terça-feira, 29 de novembro de 2011

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 13)


GARIBAR

Preparar um carro superfialmente para vender por bom preço. É uma lixadinha aqui, uma pinturinha ali, uma ajeitadinha no motor e um brilho no capricho. Aí é só esperar o comprador, de preferência míope e meio surdo.
A palavra veio de Guariba, um paulista cuja especialidade era transformar calhambeques em automóveis de boa aparência.

IMUNDO
Assim como incapaz é quem não é capaz e infiel é quem não é fiel, imundo é quem não é mundo. Mundo, como adjetivo (em desuso), significa limpo: "naquela casa há gente munda e imunda". Bonito, não? E está em "Os lusíadas": "Debaixo deste círculo, onde as mundas / Almas divinas gozam" (X, 85).
A palavra latina mundu sofreu praticamente a mesma evolução semântica do seu correspondente grego kásmos (origem de cosmos). Inicialmente mundu significava arca, mais especificamente a arca em que os casados levavam seu enxoval. Depois, mundu ganhou o sentido abrangente de toalete, adornos femininos que se harmonizam.
Mundu também virou adjetivo, com o sentido de elegante, próprio, limpo, e originou as seguintes palavras latinas:
(a) mundare, limpar, purificar, de onde veio o português mondar, limpar de ervas daninhas e, por extensão, rever e corrigir um texto;
(b) munditia, limpeza, asseio, que deu em português mundícia (ou mundície), limpeza, esmero; de munditia se formou, com o prefixo de negação in-, immunditia, de onde veio o português imundícia (também, mais comumente, grafado imundície);
(c) immundu (in-, não + mundu, limpo), origem do português imundo.
Finalmente, mundu chegou ao sentido de universo, mas, na terminologia religiosa, mundu indicava o mundo terrestre (em oposição ao céu), com a conotação pejorativa de profano. E, assim, com esse sentido restritivo, originou mundanu daí mundano. Os franceses chamam o diabo de "l"esprit immonde". Em português, imundo tem, além de sujo, o sentido moral de torpe, indecente. Voltando ao grego, kósmos significa não só universo, como também adorno, enfeite e originou kosmetikós, relativo ao adorno, origem do português cosmético.

IRMÃ- PAULA
E a pessoa extremamente generosa, desprendida. Sim, existiu de fato uma irmã Paula no Brasil. Era uma freira, de nacionalidade francesa, da Congregação das Irmãs de São Vicente de Paulo de Gysegem. Seu nome de batismo era Antoinette Vincent. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 1945 e ficou famosa por suas inúmeras obras de caridade.

JOÃO -DE -BARRO
O nome científico da ave é furnarius rufus, forneiro ruivo, por sua cor e pelo seu ninho - uma obra maravilhosa -, que se parece com um forno de barro e, até hoje, é a última palavra na tecnologia da nidificação.
No Brasil, também se chama forneiro, assim como no espanhol (hornero) e no francês (fournier); em inglês, é ovenbird (de oven, forno + bird, pássaro).
O pássaro, além de sua justíssima fama de trabalhador, é o símbolo da fidelidade. Dizem que o joão-de-barro nunca se separa da sua amada e, se a ingrata foge com outro ou morre primeiro, ele tapa a abertura do ninho e fica solitário o resto da vida. O pássaro foi eleito a ave nacional da Argentina. Pela fidelidade?! - estranhará com razão o leitor; não, pela obra.
Em mais ou menos cinco dias, o casal, no período da reprodução, constrói sua casa, com barro úmido, palha e esterco, sempre com a abertura voltada para o lado contrário do vento (segundo alguns biólogos, é o resultado de uma informação herdada geneticamente). O local escolhido para a construção pode ser uma árvore ou, perigosamente, um poste de energia elétrica (como você já deve ter visto nas estradas). Perigosamente porque com freqüência o pássaro limpa o bico nos isoladores instalados nesses postes e é fulminado, provocando, além de uma viúva, o desligamento da rede (é a causa de mais de 10% dos desligamentos em algumas regiões do Brasil).
Por que joão-de-barro e não reinaldo-de-barro ou márcio-debarro? Porque João é um nome muito comum, tanto que a fêmea dele é chamada maria-de-barro e não irene-de-barro ou biancade-barro.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – V – Apuros do Marquês


Enquanto Narizinho e Emília eram conduzidas à casa de dona Aranha, Pedrinho, o Visconde e Rabicó tomavam a direção da Floresta Vermelha — a mais linda mata de coral do reino.

— Deve ser lá que moram os polvos — disse Pedrinho. – Quero ver se levo um, para assustar tia Nastácia no sítio.

O Visconde ia abrindo a boca para dar sua opinião sobre os polvos, quando um grito agudo o interrompeu. Era Rabicó. Ao passar perto dum ouriço do mar, o bobinho julgou que fosse coisa de comer e nhoc! Agora berrava com desespero, com o ouriço espetado na boca. Pedrinho correu em seu socorro e só a muito custo pôde livrá-lo do terrível bicho.

— Bem feito! — advertiu. — Quem manda ser tão guloso? Comporte-se como o Visconde que nada acontecerá.

Rabicó respondeu soluçando e ainda com uma lágrima pendurada dos olhos:

— É muito fácil ser bem comportado quando não se tem estômago. Mas eu tenho um estômago que vale por dois. Por mais que coma, estou sempre com fome — e hoje ainda nem almocei...

Pedrinho teve dó dele.

— Pois coma o brinco, e contente-se com isso porque não há mais nada por enquanto.

Sem esperar segunda ordem, Rabicó devorou o brinco de amendoim com casca e tudo. Não perdeu um farelinho! Depois lambeu os beiços, cheio de saudade do outro amendoim, espatifado pela pelotada de Pedrinho. Foram andando. Súbito divisaram ao longe um vulto negro.

— Quem será? — indagou o menino firmando a vista.

— Deve ser um gigantesco polvo — sugeriu o Visconde.

— Polvo o seu nariz. Onde já se viu polvo com mastros? É navio e muito bom navio.

De fato era um navio naufragado — um enorme navio de três mastros, já meio enterrado na areia. Correram todos para lá; e como vissem um rombo no casco, entraram por ele. Puderam assim percorrer o navio inteirinho — os camarotes, os salões, o tombadilho. Rabicó separou-se dos companheiros para descobrir onde era a cozinha, na esperança de encontrar algum resto de comida. De repente gritou, muito alegre:

— Achei uma linda raiz de mandioca! Venham ver!...

Pedrinho e o Visconde foram ver, mas viram coisa muito diferente. Viram Rabicó ferrar o dente na tal raiz de mandioca e viram a raiz mover-se como cobra, enlear-se nele e arrastá-lo para o fundo de um camarote.

— Que será isto? — murmurou Pedrinho aproximando-se na ponta do pé, com o bodoque armado. Espiou. Era um polvo! Estava o pobre marquês nos braços dum enorme polvo, que o olhava muito admirado, como se jamais houvera visto leitão com laço de fita na cauda. — É o que pensei — cochichou o menino para o Visconde. — Rabicó mordeu no tentáculo deste monstro pensando ser mandioca. E agora está perdido!...

— Pelotada nele! — sugeriu o sábio.

— Não adianta — respondeu Pedrinho coçando a cabeça, sem saber o que fazer. Nisto teve uma idéia. – Senhorita — disse a uma sardinha que também estava assistindo ao espetáculo. — Faça-me o favor de ir correndo ao palácio dizer ao príncipe que o marquês está nas garras dum polvo. Ele que mande ajuda com a maior urgência!...

Ia a sardinha dando uma rabanada para partir, quando o Visconde a segurou pela caudinha.

— Senhorita, poderá acaso dizer-me qual é o seu nome científico?

Não sendo uma sardinha culta, julgou ela que o Visconde estivesse caçoando e ofendeu-se.

— Malcriado! Não se enxerga? — retrucou botando-lhe a língua.

E lá se foi em direção ao palácio, toda empinadinha para trás, a resmungar contra o “estafermo”. O Visconde, muito desapontado, ficou a refletir consigo que era uma pena serem totalmente analfabetos os habitantes daquele reino.
––––––––
Continua... O vestido maravilhoso

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Trova 212 - A. A. de Assis (Maringá/PR)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 409)

A "PEDRA DA CAVEIRA" EM PASSA E FICA/RN
Uma Trova Nacional

Cuidado com a falsa imagem.
Beleza é vago argumento:
plantas de linda folhagem
na raiz tem seu sustento!
–ELIANA PALMA/PR–

Uma Trova Potiguar

Eu sinto a força da vida
e a mão divina de Deus,
em cada manhã florida,
na aurora... dos versos meus!
–MARA MELINNI/RN–

Uma Trova Premiada

2005 - Belém/PA
Tema: DELÍRIO - M/E

Nesta fria madrugada,
num delírio sem limite,
beijei a boca deixada
lá no espelho da suíte!
–ANTONIO COLAVITE/SP–

Uma Trova de Ademar


Gentileza recebida,
mesmo aquelas mais banais;
não dura por toda vida...
Mas nos faz feliz demais!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Rosto tranquilo, sereno...
E, em sua fingida calma,
esconde todo o veneno
que destila dentro da alma...
ABIGAIL RIZZINI/RN–

Simplesmente Poesia

Cruviana Sertaneja
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Ah cruviana...
Descobri-a numa noite da minha adolescência
no alpendre da casa grande de Coroas Limpas
na minha Santana do Matos.
Tremia feito "vara verde"
Não, não era o frio!
Era o medo de não saber se tu cruviana,
Seria uma onça ou uma alma penada.
E pela manhã fui dicionarisar o meu medo...
Beleza!
A grande descoberta!
CRUVIANA = É a Deusa do vento, a mulher do alvorecer.
Chega em tornado, acordam os trabalhadores das fazendas
e os envia fora para o trabalho. ...
Meu Deus, que alivio!
E o alpendre da velha casa de Coroas Limpas,
ganhava um "dormidor"
para curtir a cruviana de cada emadrugadecer!

Estrofe do Dia

Tenho pena de quem fuma nesse mundo
carregando para o corpo uma doença,
desde cedo pagando uma sentença
mergulhando de vez em poço fundo,
caminhando para ser um moribundo,
o pulmão transformado numa tela,
se prepare pra ver acesa a vela
pois a vida perdeu a qualidade;
eu fumando o cigarro da saudade
e a fumaça escrevendo o nome dela.
–HUGO ARAUJO/PE–

Soneto do Dia

Memória
–PROF. GARCIA/RN–

Esta dor que me fere e me magoa,
quando lembro da minha mocidade,
pouco me importa que ela tanto doa,
se doendo, não cura esta saudade.

Melancolicamente eu vou lembrando,
de saudade em saudade eu vou vivendo,
mas não posso esquecer, de quando em quando,
que em teus braços aos poucos vou morrendo.

Nesta luta sem trégua, em desatino,
eu me agarro nas rédeas do destino
dos arquivos ingratos da velhice;

mas não posso esquecer que fui criança,
guardarei para sempre na lembrança
a saudade feliz da meninice!

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Lausimar Laus (O Guarda-Roupa Alemão)


O guarda-roupa alemão, segundo romance de Lausimar Laus, publicado em 1970, a autora reconstitui parte da história da cidade de Blumenau, colonizada por imigrantes alemães, valorizando os conflitos culturais e identitários pertinentes aos deslocamentos espaciais e culturais dessa população.

O romance narra, em dois cenários diferentes, Blumenau e Itajaí, a vida dos imigrantes em Santa Catarina. Pelo ponto de vista de Homig, a história da família Ziegel e, através dela, a da imigração alemã no Vale do Itajaí. Quilômetros abaixo, na barra do rio, e pela perspectiva da professora Lula, a da imigração açoriana. A imigração alemã é, no entanto, o ponto central do livro.

Lausimar Laus preocupou-se em registrar as influências culturais trazidas pelos alemães (Goethe, Heine, Verlaine), assim como o folclore catarinense presente na região.

O romance O guarda-roupa alemão é em si mesmo a voz desta cultura híbrida na busca da identidade cultural. Identidade esta que abriga intersecções relativas ao gênero, ao lugar e à experiência. A voz de Lausimar é única na representação de um contexto determinado social e culturalmente, marcado pela feminilidade e suas relações ideológicas e de poder.

Constantemente aparecem as canções dos canoeiros e o modo de falar catarinense (obrados, trasantonte, constipação). Homig representa essa mistura cultural, a qual se constituiu na soma de diferenças. O processo de construção dessa cultura híbrida, seus confrontos identitários serão uma das direções de leitura do romance, desenvolvidas ao longo desse trabalho.

A obra dá destaque às tensões do Estado Novo com a perseguição aos alemães, o medo daí decorrente, as humilhações impostas a um dos protagonistas, o velho Werther no final da guerra: Uma avalanche de gente reunida na praça. Banda de música e tudo (...), vinha o velho Werther com um saco pendurado no pescoço, com a cara de Hitler desenhada em cima. Na praça, (...), mais morto do que vivo, foi sentado numa cadeira de barbeiro (...) e obrigado a beber óleo de carro.

Lausimar mescla, de maneira prazerosa, o cômico, o trágico, o poético. Além disso, seu trabalho com a linguagem é cuidadoso e detalhado. Com Lula nos vem o linguajar de origem açoriana, seus termos característicos, o emprego do “tu”, ainda usado, com o verbo na segunda pessoa, apenas no litoral catarinense e no cearense, justamente onde os açorianos se fixaram.

Do núcleo alemão, os termos que se usam em Santa Catarina, as gozações feitas com os sermões do padre, obrigado a falar português de repente, no período getulista, e mais as idéias nazistas e não-nazistas, as perseguições políticas, o amor realizado e aquele que não se encontra, porque procurado onde não pode estar, como na história de Menininha.

O texto é narrado inicialmente por Homig, o último descendente da família Ziegel e que tinha o dever de abrir a gaveta do guarda-roupa onde estava guardado um segredo de família. O guarda-roupa é a peça que acompanhou as quatro gerações da família. Sentado à sua frente, Homig reconstitui a história destas gerações.

Lausimar Laus deixa claro, em carta para um amigo, que tudo o que escreve vem de suas vivências e, de forma bastante explícita, comenta sobre o guarda-roupa e sua relação com esta peça fundamental dentro do seu romance:

O guarda-roupa era um móvel que havia em casa de minha avó Maria Amélia Stuart, mãe de minha mãe, que se casara com um norueguês. Era, de fato, um móvel alemão, quase até o teto, que me fazia, quando criança, pensar muito nele. Tinha milhões de coisas antigas dentro dele e até figurinos do século XVIII. A minha imaginação maquinava sempre. Pra mim ele não era um móvel. Era gente, porque eu sempre falava muito sozinha, como se houvesse gente a minha volta, quando criança.

O romance de Lausimar Laus retoma parte da história da cidade de Blumenau, colonizada por alemães a partir de 1850, preocupando-se com o registro de fatos históricos reais relativos ao contexto social e político dos primeiros cem anos da cidade. Esse período compreende a chegada dos alemães pioneiros, os quais deviam expulsar os índios e demarcar as terras, até a época da nacionalização imposta por Getúlio Vargas, quando a comunidade de origem alemã sofre grandes repressões. Além da preocupação com a realidade histórica, a autora explora, com muita propriedade, os conflitos culturais e identitários relativos à experiência da imigração, quando duas ou mais culturas devem conviver com suas diferenças e, a partir daí, estabelecer uma nova ordem simbólica para suas referências. Esses conflitos culturais incluem questões relativas à nação, à raça e ao gênero.

O registro dos acontecimentos históricos na narrativa é uma preocupação constante da autora. As enchentes de 1880 e de 1911, as primeiras fábricas da região, Hering e Kormann, a política regional e nacional e suas personalidades, Vitor Konder, a Guerra do Paraguai, a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, o período de nacionalização imposto por Getúlio Vargas constroem o cenário do romance.

Foco narrativo

O tempo da narrativa não segue a cronologia e avança de acordo com o fluxo descontínuo do pensamento do personagem, assim como os vários pontos de vistas que se misturam em uma espécie de fusão de terceira e primeira pessoas. Partes são narradas em primeira pessoa pelo próprio Homig e outras extraídas do diário de sua tia Hilda e de seu avô Klaus, de onde partem os pontos de vista de sua avó Sacramento e da professora Lula.

A narração da terceira pessoa onisciente é feita com maior presença nas descrições de Homig e de seus sentimentos neste dia de reflexão sobre sua história de vida. Por isso, pode-se pensar em um mais um ponto de vista, o do Guarda-roupa alemão, já que este recebe um tratamento humanizador na narrativa de Homig e, estando um à frente do outro, as considerações parecem ser feitas a partir do olhar do próprio guarda-roupa. Homig, o sensível. Chapéu meio desabado na testa. A calça de veludo surrada, puxando mais para o cinza. Houve tempo em que era azul.

Personagens

As mulheres são as personagens centrais de todas as histórias lembradas por Homig. Sua bisavó Ethel, a Grossmutter, e sua avó índia, Sacramento são suas maiores referências, pois foi criado por elas. Sua mãe morreu moça, numa epidemia da gripe espanhola, e seu pai na Segunda Guerra Mundial. São estas duas personalidades contraditórias que marcam a vida de Homig, percorrendo toda a narrativa. Ethel é caracterizada pela típica alemã, trabalhadora, saudosa de sua pátria, impondo sempre a disciplina e a ordem da casa. Porém, por trás da rigidez com os outros e, principalmente, consigo mesma, havia uma mulher sonhadora, ligada à arte e à liberdade. Homig encontra em umas das gavetas do guarda-roupa desenhos de sua bisavó e entende que sua vida dura de colona destruiu muitos de seus sonhos. No meio dos desenhos, uma foto:

Mas como a bisavó fora bonita! Puxa vida! Até que aquele cabelo complicado, com uma grande igrette na cabeça, lhe dava uma graça estupenda. A legenda diz que ela nascera em Paris, de pais alemães e era autora de composições, onde se harmonizavam cores de extrema suavidade.

Tà certo. E a gente nunca soube da genialidade da Grossmutter. Pelo menos vó Sacramento só contava sobre aquela mulher forte como granito. Era lidando. Plantando flores, mas também plantando aipim. O morango. Cavando a terra. O avental sempre muito branco, rodeado de bordado inglês. Pesadona. Vermelha. Dando ordens. Organizando as festas da colônia. Aconselhando o marido. Nunca em jeito macio. Ás vezes, quando o velho Ziegel lhe fazia que não com a cabeça, ou resmungando, contra suas intenções, ela levantava a testa e dizia alto:

- “Mann, ajuda-me. Eu me esforço demais. Quebro todos os atalhos para não encontrar comigo mesma. Porque o dia em que eu encontrar comigo, não sei mesmo o que acontecerá. (pág. 32)

Sacramento é a figura da avó carinhosa, compreensiva e religiosa, com quem Homig tem grande afinidade. Sua adaptação à idéia de casamento e aos costumes alemães, assim como sua iniciação sexual são narrados através do diário de Klaus. Sua ingenuidade e meiguice marcam todos os episódios em que está envolvida, e estes são os sentimentos lembrados por Homig. Ele que ouvia suas histórias enquanto contava as “preguinhas” de seu rosto.

Hilda é a filha mais nova de Ethel, uma figura rapidamente caracterizada no romance, mas com uma personalidade marcante. Amante da liberdade e desprendida de qualquer preconceito. Suas atitudes chocam a todos: Pegava o cavalo bravo no mato, tirava a roupa toda, montava nua em pêlo e cavalgava a vontade. O falatório da vizinhança (p. 6). Em seu diário estão suas indagações sobre a vida e os códigos que a regem, acreditando na natureza das coisas e dos sentimentos como obras de Deus, então, não podem ser pecados. Todos acham que foi para Alemanha, segundo ordens de sua mãe, mas seu verdadeiro destino só é revelado no final do romance.

Grande parte da narrativa é construída a partir do ponto de vista de Lula, uma professora brasileira, vinda de Itajaí, para ministrar aulas de português em uma escola pública. Sua figura é mencionada, inicialmente, no diário de Klaus, mas através de sua mente uma história à parte é contada, a dos brasileiros, descendentes de açorianos, de espanhóis, vindos de Itajaí, de Florianópolis. Estes que chegam a Blumenau na tentativa de uma vida melhor. Lula mora na casa de uma tia, Maria Clara, junto com duas primas, Cidinha e Dora.Viveu dificuldades econômicas em Itajaí, junto à sua avó e seus irmãos, os quais ainda são sua grande preocupação. Através de seu ponto de vista dois importantes episódios são narrados: a enchente de 1911 e o caso de menininha. Desde as notícias da enchente, até a chegada das águas, o abandono das casas e o refúgio das pessoas para o convento das irmãs, o local mais alto da cidade, são vividos pela narração de Lula.

Menininha é filha adotiva de seu Tibúrcio e dona Tita, casal amigo de Itajaí, favorecido economicamente. Foi criada com muito zelo e rigidez pelos pais, os quais não a deixavam sair sozinha de casa, nem ter muitas amizades. Por causa de uma hérnia, seu Tibúrcio deve ser operado e deixa a filha aos cuidados de Dona Maria Clara, única pessoa em quem confia para isso. Menininha, porém, é muito bonita e apaixonada pela vida e esta é a primeira oportunidade para viver suas aventuras longe da prisão de sua casa. Lula descobre seus encontros, às escondidas, com um homem casado, seu Ataliba, foguista do “vaporzinho” Blumenau. Menininha faz revelações de suas experiências homossexuais para Lula, a qual, muitas vezes, sentiu-se atraída por sua beleza. Enfim, Menininha acaba trabalhando como “china” em Itajaí, casa-se, mas nunca se desliga de suas atividades.

Homig, personagem-narrador, o homem que constrói toda a história da família a partir de lembranças que se cruzam no tempo, num tempo que cruza fronteiras constantemente, é resultado da cultura híbrida que se constitui na soma de distintas partes: a língua alemã (dentro de casa), a língua portuguesa (na escola), a língua francesa (da avó indígena). Em uma cena do romance, Homig se encontra na rua tentando afirmar-se como brasileiro diante uma situação que exigia esse tipo de comportamento. Em casa, no entanto, apesar da mãe dirigir-se a ele em língua portuguesa, todas as referências são da cultura alemã.

Temática

O romance aborda várias temáticas sobre a colonização alemã na região de Blumenau. A demarcação de terras e o confronto com os índios são acontecimentos narrados pelo avô Klaus, o qual mostra respeito pela cultura nativa e acaba apaixonando-se por uma indiazinha de doze anos criada por freiras francesas. Sacramento é a vó índia de Homig, representante da simplicidade e religiosidade, por quem ele tem muito carinho e só lembranças ternas. As dificuldades enfrentadas por Sacramento quanto à compreensão da língua, à adaptação aos novos costumes e, principalmente, quanto à rejeição por parte de Ethel, mãe de Klaus, que não aceitava o casamento do filho com uma “bugra”, estão também registradas no diário do avô.

O rigoroso trabalho no campo e com as coisas da casa aparece constantemente na narrativa, mostrando, mais especificamente, a dedicação das mulheres à organização familiar, à educação dos filhos e à manutenção da cultura germânica, pela qual têm tanto orgulho. As descrições das casas, dos jardins, das vestimentas e da própria cidade, demonstram que os imigrantes viveram muitos anos em um núcleo germânico fechado e que recebiam pouca interferência de fora.

Abordagens como racismo, choque entre culturas distintas, o amor dos imigrantes pela pátria distante, assim como a assimilação de diferentes culturas pelas novas gerações, estão registradas na narrativa. Muitos desses conflitos são apresentados através de cenas que chegam ao cômico, construindo uma caricatura do imigrante alemão. É o exemplo da tia de Homig, Herna, a qual, necessitando uma transfusão de sangue, tem como único doador compatível o mulato Praxedes, tripulante do “vaporzinho” Blumenau. Herna, alemã nacionalista, entusiasta da “Nova ordem” proposta por Hitler, não aceitava misturar seu sangue com o de um mulato brasileiro: “Brasileiro tem sífilis...”. O doutor Büchmann, ginecologista conceituado e conhecido por sua personalidade autoritária, acaba usando da força física para realizar tal transfusão, inclusive com as enfermeiras, as quais recebiam caneladas, quando não faziam como foi mandado. Para complicar a situação, o voluntário a salvar a vida da alemã, em meio a tantos xingamentos, acaba desistindo da ação por achar um desrespeito à sua raça:

Sabe o que mais, seu dotô? Eu vou mais é m’imbora. Deixa esse diabo morrê de uma vez...fico dês das 6 da manhã im jejum pra sarvá uma merda dessas e ela ainda me chama de sifílico?... O Dr. Büchmann, vermelho como um pimentão, os dentes cerrados, a boca aberta, agarrou o mulato, deu um safanão, jogou-o na cama e disse com todas as suas forças e todos os seus erres: “Fai a merrrdaaa!”. O Praxedes, de mulato que era, passou a meio desbotado...(p. 153)

Enredo

Lausimar Laus conta, através de uma linguagem simples, descontraída e, muitas vezes, carregada de um grande senso de humor, a história de quatro gerações de uma família de imigrantes alemães, os Ziegel, colonizadores da cidade de Blumenau. A família Ziegel é o centro da narrativa, porém várias outras histórias familiares cruzam-se entre si, tecendo, assim, um painel dos primeiros cem anos da cidade de Blumenau. A autora faz referências desde a chegada dos alemães, por volta de 1850, aos conflitos e ao extermínio dos índios daquela região, até a segunda guerra e o período de nacionalização imposta por Getúlio por volta de 1940.

A história é contada, inicialmente, por Homig, um homem de sessenta anos, solteiro, doente do coração. Sua sensibilidade aguçada alerta que sua vida está chegando ao fim, assim como a história de sua família, já que é o último descendente dos Ziegel. Na casa onde viveu toda sua infância, sentado em frente ao guarda-roupa alemão, Homig revive várias histórias de sua família na colônia de Blumenau. O guarda-roupa é uma peça que veio da Alemanha há cem anos com seus bisavós, Ervin Ziegel e Ethel Moltke, e acompanhou todas as gerações da família, sempre no mesmo lugar, guardando documentos importantes, enxovais e segredos.

Homig tem a incumbência de abrir uma gaveta do guarda-roupa, a qual foi trancada por sua bisavó ao falecer, contendo um segredo que só deveria ser revelado ao último Ziegel vivo. É chegada a hora de abrir a gaveta, pois a casa onde viveu toda sua infância foi vendida, encerrando o ciclo de sua família. Na verdade, havia mais um primo que ainda estava vivo, Ralf. Dez anos mais velho que Homig, chegou da Alemanha já adulto e formado e, por isso, viveu apenas parte da história dos Ziegel em Blumenau. A atitude de abrir a gaveta é hesitada várias vezes e Homig leva um dia inteiro para se decidir enquanto, em frente ao guarda-roupa, as lembranças de vida lhe vêm à cabeça. É Ralf quem o ajuda abrir a gaveta e quem, afinal, descobre o segredo da família, pois Homig já bastante debilitado física e emocionalmente, é levado para o hospital.

Fonte:
Passeiweb

Lausimar Laus (1916 – 1979)


Lausimar Maria Laus nasceu na cidade de Itajaí, SC no dia 16 de abril de 1916. Filha de Pedro Paulo Laus – oficial da marinha mercante condecorado por participar das duas Grandes Guerras Mundiais – e, Maria Stuart Laus – professora do ensino elementar. Foi casada duas vezes, sendo que ficou viúva do oficial do exército Sílvio Conti Filho.

Teve dois filhos: Gualberto e Eli. Em muitos documentos Lausimar Maria Laus é citada pelos nomes Lausimar Laus Gomes e Lausimar Laus Conti. Contudo, adotou o nome artístico de LAUSIMAR LAUS.

Lausimar estudou na Primeira Escola Mista da Barra do Rio e depois se transferiu para o Grupo Escolar Victor Meirelles. Na década de trinta seguiu para Florianópolis onde a cinco de dezembro de 1936 se formou normalista pelo Instituto de Educação. Ato contínuo, Lausimar se transferiu para o Rio de Janeiro, onde iniciou vitoriosa carreira como escritora, educadora e jornalista

No Rio de Janeiro Lausimar trabalhou no Ministério da Educação e Saúde e ingressou no magistério público no ano de 1944. Foi também no Rio de Janeiro que publicou seus primeiros versos no ano de 1942, com o título de CONFIDÊNCIAS.

Em 1948 publicou seu primeiro livro de contos direcionados ao público infantil: HISTÓRIAS DO MUNDO AZUL.

Em 1952 Lausimar ganhou o segundo lugar no concurso da Academia Brasileira de Letras, categoria teses. Como prêmio publicou em 1953 o livro: O ROMANCE REGIONALISTA BRASILEIRO.

Na década de cinquenta intensificou suas atividades no campo da literatura e jornalismo.

Em 1953 publicou BRINCANDO NO OLIMPO e em 1958 publicou o livro de contos FEL DA TERRA. Nesta época colaborou com vários jornais e revistas literárias modernistas, inclusive com o afamado grupo literário de Florianópolis, o GRUPO SUL.

Osvaldo Ferreira de Melo no livro Introdução à História da Literatura Catarinense inclui Lausimar como uma “agregada” aos modernistas do Grupo Sul: “Da geração modernista ou dela próximos, mas sem se terem integrado diretamente aos movimentos de renovação temos:[...] Zedar Perfeito da Silva (história, ficção), Nereu Corrêa (crítica)[...] Lausimar Laus (ficção)”. Junto com Meyer Filho – integrante direto do Grupo Sul, todos estes intelectuais mantiveram ligação histórica com a cidade de Itajaí.

Nas décadas de sessenta e setenta Lausimar Laus promoveu diversas viagens de estudo ao exterior e consolidou sua carreira no magistério superior.

Em 1962 recebeu credencial da revista Manchete para uma série de reportagens na Alemanha e em l965 publicou pela Editora Pongetti (a mesma que publicou diversos livros do poeta Marcos José Konder Reis) o livro sobre observações de viagem e crônicas, intitulado EUROPA SEM COMPLEXOS.

Em 1966 (a exemplo de Silveira Júnior) a convite do governo americano passou três meses em viagem de estudos nos EUA, onde fez observações sobre o sistema educacional daquele país. Em seguida, viajou a estudo para a Espanha e diversos países europeus, publicando uma série de reportagens intitulada NA ROTA DO VASTO MUNDO.

No final da década de setenta chegou a visitar o Japão e muitos outros países asiáticos e europeus. Em 1970 publicou seu primeiro romance, intitulado de TEMPO PERMITIDO, prefaciado por Rachel de Queiroz e editado pelo Instituto Nacional do Livro em parceira com a Editora Americana. Em 1975 publicou pelo Instituto Nacional do Livro e Editora Pallas a sua obra de maior sucesso: O GUARDA-ROUPA ALEMÃO.

Em 1976 recebeu o prêmio Odorico Mendes da Academia Brasileira de letras pela melhor tradução do ano em língua portuguesa para o livro de Alain Robbe-Grillet intitulado PROJETO PARA UMA REVOLUÇÃO EM NOVA YORK

Já no ano seguinte, tendo Afrânio Coutinho como orientador, defendeu dissertação com o título de O MISTÉRIO DO HOMEM NA OBRA DE DRUMMOND, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (publicado em 1978).

Ainda em 1977 recebe do Jornal de Santa Catarina o Troféu Barriga-Verde por sua contribuição na divulgação da literatura catarinense.

Publicou também o ensaio A PRESENÇA CULTURAL DA ALEMANHA NO BRASIL.

Lausimar contribuiu com a revista Manchete e chegou a ocupar a segunda página da revista O CRUZEIRO com suas crônicas. Publicou em O Globo, Diário de Notícias, Correio da Manhã, Jornal do Commércio, Jornal do Brasil (suplemento do livro), O Estado de Minas Gerais (Suplemento Literário), Correio do Povo (Caderno de Sábado), Revista Presença, O Estado de São Paulo (Suplemento Literário) e Jornal do Povo (hebdomadário itajaiense).

Na área musical teve vários poemas seus musicados por Aristides M. Borges e gravados com o selo da RCA/VICTOR. A música que obteve maior sucesso foi gravada com o título: TENHO PENSADO TANTO EM TI.

No setor acadêmico, Lausimar se licenciou em letras clássicas pela Faculdade de Letras da Universidade Santa Úrsula. Titulou-se mestre em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora pela Faculdade de Letras da Universidade de Madri. Exerceu por muitos anos o magistério superior na Universidade Federal Fluminense, em especial como professora de literatura alemã.

Lausimar Laus morreu aos 63 anos de idade, em sua residência (rua Aristides Espíndola, 106, Leblon – RJ), vítima de infarto fulminante, no dia três de outubro de 1979. Lausimar foi sepultada no Rio de Janeiro no Cemitério São Francisco Xavier, bairro do Caju.

Fonte:
http://pt.scribd.com/doc/57492836/O-Guarda-Roupas-Alemao

Orlando Mendes (Poemas Avulsos)


UNIFORME DE POETA

Ajustei minha cabeleira longa,
coloquei-lhe ao de cima meu
chapéu de coco em fibra sintética,
sacudi a densa poeira das asas encardidas
e, dependurada a lira a tiracolo,
saio para a rua
em grande uniforme de poeta.
Tremei guardas-marinhas,
alferes do activo em
situação de disponibilidade:
meu ridículo hoje suplanta
o vosso e nele se enleia e perturba
o suspiro longo das meninas
romântico-calculistas.

JUVENTUDE

É no tempo dos explícitos cantares
à luz do dia e na escuridão da noite
até uma explosiva prova de acção.

É o tempo das dúvidas inconfessáveis
os cigarros ardendo e o café já frio
e o rosto impassível atrás do jornal
contra a devassa de anônimos vigilantes.

É o tempo dos assaltos ao trânsito
imaginando as máscaras arrancadas
e a beleza de a riqueza como seriam
se não coexistissem incólumes com
ignorância e miséria e violência.

É o tempo da solidão entre as gentes
e de solitário sentir a multidão na savana.

É o tempo de não ter fé e crer ainda
na dádiva total por um beijo de amor
e pela sinceridade dum aperto de mão.

É também o tempo de receber-transmitir
uma secreta raiva chamada esperança.

Tempo que o pudor adulto faz caducar.

EXORTAÇÃO

"Jovem, se tens exercícios de literatura
escritos há mais de um mês, destrói-os.
Rasga-os ou queima-os de preferência
(consta ser universalmente mais ortodoxo)
e se a chama te chamuscar unhas e pele
e as sujar a cinza, não queixes a dor
e lava-te. Destrói-os. Guarda-os todavia
fiéis na memória, palavra por palavra,
para que possas transmiti-los a um amigo
quando depois do venal acto de amor
forem também vender a irresistível suspeita
da tua voz trémula e dos teus outros actos.
Mas não deixes de escrever. Peço-te que não."

DEDICATÓRIA

Aos poetas que pensam e dizem versos
mas não os sabem escrever
e por isso anónimos lhes chamam.
Nas rochas corroídas pelo sal de outros mares
navegados para implantar espada cruz e poder
nas rochas onde o luar desnuda o silêncio
pulsando canções da noite assim povoada
e que o sol inflama e semeia
sobre as efémeras gostas de cacimba
renovadas com cintilações das estrelas,
aí eu gravarei seus nomes.
E os amantes pressentindo
os hão-de perguntar e saudar.

Orlando Mendes (1916-1990)

Escritor moçambicano, Orlando Marques de Almeida Mendes nasceu a 4 de Agosto de 1916, na ilha de Moçambique.

Licenciou-se em Ciências Biológicas pela Universidade de Coimbra, onde foi assistente e onde se revelou poeta e prosador.

Pertenceu aos quadros dos Serviços de Agricultura, foi fitopatologista e Funcionário do Ministério da Saúde.

Profundamente influenciado pelo neo-realismo português, o poeta, romancista, dramaturgo, crítico literário, colaborou em diversos jornais moçambicanos e estrangeiros e produziu uma vasta obra literária, como
Trajectória (1940),
Portagem .(1966),
Um minuto de Silêncio (1970),
A Fome das Larvas (1975),
Papá Operário mais Seis Histórias (1983),
Sobre Literatura Moçambicana (1982), entre outros.

Recebeu o prêmio Fialho de Almeida , o dos Jogos Florais da Universidade de Coimbra (1946) e o primeiro Prêmio de Poesia no concurso literário da Câmara Municipal de Lourenço Marques.

Em 1990, Orlando Mendes faleceu em Maputo.

Fonte:
Antonio Miranda

Murilo Rubião (A Armadilha)


Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.

Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.

Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.

Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.

Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:

— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.

O outro teve que insistir:

— Afinal, você veio.

Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:

— Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.

— Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.

— Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?

— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.

Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.

Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:

— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.

— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.

— Nada?

Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.

— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!

Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:

— Calculava, porém desejava ter certeza.

Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam.
O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.

Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:

— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.

— Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.

— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!

— Não posso.

— Não pode ou não quer?

— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.

Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.

Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.

Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:

— Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.

A fúria de Alexandre chegara ao auge:

— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!

— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.

— Gritarei, berrarei!

— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.

E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:

— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

Fonte:
"Para Gostar de Ler — Vol. 9 — Contos", Editora Ática — São Paulo, 1984, pág. 17.

Preservação de Livros (Parte 5, final)


2.7 ACABAMENTO DOS CORTES DO LIVRO

Prensar o livro entre duas tábuas na mesa e lixar os cortes do livro até torna-los em linha reta.

2.8 CONFECÇÃO DA CAPA ·

Quando a capa do livro está em bom estado deve-se aproveitá-la, reforçando-a com uma cartolina. Molda-se a cartolina no livro colocando-a em seguida na capa original.

Quando a capa original não está em condições de ser aproveitada deve ser confeccionada uma capa com cartolina americana.

Molda-se a cartolina no livro cortando duas partes iguais (frente e verso), - neste caso será confeccionado apenas a capa com a lombada já pronta;

Fazer um vinco de 2 cm da lombada para o meio do livro e colar apenas a parte do vinco ao livro. Repetir o procedimento com o outro lado (verso).

CONCLUSÃO

Este trabalho foi elaborado objetivando orientar quanto às atividades ligadas à reparação e conservação de livros pertencentes a acervos de bibliotecas. No entanto, o restauro utilizado em obras bibliográficas que exigem maior conhecimento e cuidado, por se tratarem de obras raras e/ou documentos de cunho histórico, só deve ser executado por especialistas com aprimoramento técnico.

ANEXO 1

INSTRUÇÕES PARA PREPARO, MISTURA E DILUIÇÃO DE COLAS:

CARBOX METIL CELULOSE (CMC)

É um adesivo neutro, sua natureza é de celulose modificada, encontrado como pó branco que ao ser dissolvido forma um gel transparente. Usado como encolante e consolidante em conservação ­ restauração de documentos, fotografias, faceamentos e velaturas.

Procedimento:

– Colocar 1 litro de água morna deionizada, destilada ou filtrada em recipiente de plástico ou vidro;

– Acrescentar aos poucos um copinho (cafezinho) como medida padrão de Metil Celulose;

– Bater na batedeira;

– Deixar descansar mais ou menos 2 horas, até que a mistura esteja com aparência homogênea e gelatinosa;

– Bater novamente na batedeira;

– A viscosidade do adesivo pode variar conforme a necessidade do uso, acrescentando-se mais água.

– Guardar na geladeira em vidro com tampa.

MISTURA DE PVA E CARBOX METIL CELULOSE (CMC):

Esta mistura é usada para remendos, colar folhas de guarda, colar dorso e outras aplicações. O seu uso permite que o papel seja descolado, quando necessário apenas usando a umidade.

Procedimento:

– Colocar em um recipiente partes iguais de cola PVA (cascorez) e Carbox Metil Celulose (50% x 50%) ou duas partes de PVA para uma parte de metilcelulose.

– Misturar bem e deixar no ponto da consistência de um iogurte;

– Se a mistura estiver muito espessa, acrescentar mais água para dissolve-la.
––––––
Fontes:
DIVISÃO DE PRESERVAÇÃO; Preservação e Recuperação de Material Bibliográfico. Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2001.

MILEVSKY, Robert J.; Manual de Pequenos Reparos em Livros; Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos. 2ª edição, Rio de Janeiro, 2001.

Paraná em Trovas Collection - 14 - Lucilia Trindade Decarli (Bandeirantes/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 13


ESPERANÇA

Entre o Ódio e o Amor, eu vivo a debater-me.
Quando não sangra o Amor, não ruge o Amor, porém,
Quando aos pés me não calca o Ódio, como um verme,
É o Tédio quem me vê com os olhos do desdém.

E oh! das mãos desse fauno cúpido, eu inerme,
Tal que se fosse uma donzela, uma cecém,
Sentindo que me vão ferir, que vão perder-me,
Tento escapar... Em vão! O monstro me detém...

Tudo, tudo me causa horror. A vida, enfim,
Como um castelo desabou neste momento...
Mas, ah! que uma mulher passa a roçar por mim...

E eu esquecido já do mal que ela me fez,
Vendo-a sorrir, assim, mais leve do que o vento
Atrás dela saí correndo, inda uma vez!

BRUXA

Ao Pereira da Silva

Veio uma bruxa um dia, e eu,
Que nesse tempo era menino,
Mostrei-lhe a mão: a bruxa leu
Linha por linha o meu destino...

Leu tudo, leu, e após, os olhos
Cerrando, exclama: é singular!
Que destino cheio de escolhos,
Altos e baixos, como o mar!

É singular, a bruxa diz,
É singular; mas, ó criança,
Espera e crê. Serás feliz,
Muito feliz! Tem esperança!

Olhei a terra, o abismo, a estrela,
A noite imensa, infindos céus:
“Será mais bela, inda mais bela
Tua sorte, crê! Serás um deus!”

Os anos têm-se sucedido
Numerosíssimos, porém,
Cada vez mais surpreendido,
Espero o bem e é o mal que vem.

Anos têm vindo de permeio,
Quem fui, decerto, já não sou;
Às vezes quase que não creio
No que essa bruxa me contou...

Tudo uma triste mascarada,
Tudo ilusão, tudo quimera;
E pois que já não creio em nada,
Meu coração por que é que espera?

Que mais espera esse infeliz,
Que inda lhe possa dar prazer,
Se tudo, tudo quanto quis,
Completamente, hoje não quer?

Não sei. Porém basta lá fora
Vibrar um hino, que sei eu!
Para que logo exclame: é a hora,
É a hora ideal, que floresceu!

E doido, atrás dessa esperança,
Ei-lo a correr: pois apesar
De conhecer que não a alcança,
Quer ver se a pode inda alcançar...

CAVALEIRO

Por esses campos, ligeiro,
Como a luz e o pensamento,
Vem correndo um cavaleiro,
Cabelos soltos ao vento...

Nem à beira do barranco
Nem do abismo se detém
Aquele cavalo branco
Que a todo galope vem.

Ouvindo o doido tropel,
Param as águas do rio:
“Donde vem esse corcel,
E o cavaleiro sombrio?”

A brisa flébil, a brisa
A vê-lo correr: “Olhai,
Não vê onde o cavalo pisa,
Nem p’r’onde o cavalo vai!”

Não ouve a dor, nem o choro,
Nem a tristeza, que sei
Dentro da púrpura e do ouro
Do seu orgulho de rei.

A galope, pela estrada
É como um cego afinal,
Não vê nada, não vê nada,
Nem o bem e nem o mal.

Ao pé dessa natureza,
Debaixo daqueles céus,
Passa como a realeza,
Como um raio, como um deus!

Tudo para ele é um desejo
Que arde e cintila no espaço
Como o relampo d’um beijo,
Como o fulgor d’um abraço.

Doidamente, doidamente,
No meio de temporais,
Em doido corcel ardente
Galopa cada vez mais.

Galopa. Quase se perde
O sinistro domador,
Por entre a folhagem verde,
Por sobre os campos em flor...

Galopa em tal alvoroço
E tamanho orgulho tem,
Que nessa corrida o moço
Não ouve e não vê ninguém...

Corre, corre mais ligeiro
Do que a luz e o pensamento,
Dia e noite, o cavaleiro,
Cabelos soltos ao vento...

A túnica que ele veste,
A túnica aurilavrada,
Tem a cor azul-celeste,
Os frisos da madrugada.

Mas olhe, da mesma seda
Vestido um dia andei eu;
E pois que lhe não suceda
O que a mim me sucedeu!

VERSOS PARA EMBARCAR

Ao Virgílio Várzea

Tudo, tudo vai mal, e tudo é uma viela,
E um beco escuro, e um charco imundo, e um triste horror;
Pois que bom de embarcar, um dia, a toda vela,
E fugir, e fugir, seja para onde for.

Não há como embarcar. A vida é um navio
Doido, a querer partir, mordendo o pé do cais,
Velas estão a encher, sopra o nordeste frio,
Quando é que partes, ó navio, quando sais?

Não há como embarcar. Do alto d’uma equipagem
Ver o mundo! correr o mundo! viajar...
Poder dizer que foi a Vida uma viagem,
Que começou no mar, que se acabou no mar...

Não há como embarcar. É d’um furor tamanho,
É d’um delírio tal que, embora nunca mais
Se tenha de voltar – como um punhal d’antanho,
A esperança reluz, apenas embarcais...

Não há como embarcar. Furiosos d’insônia,
Enervados de dor, que ânsia d’ir para além,
Ó tísicos, morrer aos pés de Babilônia,
Nos muros de Siquém ou de Jerusalém?

Não há como embarcar. Para onde quer que seja,
Para o desterro, mil perigos através,
Quando os míseros vão, é como olhos d’inveja
Que eu os vejo partir, de corrente nos pés...

Sempre que avisto o mar com as ondas inquietas,
Sempre que o vejo assim, não sei por que será,
Mas tenho as ambições mais doidas, mais secretas,
Loucuras de poder inda fugir p’ra lá.

À mercê e ao furor das ondas e dos ventos,
Havia de correr o mar que não tem fim,
Como Ulisses; porém, ó trágicos momentos,
Sem ter uma mulher que chorasse por mim!

De pé no tombadilho, em frente, à minha vista,
Eu veria passar o que não vi jamais,
A não ser através dos meus sonhos d’artista:
– Encarnações febris, diademas imperiais...

E cegueira ideal e vã de quem se esconde,
E loucura de quem fugiu d’uma prisão,
E doido, sem saber de nada, nem para onde,
A correr, a correr atrás d’uma ilusão!

Ó terras de mistério, ó terras de mantilha,
Ó terras onde o céu é como a flor-de-lis,
Quem me dera dormir, folha de mancenilha,
Debaixo de teu manto azul d’imperatriz!

Reinos antigos, ó paisagem de romance,
Como uma rosa que fenece num jardim,
Ah que bom! ah que bom! de vê-los de relance,
Com castelos feudais, com torres de marfim!

Rainhas como flor, graciosas donzelas,
Com gestos e com voz que me causam prazer,
Como seria bom que, ansiando para vê-las,
Eu as vendo uma vez, não as tornasse a ver...

Eu não sei, eu não sei para onde fugiria,
Eu não sei, eu não sei o que ia ser de mim,
Quem me dera, porém, que logo fosse o dia
De poder embarcar e de fugir daqui!

Quem dera que fosse hoje! E enquanto a nau sulcasse
De proceloso mar entre uivos e baldões,
Eu poder, sem terror, olhando face a face
O abismo, descrever as minhas impressões!

É bem possível que eu, arriscando na sorte,
Notasse que por fim só me saía o azar,
E o diabo, e tudo, e o mais, e tudo, e a própria morte,
E ainda tudo; porém, que ânsia de viajar!
Outubro – 1903

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Francisco de Morais Mendes (O Homem que Recolhia o Tempo)


Numa velha sacola de feira, ele recolhia o tempo deixado pelos outros. Como fazia isso, não se sabe. Para ele, homem solitário, que vivia entre a casa e o serviço, a palavra “repartição” não designava apenas o local de trabalho. Cabia-lhe, como servidor público, cuidar das horas, repartir o tempo entre os colegas. Havia quinze anos executava com diligência a mesma tarefa: zelar pelo ponto, abonar as faltas justificadas, converter o excedente de horas em pagamento. O tempo era público.

Contudo, sofria de um mal sem remédio. Pressentia o correr dos dias, dos meses, dos anos, como uma subtração da vida. O tempo escapava-lhe enquanto acumulavam-se coisas por fazer. A perda do tempo é individual, lamentava.

À noite, em casa, recostado à velha poltrona de couro, sentia o peso de dois mil livros não lidos. E lia metodicamente. Olhando à esquerda, um infatigável atlas oferecia-lhe países por visitar. E ele mal saíra da cidade. À direita, centenas de obras aguardavam releitura.

Pensando constantemente no tempo, observava que boa parte do que se fala contém essa palavra vaga, sem peso, sem consistência. Certo dia, num corredor da repartição, ouviu de uma grávida que faltavam quatro meses para o bebê nascer. Então ocorreu-lhe que, durante a gravidez, ela deixava sem uso um outro tempo. O que primeiro pareceu-lhe uma brincadeira, uma anedota, tomou a forma de idéia. Depois de algumas noites em que se pegava pensando na grávida, supondo que estivesse assaltado por uma paixão em todos os sentidos inoportuna, o assunto passou de idéia a teoria. Não era a grávida que o atormentava. Era o tempo.

Formulou, então, a teoria dos tempos laterais, que correm simultaneamente na vida das pessoas. Pela última vez voltou a pensar na grávida, para explicar a si mesmo sua teoria. A vida segue num tempo que ele, como todo mundo, chamava de normal, mas qualquer alteração ou acidente põe em funcionamento um tempo dos que correm lateralmente àquele, que ele chamava de tempo outro. Durante o período da gravidez, tomado como uma alteração, o tempo normal continua a passar, mas em desuso, um cão sem dono vagando por aí.

Durante alguns dias, observou o que classificou de amostras da sua teoria. Há um tempo largado aqui fora pelas pessoas que baixam ao hospital. Há um tempo de ócio enquanto trabalham. Esse tempo ocioso fica com unhas e engrenagens à espreita, aguardando que a pessoa deixe o trabalho; acompanha-a até o ponto do ônibus, e enquanto, após um banho quente, a pessoa decide se liga a tevê ou coloca um disco para tocar, ele está pronto para seguir. Em outra circunstância, enquanto a pessoa mergulha a atenção no noticiário do rádio, fica desocupado o tempo da distração. Nenhum deles deixa de correr.

Certa noite, acomodado na poltrona, voltou a refletir. Era preciso recolher o cão sem dono. A outro, não iria fazer falta. A ele, o livraria da aflição.

Na manhã seguinte, mexendo no quarto de coisas abandonadas, encontrou a sacola que passou a carregar. Das grávidas, subtraía o tempo da não gravidez. Dos colegiais em algazarra à saída da escola, recolhia variadas espécies de tempo. Do sujeito que lia no ônibus, tomava o tempo de olhar pela janela. O mais surpreendente eram aquelas pessoas que parecem pensar em coisa alguma, absolutamente desligadas. Dessas, fluíam, ou melhor, jorravam tempos em profusão. E recolhia, recolhia, recolhia.

Voltara a ler sem ansiedade, sabendo que acumulava considerável reserva de tempo. Em pelo menos um momento, levantou os olhos do livro e pensou na imortalidade. Deu um breve sorriso, sem precisar recorrer ao espelho para encontrar o que supunha um rosto rejuvenescido. Voltou a concentrar-se na leitura. O tempo, agora, não passava; vinha até ele. O cão encontrara o dono.

Certa manhã, depois de ler no jornal sobre um sujeito condenado a muitos anos de prisão, foi tomado de grande ansiedade. Ocupado em juntar os tempos dispersos no presente, não lhe ocorrera tocar num tempo futuro. Nem sequer havia pensado nisso. No entanto, vislumbrava que aquele tempo podia ser recolhido de uma única vez. Tenho que capturar o tempo que ele deixa aqui fora, mas onde estará?, pensou, quase faltando-lhe o ar. Saindo às pressas com a sacola, sem saber exatamente onde buscar aquela fatia esplêndida de tempo, distraiu-se numa travessia e, atropelado por um caminhão de mudanças, teve morte instantânea.

Corroída pelo tempo e pelo uso, ficou a sacola jogada num canto da rua. Os que olhavam em seu interior, de algum modo sabiam que vazia não estava; era um engano dos olhos. Afastavam-se ao sentir uma espécie de sufocação. A que não sabiam nomear.
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Francisco de Morais Mendes é jornalista e escritor. Publicou os livros de contos “Escreva, querida” (Mazza Edições, 1996) e “A razão selvagem” (Ciência do Acidente, 2003). Vencedor dos prêmios “Guimarães Rosa”, do governo do Estado de Minas Gerais, “Cidade de Belo Horizonte”, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, e “Luiz Vilela”, da Fundação Cultural de Ituiutaba.

Fonte:
Letras e Ponto!

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 12)


GALHOFA
Do espanhol gallofa, migalha ou pão dado como esmola. Gailofa foi formado de uma expressão latina criada nos conventos medievais: gaili offa, bocado de peregrino. Offa era uma pequena bola de massa ou de carne;gallus, gaulês (cidadão de um povo celta que habitava a Gália, antigo país situado no território atual da França), ganhou o sentido de peregrino porque a maioria dos peregrinos de Compostela eram gauleses.
Em português, o significado inicial de galhofa, manifestação alegre e ruidosa (depois virou sinônimo de deboche e de vida vadia), se originou da algazarra feita pelos pedintes, às portas dos conventos, esperando agalli offa, o alimento a ser distribuído.

GARDENAL
Gardenal é o nome comercial da substância fenobarbital, usada como anticonvulsionante e sedativa.
A marca surgiu em 1920 no laboratório Rhône-Poulenc, que já vinha fabricando, com muito sucesso comercial, vários tranqüilizantes, cujos nomes sempre terminavam em -nal, como foi o caso do famoso Véronal (cujo nome veio da cidade de Verona, onde foi descoberto).
Quando o Gardenal já estava pronto para ser comercializado, um diretor da Rhône-Poulenc reuniu os empregados e pediu que eles apresentassem sugestões para batizar o novo produto. Finalizando, recomendou: "Surtout, gardez -nal!" ("Principalmente, não se esqueçam da terminação -nal"). Um dos empregados, achando que o chefe já fazia uma sugestão, exclamou: "Gardenal, por que não?". Pronto, o nome já estava dado involuntariamente. Caso típico de problema que já vem com a solução embutida.

GOL DE PLACA
A palavra gol veio do inglês goal, objetivo, mas nenhuma torcida inglesa grita "Goal!" quando seu time marca um tento. Eles urram alguma coisa que, segundo os antropólogos, fica entre o "oh!" de surpresa de um lorde e o "erghflk" do homem de Neandertal. E a expressão gol de placa?
Rio de Janeiro, estádio do Maracanã, 5 de março de 1961, Torneio Rio-São Paulo, o Santos de Pelé jogava contra o Fluminense de Castilho. Aos 41 minutos do segundo tempo, o Santos vence por 1x0 quando Pelé domina a bola na meia-lua da sua área, lá atrás, na defesa. Ele levanta a cabeça e parte para o gol adversário. Passa por um, dois, três, quatro, cinco, seis adversários e toca a bola para os fundos da rede de Castilho.
Uma das testemunhas do memorável gol foi o então jovem cronista esportivo e hoje famoso colunista de economia Joelmir Beting, que voltou para São Paulo e sugeriu que seu jornal, "O Esporte", mandasse fazer uma placa de bronze que eternizasse o extraordinário lance de Pelé.
A sugestão foi aceita, Joelmir encomendou a placa, pagou e não foi ressarcido até hoje. No domingo seguinte, a placa foi afixada no saguão do Maracanã e descerrada pelo próprio Pelé, com barbante e toalha de banho servindo de cortininha. Surgia a expressão gol de placa. Mais tarde, Joelmir, um craque da palavra, diria: "Nunca fiz um gol de placa, mas fiz a
placa do gol".

GROGUE
Do inglês grog.
No século XVII, quando havia uma grande demanda por açúcar na Europa, os países de clima tropical e solo fértil descobriram que dispunham de uma grande fortuna em potencial: um ambiente natural perfeito para o cultivo da cana-de-açúcar.
Aí por volta de 1650, em Barbados (Pequenas Antilhas, América Central), cana dava mais que chuchu na serra. Alguém ali teve a idéia de aproveitar, de alguma forma, o resíduo que ficava depois da produção do açúcar, o melaço. Com tempo e melaço de sobra, o gênio pensou, pensou e resolveu destilar a substância. O resultado encantou o mundo: rum.
A bebida emigrou de Barbados e virou uma sensação na Europa do século seguinte, na população civil e militar. Os marinheiros ingleses tinham direito a uma quota diária de rum (o costume permaneceu até 1970).
O rum, mais forte que o brandy, provocava um porre devastador, desses de fazer general bater continência para porteiro de hotel.
Em 1740, o almirante inglês Edward Vernon baixou uma ordem: o rum para os marinheiros de seu navio deveria ser diluído em água para evitar bebedeiras a bordo. Estava inventado o aquarrum, cujo mercado ficou restrito à gente das embarcações do Sr. Vernon. E lá se iam seus marinheiros, sóbrios e diarréicos, singrando os mares do mundo. O almirante tinha o apelido de "Old Grog", em alusão à sua habitual capa de gorgorão - em inglês grogram, do francês gros grain, tecido grosseiro. Os marinheiros, revoltados com aquela ordem de seu comandante, decidiram ridicularizá-lo usando seu apelido para batizar o rum aguado de grog. E o marinheiro que, mesmo assim, conseguia ficar bêbado com alguns litros
daquilo era chamado de groggy.
Em português, grogue, além de ser uma bebida alcoólica (rum, aguardente...) diluída em água quente com açúcar e casca de limão, também é sinônimo de atordoado.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – IV – A chegada


Rodeado de toda a corte e de enorme multidão de povo do mar, veio o príncipe receber a menina. Assim que ela apeou do coche, todos bateram palmas, deram vivas e soltaram peixes fosforescentes, que eram os foguetes lá deles. O príncipe abraçou a sua noiva, nada podendo dizer de tanta comoção que sentia. Beijou-lhe a ponta dos dedos e subiu com ela as escadarias do palácio.

— Deve estar muito cansada — disse o peixinho por fim, depois que recobrou a voz. — Vou levá-la aos aposentos nupciais, onde tudo é pérola e coral.

— Que bonito! — exclamou Narizinho. — E os outros para onde vão?

— Tenho também maravilhosos aposentos para os outros. O Visconde irá para o quarto das algas; o marquês, para o quarto dos corais vermelhos.

Narizinho interrompeu-o com uma risada.

— O senhor príncipe não conhece o gosto dos meus companheiros. O Visconde, que é um sábio, só quer saber de livros. Basta enfiá-lo numa estante. E para o marquês, nada melhor do que um chiqueirinho com três grandes abóboras do mar dentro.

— E o senhor Pedro?

— Esse é deixar solto por aí, com o bodoque. Não mexam com Pedrinho, que ele dana. Emília fica comigo.

— Julguei que a senhora marquesa de Rabicó fosse ficar no chiqueiro do senhor marquês...

A menina achou muita graça naquela idéia.

— Emília é uma emproada, príncipe, que não dá confiança ao marido. Casou-se só por casar, pelo título, e se encontrar por aqui algum duque, é bem capaz de divorciar-se do marquês. A menos que não queira casar-se com o Visconde, concluiu com malícia, voltando-se para a boneca.

Emília replicou sem demora, fazendo a sua célebre carinha de pouco caso:

— “Animal” não casa com “vegetal”... O príncipe ia se retirando para que a menina pudesse descansar à vontade, quando Pedrinho apareceu no quarto.

— E agora, príncipe, que é que vamos fazer agora? – indagou ele.

— Descansar da viagem — respondeu Escamado.

— E se fizéssemos de conta que já estamos descansados?

— Nesse caso, eu os convidaria para a festa de recepção na sala do trono.

— Como é essa festa, príncipe?

— Oh, muito linda! Começa com um bonito discurso oficial; depois, outro discurso...

— Pare, príncipe! Chega de discursos. Prefiro dar um passeio pelo fundo do mar, e Narizinho com certeza prefere ir tratar dos seus vestidos.

— É verdade! — acudiu a menina. — Preciso chegar à casa de dona Aranha Costureira para combinar com ela o meu vestido de casamento e um de cauda bem comprida para a marquesa. Não podemos aparecer na corte nestes trajes, não acha, Emília?

— Pois decerto. Basta a triste figura que fiz da primeira vez em que aqui estive. Em fralda de camisa, lembra-se?...
––––––––
Continua... Apuros do Marquês

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

domingo, 27 de novembro de 2011

Trova Ecológica 53 - Marina Bruna (SP)

Francisco José Pessoa (Mucuripe)


São 4:30 horas...o sol bocejando se espreguiça com um ar de quem está indisposto para a lida. O mar do Mucuripe espelha aquele parto divino.

Sob sinais de cruz e Ave-Marias mal recitadas, após uma última cusparada em terra, que traz o ranço do fumo mastigado, sai o jangadeiro a peitar pequenas ondas que teimam uma após outra roçar-se nas areias mornas daquela praia já cantada e encantada em prosa e verso.

O destino, como todo destino que se preza, só Deus sabe...

Na proa viaja a incerteza da volta, quando o pensamento do caboclo de tez queimada se volta para a terra e vê o acenamento do filho único escanchado no colo da mãe que ora em silencio, entregando a Deus o leme daquela teimosa e valente embarcação.

Acompanhando o caminhar do sol, sentindo-o no mudar da própria sombra que se desenha no terreiro do quintal de casa, a mulher do jangadeiro rastreia entre pensamentos sãos e orações a frágil jangada domada por um braço forte.

Depois que o sol se põe a pino e inicia seu caminho de descanso pro lado de cá da terra, a mulher esperançosa espera o marido que cedo partiu, apruma o olhar pra risca, e o pensar pra bem longe... lá pra trás dela.

Tinge-se o céu de vermelho pálido. O sol, acanhado, com cara de sono, deixa uns poucos rastros de sua luz como para que alumiar o caminho daquela jangada teimosa que, de volta, roça o peito na areia da praia encantada trazendo consigo o destino incerto da partida.

Corpos se entrelaçam à beira-mar. O chapéu do pescador sai-lhe da cabeça num respeitoso agradecimento a Deus. A pescaria rendeu e o pirão escaldado espera o cangulo para a alegria dos dois.

De braços dados, o casal segue no rumo da tapera onde o filho dorme a sono solto. A espera foi cansativa.

Fontes:
Texto enviado pelo autor
Imagem = http://www.arantur.com.br

A. A. de Assis (Status puxa Status)


Um ilustre da cidade, tentando explicar na roda de amigos sua preocupação constante em bem-vestir-se, bem-morar e bem-rodar, quase chega a convencer os demais sobre as razões de ser ele assim. Não é que encontre prazer na esnobação, mas o contexto profissional assim exige.

Poderia levar uma vida mais simples, utilizar automóvel menor e menos bebedor de combustível, morar numa casa que não exigisse tantos cuidados e tantos empregados, vestir roupas comuns, frequentar menos as reuniões sociais e políticas. Isso tem hora que enche, diz ele. Mas não consegue viver modestamente. Sua posição impõe esmeros especiais.

Dá para entender que posar de bacana é imperativo de certos ramos de negócio. Faz parte do ofício. Quanto mais esnoba, mais impressiona. Quanto mais impressiona, mais portas consegue abrir. Quanto mais portas consegue abrir, mais dinheiro ganha.

Não é culpa dele, insiste. É do contexto. Seu ramo baseia-se no “ter”. E para “ter mais” é preciso fazer de conta que já tem mais do que o necessário.

Se ele estacionar em frente ao escritório de um cliente caixa alta num carrinho classe média, talvez nem seja recebido. Chegando num carrão e vestindo terno com gravata e colete, o rosto vistoso, perfumado, o grande cliente vem pessoalmente abrir-lhe a porta, sente-se homenageado com a sua presença, e fecha o negócio na hora. Coisas da vida.

Status puxa status. O mundo é assim, o homem é assim, e não será ele quem vai mudar. Seu papel é realizar bons negócios, não discutir costumes. Se é preciso rodar num carrão, ele roda. Se é preciso vestir ternos caros, ele veste. Para ele não se trata de vaidade, trata-se de investimento.

Os amigos contra-argumentam sugerindo que tudo isso é muito falso. Mas o distinto não está a fim de discutir filosofias. Realista por fora e por dentro, lembra que “ostentação é ferramenta de trabalho”, especialmente para quem lida com clientela abonada. Optar pela simplicidade seria arriscar-se a perder excelentes oportunidades.E como é domingo, e o bate-papo é num botequim, o “esnobador por dever de ofício” esquece as etiquetas, deixa de lado o costumeiro uísque, e manda vir uma pinguinha das boas, com pastel de carne seca.

Fonte:
A..A. de Assis. Vida, verso e prosa. Maringá: EDUEM, 2010.
Também disponível assim como muitos outros textos no blog do Assis em Vida, Verso e Prosa. http://aadeassis.blogspot.com/p/contos-e-cronicas.html

Prof. Garcia (Livro de Trovas)


A dor que se intensifica
e amedronta os dias meus,
é pensar na dor que fica
depois da palavra adeus!

A existência é dividida
em dois extremos da idade:
um, alvorada da vida,
outro, arrebol de saudade!

A insensatez, na verdade,
separou nossos lençóis;
e agora a dor da saudade
dói muito mais entre nós!

A musa chega e me inspira,
num delírio encantador...
Afina as cordas da lira
e enche o meu mundo de amor!

A natureza resiste,
mas a tristeza do monte,
é enxugar o pranto triste
dos olhos tristes da fonte!

As cordas desafinadas
e esta voz chegando ao fim!...
São mimos das madrugadas
guardados dentro de mim!

Cadeira velha!...Esquecida,
sem dono e sem mais ninguém...
Só a saudade atrevida
reclama a ausência de alguém!

De volta ao lar que eu não via,
desde a minha mocidade...
Enquanto a emoção crescia,
crescia a dor da saudade!

Esta aliança que um dia,
já guardou nossos segredos;
hoje guarda a nostalgia
das digitais de outros dedos!

Esta dor que em mim persiste
e não me deixa dormir!...
é "aquela" lembrança triste
do que deixou de existir!

Este amor que em mim fervilha,
quando estamos sempre a sós...
se for bem feita a partilha,
será eterno entre nós!

Eu me curvo ante os conselhos
que recebo todo dia,
quando dobro os meus joelhos
aos pés da Virgem Maria!

Mãe preta! teu negro seio
deu-me o mais puro sabor;
nele eu bebi sem receio
a eternidade do amor!

Minha renúncia...Quem sabe...
não seja a chave secreta,
de tudo quanto só cabe
na inspiração de um poeta!

Morre a tarde!...E ao fim do dia,
na imagem do sol poente,
há tintas de nostalgia
do fim da tarde da gente!

Nesta longa caminhada
que fazemos sempre a sós...
Nem o silêncio da estrada
quebra o silêncio entre nós!

Ó cigarra destemida
o seu disfarce me encanta,
por não ter nada na vida
e ser feliz quando canta!

O que me faz tua ausência,
é causar-me pranto e dor.
Mas no amor há tanta essência,
que sou escravo do amor!

Pelas manhãs vou buscando
minha esperança perdida...
Há sempre um sonho vagando
nas alvoradas da vida!

Porteira velha, o gemido
desta dor que te corrói...
é o teu passado esquecido
que em teu presente inda dói!

Prazer é sentir os dedos
de nossas mãos artesãs
pintando os lindos segredos
das auroras das manhãs!

Quando a minha fé se esmera,
penso que tudo se alcança.
Por longa que seja a espera,
não perco nunca a esperança!

Quando a tarde veste o manto,
torna escura a luz do dia...
Saudade dói outro tanto
do tanto que já doía!

Quase seca...E a fonte insiste
em seu lamento de dor!
É o canto ficando triste
e a fonte jorrando amor!

Rasga o manto que te cobre,
mostra teu riso e esplendor.
Pois, a cortina mais nobre
não cobre um riso de amor!

Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!

Sempre sozinha, aos farrapos,
mas de rosário na mão...
A fé tecida entre os trapos,
remendava a solidão!

Sinalizando o caminho,
do nauta na escuridão;
o farol velho, sozinho
é fantasma e solidão!

Solar dos dias risonhos,
morada da flor da idade!…
Foste o berço dos meus sonhos,
és meus sonhos de saudade!

Só o inverno enxuga o pranto
de uma seca no sertão...
pois, com chuva, em cada canto,
brota uma vida no chão!

Teu amor que me enternece,
que acaba todo meu pranto,
da sobra faço uma prece,
e ainda sobra outro tanto.

Toda tarde o passarinho
bate as asas, quando canta.
Quanto mais longe do ninho,
mais afinada a garganta!

Uma lágrima de orvalho
ao sol, mudando de cor,
depois que beijava o galho,
caía beijando a flor!

Velho sino, és sentinela,
a repetir sem maldade...
a dor da saudade dela,
na dor de minha saudade!

Fonte:
Trovas enviadas por Luis Carlos Simões Neto (PB)

Prof. Garcia (27 Novembro 1946)


Francisco Garcia de Araújo (Prof. Garcia), filho de Lucas Araújo e de Helena Garcia de Araújo, nasceu na fazenda Acari, no Município de Malta-PB, em 27.11.1946.

Em 07.07.1959, foi para Caicó-RN na companhia do tio José Lucas de Barros, onde reside até hoje.

Licenciado em Letras, Bacharel em Direito pela UFPB e Pós-graduado em Teologia e Éticas Especiais, poeta, escritor e compositor, publicou em 1974 o livro TROVAS QUE SONHEI CANTAR.

Foi Bancário, Vereador e Secretário Municipal em Caicó-RN.

Lecionou Português, Francês, Inglês e Espanhol.

Presidente do Clube dos Trovadores do Seridó (CTS) e Delegado da UBT em Caicó-RN.

É sócio efetivo da Academia de Trovas do Rio Grande do Norte e da União Brasileira de Trovadores, Sessão de Natal-RN.

Possui várias premiações em concursos de trovas e outras modalidades poéticas no Brasil e em Portugal.

Em vinte e seis anos de Radioamadorismo, já fez mais de 53 mil contatos internacionais, tendo colaborado em situações extremas para salvar vidas humanas.

Fonte:
Portal CEN