domingo, 1 de maio de 2011

Trovadores da Seção Bragança Paulista da UBT (Amor é...) Segunda Parte



José Solha

Exausto me vi prostrado
aos pés de quem não me quis.
Só por querer ser amado,
não consegui ser feliz.

O amor se benevolente,
não é amor de verdade;
satisfaz o ser carente
de sua necessidade.

Alguém que nos compreenda,
todo homem sempre quer,
feitas pra nós de encomenda,
na figura da mulher.

Leda Montanari Leme

Amor lindo, minha sorte,
tão entranhado no ser
que mesmo depois da morte,
ele vive, sem saber.

Lóla Prata

Conservo a esperança linda
de que o amor universal
chegue como graça infinda
e transforme em bem, o mal.

A palavra que retém
na raiz, cheiro de amor,
essa tal é a que por bem,
põe feitiço em seu leitor.

Uma palavra apenas
me sussurraste ao ouvido...
era “amor”, das mais pequenas...
e eu sorri, embevecido.

O tempo eleva a idade,
e com ela vem a dor
pela ação da sociedade
que não pratica o amor.

O prazer que nos bafeja
perante um sinal de amor,
por menorzinho que seja,
é do mais alto valor.

Se eu pudesse controlar
o devaneio tirano,
nunca iria me entregar
ao amor frágil e insano.

Maria das Dôres Cestari

Numa tarde distraída,
observando uma flor,
compreendi que nesta vida:
razão de tudo é o amor.

Pense em Deus, Autor da vida,
na grandeza do universo,
na gratidão incontida
que se traduz neste verso.

Se buscas conhecimento,
reconheces teu valor.
Pensa em paz, neste momento,
crê na grandeza do Amor!

O amor, sentimento nobre,
que brota num coração
seja no rico ou no pobre,
conduz a uma boa ação.

Marina Valente

Para encantar a velhice,
ser tranquilo, sonhador,
há que, desde a meninice
plantar sementes de amor...

De nada vale o rancor
que só deixa cicatrizes;
tecendo laços de amor
seremos bem mais felizes.

Paz nasce do coração
de quem aprendeu a amar
a todos, sem distinção,
porque soube perdoar.

A flor da fraternidade
floresce no coração
de quem ama de verdade
o próximo como irmão.

Com roupagens só de amor
vistamos o coração,
sem ódio e nenhum rancor
para abrigar o irmão.

Nesta vida o tempo ensina:
quem partilhar seu amor
a paz também dissemina
exterminando o rancor.

Miguel Garcia Alves

Quando eu me casei contigo,
era pobre, sem vintém,
mas agora eu te predigo:
não caso com mais ninguém.
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Fonte:
Colaboração de Lola Prata com o livro "Amor é..." - Trovadores da Seção Bragança Paulista da União Brasileira de Trovadores - UBT - Novembro de 2010
Imagem = http://www.fotorkut.com.br/orkut-hi5-myspace.php?id=18

Roberto Couto (A Ladeira e a Árvore)

Ladeira da Morte, por Bajzek
A ladeira era muito íngreme. Ele resfolegava após um conjunto de passos. Parava a cada dúzia de metros e se lembrava dos anos de menino. Como era grande para ele, agora! Agigantava-se, todavia, com serena altivez. Os passos antes lépidos e desafiadores daquele íngreme pico diariamente conquistado foram trocados por outros, prudentes, seguidos de excitada aceleração no coração. Lá em cima, dissipava-se o cansaço, substituído pelo prazer de um afago no tronco daquela árvore caprichosamente ali nascida. No meio da rua.

Por longos momentos ficava parado, olhando sua rua. A imagem aterradora das aulas de direção, com suas tensas trocas de marcha na subida interminável, dissipava-se, tornando a visão do passado um remansoso prazer. Gostava de ficar ali naquela espaçada área de contemplação e achego. Lá em cima, aquele acidente geográfico era sua cidadela contra os ataques da cidade grande. Abrigara sua inocência e agora reconfortava suas lembranças duramente curtidas por um corpo enrijecido pelo tempo.

Aquela árvore parecia vergar-se para o aconchego de seu corpo. Algo como um gozo, que umedecesse o tronco generoso e aflorasse os galhos de onde despencavam gotas adocicadas. O cheiro era de carmim. Majestosa, exalava sua sensualidade, mesmo no outono, a cruel estação que expunha com crueldade sua nudez. A nudez de alguém entrado em anos, muitos anos. O verão, cruento, não vencia sua altivez. Ali, exposta, resistia com invencível bravura `as intempéries do calor ou da chuva.

Ele não a decepcionava, acariciando seu tronco, soprando a poeira e fuligem de suas folhas, separando o lixo que a insensibilidade moral dos vizinhos insistia em depositar a seus pés. Foram anos e anos. Recostava-se nela, de frente, sua visão decrépita se alongava para a ladeira, agora sob a escura folhagem das árvores que a ladeavam com exuberantes copas.

A relação de amor dos dois, com o tempo ,tramou insondáveis desejos, como arrancar a árvore para um passeio pela ladeira. E tal se deu, escorregando pelas pedras úmidas e agarradas ao tronco forte e vigoroso que ainda vicejava e esparramava sua gosma. À surrealista cena não desapontou a natureza das coisas ao acolher a ladeira, em seu útero, por entre suas pedras, os pequeninos grãos caídos da árvore, enraizados, protegidos pelos galhos que maternalmente se fechavam, um a um, em harmônica coreografia, enquanto a árvore, agora deitada, dormia, embalada no choro daquele homem.
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Roberto Couto é bacharel em Direito, carioca da gema, um dos maiores conhecedores do Leblon, figura querida entre seus moradores. Fora dos tribunais, é praticante do sapateado e reconhecido pelos bambas como exímio executor do tamborim. Na arte de escrever, colabora com artigos sobre sua profissão no “Jornal do Commércio” do Rio de Janeiro. Seus contos e crônicas têm sido mantidos guardados, talvez nas caixinhas chinesas. Agora, vem à luz um novo desses trabalhos de rara beleza.

Fontes:
Projeto Releituras

Ialmar Pio Schneider (Uma Pequena Obra Prima)


Por esses dias, sem querer querendo, ao vasculhar certos livros depositados em prateleira de uma estante da minha desorganizada biblioteca, enxerguei um opúsculo que me chamou a atenção e despertou-me certa nostalgia de uma época distante já envolta na névoa do passado. Lembrei-me da ocasião em que li pela primeira vez o romance poético Iracema, de José de Alencar, lá pela década dos anos 50, quando cursava o antigo curso ginasial. Aquelas páginas que me embeveceram a juventude outrora e me suscitaram, conjuntamente com outras obras, o espírito para a poesia, estavam a merecer uma releitura, pois além do mais, recordar é viver. E neste intuito abri o livro e comecei a ler o início do sentimental poema em prosa do nosso romancista, considerado o maior expoente nacional no gênero indianista, cuja culminância se deu com o Guarani. Mas fiquemos com o citado Iracema, cujos versos assim principiam: “Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do Sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros; Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas”.

Percorro algumas linhas e surge o leitmotiv da história: “Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado”. Daí por diante sinto uma aura de poesia impregnando as páginas que se seguem, cantando o amor que une duas almas que se encontraram em meio às ínvias matas tropicais da exuberante natureza americana. E o estrangeiro Martim, o filho de guerreiro, é aceito por Araquém, o pai de Iracema, em cuja cabana fica hospedado. Tudo acontece de acordo com os ritos nativos da nação indígena, magistralmente engendrado pelo autor.

Escrevo estas breves considerações a respeito desta pequena obra-prima da literatura brasileira por devotar-lhe uma particular simpatia pelo que representa de romanesco e poético. O final melancólico ainda deixa uma certa impressão de amargura e saudade nas seguintes palavras:

“A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra”.
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Poeta e cronista
Publicado em 29 de novembro de 2000 - no Diário de Canoas.

Fonte:
Colaboração do Autor

José de Alencar ("O Guarani") Análise da Obra


O Guarani - A epopéia da formação da nacionalidade

Escrito originalmente em folhetim, entre fevereiro e abril de 1857, com 54 capítulos, O Guarani teve tal êxito na edição folhetinesca que, antes do fim do ano de 1857, foi publicado em livro, com alterações mínimas em relação ao que fora publicado em jornal.

Mantiveram-se as quatro parte originais: Os Aventureiros, Peri, Os Aimorés e A Catástrofe, com os capítulos dispostos como saíram do folhetim.

O romance se compõe, em grande parte, de personagens e episódios, mas as imagens permanecem na memória e amarram os fios mais importantes da narrativa. São imagens poderosas, que se impõem sobretudo por seu caráter plástico. Por isso, a crítica distingue em Alencar um grande escritor, um grande artista da palavra, mas não compartilha do mesmo entusiasmo quando se refere aos seus enredos, à carpintaria da narrativa, algumas vezes falha (os conhecidos "cochilos" do escritor), e quase sempre previsível quanto às ações das personagens, lineares ou planas.

A narrativa de O Guarani é simples, mas não simplista. Trabalhando habilidosamente as possibilidades e contradições do romance romântico, vale-se com muita liberdade da trama novelesca, da coloração épica, do devaneio lírico, da anotação histórica da efabulação mítica e lendária, do ímpeto ideológico nacionalista e de elevada carga simbólica, tudo isso revestido de uma profusão de luzes e cores que invade a pupila do leitor, como se ele estivesse assistindo a um espetáculo grandioso, povoado pelas forças da natureza e por titãs, absorto pela beleza da cena, mais do que pelos pormenores da intriga.

Personagens:

Peri: índio valente, corajoso, chefe da nação goitacá, o Guarani.

Ceci (Cecília): moça linda, de doces olhos azuis, gênio travesso, mas meiga, suave, sonhadora, herdeira da força moral interior de seu pai, D. Antônio Mariz.

Isabel: moça morena, sensual, de sorriso provocador; filha bastarda de D. Antônio Mariz com uma índia, oficialmente sobrinha dele e prima de Ceci.

D. Antônio Mariz: fidalgo português da mais pura estirpe.

Dona Lauriana: senhora paulista, de cerca de cinqüenta anos, magra, forte, de cabelos pretos com alguns fios brancos; um tanto egoísta, soberba, orgulhosa, diferente do marido, D. Antônio Mariz.

D. Diogo Mariz: jovem fidalgo, na “flor da idade”, que passa o tempo em caçadas e correrias; tratado com rigidez pelo pai, D. Antônio Mariz, em nome da honra da família.

Loredano: um dos aventureiros da casa do Paquequer; italiano, moreno, alto, musculoso, longa barba negra, sorriso branco e desdenhoso, ganancioso, ambicioso; ex-padre (Frei Ângelo de Luca), religioso traidor de sua fé.

Enredo

A ação passa-se na primeira metade do século XVII, iniciando-se em 1604. Por meio do flashback, o narrador, ao apresentar o fidalgo D. Antônio Mariz, recua até à fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1567, por Mem de Sá, da qual o pai de Ceci teria participado, combatendo os índios inamistosos e os invasores franceses. Após o desastre português nas areias do Marrocos, em Alcácer Quibir, em 1578, e o subseqüente domínio espanhol, em 1580, D. Antônio Mariz decide-se a permanecer no Brasil, para não submeter ao governo filipino. Decide estabelecer-se na sesmaria que lhe fora concedida por Mem de Sá, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Coroa Portuguesa. Em 1593, começa a construir uma habitação provisória, até que artesãos do reino edificassem e decorassem o misto de fortaleza, castelo e vivenda, em que se estabeleceu definitivamente com sua família, cavaleiros, agregados, aventureiros etc. Assim como o Frei Antão, protagonista das Sextilhas, de Gonçalves Dias, D. Antônio quer manter na Colônia a integridade do Império Português.

O espaço é o planalto fluminense, a Serra dos Órgãos, às margens do rio Paquequer, afluente do rio Paraíba. A ação principia e termina tendo o cenário o Paquequer; imagem primeira - primordial, plena e pura - que se associa à figura nuclear do protagonista, Peri: "filho(s) indômito(s) desta pátria de liberdade", mas também "vassalo(s) e tributário(s)": o índio, de sua"senhora", Cecília Mariz; o rio, "desse rei das águas", o Paraíba.

D. Antônio Mariz, fidalgo da mais pura estirpe, leva adiante no Brasil uma colonização dentro do mais rigoroso espírito de obediência à sua pátria. Sua casa forte, às margens do rio Paquequer, edificada como verdadeiro castelo medieval, abriga, dentro de um código cavaleiresco semelhante à suserania e vassalagem medievais, ilustres portugueses, afinados ao mesmo espírito patriótico e colonizador. Entre esses cavaleiros e fidalgos insinuam-se aventureiros, mercenários em busca de ouro e prata, liderados por Loredano (ex-frei Ângelo di Lucca), que assassinara um homem desarmado para obter o mapa das famosas minas de prata. Valendo-se da ingênua cordialidade de D. Antônio Mariz, Loredano trama a destruição da nobre família do fidalgo e de seus ilustres agregados. Trama também o rapto de Cecília, filha de D. Antônio. Mas os planos de Loredano esbarram na vigilância constante de Peri, índio da tribo dos goitacás, que, tendo salvo Cecília de uma avalanche de pedras, obteve a mais alta gratidão de D. Antônio Mariz e a amizade de Cecília, que o trata como a um irmão.

A narrativa inicia seus momentos épicos logo após o incidente em que Diogo, filho de D. Antônio, inadvertidamente, mata uma indiazinha aimoré, durante uma caçada. Indignados, os aimorés procuram vingança: surpreendidos por Peri, enquanto espreitavam o banho de Ceci, para logo após assassiná-la, dois aimorés caem transpassados por certeiras flechas; o fato é relatado à tribo aimoré por uma índia que conseguira ver o ocorrido. A luta que irá se travar não diminui a ambição de Loredano, que continua a tramar a destruição de todos os que não o acompanhem. pela bravura demonstrada do homem português, têm importância ainda duas personagens: Álvaro, jovem enamorado de Ceci e não retribuído nesse amor, senão numa fraterna simpatia; Aires Gomes, espécie de comandante de armas, leal defensor da casa de D. Antônio. Durante todos os momentos da luta, Peri, vigilante, não desgruda dos passos de Loredano, frustrando todas as suas tentativas de traição ou de rapto de Ceci. Muito mais numerosos, os aimorés vão ganhando a luta passa a passo. Num momento dos mais heróicos, Peri, conhecendo que estavam quase perdidos, tenta uma solução tipicamente indígena: tomando veneno, pois sabe que os aimorés são antropófagos, desce as montanha e vai lutar "in loco" contra os aimorés: sabe que, morrendo, seria sua carne devorada pelos antropófagos e aí estaria a salvação da casa de D. Antônio: eles morreriam, pois seu organismo já estaria todo envenenado. Depois de encarniçada luta, na qual morreram muitos inimigos, Peri é subjugado e, já sem forças, espera, armado, o sacrifício que lhe irão imprimir. Álvaro (a esta altura enamorado de Isabel, irmã adotiva de Cecília) consegue heroicamente salvar Peri. Peri volta e diz a Ceci que havia tomado veneno. Ante o desespero da moça com essa revelação, Peri volta à floresta em busca de um antídoto, espécie de erva que neutraliza o poder letal do veneno. De volta, traz o cadáver de Álvaro, morto em combate com os aimorés. Dá-se então o momento trágico da narrativa: Isabel, inconformada com a desgraça ocorrida ao amado, suicida-se sobre seu corpo.

Loredano continua agindo. Crendo-se completamente seguro, trama agora a morte de D. Antônio e parte para a ação. Quando menos supõe, é preso e condenado a morrer na fogueira, como traidor. O cerco dos selvagens é cada vez maior. Peri, a pedido do pai de Cecília, se faz cristão, única maneira possível para que D. Antônio concordasse na fuga dos dois, os únicos que se poderiam salvar. Descendo por uma corda através do abismo, carregando Cecília entorpecida pelo vinho que o pai lhe dera para que dormisse, Peri consegue afinal chegar ao rio Paquequer. Numa frágil canoa vai descendo o rio abaixo, até que ouve o grande estampido provocado por D. Antônio, que, vendo entrarem os aimorés em sua fortaleza, ateia fogo aos barris de pólvora, destruindo índios e portugueses. Testemunhas únicas do ocorrido, Peri e Ceci caminham agora por uma natureza revolta em águas, enfrentando a fúria dos elementos da tempestade. Cecília acorda e Peri relata-lhe o sucedido. Transtornada, a moça se vê sozinha no mundo. Prefere não mais voltar ao Rio de Janeiro, para onde iria. Prefere ficar com Peri, morando nas selvas. A tempestade faz as águas subirem ainda mais. por segurança, Peri sobe ao alto de uma palmeira, protegendo fielmente a moça. Como as águas fossem subindo perigosamente, Peri, com força descomunal, arranca a palmeira do solo, improvisando uma canoa. O romance termina com a palmeira perdendo-se no horizonte, não sem antes Alencar ter sugerido, nas últimas linhas do romance, uma bela união amorosa, semente de onde brotaria mais tarde a raça brasileira...

"O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte..."

As partes estruturais da narrativa - As quatro partes do romance compõem três que podem ser identificados com a distribuição ortodoxa da narrativa em: princípio, clímax e desfecho.

Cenário - A Natureza e a Cultura - Suserania e Vassalagem

O 1º movimento introduz o cenário e as personagens e caracteriza-se pela ausência de conflitos, pela harmonia entre o pólo da Natureza e pólo da Cultura, entre sujeitos e objetos. Há coordenação, complementação e harmonia. Descreve-se seqüencialmente um cenário de montanhas e rios no interior fluminense, os aspectos exteriores do "castelo / fortaleza / casa" de D. Antônio Mariz, e, logo a seguir, os interiores da construção, enfatizando uma antropomorfização da natureza e uma naturalização do homem, de forma que nessas três descrições o natural e o cultural constituam um cenário edênico, paradisíaco, no qual a natureza é a casa do homem, a casa é uma extensão da natureza e o homem opera a união das duas.

"Assim, a escada de lajedo é construída metade pela natureza e metade pela arte”, pois nessa paisagem a “indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar os meios de segurança e defesa". A integração é completa: "havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza, rica, vigorosa e explêndida, que o vista abraçava do alto do rochedo"; nos aposentos de Ceci "parecia que a natureza havia se feito menina", e seu quarto, decorado com aves, animais e pedras preciosas, é apresentado como“ninho da inocência" ou "como a atmosfera do paraíso que uma fada habitava".

Exemplos dessa integração harmônica entre natureza e cultura podem ser fartarnente rastreados até o capitulo VIII. Esse clima edênico, paradisíaco está sugerido no brasão da família Mariz, no qual os três reinos, o vegetal, o mineral e o animal, estão enlaçados, numa clara simbologia ou, ainda, quando na descrição da missa rezada por D. Antônio diante de sua Família, a natureza é tomada como uma catedral aberta, imagem ao gosto da mais genuína tradição romântica: Chateaubriand, Lamartine, Garrett, Alexandre Herculano, Gonçalves Dias, para ficarmos nos exemplos mais próximos da tradição romântica luso-brasileira. Nessa missa, não apenas o homem, mas “a natureza se ajoelha aos pés doCriador para murmurar a prece da noite!, "uma prece meio cristã, meio selvagem", vale dizer, uma oração que integra o cultural ao natural.

A ideologia romântico medieval que embasa O Guarani toma a composição piramidal da sociedade, dividida em "senhor" e "servos", em "suserano" e "vassalos", e em "soberano" e "súdito", como princípio natural da ordem e da paz. D. Antônio Mariz exerce em seus domínios o direito natural, conforme concebido na Idade Média, a partir da Suma Teológica, de Santo Tomás de Aquino. O chefe praticava tanto a lei natural quanto a lei humana. Para Santo Tomás de Aquino, a lei natural é o ato da razão e vontade de Deus, que prescreve a observância da origem moral, proíbe a violação e que se manifesta às criaturas na luz natural da razão; e a lei humana é um preceito da razão ordenado para o bem da sociedade, emanado da autoridade competente e por ela promulgado (Suma Teológica, XCIV, 1 e XCVI, 4). D. Antônio Mariz tipifica o exercício das duas leis, como um senhor feudal que associa o poder humano e espiritual, sendo guerreiro e sacerdote ao mesmo tempo: "Assim vivia, e no meio do sertão, desconhecida e ignorada, essa pequena comunhão de homens, governando-se com as suas leis, com seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo habito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas."

A ideologia romântico-medieval que ilustramos até aqui com exemplos do romance é justificada por uma espécie de “modelo natural” que envolve o cenário e as personagens desde a primeira página. Aí, como já referido, a descrição entre o rio Paquequer e o Paraíba é assim descrita: "dir-se- ia que vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro com os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática: suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso sofre o látego do senhor."

Essa descrição inicial vale como índice não só da estrutura feudal dentro da sociedade chefiada por D. Antônio, mas também da situação inicial de Peri diante de Ceci. O índio guarani (goitacá) chama a fidalga portuguesa de Iara, que significa Senhora, e aparece referenciado várias vezes como escravo submisso, diante da mulher que ele adora com fervor religioso, como um devoto diante de Nossa Senhora, ela Virgem Maria, de que já ouvira falar na educação mariana dos jesuítas, com a qual teve um ligeiro contato. Ao final, senhora e escravo serão descritos como irmã e irmão, sugerindo uma integração total dos elementos, de acordo, com a ideologia do autor, que agora vai afirmar a supremacia da Natureza sobre a Cultura, pois só com a integração total na natureza poderia haver paz.

Conflitos - Natureza e Cultura - Os bons e os maus

O 2º Movimento é o em que os conflitos começam a se delinear, as personagens vão entrando em choque até a quase destruição de todos eles.

O código dramático, a ação conflitual instaura-se quando elementos conflitantes começam a emergir dentro de um clima harmonioso que marca o início do romance e que ocultava os conflitos latentes entre o natural e o cultural e as oposições internas dentro de cada conjunto.

Assim, há dois eixos fundamentais e, em torno deles, desdobram-se todas as relações conflituais:

1º - Natureza x Cultura

2º - Os Bons x Os Maus

Formam-se assim quatro subconjuntos:

1. Os bons da natureza - Peri e os índios da tribo goitacá, pertencente à nação guarani, dóceis, nobres, leais, tomados dentro de uma perspectiva sempre positiva.

2. Os maus da natureza - os índios aimorés, antropófagos, descritos com "fisionomias sinistras, nas quais as braveza, ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana".

3. Os bons da cultura - D. Antônio Mariz, sua família, especilamente Cecília e, pouco abaixo, Diogo, o filho desastrado; D. Lauriana, a esposa paulista orgulhosa, preconceituosa; Isabel, a suposta filha natural do fidalgo com uma índia, que ele não perfilhou, mas assumiu discretamente como filha adotiva. Seguem-se o cavalheiro Álvaro, corajoso, cortês, dentro do mais restrito figurino das novelas medievais e o escudeiro de D. Antônio, Aires Gomes, espécie de chefe-de-armas do fidalgo.

4. Os maus da cultura - capitaneados pelo vilão, assassino e traidor Loredano, ex-frei Ãngelo di Lucca, que de posse do roteiro das minas de prata descobertas por Ribeiro Dias, no interior da Bahia, pretende vender o seu segredo ao Rei de Espanha, enriquecer e, ainda, destruir D. Antônio Mariz e sua família, raptar e possuir sexualmente, pela força, se necessário, a casta filha loira de olhos azuis do fidalgo. Seguem-se-lhe os demais aventureiros: Rui Soeiro e Bento Simões, entre os mais ativos.

Os elementos negativos e positivos da cultura e da natureza acabam polarizando-se em relações opositivas, regidas por um sentido geral de simetria, cuja bilateralidade vai compondo módulos narrativos que mantêm uma perfeita proporcionalidade.

A partir do segundo capítulo, Alencar começa a desdobrar os sujeitos em pares opostos, repetindo um modo dual de oposição, seja segundo a raça, a moral, a nacionalidade, a religião, os costumes e os sentimentos.

D. Antônio Mariz, fidalgo português, e sua esposa, D. Lauriana, paulista, não fidalga.

Cecília, filha legítima, loira de olhos azuis, e sua irmã por adoção, Isabel, filha natural "dos amores do fidalgo por uma índia", morena de cabelos e olhos escuros.

Álvaro, cavalheiro gentil, de fala cortês e bem cuidada, pretendente à mão de Cecília, Loredano, bandido e assassino, de fala italianada, recheada de lugares-comuns, que pretende raptar Cecília e destruir seu pai.

Álvaro e Loredano - O mocinho e o Bandido

Personagens antagônicos, esse antagonismo é referenciado pela própria natureza que os envolve. No primeiro lance do capítulo III, os encontramos caminhando paralelamente, junto ao rio Paraíba, numa conversa também paralela, em diálogo que não se entrelaça, e mais parece um duelo verbal:

"Uma dessas ocasiões, em que os cavaleiros se aproximaram da tropa que seguia a alguns passos, um moço de vinte e oito anos, bem parecido, e que marchava à frente do troço, governando o seu cavalo com muito garbo e gentileza, quebrou o silêncio geral."

De maneira concisa, a descrição começa a talhar a personagem que exerce a função de autoridade na tropa, ressaltando as qualidades positivas na aparência e na maneira nobre como domina a sua montaria. A gentileza do exercício do mando emerge com a frase alegre de Álvaro:

"— Vamos, rapazes! disse ele alegremente aos caminheiros; um pouco de diligência, e chegaremos com cedo. Restam-nos apenas umas quatro léguas!"

A voz do cavalheiro abre um diálogo tenso, através do qual Alencar, também hábil dramaturgo, constrói pela alternância das falas as personalidades antagônicas de Álvaro e de Loredano, definindo seus sentimentos e perfis morais: o bom-mocismo do primeiro e a mordacidade do segundo:

"Um dos bandeiristas, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas à cavalgadura e, avançando algumas braças, colocou-se ao lado do moço.

— Ao que parece, tendes pressa de chegar, Sr. Álvaro de Sá? disse ele com um ligeiro acento italiano, e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita.

— Decerto, Sr. Loredano: nada é mais natural a quem viaja, do que o desejo de chegar.

— Não digo o contrário; mas confessareis que nada também é mais natural a quem viaja, do que poupar os seus animais.

— Que quereis dizer com isto, Sr. Loredano? perguntou Álvaro com um movimento de enfado.

— Quero dizer, sr. cavalheiro, respondeu o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol, que chegaremos hoje pouco antes das seis horas.

Álvaro corou.

— Não vejo em que isto vos cause reparo; a alguma hora havíamos chegar; e melhor é que seja de dia, do que de noite.

— Assim como melhor é que seja em um sábado do que em outro qualquer dia! replicou o italiano no mesmo tom.

Um novo rubor assomou às faces de Álvaro, que não pôde disfarçar o seu enleio; mas, recobrando o desembaraço, soltou uma risada, e respondeu:

— Ora, Deus, Sr. Loredano; estais aí a falar-me na ponta dos beiços e com meias palavras; à fé de cavalheiro que não vos entendo.

— Assim deve ser. Diz a escritura que não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir.

— Oh! temos anexim! Aposto que aprendestes isto agora em São Sebastião; foi alguma velha beata, ou algum licenciado em Cânones que vos ensinou? disse o cavalheiro gracejando.

— Nem um nem outro, sr. cavalheiro, foi um fanqueiro da Rua dos Mercadores, que por sinal também me mostrou custoso brocados e lindas arrecadas de perólas, bem próprias para o mimo de um gentil cavalheiro à sua dama.

Álvaro enrubesceu pela terceira vez.

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— Excelente. Vede, vós, tenho visto coisas que se passam diante dos outros, e que nionguém percebe, porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu: disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida.

— Contai-nos isto, há de ser curioso.

— Ao contrário, é o mais natural possível: um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite às luz das estrelas... Pode haver coisa mais simples?

Álvaro empalideceu eu desta vez.

— Sabeis uma coisa, Sr. Loredano?

— Saberei, cavalheiro, se me fizerdes a honra de dizer.

— está me parecendo que a vossa habilidade de observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais nem menos do que o ofício de espião.

Álvaro intervém com afirmações diretas e recusa-se a conversar "com meias palavras", apresentando sua opção pela franqueza, seu apreço à verdade e sua prática obediente e leal a Dom Antônio Mariz. Este é evocado para demarcar o universo do bem e para construir e legitimar autoridade do jovem sobre a tropa. Assim, ao enfrentar as insinuações de Loredano com recursos próprios à fidalguia, Álvaro revela não dispor de armas adequadas para tratar com a baixeza. Com esses traços, o narrador desenha o moço virtuoso que habita o reino da inocência e deste extrai um amor casto, trazendo mais um fio para o tecido romanesco. O moço sente-se surpreendido, pois seu interlocutor alude a um sentimento que ele julgava oculto. O traço ingênuo da personagem manifesta-se no seu constrangimento não só por titubear para responder ao tropeiro, mas sobretudo pelas anotações do narrador ao registrar que o moço três vezes enrubesce e finalmente empalidece.

Desta forma, Alencar põe em cena um preposto do Dom Antônio Mariz que conquista essa condição por sua conduta de lealdade e generosidade. A narrativa confirmará o caráter virtuoso e ingênuo de Álvaro provendo para ele ações que lhe permitam explicitar suas qualidades. O moço que apanha a flor e suspira será reencontrado quando deposita um presente na janela de Ceci ou quando a ela dirige a palavra de maneira tímida e respeitosa. A lealdade ao fidalgo será reiterada quando se compromete a casar-se com sua filha, renunciando a realizar sua paixão por Isabel, ou ainda por atirar-se à morte numa batalha. Tudo se dá como convém a um cavalheiro a quem o narrador não destina a princesa ou a um jovem a quem Alencar não atribuiu participação decisiva ao processo de configuração do país.

A esta figura contrapõe-se Loredano. Suas intervenções no diálogo são construídas por dois recursos fundamentais: a frase formulada de modo alusivo e o tom irônico. Considerando apenas sua fala, o leitor já percebe que falta grandeza a este homem para enfrentar a situação de conflito, pois ele opta pelas "meias palavras" e revela que seus conhecimentos sobre Álvaro decorrem da atitude de espreita. Mas fundamental para dar a esta personagem o talhe de grande vilão são os comentários do narrador:

"Decididamente o sarcástico italiano, com o seu espírito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão que o incomodava; e isto no tom mais natural do mundo.

.........................................................................

Nestas condições, o italiano lançava sobre ele um olhar a fundo, cheio de malícia e ironia; depois continuava a assobiar entre dentes uma cançoneta de condottiere, de quem ele apresentava o verdadeiro tipo.

Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pela chapéu desabado que caía sobre o ombro; alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa eram os principais traços deste aventureiro.

Ele é pródigo em adjetivos para qualificar o tropeiro como encarnação do vício e revela as paixões vis que lhe dão a estatura de agente do mundo demoníaco tão necessário para viabilizar o conflito da estória romanesca. A voz narrativa intercala-se com as frases de Loredano e descreve seu comportamento, realizando um movimento eficaz para anunciar que ele se constitui pela fraude. O narrador segue de perto a personagem e indica-lhe o modo de proceder pautado por disfarces e saudações. Assim, o leitor vê que "a expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita"; que "o sarcástico italiano, com seu espírito mordaz", destilava sua malícia "no tom mais natural do mundo"; no tom mais natural do mundo"; que se apresenta "com uma ingenuidade simulada".

Cecília e Isabel - A Loira e a Morena — A "Mulher-Anjo" e a "Mulher-Demônio"

O narrador retoma o mesmo recurso do contraste que utilizou para caracterizar Álvaro e Loredano; a virgem loira é descrita em um longo trecho, que integra a roupa, a moral, a fisionomia e o ambiente para em que imagens elevadas, de nítido gosto romântico, compor a personalidade de Ceci, aproximada das flores, dos pássaros e da idéia de inefável, gracioso, infantil e angelical.

Isabel tem sua beleza caracterizada como "o tipo brasileiro", revestido de languidez, malícia, indolência e vivacidade, um tipo bem mais terreno, com seus traços humanos mais vincados, os "cabelos pretos", os "lábios desdenhosos", em três parágrafos curtos e precisos:

Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo brasileiro em toda sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade.

Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabelos pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador, davam a este rosto um poder de sedução irresistível.

Ela parou em face de Cecília meio deitada sobre a rede, e não pode furtar-se à admiração que lhe inspirava essa beleza delicada, de contornos tão suaves; e uma sombra imperceptível, talvez de um despeito, passou pelo seu rosto mas esvaeceu-se logo.

A imagem sensual enfatiza o "poder de sedução irresistível", capaz não só de despertar sentimentos indignos, mas de portá-los também, como a insinuada sombra de despeito pela beleza e "superioridade" de Ceci.

Alencar colhe a mestiça em situação de precário equilíbrio entre a marginalização, imposta a ela pela dona da casa, e a integração a família, sugerida nos cuidados discretos do fidalgo a ela dispensados e claramente explicitada por Ceci, quando esta lhe propõe tratá-la por irmã. O favor, travestido de afeto, revela-se no testamento de Dom Antônio Mariz. A condição de filha natural pode ser tolerada na casa, mas o acesso ao nome da família lhe é vedado. Ela não pode sonhar com o príncipe encantado ao seduzir Álvaro, transformando o compromisso do moço com Ceci em obrigação e não mais ato de devoção, Isabel conquista o direito de encontrá-lo no céu, longe das normas e dos corpos.

A morte como expiação dos pecados dos amantes e os arquétipos românticos da mulher-anjo e da mulher-demônio dois elementos modulares da narrativa folhetinesca, que Alencar cumpriu à risca.

Na longa caracterização de Cecília que se vai ler, o narrador esmera-se nas comparações sugestivas, mobilizando recursos para traduzir a impossibilidade de descrever precisamente tanta graça e beleza: diminutivos, adjetivos, expressões como "pareciam", "uma espécie de", "um quer que seja de", e comparações que aproximam a graça ao pequeno e delicado, e a suavidade ao ingênuo e simples. As cores predominantes, branco e azul, mesclam-se ao louro e rosa.

Fusão de fada, menina e mulher, a ambigüidade aparece entre atitudes de menina e devaneios de moça.

À languidez do corpo motivada pelo encantamento amoroso vivido no sonho segue-se a criança contrariada a bater o "pezinho", porque em vez de "lindo cavalheiro" via um "selvagem". A imagem onírica perturba o corpo da menina imprimindo nele movimento de mulher, que leva a personagem a aparecer ‘"toda trêmula", "com o seio palpitante substituindo o contentamento pela tristeza. Ela mesma, usando a mediação da contrariedade, localiza a origem da melancolia na distância entre cavalheiro e selvagem. Já desperta, ela confessa seu sentimentoo a Isabel e esta também o vincula ao índio, mas através de outras mediações. As diferenças na interpretação da tristeza reapresentam, sob outro ângulo, a oposição entre a loura e a morena, contrapondo a inocência de um sonho de amor impossível, de "algum desses mitos de um coração de moça" à experiência cotidiana de lsabel, que vive na escala intermediária entre o branco, que domina e o selvagem escravizado.

A apresentação das duas personagens se dá através do emprego de diferentes procedimentos para descrever cada urna delas e da justaposição de uma cena de diálogo à narração de um sonho. Esta montagem deve alertar o leitor para tentar reconhecer a elaboração particular que Alencar dá ao cânon romântico de contrapor a loura casta à morena demoníaca.

Concluindo, O Guarani é inegavelmente belo, válido como obra de arte. A narrativa parte do lendário, mas segue uma racionalização gradual, com ações rigorosamente distribuídas por capítulos que levam a uma concepção harmônica da história e à consonância com os manifestos ideais de afirmação do jovem país.

Fonte:

A. A. de Assis (Trovia n.137 – maio de 2011)


INESQUECÍVEIS

Ao lembrar que o teu brinquedo
é decifrar-me, sorrio...
De nada vale o segredo
de um velho cofre vazio.
Alonso Rocha

Riquezas tenhas tão grandes,
e tal bondade também,
que ao redor donde tu andes
não fique pobre ninguém.
Augusto Gil

A vida o tempo devora;
o próprio tempo não dura.
Colhe a alegria de agora,
para a saudade futura!
Helena Kolody

Com pose de rica e nobre,
e o orgulho que agora tens,
és de espírito tão pobre
quanto eu sou pobre de bens.
Jacy Pacheco

O mistério dos destinos
decifrar... ah, não te iludas!
Eram iguais dois meninos...
e um foi Cristo, outro foi Judas...
Lery Guimarães

Para ajustar meu vestido,
não quero fitas nem laços,
mas um cinto, meu querido,
formado pelos teus braços!
Lola de Oliveira

Espalhem que sou tristonho...
Não ligo ao que o mundo diz...
– Quem na vida tem um sonho,
mesmo se é triste, é feliz...
Luiz Otávio

Se a vida é sempre formosa,
torna pequeno o queixume:
– Que importa o preço da rosa,
se vem de graça o perfume?...
Milton Nunes Loureiro

Sobre mulher não discutam;
seus impulsos não se medem:
– As mais fracas também lutam,
as mais fortes também cedem...
Nydia Iaggi Martins – RJ

As suas cartas, senhora,
releio-as de quando em vez,
mas nelas só vejo agora
os erros de português...
Paulo Emílio Pinto

De livros encham-se as casas,
eis um conselho excelente,
pois o livro, aberto em asas,
põe asas n’alma da gente.
Orlando Brito

De gota em gota, pingando,
sem ver que a chuva parou,
goteira é a casa chorando
porque você não voltou.
Rubens de Castro

Saudade!... Raio de lua,
suprindo o sol que brilhou...
Tábua solta que flutua
depois que o amor naufragou!
Waldir Neves

Vou sorrindo com cuidado,
sondando bem a pessoa,
pois ser feliz é um pecado
que pouca gente perdoa.
Zálkind Piatigórsky

Trova é um poema pequenininho onde o autor coloca uma grande mensagem

BRINCANTES

Tem visita que aconchega,
tem outra que não me atrai;
não empolga quando chega...
mas alegra quando sai!
Ademar Macedo – RN

Diz-se um machão da pesada,
valentão que dá no couro,
mas não passa sob escada,
com medo de mau agouro.
Amilton Monteiro – SP

Minha amada é uma fofucha,
que a uma fada se assemelha...
até mesmo quando puxa
meus cabelinhos da orelha!
Archimedes de Maria – RJ

Cabelo é um negócio louco...
há divergências fatais:
– Na cabeça, um fio é pouco;
mas... na sopa... ele é demais!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Todo homem que arrasta asa
à mulher deste ou daquele
merece, perto de casa,
outro homem igual a ele.
(Folclore português)

Se julgas coisa bonita
andar na frente, eu destaco:
quem vai atrás sempre evita
cair no mesmo buraco!
José Fabiano – MG

De arruaça em arruaça,
de pinga a cabeça cheia,
surrou a mulher na praça
e foi “mulher” na cadeia.
Olga Agulhon – PR

Devido à idade avançada
e à minha pança roliça,
garante-me a pátria amada
o meu direito à preguiça...
Osvaldo Reis – PR

LIRICAS E FILOSOFICAS

Na varanda, um quadro lindo:
a jovem mãe e a criança.
– Era a ternura sorrindo,
amamentando a esperança!
A. A. de Assis – PR

Nesta vida meus amores
são flores do alvorecer.
Mas, se murcharem as flores,
de solidão vou morrer.
Ari Santos de Campos – SC

O invejoso não entende
que não faz mal a ninguém
e que a inveja só pretende
machucar a quem a tem.
Arlene Lima – PR

É tanta saudade, tanta,
que povoa minha vida,
que até o bacalhau da janta
lembra-me a tua partida.
Benedita Azevedo – RJ

Quem não sabe, quem não sente
que às vezes nos custa caro
essa audácia de ser gente,
quando ser gente é tão raro?!
Carolina Ramos – SP

Ter sempre a palavra certa
e a mão em paz estender,
ter a mente sempre aberta
– isso se chama viver.
Conceição de Assis – MG

Solo un beso es cual armiño
del más divino querer,
que la madre da a su niño
¡cuando acaba de nacer!
Cristina Oliveira Chávez – USA

Diz que o asilo é um paraíso
e, ao tom de voz convincente,
o filho, ao ver seu sorriso,
nem supõe que a mãe lhe mente...
Darly O. Barros – SP

Meus dias, antes tristonhos,
mudaram, hoje, confesso,
pois com pedaços de sonhos,
arquitetei teu regresso!
Delcy Canalles – RS

Sofrem tantos na agonia
do delírio, dito "amor";
isso tudo acaba um dia,
faz frio após o calor...
Diamantino Ferreira – RJ

Chego ao fim, e em realidade,
não sei que rumo tomar:
seguir, matando a saudade...
ou deixando-a me matar.
Dorothy J. Moretti – SP

Nas ilusões delirantes
do amor que vem sem alarde,
o dia amanhece antes,
e a noite dorme mais tarde!
Eduardo A. O. Toledo – MG

Para a alma aliviar
na dor, conflito, paixão,
a lágrima acalma o olhar;
um poema, o coração!
Eliana Palma – PR

Um segredo bem guardado,
para assim permanecer,
não deve ser partilhado,
para nunca se perder.
Eliana Ruiz Jimenez – SC

Na loucura dos meus versos,
e em quase todos seus traços,
há pedacinhos dispersos
do amor que tive em teus braços.
Francisco Garcia – RN

A minha mãe, vinte e um filhos,
ao lembrá-la me enterneço!
Venceu grandes empecilhos:
eu, vigésimo, agradeço.
Francisco Macedo – RN

Mesmo que a tantos iluda
com diversas abordagens,
história de amor não muda,
mudam só os personagens.
Gilvan Carneiro da Silva – RJ

Sou tão triste e tão sozinha,
que o eco do meu lamento,
desta saudade tão minha,
escuto na voz do vento!
Gislaine Canales – SC

Um sonho bom não tem fim,
enquanto a entrega é dos dois...
... E vamos sonhando, assim,
antes... Agora... e depois!...
Hermoclydes S. Franco – RJ

O que ao mais simples conforta
– e o torna feliz, até –
é saber que o céu tem porta
...e uma das portas é a fé!
Héron Patrício – MG

Na clausura da existência,
das prisões que nos impomos,
um devaneio é a essência
do que pensamos que somos!
J. B. Xavier – SP

Numa espera doce e mansa,
qual zelosa tecelã,
bordo rendas de esperança
pra enfeitar nosso amanhã!
Jeanette De Cnop – PR

Desencantado da vida,
do amor – em total entrega –,
sou folha no chão caída
que nem o vento carrega.
João Costa – RJ

Foi tanto, na despedida,
o encanto do seu olhar
que bem antes da partida
eu já pensava em voltar!
José Messias Braz – MG

Sambando ao som do "Abre-alas",
pisa as agruras da vida
na pretensão de apagá-las
e não se dar por vencida.
Lóla Prata – SP

Com ternura tu me olhaste
e com ternura te olhei...
Nunca mais tu me deixaste,
nunca mais eu te deixei.
Lucília Decarli – PR

Eu te amo tanto, mas tanto
que já pus num pedestal
toda a glória desse encanto,
que se tornou imortal.
Luiz Carlos Abritta – MG

Debruçada sobre o berço
do seu querido filhinho,
busca a mãe, com o seu terço,
indicar-lhe um bom caminho.
Luiz Hélio Friedrich – PR

Árvore... da terra abrigo,
que insensato o homem destrói,
pondo a vida ao desabrigo...
desatino que corrói.
Mª da Conceição Fagundes – PR

Um abraço com frequência
sempre muito amor nos traz.
Ele desarma a violência,
constrói um mundo de paz.
Mª da Graça Stinglin – PR

Vens na carícia do vento
e na doçura do olhar;
és luz no meu pensamento
e guias meu caminhar.
Mª Lúcia Godoy Pereira – MG

Eu já fui um beija-flor
em outras vidas passadas:
– era segredo em louvor
às flores desamparadas.
Mª Luiza Walendowsky – SC

Não há no mundo distância
que faça um dia esquecer
a terra de nossa infância,
o sol que nos viu nascer!
Mª Thereza Cavalheiro – SP

Num engano de momento,
a vida se transformou...
Eu fui rosa... foste vento
que ao passar... me desfolhou...
Marina Bruna – SP

Eu trago, junto do peito,
silente, a lembrar, constante,
o teu retrato, que estreito,
feito uma joia galante.
Mauricio Friedrich – PR

Muitas vezes, na pintura,
em aquarela aparece,
numa suave ternura,
a dor que nunca se esquece.
Mifori – SP

E’ do passado a lição,
mas com valor de presente:
Só pode ter corpo são
quem tem saúde na mente.
Newton Vieira – MG

Orgulho é a bola de neve
que vai, em diário exercício,
levando o infeliz de leve
às bordas do precipício.
Nílton Manoel – SP

Juventude, o procurar
permanente de viver.
Enquanto a busca durar
ninguém vai envelhecer.
Olympio Coutinho – MG

Se o coração ainda sente
o amor perdido de outrora,
o sonho, na alma da gente,
se abraça a esse amor... e chora!
Otávio Venturelli – RJ

Prefiro ficar no sonho
a embarcar na realidade;
lá, meu mundo é mais risonho,
mais seguro e sem maldade!
Renato Alves – RJ

Vivemos tão lindos sonhos,
mas agora só nos resta
vencer os dias tristonhos
ao aparar as arestas.
Roberto Acruche – RJ

Numa pétala orvalhada,
uma gota luminosa
é um beijo que a madrugada
deixou na face da rosa.
Thalma Tavares – SP

Na ilusão de ser gaivota,
se piso a areia, acredito...
Eu olho o mar, traço a rota
e, em sonho, toco o infinito.
Therezinha Brisolla – SP

Sofro por não tê-lo perto,
porém nego que o desejo
e esqueço o portão aberto
se na minha rua o vejo.
Vanda Alves – PR

Reconheço que a razão
me exerce extremo fascínio,
mas, se acerta o coração...
perco o rumo e o raciocínio!
Vânia Souza Ennes – PR

Canta a prosa, canta o verso
com esplêndida leveza,
enchendo todo o universo
e louvando a natureza.
Vidal Idony Stockler – PR

Assim como a vida soube,
sem dó, romper nossos laços,
a saudade também coube
nos meus braços sem abraços.
Walneide F. Guedes – PR

Fonte:
Revista enviada por A. A. de Assis

José Faria Nunes (Um Rosto Miscigenado)

Imagem de Gilberto Queiroz
Na rua nem cortejo havia. O caixão barato, doação de uma instituição de caridade, era conduzido por poucas mãos que se revezavam entre as poucas pessoas que levavam o corpo.

Estivessem em campanha eleitoral o séquito chamaria a atenção de populares, atraídos por figuras da política à cata de simpatia para investimento nas urnas. Teatro de humildade, benevolência, humanidade, máscara comum de semelhantes tempos. A pessoa do esquife seria, no mínimo, reverenciada ainda que nem família tivesse. Pose pública na busca da notória atenção dos nem sempre incautos eleitores.

Em não estando em campanhas eleitoreiras, digo eleitorais, exceto a espontânea curiosidade de um ou outro garoto por onde seguia, ninguém nada perguntava. Ninguém se preocupava em saber de quem era o corpo, que só não fora deixado para decomposição natural em algum terreno baldio ou enterrado em algum fundo de quintal por razões óbvias: para não incomodar pelo cheiro nauseativo que por certo exalaria ou porque havia proibição legal para enterros em locais não autorizados. O cemitério, ainda que distante (do outro lado da cidade) era um mal necessário. Enterro em cova rasa, sem alvenaria nem obra de arte. Túmulos em mármore ou granito, só para pessoas de posse, que deixam herança, ou tenham merecido o respeito público local. E aquele não era o caso.

Ninguém sabia quem era, de onde viera. Até parece ter chegado ali só para morrer. O médico chamado para emissão do laudo cadavérico nem ver o corpo foi. Assinou o documento em do único estabelecimento comercial do bairro. Um misto de boteco, frutaria e armazém de secos e molhados.

Cortejo sem pompa, sem glória, só não ignorado de ter existido porque ali estava o corpo. Prova de que um dia, em algum lugar, alguma mulher teria dado à luz um filho. Ainda que sem a consciência de que um dia ele viveria como mendigo, morreria como um ninguém, seria enterrado como indigente. Sem lenço, sem documento, sem choro, sem vela.

E pelas ruas periféricas da pequena cidade seguia o corpo no caixão barato, conduzido por poucas mãos que se revezavam entre as poucas pessoas.

No cemitério o caixão foi aberto apenas para cumprir uma tradição, visto que ninguém ali estava por amor a um ser humano que perdera a vida, mas apenas por desencargo de consciência. Ainda havia alguém que ainda tinha consciência de que o homem, imagem e semelhança de Deus, ainda que ignorado pela vida, na morte teria que ter a reverência mínima de receber um enterro ainda que sem quaisquer formalidades. Não se poderia deixar um corpo apodrecer ao deus-dará, sem ao menos uma cova onde seus ossos pudessem ficar reunidos. A menos que o cemitério venha a encher tanto que não tenha lugar para o enterro de mais ninguém. Aí então restos mortais de pessoas ignoradas, desconhecidas, indigentes poderão ser removidos para covas coletivas para reserva de seus lugares para novos sepultamentos. Por certo nenhum local é seguro para a insegurança das vítimas da indiferença humana (humana?) da sociedade do ter. O ser, se não acompanhado do ter, apenas em dimensão que nos foge à compreensão terá o mérito de ter existido. Será que terá?

Aberto o caixão chamou a atenção dos circunspetos presentes o defeito físico da mão e antebraço direitos do corpo em desajeitada posição, cruzados sobre o peito do cadáver de aparência sexagenária. Cabelos poucos a ornamentar uma careca sobreposta a um rosto miscigenado. Herança de uma sonhada democracia racial que ainda inexiste no país, onde a corrupção, o crime organizado, os desmandos, o autoritarismo, a ganância e a hipocrisia insistem em manchar a grandeza de uma nação privilegiada pela generosidade da natureza. Aqui entre os trigais o joio se propaga, um joio de agentes ativos e passivos da especulação e da exploração do homem pelo homem, céticos de que cada um acabará por se tornar vítima de si mesmo, de suas próprias armadilhas.

Fechou-se o caixão e nem os três costumeiros punhados de terra sobre ele foram jogados. Para o agrado dos coveiros, ninguém ali ficou para lhes perturbar o trabalho, costumeiramente empertigado pelas presenças incomodativas próprias de enterro de pessoas, cuja notoriedade foram objeto em vida, ainda que apenas pelos cifrões.

Todos se foram, pois a vida haveria de continuar, até que algum dia em alguma estação o trem da existência tivesse que parar para uma breve reflexão sobre a própria vida. Ainda que poucos para isso tenham tempo.

No cemitério os coveiros perceberam que o relógio os liberava para o merecido descanso. Afinal a noite se aproximava com sua boca enorme para engolir a cidade e seu povo. Sobre a cova, um poodle que um dia teria sido preto, então grisalho como seu amo, aconchegara-se sobre o monturo de terra fresca na ala de sepultamento de indigentes.

Em algum lugar do planeta, duas filhas interrogam pelo destino do pai, há uma década desaparecido.
---------
Conto publicado na Antologia de Contos de Autores Contemporâneos - vol.4

Fonte:
Colaboração de José Faria Nunes

Ademar Macedo (Homenagem ao Trabalhador)


Parabéns a você trabalhador,
empregada doméstica e diarista,
pedreiro, servente, e soldador,
a dona de casa e ao frentista;
o guarda noturno, o jardineiro,
a linda aeromoça e o coveiro,
o piloto e o cardiologista;
arquiteto, gari e contador,
manicure, palhaço e professor,
ao bombeiro, camelô, e taxista.

Parabéns a você telefonista,
ao alfaiate e ao cabeleireiro,
secretária, garçom e motorista,
segurança, pintor e sapateiro;
ao recepcionista e operário,
padeiro, bóia fria e ao bancário,
cirurgião, vigia e a parteira;
aposentado, chaveiro e corretor,
advogado, juiz e promotor,
policial militar e enfermeira.

Meus parabéns a você engomadeira,
ao funcionário público e zelador,
ao officce boy e camareira,
eletrotécnico, salva vida e cobrador.
parabéns ao herói caminhoneiro,
tratorista, flanelinha e carroceiro,
vereador, deputado e merendeira,
músico, florista e ao barbeiro,
trapezista, babá e ao porteiro,
ambulante, empresário e lavadeira.

Parabéns a você que é faxineira,
a governanta e ao eletricista,
agricultor, mecânico, e a copeira,
comerciante, atendente e ao dentista.
fotógrafo, gerente e comerciário
jogador, feirante e veterinário
ao sanfoneiro, soldado e escritor,
vaqueiro, locutor e jornalista;
parabéns à você radialista
e ao Violeiro, Poeta e Trovador!!!
--
Fonte:
Colaboração de Ademar Macedo

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XXIV - O Macaco, a Onça e o Veado


Uma vez uma onça convidou um veado para ir com ela à casa dum compadre. Foram. Como houvesse no caminho um ribeirão a atravessar, a onça enganou o veado, dizendo que não tivesse medo, pois era água rasinha. O veado meteu-se no ribeirão e quase se afogou.

Seguiram. Vendo umas bananeiras logo adiante, a onça propôs:

— Amigo veado, vamos comer bananas. Você sobe e pega as verdes, que são as melhores, e me atira as amarelas, que não valem nada.

O veado subiu, jogou as amarelas para a onça e ficou com as verdes, que não pôde comer. Desceu coro o estômago no fundo, enquanto a onça arrotava de gosto.

Seguiram. Adiante encontraram uns trabalhadores capinando a roca. A onça disse:

— Amigo veado, quem passa junto daqueles homens deve dizer: "Que o diabo os carregue!" É uma saudação que deixa os homens contentíssimos.

O bobo do veado foi e disse aos trabalhadores: "Que o diabo os carregue!" mas os homens, furiosos, soltaram-lhe os cachorros em cima e quase o pegaram. Já a onça ao passar por eles, o que disse foi: "Deus ajude a quem trabalha!" E os homens, muito satisfeitos com a frase, deixaram-na passar sossegadamente.

Adiante a onça viu uma cobrinha coral.

— Olhe, amigo veado, que lindo colar vermelho. Leve-o para pôr no pescoço de sua filha.

Assim que o veado foi pegar aquilo, a cobra deu-lhe um bote, que por um triz o não alcançou.

Finalmente chegaram à casa do compadre. Era quase noite, de modo que depois duma prosinha trataram de dormir. O veado armou uma rede a um canto e logo ferrou no sono. A onça, então, foi pé ante pé ao curral, comeu uma ovelha e trouxe uma cuia de sangue, que derramou em cima do veado. Depois deitou-se e dormiu regaladamente.

De manhã o compadre foi ao curral e percebeu que lhe haviam comido uma ovelha. Desconfiou logo da onça.

— Eu, comer sua ovelha, compadre?

Que idéia! Olhe como estou sem o menor sinal de sangue. Talvez fosse o veado... O compadre olhou para o veado e o viu todo sujo de sangue.

— Ah, ladrão! — e deu-lhe de cacete até matar.

A onça despediu-se do compadre e lá se foi, muito lampeira.

Dias depois convidou o macaco para outra visita ao compadre. O macaco aceitou. Foram. No ribeirão a onça veio com a mesma história:

— Passe sem medo, macaco. A água é rasinha.

Mas o macaco, que tinha sabido da história do veado, não foi na onda.

— Nada! — disse ele. — Passe você primeiro, para eu ver se a água é mesmo rasinha como diz — e a onça não teve remédio senão passar na frente.

Lá nas bananeiras o macaco subiu, mas comeu todas as amarelas e à onça só deu as verdes. Furiosa do logro, a onça foi pensando: "Ah, bicho duma figa! Eu ainda acabo lanhando esse lombo com as minhas unhas!"

Quando chegaram à roça dos trabalhadores, a onça avisou:

— Escute, macaco. A saudação que esses homens gostam é assim: "O diabo leve quem trabalha!" — mas ao passar por eles o macaco disse coisa diversa: "Deus ajude a quem trabalha!" — e os homens, deixaram-no passar.

Quando encontraram a cobrinha e a onça lembrou que era um ótimo colar para a mulher do macaco, este respondeu:

— Está me parecendo muito melhor para pulseira de uma filha de onça! — e não quis saber de pôr a mão na cobra.

Chegaram por fim à casa do compadre. Depois duma prosinha foram deitar-se. O macaco, sabidão, armou sua rede bem alto; deitou-se e fingiu dormir. A onça foi ao curral e comeu outra ovelha, vindo com a cuia de sangue lambuzar o macaco. Mas este arrumou com o pé na cuia, de modo que o sangue caiu em cima da onça.

Indo pela manhã ao curral, o compadre deu pela falta da ovelha.

— Que coisa esquisita! Sempre que a onça vem cá, desaparece-me uma ovelha...

È foi para casa, furioso da vida. Deu com a onça roncando — fingindo que dormia, mas lá do alto de sua rede o macaco apontava para ela, dizendo:

— Veja como está barreadinha de sangue.

— Desta vez me paga! — gritou o compadre, e apontando a espingarda, pum! — matou a onça.
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— Nas histórias populares — disse dona Benta—o papel da onça é sempre desastroso. Personifica a força bruta, a traição, a crueldade. Os contadores vingam-se dela ser assim, fazendo-a perder todas as partidas.

— Está claro — disse Emília. — Não tinha graça nenhuma se a onça acabasse vencendo. Ela é bruta, é má, é cruel; logo, tem de ser castigada — pelo menos nas histórias.

— E o pobre veado? — lembrou Narizinho.

— Já ouvi várias histórias de veado e até tenho dó. Uns bobinhos completos. Não há nenhuma em que se atribua a menor inteligência aos veados. Acabam sempre comidos.

— Veado, ovelha e outros animais não passam de carne com quatro pés — disse Pedrinho.

— Inteligência não existe em suas cabecinhas, nem para lograr a onça, que é o mais estúpido dos animais. Eu até me rio quando ouço uma ovelha fazer: Bé! Que bichos bobos! Só servem mesmo para dar lã e costeletas.

— Isso não — protestou Emília. — Quando os homens querem um símbolo de meiguice, de que se lembram? Dos cordeirinhos. S. João andava com um no braço.

— Bom, S. João era um santo, era diferente dos outros homens. Quando esteve no deserto só passava a gafanhotos, coisa que ninguém come. Juro que não comeu o cordeirinho que trazia no braço. Mas o resto da humanidade, nem é bom falar! Elogiam os cordeirinhos, sim, senhor. "Que beleza! Que encanto!" — mas passam-lhes a faca no pescoço e comem-nos.

— Ué! — exclamou tia Nastácia. — Pois para que serve carneiro senão para ser comido? Deus fez os bichos cada um para uma coisa. A sina dos carneiros é a panela.

Emília danou.

— Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? Todos os viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda maior do que matar um homem. Facínora!...

— Emília, Emílial — ralhou dona Benta.

A boneca botou-lhe a língua.
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Continua… XX – O Veado e o Sapo
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
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