quarta-feira, 27 de abril de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XX – O Cágado na Festa do Céu


Certa vez houve uma grande festa no céu, para a qual foram convidados os bichos da floresta. Todos se encaminharam para lá, e o cágado também — mas este era vagaroso demais, de modo que andava, andava e não chegava nunca.

A festa era só de três dias e o cágado nada de chegar. Desanimado, pediu a uma garça que o conduzisse às costas. A garça respondeu: "Pois não", e o cágado montou.

A garça foi subindo, subindo, subindo; de vez em quando perguntava ao cágado se estava vendo a terra.

— Estou, sim, mas lá longe.

A garça subia mais e mais.

— E agora?

— Agora já não vejo o menor sinalzinho da terra.

A garça, então, que era uma perversa, fez uma reviravolta no ar, desmontando o cágado. Coitado! Começou a cair com velocidade cada vez maior. E enquanto caía, murmurava:

Se eu desta escapar,
léu, léu, léu,
se eu desta escapar,
nunca mais ao céu
me deixarei levar.

Nisto avistou lá embaixo a terra. Gritou:

— Arredai-vos, pedras e paus, senão eu vos esmagarei! As pedras e paus se afastaram e o cágado caiu. Mesmo assim arrebentou-se todo, em cem pedaços.

Deus, que estava vendo tudo, teve dó do coitado. Afinal de contas aquela desgraça tinha acontecido só porque ele teimou em comparecer à festa do céu. E Deus juntou outra vez os pedaços.

É por isso que o cágado tem a casca feita de pedacinhos emendados uns nos outros.
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— Esta história — disse dona Benta — deve de ser dos Índios. Os povos selvagens inventam coisas assim para explicar certas particularidades dos animais. A casca do cágado é toda feita de segmentos, o que dá idéia de quebradura. Daí o tombo do céu, inventado pelos índios.

— Pobres índios! — exclamou Narizinho. — Se as histórias deles são todas como essa, só mostram muita ingenuidade. Acho que os negros valem mais que os índios em matéria de histórias. Vá, Nastácia, conte uma história inventada pelos negros.

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Continua… XXI – O Rabo do Macaco
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Baú de Trovas III


Se a noite chega cansada
de caminhar sempre ao léu,
Deus dá vinhos de alvorada
na taça rubra do céu.
ADELIR MACHADO - Niterói/RJ

Quebro a taça do passado
e o vinho espalhado ao chão
é meu brinde apaixonado
aos cacos de uma ilusão.
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO - São Paulo/SP

Quando o inverno, com seu manto,
cobre de frio os caminhos,
o vinho é o doce acalanto
do coração dos sozinhos...
ALBERTINA MOREIRA PEDRO - Rio de Janeiro

A saudade, sem carinho,
procura, nas noites frias,
por velhas taças de vinho
que a vida já pôs vazias!
AMÁLIA MAX - Ponta Grossa/PR

Neste meu verso amoroso
digo com certa emoção:
- a trova é vinho gostoso
que embriaga o coração.
ANITA THOMAS FOLMANN - Ponta Grossa/PR

Meigo menino sem nome
- alma e vida seminuas -
devora o vinho da fome
pelas adegas das ruas.
ANTONIO BISPO DOS SANTOS - Niterói/RJ

Goza o momento que passa.
Repara que, em nossas vidas,
nem sempre há vinho na taça,
mas, há, sempre, despedidas...
CARLOS GUIMARÃES - Rio de Janeiro

Não há vinho que me faça
esquecê-la um só segundo,
porque vejo em cada taça
a imagem dela, no fundo.
CLARINDO BATISTA DE ARAÚJO - Natal/RN

Eu, como quem desabafa
no vinho a dor que lhe esmaga,
vou pondo a dor na garrafa
do vinho que me embriaga.
DIVENEI BOSELI - São Paulo/SP

Brigamos... E o amor, injusto,
prendendo-me a um labirinto,
põe no vinho, que degusto,
todo o amargor que ainda sinto!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA - Rio de Janeiro/RJ

Querência... O encanto profundo
dos dias calmos, risonhos...
- Um pedacinho de mundo
no mundo azul dos meus sonhos.
ELISABETH N. PASCHOAL - Taubaté/SP

Quando a tristeza rescinde
contrato com o coração,
louve a Deus e faça um brinde
com o vinho dda gratidão.
FRANCISCO LUZIA NETTO - Amparo/SP

Quando a tristeza não passa,
forço um sorriso no rosto,
ponho vinho em minha taça
e ergo um brinde ao meu desgosto!...
IZO GOLDMAN - São Paulo/SP

Foram felizes instantes,
Juventude na querência
Hoje em terras tão distantes
Pilcha…mate…sinto ausência.
JOSÉ FELDMAN – Maringá/PR

Se nunca me abate a lida,
é porque sempre reponho
minha energia perdida,
tomando o vinho do sonho.
JOSÉ NOGUEIRA DA COSTA - Pouso Alegre/MG

Cada vez mais terno e amigo,
na verdade o nosso amor
tem muito do vinho antigo
que o tempo apura o sabor!
JOSÉ TAVARES DE LIMA - Juiz de Fora/MG

Como atitudes presentes,
a envelhecer feito os vinhos,
bons exemplos são sementes
lançadas pelos caminhos.
LAVÍNIO GOMES DE ALMEIDA - Barra do Piraí/SP

O vinho dissipa o tédio
em que o fracasso nos joga.
Na dose certa é remédio,
em excesso, nos afoga!...
LOURDES REGINA F. GUTBROD - Rio de Janeiro/RJ

No abandono, em desalinho,
eu sonho me embriagar
na branca taça de vinho
que se derrama em luar!
MARINA BRUNA - São Paulo/SP

São gotas de poesia,
ou de algum raro licor,
que o orvalho, com alegria,
põe no cálice da flor.
MARLÊ B. J. DE ARAÚJO - Viamão/Portugal

O licor molha o carpete...
E o par de taças quebradas
brinda o silêncio... e reflete
nossas noites fracassadas.
MILTON SEBASTIÃO SOUZA - Porto Alegre/RS

A videira busca o sumo
em solo fértil, profundo,
e faz do vinho um resumo
das alquimias do mundo.
MOACYR SACRAMENTO - Niterói/RJ

O amor foi vinho excelente
que, embalando anseios vãos,
provei... E a vida inclemente
tirou-me a taça das mãos!
PEDRO ORNELLAS – São Paulo/SP

Sei que este mundo é mesquinho,
mas, Senhor Deus, não aceite
que alguns se fartem de vinho,
pois há crianças sem leite!
SÉRGIO MIRANDA FILHO - Rio de Janeiro/RJ

Que verdura, que beleza,
o vinhedo sobre o monte,
quando a mão da Natureza
borda a tela do horizonte!
SEBASTIÃO SOARES - Natal/RN

Eu tinha o corpo cansado...
Ao dela faltava amor...
- E foi um vinho encorpado
que deu corpo ao nosso amor!...
WALDIR NEVES - Rio de Janeiro/RJ

Na lareira um fogo brando
e, entre doses de licor,
nossos corpos desenhando
todas as formas de amor.
WILMA MELLO CAVALHEIRO - Porto Alegre/RS

Fonte:
Colaboração de Nuhtara Dahab

Moacyr Scliar (Felicidade Não se Compra. Nem Mesmo pela Internet)


"Sofá de dois lugares, seminovo: produtos como esse podem sair de sua casa e serem vendidos com a ajuda da internet.". Folha Informática, 23.mar.2005

Ele adorava o sofá de dois lugares que estava no living. A mulher odiava o sofá de dois lugares que estava no living. Ele adorava o sofá de dois lugares que estava no living porque era ali que, todas as noites, se instalava para assistir a TV até altas horas. A mulher odiava o sofá de dois lugares que estava no living porque era ali que, todas as noites, o marido se instalava para assistir a TV até altas horas. E, vendo TV, o marido não queria fazer programas, não queria passear, não queria nem conversar. Em desespero, ela ameaça vender o sofá por qualquer preço.

O marido não acreditava. Porque a mulher não tinha jeito para negociar. Não sabia falar com as pessoas, não sabia apresentar seu produto. Se dependesse de sua habilidade para a venda, o sofá de dois lugares permaneceria no living por muitos e muitos anos. De modo que ele ficou muito surpreso quando, voltando do trabalho, não encontrou o sofá. Vendi, disse a mulher, triunfante. Ele não quis acreditar, achou que fosse brincadeira. Ela explicou: graças à internet, tinha vendido a uma pessoa que nem conhecia, que enviara um portador para entregar o dinheiro e levar o sofá.

Aquilo deixou-o furioso. Queria o seu sofá de volta e exigiu da mulher o nome do comprador. Ela simplesmente se recusou a revelar esse segredo.

Brigaram e, naquela noite, ele dormiu no outro quarto do apartamento, vazio desde que a filha tinha casado. De madrugada, uma idéia lhe ocorreu. Correu a verificar os e-mails da esposa e, de fato, ali estava a mensagem enviada pela compradora, com nome, endereço, telefone.

No dia seguinte, ligou para essa mulher, disse que precisava vê-la com urgência: assunto ligado à compra do sofá. Ela relutou, mas consentiu em recebê-lo. Ele foi até a casa, num bairro afastado. E ali estava a mulher, ainda jovem, a esperá-lo. No living, diante da TV, o sofá de dois lugares.

Que ele quis comprar de volta. Ela recusou; gostara do sofá, não o venderia. Ele recorreu a todos os argumentos, sem resultado, quis até pagar o dobro da quantia que ela havia despendido. Nada, ela mostrava-se irredutível, e ele acabou desistindo.

Antes de ir embora, porém, resolveu perguntar quem sentava ao lado dela no sofá.

Ninguém, foi a resposta. Divorciada, estava sozinha havia algum tempo. Comprara um sofá de dois lugares porque tinha esperança de, um dia, arranjar um companheiro.

Ele tem ido à casa da nova proprietária do sofá. Senta-se ao lado dela para ver TV, coisa que adora. No começo, ela gostava da companhia.

Mas agora já não acha o arranjo tão bom: o homem não quer fazer programas, não quer passear, não quer nem conversar.

Ela pensa seriamente em vender o sofá. Não é muito hábil nessas coisas, mas tem certeza de que, através da internet, resolverá o problema.

Fontes:
Escritores do Sul.
Imagem = http://portoalegre.olx.com.br

terça-feira, 26 de abril de 2011

Astrid Cabral (Antologia Poética)


NO COLO DO ANJO

Empoleirado
na torre do meu sonho
um anjo resplandece.
Cílios cintilantes
estrelas nos olhos
ele me acena com plumas
e me abraça com asas.
Juntos vagamos
entre rastros de astros
a cavalgar nuvens
por planícies etéreas
até que me sinto serena.
É como se mudo dissera
não temas véus ou névoas
qualquer neblina passa.
Mas eis que então fala:
Não sejas cega, menina.
O olhar de Deus tudo abarca.
Só os homens têm pálpebras.

DESASTRES DE AMOR

Mulher bule de louça
deixa-se pegar pela alça
e verte suor e sangue
em quantia exata.
Dei com o nariz
na porta do teu coração.
Foi sangria desatada
e a porta do pronto-socorro
também encontrei fechada.

Eu disse a meu coração:
Sossega pois tudo passa.
O nada não é perdição
mas estado de graça.

Desde que o mundo é mundo
a sina:
o amor, centelha
que faz o incêndio
e a cinza.

BUSCA


Minha infância é hoje
aquele peixe de prata
que me escorregou da mão
como se fosse sabão.
Mergulho no antigo rio
atrás do peixe vadio
— Quem viu? Quem viu?
Minha infância é hoje
aquele papagaio fujão
No ar, sua muda canção
Subo nos galhos da goiabeira
atrás do falaz papagaio
— Me segura, me segura
senão eu caio.

MODO DE AMAR

Amor com tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
Amor como relâmpago e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.

AMOR NO PÍER

Confesso: o amor por ti
não atravessou o mar.
Só molhou as pernas na espuma
e temendo vagas, dunas
não quis cavalgar o vento.

Confesso: o amor por ti
deixou-se ficar no píer
sem percorrer ponte alguma.
Acenavas terra ao longe
a ventura de outra margem.

Meu amor ficou no meio
refém do medo de risco.
Queria apenas passeio
a bordo escuna sem lastro.
Nunca a viagem de fato

CREPÚSCULO

Por que esta ânsia de sobreviver
assim se amoita no âmago de mim
sempre que as lerdas pálpebras da noite
baixam nas altas ramas com os morcegos?
Por que o poente assim me abala o eixo
e de fúnebre pompa alma me embrulha
tal qual mortalha um pouco prematura?
Por que me pesa suportar as trevas
que o implacável fim do dia instaura
quando já estagiei em precipícios
saltando trampolins perto de abismos?
Por que morrer me assusta e paralisa
se o que temo perder, de longe sei
nada tem de Eldorado ou paraíso?

CANÇÃO TRÔPEGA


A vida não tem volta.
Sobra o séquito de sombras
e uma canção trôpega
atravessada no peito:
espada, rubra espada
cravada de mau jeito.
Aqueles rapazes esbeltos
ai, estrangularam-se
nas gravatas da rotina.
Ai, crucificaram-se
no lenho das doenças.
Aqueles rapazes tão belos
não fazem mais acrobacias
nem discursos inflamados
Arrastam chinelos e redes
ruminam silêncio amargo.
Um dia fui bela, filha,
digo a surpreendê-la.
Devo provar com retratos
o que tem ar de mentira.

ÁUREOS TEMPOS

Áureos tempos aqueles
quando na manhãzinha goiaba
colhíamos no cerrado gabirobas
ainda vestidas de orvalho.
Pés e patas competiam no capim
pródigo de carrapichos.
Gestos elásticos ultra-rápidos
assustávamos insetos e aves.
Um séquito de suaves súditos
nos seguia em semi-adoração
nós, os príncipes daquele feudo.
Depois, o asfalto rasgou o campo.
Cogumelos de concreto brotaram.
Cresceram as crianças e a cidade.
Anãs ficaram as árvores aos pés
de edifícios colossais. Sumiram
pássaros gabirobas araçás.
Fim de passeios e piqueniques.
Só ficou a fome funda das frutas
no vão sem remissão das bocas .

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 197)


Uma Trova Nacional

Tive a noção do fracasso
quando o tempo, em desvario,
encheu de ausências o espaço
que o sonho deixou vazio!
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova Potiguar

Busco iludir o destino,
e sigo um caminho a esmo,
a sonhar que sou menino
mas só engano a mim mesmo.
–UBIRATAN QUEIROZ/RN–

Uma Trova Premiada


2008 - Bandeirantes/PR
Tema: AUDÁCIA - Venc.

Muito suor foi preciso,
mas minha audácia venceu:
- finalmente, o chão que eu piso
tem dono... e o dono sou eu!!!
–DARLY O. BARROS/SP–

...E Suas Trovas Ficaram

Magia – é quando o crepúsculo
do sol, apaga o braseiro,
e um pirilampo... minúsculo…
acende o seu candeeiro…
–LUCY SOTHER ROCHA/MG–

Simplesmente Poesia

LUCAROCAS/CE
Ser Poeta

Ser poeta é ser artista
Das letras e emoções,
Da alma apurar a vista
Pra visitar corações,
E depois com sentimento
Eternizar o momento
Nas mais sonoras canções.

Estrofe do Dia

Lembro um sertanejo simples
Sem terra pra cultivar,
Pele queimada de sol
Sem teto pra se abrigar;
Rugas precoces no rosto
Mãos rudes a mendigar.
–VITOR RONALDO COSTA/DF–

Soneto do Dia

– DIVENEI BOSELI/SP –
Ratoeira

Quando a desgraça chega sorrateira
e tranca o riso aberto em minha face,
eu sofro tudo e, da pior maneira,
a minha mente faz pior o impasse.

Então eu caio num ratoeira
e, em torno, ronda a dúvida, rapace
da crença, essa esperança corriqueira,
que só seria fé se a cultivasse.

O desespero, reles armadilha,
rouba-me o norte, oculta minha trilha
e eu, entre muitos, penso estar demente!

Mas, Criatura, um grão de Fé me basta;
venço da noite o medo que me arrasta
e abro meus braços para o sol nascente!

Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XIX – A Mulher Dengosa


Era uma vez um homem que se casou com uma mulher muito cheia de dengues. Fingia não ter apetite. Quando se sentava à mesa era para tocar apenas nos pratos. Comia três grãos de arroz e já cruzava o talher, como se tivesse comido um boi inteiro.

O marido desconfiou de tanta falta de apetite, porque apesar daquele eterno jejum ela estava bem gordinha. E imaginou uma peça.

— Mulher — disse ele — tenho de fazer uma viagem de muitos dias. Adeus.

E partiu com a mala às costas — mas deu jeito de voltar sem ser percebido.e de esconder-se na cozinha, atrás do pilão.

Logo que se viu só em casa, a mulher dos dengues suspirou de alívio e correu à cozinha.

— Joaquina — disse à cozinheira — prepare-me depressa uma sopa bem grossa, que quero almoçar.

A negra preparou uma panelada de sopa, que a dengosa engoliu até o finzinho.

Logo depois disse à cozinheira:

— Joaquina mate um frango e prepare-me um ensopado para o jantar.

A negra preparou o ensopado, que ela comeu sem deixar uma isca.

— Agora, Joaquina, prepare-me uns beijus bem fininhos para eu merendar.

E merendou os beijus, sem deixar nem um farelo.

— E agora, Joaquina, prepare-me um prato de mandioca bem enxuta para eu cear.

A negra preparou a mandioca, que a dengosa comeu até não poder mais.

O marido então escapou do seu esconderijo e foi bater na porta da rua, fingindo estar chegando da viagem. Era um dia de chuva bem forte.

Quando a mulher abriu e deu com o homem, ficou desapontada. Ele explicou que havia desistido da tal viagem e voltado.

— Mas maridinho, como chegou você tão enxuto, debaixo duma chuva tão grossa?

O marido respondeu:

— Se a chuva fosse tão grossa como a sopa que você almoçou, eu viria tão ensopado como o frango que você jantou; mas como era uma chuva fina como os beijus que você merendou, eu cheguei tão enxuto como a mandioca que você ceou.

A dengosa ficou admiradíssima daquelas palavras e desapontadíssima ao compreender que o esposo tinha descoberto sua manha. E acabou com os dengues.
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— Bem feito! — exclamou Emília. — Não gosto de gente afetada. Esse homem sabia fazer as coisas. Sem empregar nenhuma brutalidade, deu uma lição de mestre na dengosa.

— Mas o pior — disse Narizinho — é que fiquei com água na boca de vontade de comer os tais beijus. Que será beiju? Nunca vi isso.

— É mesmo! — disse dona Benta voltando-se para tia Nastácia. — Está aí um petisco que você nunca se lembrou de fazer.

— E sei fazer, sinhá, sei fazer beijus dos mais gostosos, mas nunca encontro por aqui farinha boa. A da venda do Elias Turco não vale nada — é como o nariz dele.

— E eu — disse Pedrinho — fiquei com vontade de comer mandioca cozida, da bem enxutinha, com melado de rapadura. Upa! É uma coisa da gente lamber os beiços.

— Beiço é de boi — protestou Emília. — Gente tem lábios.

— Bom — disse Narizinho — essa história foi excelente, mas curta demais. Conte uma comprida.

Tia Nastácia, porém, contou outra ainda mais curta.
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Continua… XX – O Cágado na Festa do Céu
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

Conferência Municipal Discute Rumos da Política Cultural de Ponta Grossa


Para fomentar discussões referentes à Política Cultural de Ponta Grossa, a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo promove nesta semana a 12ª Conferência Municipal de Cultura. Na oportunidade artistas, promotores culturais e membros da comunidade vão debater a Política Cultural do Município e participar da eleição dos delegados que representarão o Município na próxima Conferência Estadual de Cultura. A 12º Conferência Municipal de Cultura definirá os sete segmentos culturais que serão representados no Conselho Municipal de Cultura (CMC) e elegerá os seus representantes, um titular e dois suplentes, para cada um dos sete segmentos.

A Conferência Municipal é etapa integrante das Conferências Setoriais, Estadual e Nacional de Cultura, e de todos os Fóruns, Reuniões e Assembléias que demandarem representação do Município de Ponta Grossa na área da cultura, durante a vigência dos mandatos dos representantes eleitos, destinada à discussão dos temas de interesse municipal, regional e estadual pelos protagonistas da cultura do município.

Os trabalhos da 12ª Conferência Municipal de Cultura serão divididos em reuniões setoriais realizadas no Centro de Cultura Cidade de Ponta Grossa, de acordo com o seguinte cronograma: dia 25- Artes Populares (Folclore, Escolas de Samba, Hip?Hop, Artesanato, entre outros); dia 26- Artes Cênicas (Teatro, Circo, Dança, Ópera e Mímica); dia 27- Artes Visuais (Artes Plásticas, Cinema, Fotografia, Vídeo, Moda, Filatelia, Arquitetura, entre outros); dia 28- Música; dia 29- Literatura, com horário a definir pela Comissão Organizadora, para a elaboração da minuta sobre as políticas culturais do município e ações prioritárias de cada segmento e das propostas em nível estadual e federal para a cultura.

Segundo a secretária de Cultura e Turismo de Ponta Grossa, Elizabeth Schmidt, a Secretaria como gestora do orçamento público destinado à área cultural, dentro das disponibilidades orçamentárias e financeiras e dos parâmetros legais, tem a função de atender a demanda dos artistas, promotores e administradores culturais. “Dessa forma, buscamos mostrar à população o resultado desse trabalho, pois nossa função é a de criar e manter um ambiente de cooperação e parceria para o desenvolvimento da atividade cultural”, diz Elizabeth. Além disso, a secretária acrescenta que é importante a participação de todos para que se tenha um panorama diversificado e representativo do processo cultural do Município, para a proposição e avaliação de projetos e ações e para o processo de desenvolvimento da cultura em Ponta Grossa.

Ao final da Conferência, serão anunciadas propostas e moções aprovadas pela Plenária e confirmará os nomes dos representantes eleitos para o Conselho Municipal de Cultura e os delegados eleitos para representar Ponta Grossa nas Conferências que ocorrerem até abril de 2013, declarando oficialmente encerrada a 12ª Conferência Municipal de Cultura.

PARTICIPAÇÃO

Podem participar da 12ª Conferência Municipal de Cultura cidadãos maiores de 16 anos, integrantes dos Conselhos Municipais da Cultura, de Patrimônio Cultural, de Turismo e de Educação, representantes de entes governamentais com área de atuação relacionada à Cultura e representantes de entes não?governamentais ligados à área Cultural. Os participantes inscritos terão direito a voz e voto, podendo votar e ser votados.

Reunião Setorial

Local: Centro de Cultura Cidade de Ponta Grossa

Horários:
25/04- 20h- Setorial de Artes Populares (Folclore, Escolas de Samba, Hip-Hop, Artesanato, entre outros)

26/04- 20h- Setorial de Artes Cênicas(Teatro, Circo, Dança, Ópera e Mímica)

27/04- 20h Setorial de Artes Visuais (Artes Plásticas, Cinema, Fotografia, Vídeo, Moda, Filatelia, Arquitetura, entre outros)

28/04- 20h- Setorial de Música

29/04- 14h- Setorial de Literatura

Fonte: Colaboração da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa. Artigo de Patrícia Antunes, 25 abril, 2011, para o Boletim Informativo da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

João de Deus (Antologia Poética)


FOLHA CAÍDA

Árida palma
Tem seu licor;
Tem, como a alma
Tem seu amor;
Tem, como a hera
Tem seu Abril;
Tem, como a fera
Tem seu covil.

Tem toda a planta,
Que o sol crestou,
Lágrima santa
Que a orvalhou;
E o passarinho,
Que ontem nasceu,
Lá tem seu ninho
Que a mãe lhe deu.

Só eu na mágoa
Do meu penar
Sou como a água
Que anda no mar;
Sou como a onda
Que à busca vem
De onde se esconda,
E onde não tem!

Folha revolta
Que anda no chão,
Lágrima solta
Do coração;
Corpo sem vida,
Haste sem flor,
Folha caída
Do meu amor!

TRISTEZAS

Na marcha da vida
Que vai a voar
Por esta descida
Caminho do mar,

Caminho da morte
Que me há-de arrancar
O grito mais forte
Que eu posso exalar:

O ai da partida
Da pátria, do lar,
Dos meus e da vida,
Da terra e do ar…

Já perto da onda
Que me há-de tragar,
Embora se esconda
No fundo do mar;

De noite e de dia
Me alveja no ar
O fumo que eu via
Subir do meu lar!

Que sonhos dourados
Me estão a lembrar!
Mas tempos passados
Não podem voltar.

Carreira da vida,
Que vás a voar
Por esta descida,
Vai mais devagar;

Que eu vou deste mundo
Talvez… descansar,
E nunca do fundo
Dos mares voltar!...

AMORES, AMORES

Não sou eu tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfaz-se-me o pejo,
E o gosto ficou?
Um deles por graça
Deu-me um, e, depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.

Abraços, abraços,
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a razão:
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ar.

Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal,
E a rosa em murchando
Não vale um real:
Eu sou muito amada,
E há muito que sei
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.

Amores, amores,
Deixá-los dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

AVARENTO

Puxando um avarento de um pataco
para pagar a tampa de um buraco
que tinha já nas abas do casaco,
levanta os olhos, vê o céu opaco,
revira-os fulo e dá com um macaco
defronte, numa loja de tabaco,
que lhe fazia muito mal ao caco!
Diz ele então
na força da paixão:
- Há casaco melhor que aquela pele?
Trocava o meu casaco por aquele...
e até a mim... por ele.
Tinha razão
quanto a mim.
Quem não tem coração,
quem não tem alma de satisfazer
as niquices da civilização
homem não deve ser:
seja saguim,
que escusa tanga, escusa langotim.
Vá para os matos;
já não sofre tratos
a calçar as botas, a comprar sapatos.
Viva nas tocas como os nossos ratos
e coma cocos, que são mais baratos!

MISÉRIA


Era já noite cerrada,
Diz o filho: "Oh minha mãe,
Debaixo d'aquella arcada
Passava-se a noite bem!"

A cega, que todo o dia
Tinha levado a andar,
A tais palavras do guia
Sentiu-se reanimar.

Mas saltam dois cães de gado,
Que eram como dois leões:
Tinha-os à porta o morgado
Para o guardar dos ladrões.

Tornam os pobres à estrada,
E aonde haviam de ir dar?
Ao palácio da tapada
Onde el-rei ia caçar.

À ceguinha meia morta
Torna o filho: "Oh minha mãe,
Ali no vão de uma porta
Passava-se a noite bem!"

- Se os cães deixarem... (diz ela,
A triste n'um riso amargo),
Com efeito a sentinela:
- "Quem vem lá?... Passe de largo!"

Então ceguinha e filhinho,
Vendo a sua esperança vã,
Deitaram-se no caminho
Até romper a manhã!…

SEMPRE

Nem te vejo por entre a gelosia;
Nunca no teu olhar o meu repousa;
Nunca te posso ver, e todavia,
Eu não vejo outra cousa!

PERDÃO

Seria o beijo
Que te pedi,
Dize, a razão
(outra não vejo)
Por que perdi
Tanta afeição?
Fiz mal, confesso;
Mas esse excesso,
Se o cometi,
Foi por paixão,
Sim, por amor
De quem?... de ti!
Tu pensas, flor
Que a mulher basta
Que seja casta,
Unicamente?
Não basta tal:
Cumpre ser boa,
Ser indulgente.
Fiz-te algum mal?
Pois bem: perdoa!
É tão suave
Ao coração
Mesmo o perdão
De ofensa grave!
Se o alcançasse,
Se o conseguisse,
Quisera então
Beijar-te a mão,
Beijar-te a face...
Beijar? que disse!
(Que indiscrição...)
Perdão! Perdão!

ADORAÇÃO


Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par;
Contemplei-o de longe mudo e quedo,
Como quem volta de áspero degredo
E vê ao ar subindo
O fumo do seu lar!

Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual;
Suave como lâmpada sagrada,
Bem-vindo como a luz da madrugada
Que rompe ao navegante
Depois do temporal!

Vi esse corpo de ave,
Que parece que vai
Levado como o Sol ou como a Lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!

Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!

Tremo apenas pressinto
A tua aparição,
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor que eu sinto,
É uma adoração!

Que as asas providentes
De anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!

Fontes:
Rua da Poesia
– TUFANO, Douglas (organizador). Antologia Escolar da Poesia Portuguesa
Link: De Camôes a Pessoa. SP: Moderna, 1993.

João de Deus (1830 – 1896)


João de Deus de Nogueira Ramos nasceu em São Bartolomeu de Messines a 8 de Março de 1830, filho de Isabel Gertrudes Martins e de Pedro José dos Ramos, modestos proprietários dali naturais e residentes. O pai, também comerciante, era conhecido entre os seus patrícios por Pedro Malgovernado, não que merecesse o cognome pelo mau governo da sua casa, mas pela facilidade em satisfazer as vontades dos filhos, com os quais gastava mais do que podia.

João de Deus, o quarto de catorze irmãos, não lhe permitindo a situação sócio-económica da família aspirar a uma carreira universitária, estudou latim na sua terra natal e ingressou no Seminário de Coimbra, então o único caminho para prosseguir estudos aberto aos menos abonados. Em 1850, aos dezenove anos, não tendo vocação para a vida eclesiástica, ingressou na Universidade de Coimbra como estudante de direito.

Preferindo as belas artes à ciência do direito, envolvido na vida boêmia coimbra, teve na Universidade um percurso acadêmico conturbado, com diversas interrupções e reprovações por faltas. Apenas se formou dez anos depois de ter ingressado, em 13 de Julho de 1859, e mesmo assim por instâncias e ameaças dos seus condiscípulos, entre os quais se incluía a melhor intelectualidade da época.

Logo no ano de ingresso na Universidade revelou o seus dotes líricos, escrevendo versos que circularam manuscritos no meio acadêmico e com os quais obtinha modestos rendimentos que ajudavam na sua parca subsistência. De 1851 conhece-se o poema Pomba e a elegia Oração, a qual foi a sua primeira obra publicada, tendo saído a público na Revista Académica em 1855, tendo merecido imediata aclamação pública.

Nos anos seguintes, os fracos recursos familiares, a melancolia e passividade do seu caráter e o insucesso acadêmico levaram a que João de Deus vivesse em Coimbra numa quase indigência. Como forma de ajuda, os amigos e condiscípulos coligiram as suas poesias, as quais foram aparecendo na imprensa coimbrã da época. São desta fase os poemas publicados na Estreia Literária, na Ateneu e no Instituto de Coimbra.

Com aquelas publicações a sua reputação de poeta lírico foi crescendo, com a sua obra a merecer, já em 1858, uma crítica fortemente elogiosa no artigo A propósito de um Poeta, publicado no Instituto de Coimbra por Antero de Quental.

Em 1859, terminado o curso, opta por permanecer em Coimbra, praticando pouca advocacia e continuando a escrever, agora produzindo poesia de caráter satírico, entre as quais ressalta A lata (publicada em 1860 e a sua primeira obra em separata) e A Marmelada.

Não tendo interesse pela advocacia, em 1862 aceita o convite para ir para Beja como redator do periódico O Bejense, então o jornal de maior expansão no Alentejo. Neste período colaborou em diversos periódicos da imprensa regional do sul de Portugal. Permaneceu em Beja até 1864, regressando nesse ano à sua terra natal.

Mantendo colaboração com a imprensa regional alentejana e algarvia e redigindo a Folha do Sul, em São Bartolomeu de Messines e em Silves tentou sem sucesso a advocacia, tendo em 1868 optado por partir para Lisboa, cidade onde passou a residir.

Em Lisboa levou uma vida de grandes privações. Passava o tempo nos cafés, em particular no Martinho da Arcada, em constantes tertúlias, sem nunca procurar encontrar uma forma estável de ganhar a vida. Para sobreviver recorria à realização de traduções, à escrita de sermões e hinos para cerimônias religiosas e a colaborações literárias várias. Neste período diz-se que, entre outras actividades, costurou roupas de senhora.
[editar] A passagem pelas Cortes

Numa dessas tertúlias surgiu a ideia, talvez no contexto do tradicional bota abaixo dos políticos (o poema Eleições de João de Deus indicia isso mesmo), de tentar a eleição de João de Deus como deputado às Cortes e por esta via obter uma subvenção que lhe permitisse viver.

A ideia foi levada avante, e João de Deus apresentou-se às eleições gerais de 22 de Março de 1868 (para a 16:ª legislatura da monarquia constitucional) como candidato independente pelo círculo de Silves.

Apesar da sua candidatura ser apoiada por José António Garcia Blanco e Domingos Vieira, a eleição não foi fácil, tendo havido lugar a uma votação de desempate no dia 5 de Abril imediato. Saindo vitorioso, presta juramento nas Cortes a 18 de Maio de 1868, iniciando relutantemente a sua actividade parlamentar.

Sobre o Parlamento, em declarações que foram publicadas pelo Correio da Noite em 1869, terá dito: Que diacho querem vocês que eu faça no Parlamento? Cantar? Recitar versos? Deve ser (…) gaiola que talvez sirva para dormir lá dentro a ouvir a música dos outros pássaros. Dormirei com certeza!. Essas palavras retratam a sua atitude perante a actividade parlamentar: em 1868 ainda participou, embora sem intervir, na maioria das sessões, mas no ano seguinte, faltou a 10 das 13 sessões que se realizaram.
[editar] O casamento e a mudança de vida
Estátua a João de Deus no Jardim da Estrela.

Em 1868, pouco depois da sua eleição parlamentar, casa com Guilhermina das Mercês Battaglia, uma senhora de boas famílias, ganhando estabilidade na sua vida pessoal.

Deste casamento nasceram Maria Isabel Battaglia Ramos, José do Espírito Santo Battaglia Ramos, que vira a ser visconde de São Bartolomeu de Messines, João de Deus Ramos, que continuaria a obra pedagógica de seu pai, e Clotilde Battaglia Ramos.

Com o casamento e a passagem pelas Cortes, refletindo uma maior disponibilidade, inicia a publicação sistemática da sua obra poética e dramática. Logo nesse ano publica a coletânea Flores do campo, a que se segue uma pequena recolha de 14 poemas intitulada Ramo de flores (1869), considerada a sua melhor obra poética.

Ambas recolhas resultaram da seleção feita por José António Garcia Blanco entre os poemas publicados na imprensa periódica. São obras com laivos de ultra-romantismo, representativas da sua primeira fase de produção poética de João de Deus.

Estes textos seriam depois reunidos e organizados por Teófilo Braga. A compilação dos seus textos líricos, satíricos e epigramáticos foi editada com o título de Campo de Flores (1893), e os textos de prosa com o título de Prosas (1898). Na coletânea Campo de Flores foi incluído o poema algo lascivo Cryptinas, o que na altura foi motivo de algum escândalo.

Ao longo dos anos seguintes manterá colaboração com a imprensa periódica e continuará a produzir traduções e adaptações de obras de diversos autores, com destaque para as comédias Amemos o nosso próximo, Ser apresentado, Ensaio de Casamento e A viúva inconsolável

O poema Horácio e Lydia (1872), uma tradução da obra homônima de Pierre de Ronsard, demonstra a perícia de João de Deus na versificação e na manutenção do ritmo discursivo.

Demonstrando a mutação espiritual entretanto ocorrida, publica em 1873 os textos em prosa Ana, Mãe de Maria, A Virgem Maria e A Mulher do Levita de Ephraim, traduções livres da obra Femmes de la Bible do arcebispo francês Georges Darboy. Na mesma linha vão as obras Grinalda de Maria (1877), Loas da Virgem (1878) e Provérbios de Salomão.

Também por esta altura, talvez por influência do seu amigo Antero de Quental, adere ao ideário socialista, vindo e publicar na edição de 29 de Agosto de 1880 do jornal católico Cruz do Operário uma carta onde se afirma socialista dizendo que (…) é socialista porque é cristão, é socialista porque ama os seus semelhantes (…).

Entretanto, em 1876, menos de um ano depois da morte de António Feliciano de Castilho e perante a descrença em que caíra o Método Português de Castilho, João de Deus envolveu-se nas campanhas de alfabetização, escrevendo a Cartilha Maternal, um novo método de ensino da leitura, que o haveria de distinguir como pedagogo.

A Cartilha, num processo muito semelhante aos esforços que 25 anos antes António Feliciano de Castilho empreendera com o seu método, incorpora, para além daquela experiência, os trabalhos de Johann Heinrich Pestalozzi e Friedrich Wilhelm August Fröbel, dando-lhe um caráter menos infantilizante.

A obra foi recebida de forma encomiástica, sendo saudada como utilíssima e genial pelos principais intelectuais da época, entre os quais Alexandre Herculano e Adolfo Coelho.

Este método, relativamente inovador na época, foi dois anos depois, e por proposta do deputado Augusto Lemos Álvares Portugal Ribeiro, aprovado como o método nacional de aprendizagem da escrita da língua portuguesa. Graças a esta decisão, João de Deus teria a nomeação vitalícia de Comissário Geral da Leitura para essa forma de ensinar, com uma pensão anual de 900$000 réis.

Para complementar o seu método, João de Deus publicou uma tradução adaptada da obra Des devoirs des enfants envers leurs parents, de Theodore-Henri Barraus, a que se seguiram múltiplos artigos de natureza pedagógica contento exortações e instruções dirigidas aos mestres que deveriam aplicar o método.
[editar] Os anos finais

A expansão do método da Cartilha Maternal foi seguida de um autêntico fenómeno de culto pela figura do poeta, tornando-o numa das figuras mais populares do último quartel do século XIX português. Nesse contexto foi organizada em 1895 uma grande homenagem nacional ao poeta, alegadamente iniciativa dos estudantes de Coimbra. Durante a homenagem o rei D. Carlos impôs-lhe a grã-cruz da Ordem de Santiago da Espada e por todo o país foram realizadas iniciativas comemorativas.

Na sequência da homenagem nacional, o Diário de Notícias, de 8 de Março de 1895, publicou o seguinte texto laudatório: João de Deus é uma das personificações mais belas do nosso caráter peninsular; vivo e indolente, devaneador e apaixonado, crente e sentimental. É uma flor do meio-dia, cheia de seiva e colorido, dos poetas e nunca ninguém sentiu entre nós mais ardente a sua imortalidade do que Bocage. Com que entusiasmo ele exclamava ao ver os seus versos elogiados na boca de Filinto: - Zoilos tremei; posteridade, és minha! Sob este ponto de vista, João de Deus é a antítese completa de Bocage. Este tinha a inspiração orgulhosa, cheia de fogo, rebentando quase num caudal de ironia e de sarcasmo. João de Deus tem a inspiração serena, espontânea, quase inconsciente. João de Deus é como a flor do campo, que rebenta formosa sem cultivo, velada apenas pela graça de Deus, o jardineiro supremo. As suas poesias são verdadeiras flores do campo, mas das mimosas, das encantadoras na sua singeleza, das que, guardadas num álbum, conservam perfeitamente a delicadeza da forma, o colorido transparente da corola, o aveludado do cálice, a disposição encantadora das pétalas.

Apesar da fama, o método da Cartilha Maternal tinha adversários e pouco depois da homenagem nacional, por iniciativa de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, o Ministério do Reino decidiu mandar retirar das salas de aula os quadros da Cartilha. Pouco depois desta polêmica decisão, João de Deus caiu doente com uma enfermidade cardíaca.

O filho mais ilustre de São Bartolomeu de Messines viria a falecer, aos 66 anos, no dia 11 de Janeiro de 1896, encontrando-se o seu túmulo no Panteão Nacional.

João de Deus é recordado em Lisboa pelo Museu João de Deus e em São Bartolomeu de Messines por uma casa-museu e por um grupo escultórico. A modestíssima casa onde nasceu ostenta na sua fachada uma lápide alusiva.

Em 1930, quando da comemoração do centenário do seu nascimento, foi-lhe erigida um estátua no Jardim da Estrela, em Lisboa.

Obra

Na literatura da sua época, João de Deus ocupou uma posição singular e destacada. Surgido nos finais do ultra-romantismo, aproximou-se da tradição folclórica de forma mais conseguida que qualquer outro escritor romântico português. A sua poesia distinguiu-se, sobretudo, pela grande riqueza musical e rítmica.

Grande parte da sua obra poética está presente em Flores do Campo (publicada em 1868), Folhas Soltas (1876) e Campos de Flores. Esta última obra, publicada em 1893, além de conter outros poemas, engloba também o conteúdo de "Flores do Campo" e "Folhas Soltas", pelo que funciona como uma coletânea da sua obra poética.

Foi, ainda, autor de fábulas e de obras destinadas ao teatro, estas na maior parte dos casos traduções e adaptações de autores estrangeiros. Grande parte da sua produção em prosa foi reunida na coletânea Prosas.

Mas a sua obra mais importante viria a ser a Cartilha Maternal, um método destinado a ajudar a aprendizagem da leitura a criança, que ainda hoje mantém seguidores.

Para além das obras mencionadas, deixou um Dicionário Prosódico de Portugal e Brasil (1870), e as obras poéticas Ramo de Flores (1869) e Despedidas de Verão (1880).

Algumas composições em prosa que se encontravam dispersas e parte importante da sua correspondência foram editadas postumamente por Teófilo Braga (Lisboa, 1898).

O folheto avulso Cryptinas, normalmente atribuído a João de Deus, foi publicado em fac-símile pelas Edições Ecopy em 2008.

Em Maio de 1882, por iniciativa de Casimiro Freire, (…) reuniram-se algumas dezenas de cidadãos e fundaram a Associação de Escolas Móveis, com o fim de ensinar a ler, escrever e contar pelo método de admirável rapidez, do Senhor Dr. João de Deus, os indivíduos que o solicitarem, até onde permitam os seus meios económicos, enviando nesse intuito às diversas povoações da nação portuguesa professores devidamente habilitados – não se envolvendo em assuntos políticos, nem quaisquer outros alheios ao seu fim.

A Associação é hoje a Associação de Jardins-Escolas João de Deus, uma Instituição Particular de Solidariedade Social dedicada à educação e à cultura. No seu âmbito funciona o Museu João de Deus e a Escola Superior de Educação João de Deus e múltiplos jardins-escolas.

Em 2002 a Associação tinha ao seu serviço quase 1000 pessoas, entre educadores, professores, auxiliares de educação e outros colaboradores, cuja actividade se repartia pela Escola Superior de Educação João de Deus e por 34 jardins-escolas distribuídos por todo o país.

Desde a sua fundação até 2003 passaram pelas escolas da Associação aproximadamente 164.000 crianças

Fonte:
Wikipedia

Paulo Roberto do Carmo (Antologia Poética)


ANDAR COM AS PALAVRAS

Andar com as palavras
é romper o ventre das horas:
em gotas de sangue dar-se à luz
ganhando caminho, para fora,
abrir o espaço, afrontando a solidão.

Andar com as palavras
é regressar à pátria de geografias futuras:
da árvore da alegria comer os frutos,
abrir suas peles de sonho, lambuzar-se nos sumos,
caminhar confiante rumo à aldeia dos homens.

Andar com as palavras
é cantar em si a mais alta febre do desejo
e cair e levantar sobre serpentes e culpas,
sempre para diante, sem trégua, com ufania,
e mesmo rastejar até que asas brotem dessa dor.

LEVANTAR-SE

Levanta, e vai andando com alegria –
a preguiça é inimiga do Destino.
Diz o que pensa, e canta; pensa o que diz, e chora -
mas anda.

Levanta, e vai andando com alegria -
não há refúgio contra a paixão, senão mais amar,
e a única maneira de surpreender a manhã é caminhar
para a noite.

Levanta, e vai andando com alegria –
e viva o bom vinho e o jardineiro com seu jardim
que só colherá o que plantou e a flor que o escolher.

Levanta, e vai andando com alegria –
leva a vida que elegeste por um breve tempo de agonia
e muda a hora em ouro ao passo que abres o caminho.

Levanta, e vai andando com alegria –
o desejo te manda embora, mas é a morte que espera
no meio do caminho – entre o sonho e a esperança.

Levanta, e vai andando com alegria –
todos os dias vão, todos os males vêm, não confia
na hora que passa, às vezes se vive, se morre sempre.

Levanta, e vai andando com alegria –
que o pouco torna-se suficiente quando se necessita menos,
e feliz de quem não espera nada, senão da boa palavra.

ANTES DO TEMPO

Expulsa a palavra
que não venha da boca
que te cobre de afagos.

O que é contra mim
e me arrasta para ti
será que é só este desejo
a borbulhar de culpas
e que clama em vão
por amar e perder-se,
com a aflição dos condenados
que caem e se levantam
porque ainda há um desejo
que treme, não se cala
e nos mata antes do tempo...
cansado o espírito
de tantas dores
cravadas no coração?

A vida não dá mais...
e tão breve é a paixão.
Tempo, tempo, não há mais tempo

COISAS POUCAS

Só hás de começar
por coisas poucas:
buscar primeiro dentro de ti
o medo que te faz fugir
e desafiá-lo.
Depois matar a soberba
com os frutos envenenados
de uma árvore morta –
e que tuas palavras se calem
diante da arte de viver.

Só hás de começar
por coisas poucas:
de como não se dobrar
entre o silêncio de Deus
e o sofrimento dos outros.
Compreender depois
que ser ignorado
dói como um golpe
que nos jogasse
no fosso dos humilhados
e que o mundo que nos devora
é feito por nós, apesar de tudo.

ANTES DE ENVELHECER

Às vezes é preciso antes de envelhecer
no começo de uma manhã
de olhos abertos à visita do sol
sangrar o verbo, tocar a pedra,
do tudo fazer o nada, o nada
que tudo podemos nomear antes de
a morte existir, de não ter dó nem vontade...

Há quem diga que é preciso antes de envelhecer
encontrar o menino dentro de nós para o acordar
deserdado do tempo e debaixo de nossas asas.

Às vezes é preciso antes de envelhecer
viver de verdade o desejo veemente, maduro,
como a matéria dos sonhos que nos inventa,
viver de verdade o que antes era só estação
de passagem e que hoje é fruto amadurecido
do que não pode reflorescer, fruto da terra
que vem morrer na boca dos homens
antes que o relâmpago caia sobre a árvore
da vida, sobre a alegria que há nos animais,
da matéria dos sonhos que inventamos de nossas mãos
e que não podem transformar em pão a felicidade
de um menino que não ri, não fala, só espera...
porque envelhecemos, perdemos a gana de brincar
nos quintais memoriados da alegria, antes do fim.

ESTAÇÕES

Nascemos
com os desejos ávidos e oferecidos,
mas proibidos de se cumprirem.
Vivemos cada dia
o ciclo das quatro estações –
do sonho e do crime,
da culpa e da esperança –
e morremos com os mesmos desejos
ávidos e oferecidos,
mas proibidos de se cumprirem.

OS GRÃOS NÃO ESTÃO COLHIDOS

Porque amo
o que tem mais vida
e os grãos
não estão colhidos
nem pesados,
não morrerei
nada além
do que já morri.

DOS DIAS VÃOS

Os dias vãos da esperança...
fogo soprado de vãos pressentimentos...
são como cinzas na palma da mão
sob a ventania, e tudo se dissipa no ar,
o sonho e os desejos, a chuva no deserto
deste inquieto coração que não esq uece...
e os camelos encilhados que não esperam...
e tudo se extravia numa dança
que não danço por falta dos pés,
pois sou o que escuta
a morte cavar a vida
que não sei viver fora de mim.
Eu era a minha própria morte,
o grito que não nasce,
e não sabia que não há outra.

Fonte:
Colaboração de Paulo Roberto do Carmo