreônticas em grande parte, celebrando a namorada, depois noiva, sob o nome pastoral de Marília. Mas ela vale sobretudo pelas de metro longo, voltadas para a expressão lírica da sua própria personalidade. Nelas, com admirável simplicidade e nobreza, traça um roteiro das suas preocupações, da sua visão do mundo e, depois de preso, do seu otimismo estóico. A ele se tem atribuído cada vez mais a autoria das famosas Cartas chilenas, sátira violenta contra um governador de Minas, verberando desmandos administrativos e revelando costumes do tempo, em verso enérgico e expressivo.

Estes três poetas se envolveram na Inconfidência Mineira, mas parece que apenas Alvarenga Peixoto desempenhou nela papel militante. De qualquer modo, foram duramente castigados e representam no Brasil o primeiro e até hoje maior holocausto da inteligência às idéias do progresso social.

Igualmente progressistas e muito estritamente pombalinos (como ficou dito) foram dois outros contemporâneos, que formam um par separado: José Basílio da Gama (1741-1795) e Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814).

O Uraguai (1769), do primeiro (porventura a mais bela realização poética do nosso Setecentos), classificado em geral como epopéia, é na verdade um curto poema narrativo de assunto bélico, visando ostensivamente atacar os jesuítas e defender a intervenção pombalina nas suas missões do Sul. Visivelmente atrapalhado por um material polêmico que não teria tempo, ou disposição de elaborar, o poeta relegou-o para as notas o mais que pôde. No corpo do poema resultou a simpatia pelo índio, esmagado entre interesses opostos; e a fantasia criadora elaborou um admirável universo plástico, descrevendo a natureza e os feitos com um decassílabo solto de rara beleza e expressividade, nutrido de modelos italianos. Graças a isto, o Uraguai se tornou um dos momentos-chave da nossa literatura, descrevendo o encontro de culturas (européia e ameríndia), que Inspiraria o Romantismo indianista, para depois se desdobrar, como preocupação com o novo encontro entre a cultura urbanizada e a rústica, até Os sertões, de Euclides da Cunha, o romance social e a sociologia. No tempo de Basílio, tratava-se de optar, neste processo, entre a tradicional orientação catequética e a nova direção estatal, colocando-se ele francamente ao lado desta.

Na mesma linha se pôs seu amigo Silva Alvarenga, que veio para o Rio depois de formado, enquanto ele permanecia em Portugal. Silva Alvarenga, no poema herói-cômico O desertor (1774), apoia a reforma da Universidade, atacando os velhos métodos escolásticos; e, pela vida afora, mesmo após a reação que sucedeu à queda de Pombal, continuou fiel à sua obra e às tendências ilustradas, em poemas didáticos e, sobretudo, pela já referida atuação na Sociedade Literária, de que foi mentor e lhe valeu quase quatro anos de prisão. O seu papel foi muito importante no Rio dos últimos decênios do século XVIII, pois influiu, como professor, na geração de que sairiam alguns próceres da Independência, — o que faz do velho árcade um elo entre as primeiras aspirações ilustradas brasileiras e a sua consequência político-social.

Como poeta, entretanto, é sobretudo o autor de Glaura (1799), que contém uma série de rondós e outra de madrigais. Os primeiros são uma forma poética inventada por ele com base numa estrofe de Metastasio e constituindo, apesar da monotonia, melodioso encanto em que perpassam imagens admiravelmente escolhidas para denotar o velho tema da esperança e decepção amorosa. Os madrigais, mais austeros como forma, mostram a capacidade clássica de exprimir os sentimentos em breve suma equilibrada. Dentre os árcades, é o mais fácil e musical dos poetas, já que Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) é antes um modinheiro cujas letras têm pouca força sem a partitura.

Para encerrar este grupo de homens superiormente dotados, falta mencionar frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), que fica à parte pela decidida oposição à ideologia pombalina e fidelidade à tradição camoniana. A sua cultura escolástica e o afastamento dos meios literários, mais a influência de cronistas e poetas que se ocuparam do Brasil no modo barroco (Vasconcelos, Rocha Pita, Jaboatão, Itaparica), fazem dele, sob muitos aspectos, prolongamento da visão religiosa e transfiguradora atrás mencionada, levando-o a avaliar a colonização do ângulo estritamente catequético. Mas a época e o talento fizeram-no buscar, superando a falsa e afetada epopéia pós-camoniana, um veio quinhentista mais puro, para celebrar a história da sua pátria no Caramuru (1781). Resultou um poema passadista como ideologia e fatura, mas fluente e legível, com belos trechos descritivos e narrativos, devido à imaginação reprodutiva e à capacidade de metrificar as melhores sugestões das fontes que utilizou. Ele representa uma posição intermediária importante, por ter atualizado a linha nativista de celebração da terra, abrindo caminho para a sua florescência no século XIX.

Costumava-se abranger estes poetas sob o nome coletivo de Escola Mineira. Na verdade, formam, como vimos, três segmentos distintos no movimento arcádico, e a designação só se justificaria caso tomada como sinônimo do grupo brasileiro dentro do Arcadismo português, dada a circunstância de todos eles terem ou nascido em Minas, ou lá passado as partes decisivas da vida.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Olavo Bilac (Plutão)


Negro, com os olhos em brasa,
Bom, fiel e brincalhão,
Era a alegria da casa
O corajoso Plutão.

Fortíssimo, ágil no salto,
Era o terror dos caminhos,
e duas vezes mais alto
Do que seu dono Carlinhos.

Jamais à casa chegara
Nem a sombra de um ladrão;
Pois fazia medo a cara
Do destemido Plutão.

Dormia durante o dia,
Mas, quando a noite chegava,
Junto à porta se estendia,
Montando guarda ficava.

Porém Carlinhos, rolando
Com ele ás tontas no chão,
Nunca saía chorando
Mordido pelo Plutão...

Plutão velava-lhe o sono,
Seguia-o quando acordado
O seu pequenino dono
Era todo o seu cuidado.

Um dia caiu doente
Carlinhos... Junto ao colchão
Vivia constantemente
Triste e abatido, o Plutão.

Vieram muitos doutores,
Em vão. Toda a casa aflita,
Era uma casa de dores,
Era uma casa maldita.

Morreu Carlinhos... A um canto,
Gania e ladrava o cão;
E tinha os olhos em pranto,
Como um homem, o Plutão.

Depois, seguiu o menino,
Segui-o calado e sério;
Quis ter o mesmo destino:
Não saiu do cemitério.

Foram um dia à procura
dele. E, esticado no chão,
Junto de uma sepultura,
Acharam morto o Plutão.

Fontes:
Bilac, Olavo. Poesias Infantis. RJ: Francisco Alves. 1929.
Imagem = http://pt.dreamstime.com

terça-feira, 27 de julho de 2010

José Feldman (Uma Vez Conheci um Anjo)


Uma vez conheci um anjo.
Não tinha asas e nem auréola,
mas tinha um olhar de anjo.

Uma vez conheci um anjo.
Era meiga, sincera,
e falava coisas tão bonitas
que sentia meu coração derreter.

Uma vez conheci um anjo.
sorria como só os anjos sabem sorrir,
e fazia biquinhos tão encantadores
que a vida parecia se tornar mais leve.

Uma vez conheci um anjo.
Ela viu algo dentro de mim,
que ninguém conseguia ver.
Viu beleza e amor.

Uma vez conheci um anjo.
E nos abraçamos,
nos beijamos,
cantamos juntos
e olhamos a lua
com olhar de apaixonados.

Uma vez conheci um anjo.
Juntamos nossas coisas,
e fomos morar juntos,
em um mundo angelical.

Uma vez conheci um anjo.
Tivemos gatos e cachorros,
presente dos céus para nós.
Mas estavamos juntos,
e nos amavamos.

Alguns morreram
outros apareceram em nossas vidas
e enfrentamos a vida juntos
Mas nos amavamos,
e tudo era benção dos céus.

Uma vez conheci um anjo.
A situação se apertou
e fomos para o Paraná.
Caminhavamos pelos parques,
riamos com novos amigos,
batalhando eramos felizes.

Uma vez conheci um anjo.
Voltamos ao seu lugar de origem.
Mas ríamos, cantavamos,
nos amavamos,
nos divertiamos,
mas estavamos ficando velhos.

Uma vez conheci um anjo.
Kika morreu.
Lad morreu.
Gwyddion morreu.
Baby morreu.
Bibo morreu.
Floquinho morreu.
Fluffy morreu.
Eramos felizes e nos amavamos,
e riamos, e bebiamos e nos beijavamos.

Uma vez conheci um anjo,
e agora sei o que é sofrer
por querer um anjo.
O preço foi muito alto
Meu anjo morreu.

Uma vez conheci um anjo.
Hoje sei que são trevas,
Como a noite é escura,
fria e triste.
O que é solidão.

Uma vez conheci um anjo...
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Imagem por Alexa, retirada da internet

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Ialmar Pio Schneider (Baú de Trovas)


Abacateiros que crescem
num vaso à minha sacada,
dá-lhes água que merecem
ostentar sua ramada!

A beleza do jardim
está contida na flor;
e a graça que não tem fim
encontro no teu amor...

Ainda sonho contigo
de noite na minha cama;
és a musa que persigo
com a paixão de quem ama !

Amo a trova em devaneio
porque quero teu carinho:
é por ela que em ti creio
e te espero em meu caminho.

A noite sucede ao dia
e assim se passam os anos
eu vivo sem alegria
e morro de desenganos...

A noite já vem chegando
para trazer-me a saudade,
pois o tempo foi levando
toda a minha mocidade...

As trovas que a gente escreve,
mesmo que sejam banais:
é um pouco da vida breve
que não volta nunca mais...

Como uma musa eu te quis
e depois como mulher,
oh, como fui infeliz
por amar quem não me quer !

Conheci-a linda outrora
no esplendor da juventude,
mas o tempo leva embora
toda vaidade que ilude.

Das flores todas que planto
em meu modesto jardim,
aquela de mais encanto
vem ser você, meu Jasmim!

Da vida não tenho medo,
da morte ainda não sei
qual há de ser o segredo
que nela desvendarei...

Dentro do peito escondido,
no silêncio da saudade,
chora o coração ferido
pelo punhal da maldade.

Desce a noite devagar:
é o começo do verão...
As aves vão descansar
na calma da solidão.

Deve a trova ser singela
para sabê-la de cor;
quanto mais simples mais bela,
quanto mais terna melhor...

Do amor, fez sua doutrina,
o filho de Deus: Jesus.
E no alto de uma colina
morreu pregado na cruz...

Entre amar e ser amado
eu não sei o que é melhor;
porém, viver desprezado,
é, sem dúvida, o pior.

Eras uma linda fada
num jardim cheio de flores;
assim foste minha amada
na canção dos meus amores.

És a mulher do meu sonho,
digo sonhando outra vez,
este delírio tristonho
é a própria vida que o fez.

Eu só fiz de minha vida
uma história mal escrita;
cavalgando a toda brida,
mas sem fugir da desdita.

Eu vou relendo meus versos,
trovas atuais e antigas,
que rolam hoje dispersos,
formando minhas cantigas.

Fiz de teu corpo uma glória:
me inspiraste uma canção...
Quem vai contar nossa história
de saudade e solidão ?!

Hoje a vejo com saudade
sem o viço da beleza,
pois perdeu a mocidade
na guerra c’o a natureza.

Lembro-me às vezes de ti,
nas horas de solidão,
com amor e frenesi
e uma dor no coração...

Mais do que a própria vida
vives em mim, noite e dia,
e mesmo a esperança perdida
ainda em ti esperaria.

Meu coração tem amores
que me perturbam e quanto !
pois até parecem dores
nascidas do desencanto.

Meus olhos guardam ainda
o momento em que te vi...
Oh! meu Deus, eras tão linda
que nunca mais te esqueci!

Morrer cantando, quem dera,
para você, para o povo,
e ao florir a primavera
nascer cantando de novo!

Neste sábado risonho,
embora esteja sozinho,
procuro deixar que o sonho
encontre, enfim, seu caminho...

No jardim da minha vida,
quantas flores cultivei;
Mas em cada despedida
muitas delas arranquei...

O exemplo mais convincente
de minha triste existência,
foi só... quando inteligente,
paguei o mal com paciência...

Ouve os versos que componho
ao te lembrar, ó querida!
A vida parece um sonho,
um sonho parece a vida...

Ouvi dizer que meus versos
não são os teus preferidos;
não creias nesses perversos
que nos querem desunidos.

Pelo sabor dos teus beijos
me apaixonei, certo dia;
hoje vivo nos desejos
que me traz a nostalgia!

Penso em ti de vez em quando
e se não posso te amar,
quero somente, sonhando
teus olhares recordar.

Pudesse um dia chorar
como nos tempos da infância;
é que o passado no lar
escondeu-se na distância.

Quando chegaste trazias
um mundo imenso no olhar,
ao partires deixarias
só tristeza em teu lugar.

Quando estás à beira-mar,
caminhando sobre a areia,
eu me ponho a meditar
que sejas uma sereia.

Quando lembro do passado
sempre fico convencido
que hoje vivo condenado
por ter o tempo perdido.

Quando te vejo formosa,
passeando pelo jardim,
eu penso que és uma rosa
desabrochando pra mim.

Quando te vi, de repente,
meu desejo foi te amar;
tens um quê tão envolvente,
que tanto me faz sonhar...

Quanta dor num verso apenas
quem sofre pode dizer;
eu mesmo sei de centenas
que assim dizem a sofrer.

Quase sempre estou sozinho,
pensando no que virá
por este árduo caminho
minha vida seguirá!...

Quisera trovas suaves
para um mundo mais feliz
e conversar com as aves
qual São Francisco de Assis !

Quisera um buquê de rosas,
cujo aroma se desfaz
pelas horas dolorosas
deste silêncio mordaz.

Quis viver sempre contigo:
assim era meu desejo.
Agora só por castigo
eu fujo quando te vejo.

Se a Humanidade soubesse
tudo o que a poesia encerra,
certamente não houvesse
tanta desgraça na Terra...

Se te querer foi pecado,
sou um grande pecador;
e por isto, condenado
pelo Tribunal do Amor !

Sigo triste solitário
por este mundo a cantar,
não sei fazer o contrário,
desaprendi de chorar.

Sou amigo das mulheres,
elas só me fazem bem;
sê assim se tu puderes
e serás feliz também...

Tanto te amei... foi em vão;
eu te perco de hora em hora,
mas um dia brotarão
lágrimas de quem não chora.

Tem trovas que a gente diz,
tem outras que a gente lê,
e pra mim a mais feliz
é a que fala de você !

Tenho amigos trovadores
e trovadoras amigas;
às mulheres meus amores
e a todos minhas cantigas...

Tenho amor e penso nela
toda noite, todo dia,
cada vez está mais bela
no meu céu de fantasia...

Tens razão quando tu dizes
que o poeta é um sonhador;
neste mundo de infelizes
só assim suporta a dor.

Um verso pobre, uma trova,
merecem sempre acolhida,
pois o sonho se renova
a cada instante da vida.

Velha lira abandonada
dos tempos da mocidade,
hoje cantas magoada,
não de dor, mas de saudade !

Vive então com muita fé,
inda que a dor te consome...
Diz o ditado: “O que é
d’homem o bicho não come”.

Vivemos na contingência
de alimentar a crendice,
que o caminho da existência
vai nos levar à velhice.

Vou fazer-lhe uma proposta;
pense bem no que lhe digo:
se disser que não me gosta,
quero ser só seu amigo !

Fonte:
Colaboração de Ialmar Pio Schneider

Ialmar Pio Schneider (1942)



Nasceu no município de Sertão, RS, em 26/8/1942.

Residiu por mais de 20 anos em Canoas, e atualmente reside em Porto Alegre.

Poeta, advogado, cronista e bancário aposentado,

Entidades a que pertence:
Casa do Poeta Rio-Grandense,
União Brasileira de Trovadores - Sede de Porto Alegre,
Grêmio Literário Castro Alves,
Agei - Associação Gaúcha dos Escritores Independentes,
Casa do Poeta de Canoas,
entre outras.

Antonio Cândido (Letra e Idéias no Período Colonial) Parte 2



Procurando sintetizar estas condições, poderíamos dizer que as manifestações literárias, ou de tipo literário, se realizaram no Brasil até a segunda metade do século XVIII, sob o signo da religião e da transfiguração.

Aquela foi a grande diretriz ideológica, justificando a conquista, a catequese, a defesa contra o estrangeiro, a própria cultura intelectual. Era idéia e princípio político, era forma de vida e padrão administrativo; não espanta que fosse, igualmente, princípio estético e filosófico. À sua luz se abriga toda a obra de José de Anchieta (1533-1597), desde as admiráveis cartas-relatórios, descrevendo o quadro natural e social em que se travavam as lutas da fé, até os autos didáticos, os cantos piedosos em que as suas verdades eram postas ao alcance do catecúmeno. As crônicas do jesuíta português Simão de Vasconcelos obedecem a um princípio declaradamente religioso, de informar e edificar; mas o mesmo acontece, no fundo, à História do franciscano brasileiro Vicente do Salvador (156?-163?), sob aparência de piedade menos imediata. E até a crônica do militar português Francisco de Brito Freire, tão política, pinta no fundo os progressos da fé, encarnados no guerreiro e administrador que luta contra o protestante flamengo — o que também verificamos no Valeroso Lucideno, de frei Manuel Calado.

Se sairmos dessa literatura histórica, deparamos com a oratória sagrada, seara do maior luso-brasileiro do século, o jesuíta Antônio Vieira (1608-1697). Já aqui a religião-doutrina se mistura indissoluvelmente à religião-símbolo. Estamos em pleno espaço Barroco, e a dialética intelectual esposa as formas, as metáforas, toda a marcha em arabesco da expressão culta. Estamos, além disso, no gênero ideal para o tempo e o meio, em que o falado se ajusta às condições de atraso da colônia, desprovida de prelos, de gazetas, quase de leitores. Nunca o verbal foi tão importante e tão adequado, sendo ao mesmo tempo a via requerida pela propaganda ideológica e o recurso cabível nas condições locais. E nunca outro homem encarnou tão bem este conjunto de circunstâncias, que então cercavam a vida do espírito no Brasil — pois era ao mesmo tempo missionário, político, doutrinador e incomparável artífice da palavra, penetrando com a religião como ponta de lança pelo campo do profano. Seu contemporâneo Gregório de Matos (1633-1696) foi o profano a entrar pela religião adentro com o clamor do pecado, da intemperança, do sarcasmo, nela buscando guia e lenitivo. Ao orador junta-se este poeta repentista e recitador para configurar ao seu modo, e também sob o signo do Barroco, a oralidade característica do tempo, que permaneceu tendência-limite no meio baiano até os nossos dias. Apesar de conhecido sobretudo pelas poesias burlescas, talvez seja nas religiosas que Gregório alcance a expressão mais alta, manifestando a obsessão com a morte, tão própria da sua época, e nele muito pungente, porque vem misturada à exuberância carnal e ao humorismo satírico, desbragados e saudáveis. Nascido na Bahia, amadureceu no Reino e só voltou à pátria na quadra dos quarenta; lá e aqui não parece ter cuidado em imprimir as obras, que se malbarataram nas cópias volantes e no curso deformador da reprodução oral, propiciando a confusão e a deformação que ainda hoje as cercam.

Em torno dessas duas grandes figuras circulam outras, também da Bahia — clérigos e homens de prol, cultores do discurso e da glosa. Mas um apenas dentre eles parece ter-se considerado realmente homem de letras, tendo sido o primeiro brasileiro nato a publicar um livro: Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711). Já aqui não estamos na região elevada em que o estilo culto exprime uma visão da lima e do mundo, emprestando-lhe o seu caprichoso vigor expressivo, listamos, antes, no âmbito do Barroco vazio e malabarístico, contra o qual se erguerão os árcades, e que passou à posteridade como índice pejorativo da época. Botelho de Oliveira é, deste ponto de vista, mais representativo que os outros da média da nossa literatura culta, as mais das vezes apenas alambicada. E nos serve para Introduzir o segundo tema dominante, que se definiu justamente graças ao espírito Barroco.

O espanto ante as novidades da terra levou facilmente à hipérbole. As modas literárias e artísticas, dominantes desde os fins do século XVI, somaram-lhe a agudeza e a busca deliberada da expressão complicada e rica. Em consequência, estendeu-se sobre o Brasil, por quase dois séculos, um manto rutilante que transfigurou a realidade — ampliando, suprimindo, torcendo, requintando. Sobre o traço objetivo e descarnado de certos cronistas atentos ao real — Gabriel Soares, Antonil — brotou uma folhagem até certo ponto redentora, que emprestou à terra bruta estatura de lenda e contornos de maravilha. Lembremos apenas o caso do mundo vegetal, primeiro descrito, depois retocado, finalmente alçado a metáfora. Se em Gabriel Soares de Sousa (1587) o abacaxi é fruta, nas Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil (1668), de Simão de Vasconcelos, é fruta real, coroada e soberana; e nas Frutas do Brasil (1702), de frei Antônio do Rosário, a alegoria se eleva ao simbolismo moral, pois a regia polpa é doce às línguas sadias, mas mortifica as machucadas — isto é, galardoa a virtude e castiga o pecado. Por isto, o arguto franciscano constrói à sua roda um complicado edifício alegórico, nela encarnando os diferentes elementos do rosário. Nesta fruta, americana entre todas, compendiou-se a transfiguração da realidade pelo Barroco e a visão religiosa. Em Botelho de Oliveira, Rocha Pita, Itaparica, Durão, São Carlos, Porto-Alegre, ela e outras do seu séquito conduzem, até o cerne do século XIX, a própria idéia de mudança da sensibilidade européia nas condições do Novo Mundo.

A historiografia barroca estendeu o processo a toda a realidade, natural e humana, e os esforços de pesquisa documentária promovidos pelas Academias (dos Esquecidos, 1724-1726; dos Renascidos, 1759-1760) só deixam de ser listas neutras de bispos e governadores quando os seus dados se organizam num sistema nativista de interpretação religiosa e de metáfora transfiguradora. É o caso, sobretudo, da História da América portuguesa, de Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), onde o Brasil se desdobra como um portento de glórias nos três reinos da natureza, enquadrando a glória do homem, — que converte o gentio, expulsa o herege e recebe como salário as dádivas vegetais e minerais, a cana e o ouro.

Não suprimindo, mas envolvendo e completando o conhecimento objetivo da realidade, a visão ideológica e estética da colônia se fixa de preferência na apoteose da realidade e no destino do europeu, do pecador resgatado pela conquista e premiado com os bens da terra, quando não redimido pela morte justa. Isto mostra como o verbo literário foi aqui — ajudado e enformado pela mão do Barroco — sobretudo instrumento de doutrina e composição transfiguradora. Alegoria do mundo e dos fatos; drama interior da carne e do espírito; concepção teológica da existência. Rocha Pita, Gregório de Matos, Antônio Vieira encarnam as vigas mestras do ajustamento do verbo ocidental à paisagem moral e natural do Brasil.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Vicência Jaguaribe (Com Gosto de Massa de Bolo Crua)


Aqueles, talvez, fossem os últimos dias da avó. Embora continuasse lúcida, os órgãos vitais já davam sinal de falência. Quase não se alimentava mais, e o coração estava muito fraco.

A moça se aproximou da cama que a avó ocupara depois de muita resistência. Durante os anos de prostração, ela negara-se a abandonar a rede. A neta entendera que chegara o fim quando a velha concordara em ir para a cama. Com cara de poucos amigos, mas concordara. Ela aproximou-se, mas não ficou dentro do campo de visão da doente.

- Quem está aí? – perguntou a avó, descerrando os olhos.

Aqueles olhos, até bem pouco tempo, falavam uma linguagem que toda a família e todos os amigos entendiam. Eles, sozinhos, sem a ajuda da fala, dos gestos, ou de qualquer outro recurso, davam ordem, mandavam e desmandavam. Bastava um olhar da dona Olívia para que todo mundo assumisse a postura que ela exigia. Agora, porém, pareciam ter perdido a força e o brilho.

- Sou eu, vovó, a Maria Helena.

- Venha cá. Chegue mais perto.

**********

- Venha cá. Chegue mais perto.

A menina aproximou-se da avó. A velha terminara de pôr a massa do bolo na forma e tinha os dedos sujos da mistura que a neta adorava. Se deixassem, comeria toda aquela massa, crua mesmo. Mas os adultos a afastavam, falando em dor de barriga. A avó, no entanto, quando terminava aquela operação, deixava que ela chupasse seus dedos sujos da massa.

Naquele dia, depois que limpou toda a massa dos dedos da avó, a menina ficou parada vendo-a dirigir-se ao quintal, onde o pai mandara construir um forno a lenha. Observando aquela avó, mãe de sua mãe, ela pensou na outra avó, a mãe de seu pai. Tão diferentes as duas! Ela não sabia exatamente o que sentia por aquela mulher forte e decidida, que não dispensava muita atenção a crianças, mas que a deixava limpar seus dedos sujos de massa de bolo.

Mas de uma coisa ela sabia, embora não entendesse muito bem por que tinha aqueles sentimentos: o que ela sentia por esta avó era algo diferente do que sentia pela outra avó. Da outra ela tinha pena. Tinha sempre vontade de protegê-la. Aquela avó não estava preparada para enfrentar o mundo. Não sabia impor sua vontade. Não era dona de sua própria casa. Da outra – a que lhe dera os dedos sujos da massa do bolo para que ela os chupasse feito um bebê sugando o leite do peito da mãe – dessa, ela tinha medo, mas era um medo misturado com admiração. Admirava suas atitudes decididas, seu porte ereto, seu ar de quem não temia nem gente nem bicho; sua franqueza, que chegava a ultrapassar os limites da conveniência. Perto dela, sentia-se protegida, embora a temesse.

Gostava de ouvi-la assoviando, com o bico afinado, suas músicas favoritas – “Lua Branca”, por exemplo. A outra avó, não, achava que assovio não era para mulheres. E brigava quando ouvia as netas tentando imitar esta avó.

Ela deixara a cidadezinha onde a menina morava com os pais, e fora para a capital. Só voltava em ocasiões especiais. Morava com uma filha que enviuvara com sete filhos pequenos. Mas não vendera o casarão onde morara e onde criara os filhos. Não o vendera nem o alugara. Quando os netos tivessem discernimento suficiente, voltaria para o interior, onde pretendia viver até a morte – visita que ela não esperava com muita tranquilidade. Nada de sorrir-lhe, nada de pôr a mesa, nada de lavrar o campo, de limpar a casa. Nada de colocar cada coisa em seu lugar. E, principalmente, nada de cumprimentos. Se tivesse condições, fecharia a porta para que ela não entrasse.

Era também muito controlada em relação a dinheiro. A menina não se lembrava de haver recebido um presente de suas mãos. Presente, para ela, era o mesmo que esbanjar dinheiro. Os presentes que ela dava aos filhos, aos netos, à família, de maneira geral, eram sempre em forma de serviço, em forma de socorro na hora das necessidades.

**********

- Helena Maria, você não ouviu? Chegue mais perto.

Aquela ordem arrancou a menina do mundo da infância, ainda degustando a massa de bolo crua. Ela puxou uma cadeira e sentou-se em uma posição que permitia à avó ver-lhe o rosto. A claridade que penetrava pela porta aberta dava condições a que a moça distinguisse com perfeição os traços fisionômicos da avó. Ou era somente a recordação do que ela fora? O rosto quadrado, com feições bem marcadas. Os lábios finos, contrastando com o nariz meio grosso – que a mãe da menina herdara. Os olhos castanhos e firmes, as maçãs do rosto, salientes. E a testa alta, de onde saíam os poucos cabelos claros e muito finos, que ela usava presos dos lados por grampos. Como estava magrinha! Fora uma mulher forte, com curvas bem acentuadas. Agora, aquele corpo parecia, antes, o de uma criança. Perdera as formas exuberantes, que deixara como herança para as filhas e as netas.

- Pronto, vovó, estou aqui.

- Vá à sala de jantar, abra a cristaleira e me traga aquele aparelho de porcelana verde. Aquele pequeno serviço de chá. Aquele que você sempre cobiçou.

- Não, vovó, eu não o cobiçava. Achava-o bonito. Admirava-o. É diferente.

A velha quis replicar e tentou abrir um sorriso, que acabou em esgar.

- Vá! Não perca tempo.

A moça trouxe as delicadas peças e espalhou-as na cama, de modo que a avó pudesse tocá-las. Mas a velha não perdeu tempo com sentimentalismo.

- Leve-o. É seu.

- Mas, vovó...

- Não diga nada. Só você gosta dessas antiguidades, que seus irmãos e primos chamam velharia. Agora vá. Deus a abençoe.

Ao cair da noite daquele dia, a velha se viu obrigada a abrir a porta para a indesejada das gentes, em uma cena da qual ela nunca quis admitir que um dia seria protagonista.

A neta, a cada vez que conciliava o sono naquela noite, sonhava com a avó batendo bolo. E, em todas as vezes em que sonhou, acordou com o gosto de massa de bolo crua na boca.

Fonte:
Colaboração da Autora
Imagem = http://www.rainhasdolar.com.br/

terça-feira, 20 de julho de 2010

Constelação de Trovas II

PARANÁ  Mesmo soltas e espalhadas, as pétalas são formosas; porém somente abraçadas é que elas se tornam rosas! A. A. DE ASSIS – PR Se todos, sinceramente, mostrarem paz e labor, nós teremos, brevemente, menos ódio, mais amor! ARLENE LIMA - PR Quero ser sempre a criança com desejo de estudar, curiosa e na esperança de nunca me completar... DINAIR LEITE - PR Quem tem sonhos hoje em dia Nunca perca a esperança Diz velha sabedoria Quem espera sempre alcança. JOSÉ FELDMAN – PR Do livro da tua vida, sou página, enfim, virada; tornei-me cena esquecida, por tudo, só tive o nada. LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE – PR Quem diz que eu olho e não vejo a lágrima em seu olhar não merece mais meu beijo, pois sofro a me controlar. NEI GARCEZ - PR No rosto, um leve sorriso disfarça a dor da saudade... - Há vezes em que é preciso fingir a felicidade. OLGA AGULHON – PR Se a vida te desafia qual gigante Adamastor, desperta, na travessia teu gigante interior. ROSA DE OLIVEIRA - PR Juraste-me ser fiel, mas do nosso amor, contudo, hoje resta o velho anel num estojo de veludo. VANDA ALVES DA SILVA - PR Num dos lances mais astutos que a vida tem-me inspirado, eu mostro os olhos enxutos, e escondo o lenço molhado. VANDA FAGUNDES QUEIROZ - PR Sou mulher, luto, decido, sei de cor muitos poemas, mas com seu beijo atrevido, esqueço até dos problemas! VÂNIA MARIA SOUZA ENNES - PR Na vida, essa pauta imensa, por direito ou por dever, a gente escolhe a sentença e a cumpre, sem perceber. WANDIRA F. QUEIROZ – PR MINAS GERAIS A bondade é um sábio meio de ajudar-se e de ajudar: -- quem enxuga o pranto alheio não tem tempo de chorar! ALFREDO DE CASTRO - MG “Eu te amo” – a frase bendita não veio...e o orgulho forte fez da sentença não dita minha sentença de morte! ARLINDO TADEU HAGEN - MG As almas de muita gente São como o rio profundo: -A face tão transparente, E quanto lodo no fundo!... BELMIRO BRAGA - MG As flores do seu jardim os versos de sua história trouxeram também pra mim uma canção pra memória. DÁGMA VERÔNICA -MG Meu barracão na favela, Onde vou vivendo ao léu, Na moldura da janela, Não tem vidraça: -Tem céu! JOSÉ ANTONIO JACOB - MG Cometi, não por vingança, um crime que foi surpresa: matei a tua lembrança, em legítima defesa! JOSÉ FABIANO –MG Mãe,tuas simples sentenças, em minha infância enraizadas, ainda norteam crenças e escolhas de encruzilhadas. WANDA DE PAULA MOURTHÉ-MG SÃO PAULO Meus pequenos descendentes, podendo ajudar, ajudo. Protejo e rego as sementes, que o berço é berço de tudo. ALBA CHRISTINA-SP Faltar um pouco à verdade por questão de educação, diga com sinceridade, merece ou não o perdão? AMILTON MACIEL MONTEIRO-SP Tal e qual meu pé de rosa, que ao ser podado floresce, esta saudade teimosa, quanto mais podo, mais cresce!... CAROLINA RAMOS - SP Nos laços presos às tranças da cigana envelhecida entrelaçam-se lembranças das tranças todas da vida... DIVENEI BOSELI - SP Tricotando o casaquinho, à espera de ser vovó, teço ternura e carinho nos pontos em cada nó! DOMITILA BORGES BELTRAME-SP Sabedoria há de sobra para deixar de te amar, mas, se o coração me cobra, eu não consigo pagar... IZO GOLDMAN - SP Baú velho, tampo torto, cartas e fotos mofando... -Refúgio de um sonho morto que eu vivo ressuscitando!... JOSÉ OUVERNEY - SP Qual um Sol assim já posto, totalmente num ocaso, meu coração por desgosto chorou nosso fim de caso. MIFORI-SP Toda a noite, quando saio, vendo o céu luminescente, sinto a paz que é como um raio de luar dentro da gente. MYRTHES MAZZA MASIERO-SP Persiste, mas por maldade, a tua luz não tem fim: -Brilha o luar da saudade no céu que há dentro de mim! PEDRO MELLO-SP Se o erro ficou distante, seja pleno o teu perdão: não se cobra ao diamante seu passado de carvão! PEDRO ORNELLAS - SP Não busco outras alianças, nem procuro um novo afeto: em tua ausência, as lembranças me povoam por completo... RENATA PACOLLA-SP Que tu sejas, nos teus brios, quando buscares a glória, altivo nos desafios, mas humilde na vitória! SELMA PATTI SPINELLI-SP A humildade se ilude, quando a justiça que faz: - Prega na cruz a virtude e liberta... Barrabás!... SÉRGIO FERREIRA DA SILVA-SP RIO DE JANEIRO Eu canto triste no canto saudades do teu amor, porém se ouvires meu canto, peço graças ao Senhor. AGOSTINHO RODRIGUES CAMPOS-RJ Namorei por toda a vida todos os sonhos que sonhei, até meus sonhos perdidos confesso que namorei! ANTONIO MANUEL ABREU SARDENBERG – RJ Todo amor nos eterniza, pois toda morte perece e todo tempo agoniza aonde a paixão floresce. CARLOS AUGUSTO ALENCAR-RJ Nosso amor, mais que sagrado, tem brasa que o fogo atiça: -É um feitiço do passado que, até hoje, me enfeitiça! CLENIR NEVES RIBEIRO – RJ Quem por cigarros se entrega às mãos do vício, sem medos, não percebe que carrega a morte acesa entre os dedos... EDMAR JAPIASSÚ MAIA -RJ Por um capricho da sorte, por uma estranha tortura, o amor que me leva à morte é o que me dá mais ventura! ELIZABETH S. CRUZ - RJ Nosso amor, que coisa estranha: conflitos... poucos assuntos... Ficamos “de mal...” no entanto queremos sempre estar juntos. GILVAN CARNEIRO DA SILVA – RJ Para uma vida melhor, nada mais se faz preciso: Pedir ao Senhor-Maior sabedoria e... juízo! HERMOCLYDES S. FRANCO-RJ Esta é uma vida engraçada e até parece pilhéria, uns com a sorte sonhada, outros, apenas, miséria! JOSÉ F. SALLES –RJ Saudade, quase se explica Nesta trova que te dou: Saudade é tudo que fica Daquilo que não ficou. LUIZ OTÁVIO - RJ O primeiro e grande amor é o doce amor de Jesus, que, salvando o pecador, morreu pregado na cruz. NEIVA FERNANDES - RJ Se foi presságio, não sei; mas eu senti, na partida, que aquele adeus que eu te dei dava adeus à nossa vida... OTÁVIO VENTURELLI-RJ Em teu silêncio, bem sei, um conselho me enviaste... Foi quando te perguntei se me amavas... E calaste! RENATO ALVES -RJ Hoje, nós, os pecadores, oramos por salvação a quem só pagou com dores para ganharmos perdão. ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE - RJ É emoção que só conhece, numa corrente do bem, quem junta as mãos numa prece para pedir por alguém! RODOLPHO ABBUD - RJ Devotamento no lar prova a presença do amor, dando exemplo singular de família de valor. RUTH FARAH NACIF-RJ Se o meu silêncio diz tudo que a minha boca não diz, o amor no peito é escudo que me faz viver feliz! WALTER SIQUEIRA-CAMPOS-RJ RIO GRANDE DO NORTE Quando o poeta se extasia, nas asas, da inspiração, faz do sonho, a poesia, põe no verso, o coração. FABIANO WANDERLEY-RN Entre as mãos, o lenhador, tem o machado que corta, e o seu cabo, que a rigor, é de outra árvore já morta! FRANCISCO NEVES MACEDO-RN Versos soltos ou fragmentos são as trovas que componho, que amenizam meus tormentos e dão mais vida ao meu sonho! JOAMIR MEDEIROS-RN A vida e o sonho, querida, são graças que Deus nos deu: quem não ama não tem vida, quem não sonha, já morreu! JOSÉ LUCAS DE BARROS - RN Eu sempre quis numa trova, provar tudo quanto fiz. Mas nunca passei na prova, nem fiz a trova que quis. PROFESSOR GARCIA - RN CEARÁ Para exaltar a beleza, notória num puro amor, é necessário pureza, ter alma de trovador. ANA MARIA NASCIMENTO-CE Mesmo que a lembrança marque de um certo modo cruel, aos domingos vou ao parque dar voltas no carrossel. FRANCISCO JOSÉ PESSOA-CE Já não adianta insistir, pedindo para te amar, eu já cansei de pedir tu não cansas de negar. GERALDO AMANCIO PEREIRA - CE SANTA CATARINA A Poesia nasce na alma, transmite amor e amizade, beleza, ternura e calma, é a própria felicidade! GISLAINE CANALES - SC RIO GRANDE DO SUL Pelos caminhos sem fim, que a vida me fez trilhar, fiquei perdida de mim, sem conseguir me encontrar! DELCY CANALLES-RS PARÁ Seja na paz ou na guerra, quer na alegria ou na dor, o maior poder da terra tem quatro letras: Amor! ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA-PA Ó Senhor, com o teu poder, deixa na praia eu sonhar, pois as ondas irão ver que eu também pertenço ao mar! SARAH RODRIGUES - PR BAHIA Principalmente no amor deve haver devotamento, sem o qual pode haver dor e até mesmo esquecimento. RAYMUNDO SALLES BRASIL-BA PERNAMBUCO Soprei. Apagou-se a chama. Disse-te adeus em seguida. -Quem diz adeus a quem ama diz adeus à própria vida! OLEGÁRIO MARIANO - PE MARANHÃO Mãos que imploram, na pobreza; mãos que assistem seus irmãos. – Quanto amor, quanta beleza, há no encontro dessas mãos! ORLANDO BRITO – MA PORTUGAL Pelas procelas da vida passei tanto vendaval... A cada onda vencida nela afundei o meu mal! MARIA JOSÉ FRAQUEZA – PORTUGAL

Antonio Cândido (Letra e Idéias no Período Colonial) Parte 1


(exposição didática)

Os primeiros estudiosos da nossa literatura, no tempo do Romantismo, se preocuparam em determinar como ela surgiu aqui, já que o relativismo então reinante ensinara que as instituições da cultura radicam nas condições do meio, variando segundo elas. E como a época era de exigente nacionalismo, consideravam que lutara dois séculos para se formar, a partir do nada, como expressão de uma realidade local própria, descobrindo aos poucos o verdadeiro caminho, isto é, a descrição dos elementos diferenciais, notadamente a natureza e o índio. Um expositor radical desta corrente, Joaquim Norberto, chegou a imaginar a existência de uma literatura indígena, autenticamente nossa, que, a não ter sido sufocada maliciosamente pelo colonizador, teria desempenhado o papel formador que coube à portuguesa…

Daí, a concepção passou à crítica naturalista, e dela aos nossos dias, levando a conceber a literatura como processo retilíneo de a brasileiramente), por descoberta da realidade da terra ou recuperação de uma posição idealmente pré-portuguesa, quando não antiportuguesa. Resultaria uma espécie de espectrograma em que a mesma cor fosse passando das tonalidades esmaecidas para as mais densamente carregadas, até o nacionalismo triunfal dos indianistas românticos.

Este ponto de vista é historicamente compreensível como elemento de tomada de consciência da jovem nação, tanto mais quanto os letrados brasileiros, a certa altura do século XVIII, passaram conscientemente a querer fundar ou criar uma literatura nossa, embora sem as aspirações separatistas que os românticos teriam mais tarde. O ponto de vista moderno tenderia mais ao deles, pois o que realmente interessa é investigar como se formou aqui uma literatura, concebida menos como apoteose de cambucás e morubixabas, de sertanejos e cachoeiras, do que como manifestação dos grandes problemas do homem do Ocidente nas novas condições de existência. Do ponto de vista histórico, interessa averiguar como se manifestou uma literatura enquanto sistema orgânico, articulado, de escritores, obras e leitores ou auditores, reciprocamente atuantes, dando lugar ao fenômeno capital de formação de uma tradição literária.

Sob este aspecto, notamos, no processo formativo, dois blocos diferentes: um, constituído por manifestações literárias ainda não inteiramente articuladas; outro, em que se esboça e depois se afirma esta articulação. O primeiro compreende sobretudo os escritores de diretriz cultista, ou conceptista, presentes na Bahia, de meados do século XVII a meados do século XVIII; o segundo, os escritores neo-clássicos Ou arcádicos, os publicistas liberais, os próprios românticos, porventura até o terceiro quartel do século XIX. Só então se pode considerar formada a nossa literatura, como sistema orgânico que funciona e é capaz de dar lugar a uma vida literária regular, servindo de base a obras ao mesmo tempo universais e locais.

Historicamente considerado, o problema da ocorrência de uma literatura no Brasil se apresenta ligado de modo indissolúvel ao do ajustamento de uma tradição literária já provada há séculos — a portuguesa — às novas condições de vida no trópico. Os homens que escrevem aqui durante todo o período colonial são, ou formados em Portugal, ou formados à portuguesa, iniciando-se no uso de instrumentos expressivos conforme os moldes da mãe-pátria. A sua atividade intelectual ou se destina a um público português, quando desinteressada, ou é ditada por necessidades práticas (administrativas, religiosas etc). É preciso chegar ao século XIX para encontrar os primeiros escritores formados aqui e destinando a sua obra ao magro público local.

Por isso, não se deve perder de vista duas circunstâncias capitais: o imediatismo das intenções e a exiguidade dos públicos, que produziram algumas importantes consequências. Assim, ou a obra se confundia à atividade prática, como elemento dela (sermão, relatório, polêmica, catequese), ou se fechava na fronteira de pequenos grupos letrados, socialmente ligados às classes dominantes, com a tendência consequente ao requinte formal. Num caso e noutro pesava a composição da obra o destino que ela teria. O auditório de igreja, os convivas de sarau seriam os públicos mais à mão; o curso oral, à boca pequena, o meio principal de divulgar. Também a obra exclusivamente escrita pouco se aparta da intenção e pontos de vista práticos, na medida em que é crônica, informação, divulgação.

Estas considerações sugerem alguns dos modos por que se teria processado o ajuste entre a tradição européia e os estímulos locais, faltando mencionar que os padrões estéticos do momento — os do atualmente chamado Barroco — atuaram como ingrediente decisivo.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Antonio Cândido (O Escritor e o Público) - Parte Final



As considerações anteriores procuram apontar algumas condições da produção da literatura no Brasil, quase até os nossos dias, do ponto de vista das relações do escritor com o público e dos valores de comunicação.

Na primeira metade do século XX houve alterações importantes no panorama traçado, principalmente a ampliação relativa dos públicos, o desenvolvimento da indústria editorial, o aumento das possibilidades de remuneração específica. Em consequência, houve certa desoficialização da literatura, que havia atingido nos dois primeiros decênios extremos verdadeiramente lamentáveis de dependência ideológica, tornando-se praticamente complemento da vida mundana e de banais padrões acadêmicos. A partir de 1922 o escritor desafogou; e embora arriscando a posição tradicionalmente definida de "ornamento da sociedade" e as consequentes retribuições, pôde definir um papel mais liberto, mesmo não se afastando na maioria dos casos do esquema traçado anteriormente — de participação na vida e aspiração nacionais. A diferenciação dos públicos, alguns dos quais melhor aparelhados para a vida literária, permitiu maiores aventuras intelectuais e a produção de obras marcadas por visível inconformismo, como se viu nas de alguns modernistas e pós-modernistas. Convém mencionar que as elites mais refinadas do segundo quartel do século XX não coincidiram sempre, felizmente, a partir de então, com as elites administrativas e mundanas, permitindo assim às letras ressonância mais viva.

Se considerarmos o panorama atual, talvez notemos duas tendências principais no que se refere à posição social do escritor. (O "atual" deste escrito é o ano de 1955, quando foi publicado) De um lado, a profissionalização acentua as características tradicionais ligadas à participação na vida social e à acessibilidade da forma; de outro, porventura como reação, a diferenciação de elites exigentes acentua as qualidades até aqui recessivas de refinamento, e o escritor procura sublinhar as suas virtudes de ser excepcional. Há, portanto, uma dissociação do panorama anterior, que lhe dá maior riqueza e, afinal, um contraponto mais vivo. Ao contrário do que se tinha verificado até então, quase sem exceções (pois a supervisão dos grupos dominantes incorporava e amainava imediatamente as inovações e os inovadores), assistiu-se entre nós ao esboço de uma vanguarda literária mais ou menos dinâmica.

É preciso agora mencionar, como circunstância sugestiva, a continuidade da "tradição de auditório", que tende a mantê-la nos caminhos tradicionais da facilidade e da comunicabilidade imediata, de literatura que tem muitas características de produção falada para ser ouvida. Daí a voga da oratória, da melodia verbal, da imagem colorida. Em nossos dias, quando as mudanças assinaladas indicavam um possível enriquecimento da leitura e da escrita feita para ser lida, — como é a de Machado de Assis, — outras mudanças no campo tecnológico e político vieram trazer elementos contrários a isto. O rádio, por exemplo, reinstalou a literatura oral, e a melhoria eventual dos programas pode alargar perspectivas neste sentido. A ascensão das massas trabalhadoras propiciou, de outro lado, não apenas maior envergadura coletiva à oratória, mas um sentimento de missão social nos romancistas, poetas e ensaístas, que não raro escrevem como quem fala para convencer ou comover.
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Próximo Tópico = Letras e Idéias no Período Colonial
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.