terça-feira, 29 de novembro de 2011

José de Alencar (Lucíola)


Análise

Lucíola é o quinto romance de Alencar e o primeiro da trilogia que ele denominou de "perfis de mulheres" (Lucíola, Diva e Senhora). Situa-se entre seus romances urbanos que representam um levantamento da nossa vida burguesa do século passado. A obra, publicada em 1862, é um romance de amor bem ao sabor do Romantismo, muito embora uma ou outra manifestação do estilo Realista aí se faça presente. Trata-se de um romance de "primeira pessoa", ou seja, o narrador da história é um personagem importante da mesma, Paulo Silva. E ele a narra em cartas dirigidas a uma senhora, G. M. (pseudônimo de Alencar), que as publica em livro com o título de Lucíola. Fixam o Rio de Janeiro da época, com a sua fisionomia burguesa e tradicional, com uma sociedade endinheirada que freqüentava o Teatro Lírico, passeava à tarde na Rua do Ouvidor e à noite no Passeio Público, morava no Flamengo, em Botafogo ou Santa Teresa e era protagonista de dramas de amor que iam do simples namoro à paixão desvairada.

Em todos os romance urbanos, Alencar aborda o amor como tema central. Ou, para ser mais exato, "aborda a situação social e familiar da mulher, em face do casamento e do amor". Mas o amor como o entendia a mentalidade romântica da época, um amor sublimado, idealizado, capaz de renúncias, de sacrifícios, de heroísmos e até de crimes, mas redimindo-se pela própria força acrisoladora de sua intensidade e de sua paixão.

Subjetivismo - O mundo do romântico gira em torno de seu "eu": do que ele sente, do que ele pensa, do que ele quer. Por isso o poeta e o personagem na ficção romântica estão em contínua desarmonia com os valores e imposições da sociedade e/ou da família.

Em Lucíola encontram-se pelo menos duas grande manifestações desse subjetivismo romântico.

A primeira grande manifestação de subjetivismo está na própria estrutura narrativa do romance. Trata-se de um romance de "primeira pessoa", em que a história é narrada do ponto de vista de uma só pessoa. No caso, Paulo. Tudo gira em torno do que ele viu, pensou, sentiu junto a Lúcia. Tudo, portanto, muito individual. Já no capítulo I, Paulo esclarece que escreveu essas páginas para se justificar perante uma senhora que estranhou "a minha (dele) excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagância." Para isso , "escrevi as páginas que lhe envio, as quais a senhora dará um título e o destino que merecerem. É um "perfil de mulher" apenas esboçado."

A segunda considerável manifestação de subjetivismo está na oposição indivíduo x sociedade. No romance, Paulo e Lúcia ora se insurgem contra as convenções sociais: "Que me importa o que pensam a meu respeito?", ora satisfazem essas mesmas convenções, embora sempre reafirmando o próprio "eu" e fazendo a sua personalidade.

- "... Há certas vidas que não se pertencem, mas à sociedade onde existem. Tu és um celebridade pela beleza. O público, em troca do favor e admiração e que cerca os sue ídolos, pede-lhes conta de todas as sua ações. Quer saber por que agora andas tão retirada."

- "Ah! esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro de praça que não pode recusar quem chega..."

Exaltação do amor - Em Lucíola, a temática central está exatamente na exaltação do amor como força purificadora, capaz de transformar uma prostituta numa amante sincera e fiel.

"- o amor purifica e dá sempre um novo encanto ao prazer. Há' mulheres que amam toda a vida; e o seu coração, em vez de gastar-se e envelhecer, remoça como natureza quando volta a primavera."

"Tive força para sacrificar-lhes outrora o meu corpo virgem; hoje depois de cinco anos de infâmia, sinto que não teria a coragem de profanar a castidade de minha alma. Não sei o que sou, sei que começo a viver, que ressuscitei agora., disse Lúcia após sentir a afeição de Paulo."

E o romance termina com esta patética exaltação do amor, balbuciada por uma prostituta regenerada por esse mesmo amor, momentos antes de sua morte: "Eu te amei desde o momento em que te vi! Eu te amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade."

Amor e morte - O romance é impregnado da idéia de morte pois Lúcia está continuamente a se queixar de uma doença misteriosa que Paulo não compreende nem aceita, supondo-se tratar-se de refinada desculpa para não se entregar a ele sexualmente. Lúcia não acredita nem admite que uma mulher como ela possa usufruir das alegrias e gozos do amor conjugal, dando ao esposo "o mesmo corpo que tantos outros tiveram". Seria uma profanação do verdadeiro amor. "O amor!... o amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe! Mas o verdadeiro amor d'alma."

Diante, portanto, da impossibilidade de realização de um amor puro, só resta a Lúcia, como personagem de um romance genuinamente romântico, uma saída: a morte. Nem mesmo um filho ela merece, pois seria o fruto de um amor vilipendiado. "Um filho, se Deus mo desse, seria o perdão da minha culpa! Mas sinto que ele não poderia viver no meu seio!" E, numa atitude típica de heroína romântica, Lúcia anseia morrer nos braços do homem amado: "Ainda quando soubesse que morreria nos seus braços... Que morte mais doce podia eu desejar!" "... desejava que fosse possível morrermos assim um no outro... uma só vida extinguindo-se num só corpo!". E assim se fez. Morreu ao lado do ser amado, dizendo-lhe: "vou te amar enfim por toda a eternidade. (...) Recebe-me... Paulo!"

Sentimentalismo melancólico - Em Lucíola um mínimo contratempo é o suficiente para lançar Lúcia ou Paulo na mais profunda tristeza. Numerosas passagens do romance colocam o leitor diante de quadros profundamente melancólicos. Como esta:

"Foi terrível. Meu pai, minha mãe, meus manos, todos caíram doentes: só havia em pé minha tia e eu. Uma vizinha que viera acudir-nos, adoecera à noite e não amanheceu. Ninguém mais se animou a fazer-nos companhia. Estávamos na penúria; algum dinheiro que nos tinham emprestado mal chegara para a botica. O médico, que nos fazia a esmola de tratar, dera uma queda de cavalo e estava mal. Para cúmulo de desespero, minha tia uma manhã não se pôde erguer da cama; estava também com a febre. Fiquei só! Uma menina de 14 anos para tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde os não havia. Não sei como não enlouqueci."

E esta outra, onde Lúcia se fez passar por uma amiga morta para aliviar o sofrimento dos pais: "Lúcia morreu tísica; quando veio o médico passar o atestado, troquei os nosso nomes., Meu pai leu no jornal o óbito de sua filha; e muitas vezes o encontrei junto dessa sepultura onde ele ia rezar por mim, e eu pela única amiga que tive neste mundo. Morri pois para o mundo e para minha família. Meus pais choravam sua filha morta; mas já não se envergonhavam de sua filha prostituída."

Muitas das atitudes tomadas por Paulo ou Lúcia são próprias de pessoas que se deixam guiar pelo sentimento. Esta, por exemplo, esquisita e inexplicável de Lúcia "- Iremos juntos!... murmurou descaindo inerte sobre as almofadas do leito. Sua mãe lhe servirá de túmulo."

Enfim, o romance todo, do início ao fim, está impregnado de uma atmosfera melancólico-sentimental.

Ilogismo - Os paradoxos, o comportamento ora excêntrico ora dúbio de Lúcia, ora virtuoso, ora pecaminoso que vai lançando Paulo numa dúvida angustiante: a própria duplicidade comportamental de Paulo, generoso e mesquinho, compreensivo e intransigente, correto e pilantra; tudo isso dá à intriga do romance um atrativo todo especial que, por sua vez, ora atrai ora aborrece o leitor.

Há ainda outras manifestações de Romantismo no romance, tais como, imaginação e fantasia, culto da natureza, senso do mistério, exagero. Mas são de importância secundária.

Lirismo - Há um lirismo bem bucólico nesta passagem de Lucíola: "Sentamo-nos sobre a relva coberta d flores e à borda de um pequeno tanque natural, cujas águas límpidas espelhavam a doce serenidade do céu azul. Lúcia tirou do bolso seu crochê e o novelo de torçal, e continuou uma gravata que estava fazendo para mim. Enquanto ela trabalhava, eu arrancava as flores silvestres para enfeitar-lhe os cabelos; ou arrastava-me pela relva para beijar-lhe a ponta da botina que aparecia sob a orla do vestido."

E nesta outra há graça, ternura, sentimento: "Toquei com os lábios a raiz daqueles cabelos sedosos que ondulavam com o sopro de minha respiração. Ana teve um estremecimento íntimo; e banhou-se na onda de púrpura que descendo-lhe da fronte, derramou-se pelas espáduas roseando a branca escumilha."

Gosto pela descrição - Em Lucíola, de quando em quando aparece a natureza como a aliviar o leitor das tensões dos dramas humanos.

Quanto à descrição dos personagens, Alencar parece se preocupar antes com o aspecto externo para depois chegar ao temperamento. Antes mesmo de o leitor saber quem era ela, já Alencar lhe mostrou o retrato de Lúcia no capítulo II: "Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição." Na passagem seguinte Alencar como que nos conduz do exterior ao interior de Lúcia: "O rosto suave e harmonioso, o colo e as espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que ondeava sobre formas divinas. A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a atitude modesta e quase íntima, e a singeleza das vestes níveas e transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia influir pensamentos calmos, senão puros."

No que concerne ao vestuário feminino é inegável a influência que Balzac exerceu em Alencar: "Lúcia fitou-se por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os últimos toques ao seu traje, que se compunha de um vestido escarlate com largos folhos de renda preta, bastante decotado para deixar ver suas belas espáduas, de um filó alvo e transparente que flutuava-lhe pelo seio cingindo o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de tentar Eva, se ela tivesse resistido ao fruto proibido. Uma grinalda de espigas de trigo, cingia-lhe a fronte e caía sobre os ombros com a vasta madeixa de cabelos, misturando os louros cachos aos negros anéis que brincavam."

Comparações - As comparações de Alencar, geralmente, referem-se aos personagens, ora em seus detalhes físicos, ora em seus estados de alma, ora em seus atributos morais. O segundo termo da comparação é colhido, na esmagadora maioria das vezes, de elementos da natureza: reino vegetal, animal ou mineral. Uma confirmação do que se disse está neste pequeno trecho: "Como as aves de arribação, que tornando ao ninho abandonado, trazem ainda nas asas o aroma das árvores exóticas em que pousaram nas remotas regiões, Lúcia conservava do mundo a elegância e a distinção que se tinham por assim dizer impresso e gravado na sua pessoa."

Desarmonias - Em Lucíola, a luxúria do velho Couto, e mais tarde a prática do vício, torcem a personalidade de Lúcia. A forma refinada desse sentimento da discordância é certa preocupação com o desvio do equilíbrio fisiológico ou psíquico. Relembre-se a depravação com que Lúcia se estimula e castiga ao mesmo tempo, e cujo momento culminante é a orgia promovida por Sá - orgia espetacular, com tapetes de pelúcia escarlate, quadros vivos obscenos, flores e meia luz, ultrapassando o realismo qualquer outra cena em nossa literatura séria.

Dentre muitos exemplos que se poderiam dar de "desarmonia" de situações, está o contraste entre Maria da Glória e Lúcia: aquela, pobre, simples, escondida; esta, rica, caprichosa, pública. Mas isso já é um conflito entre o passado e o presente.. Porém, os contrastes mais importantes na técnica narrativa do livro são aqueles relacionados com pessoas e sentimentos. De Paulo e Lúcia, naturalmente.

A mesma Lúcia que compôs recatadamente o roupão ante os olhos ávidos e voluptosos de Paulo que vislumbravam o simples contorno de um seio foi capaz de desfilar nua na ceia em casa do Sá. Ela é assim: contraditória. Ama e odeia. Atira-se ao vício e tende para a virtude, segundo suas próprias palavras: "Eis a minha vida... deixara-me arrastar ao mais profundo abismo da depravação; contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida íntima, sentia que eu não era uma cortesã como aquelas que me cercavam. Ficaram gravados no meu coração certos germes de virtudes..."

Também Paulo apresenta um comportamento paradoxal. Ora ele deseja violentamente Lúcia ora promete respeitá-la. Ofende-a e pede-lhe perdão; dá-lhe liberdade e a quer só para si; despreza-a e sente dela pungente ciúme; vê nela uma prostituta refinada e uma menina de quinze anos, pura e cândida. Também Paulo é contraditório: vil e magnânimo, como todo bípede implume e social chamado homem.

Técnica narrativa - Lucíola é um romance de primeira pessoa, ou seja, quem narra a história não é Alencar diretamente. Ele o faz por meio de um personagem que viveu os episódios. No caso, esse personagem narrador é Paulo, que em cartas dirigidas a uma senhora (por quem o autor se faz passar) conta uma história de amor acontecida há seis anos entre ele e Lúcia. A senhora reuniu as cartas e delas fez o livro. "Eis o destino que lhes dou; quanto ao título, não me foi difícil achar. O nome da moça, cujo perfil o senhor me desenhou com tanto esmero, lembrou-me o nome de um inseto. "Lucíola" é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos. Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d'alma?"

No capítulo I, o narrador explica a razão das cartas: "A senhora estranhou, na última vez que estivemos juntos, a minha excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagâncias".

Na estrutura narrativa de Lucíola, portanto, pode-se observar o seguinte:

1. há um autor real, José de Alencar;

2. um autor fictício, a senhora G. M., destinatária das cartas de Paulo.

3. Um narrador, Paulo, com a incumbência e o privilégio de ordenar os fatos, comentá-los e tirar-lhes conclusões.

À medida que transmite os fatos, vai fornecendo ao leitor elementos para a análise de Lúcia e dele mesmo.No romance os fatos são apresentados sob dois pontos de vista, dois ângulos diferentes: o de Paulo/personagem que transmite ao leitor as sensações vividas com Lúcia e o de Paulo/narrador que, por vezes, interrompe a narrativa fazendo reflexões ou dirigindo-se à destinatária de suas cartas.

O enredo abrange um período de aproximadamente seis meses. Foi o que durou o namoro do par romântico. Às vezes, o autor avança a narrativa com soluções bem simples: "Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma existência tão agitada, durava cerca de um mês." Em outras, retarda-a: dedicou três capítulos para a ceia em casa de Sá (capítulos VI, VII e VIII).

Ação - Gira em torno de uma história entre Paulo e Lúcia, com todos os ingredientes de um romance romântico: heróis e vilões, heroínas incompreendidas, virgens pálidas e meigas e cortesãs depravadas, a morte como única saída para um amor verdadeiro porém impossível, etc.

Em Lucíola, o núcleo central da narrativa se concentra em Paulo e Lúcia, ora como duas individualidades com passado e presente próprios, ora como o "par romântico". E se concentra com tal intensidade, (afinal o narrador é exatamente Paulo - o herói, o mocinho - que ama a Lúcia - a heroína) que os episódios envolvendo os demais personagens ficam totalmente ofuscados.

Tempo -1855 - "A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em 1855". Numa leitura atenta, o leitor percebe no livro o Rio de Janeiro da época de D. Pedro II, com seus salões, sua burguesia, suas vitrinas chiques na Rua do Ouvidor com mercadorias elegantes vindas de Paris ou Londres, seus tílburis, seu vestuário, etc.

Como tempo narrativo, ele é eminentemente "cronológico". Ou seja, em Lucíola os acontecimentos se sucedem numa ordem quase normal, com uma seqüência natural de horas, dias, meses, anos. Só há um momento em que o fluxo narrativo retroage: quando Lúcia narra a Paulo seu passado. (Cap. XVIII e XIX). E em dois momentos ele avança: o capítulo I e o finalzinho do último revelam o estado de alma de Paulo seis anos após a morte de sua querida Lúcia: "Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de minhas lágrimas. (...) Hás seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará eternamente."

Lugar - O cenário onde se desenrola a ação é o Rio de Janeiro. Há referências de seus bairros (Santa Teresa), ruas (das Mangueiras), população, festas (a da Glória), teatros, lojas elegantes, etc.

É curiosa a relação entre os locais e o comportamento amoroso-sexual de Paulo e Lúcia, agindo aqueles no sentido de aproximação ou afastamento, de maior ou menor realização do casal. O quarto de Lúcia é um local de luxúria: "... e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de repente uma alcova elegante e primorosamente ornada." Das várias vezes que eles se uniram sexualmente neste luxuoso aposento, nenhuma, parece, satisfez de fato o casal. A primeira delas terminou assim: "Ao delírio sucedera prostração absoluta, orgasmo da constituição violentamente abalada. Vendo então este corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e as mãos crispadas, tive dó."

O segundo encontro já foi totalmente diferente, em local e desfecho. Foi nos jardins da casa do Dr. Sá, onde Lúcia desfilara nua perante os convidados. O cenário é bem ao gosto do romantismo: a natureza. O leito é bucólico: "Fomos através das árvores até um berço de relva coberto por espesso dossel de jasmineiros em flor. Lúcia está vibrando: "- Sim! Esqueça tudo, e nem se lembre que já me visse! Seja agora a primeira vez!... Os beijos que lhe guardei, ninguém os teve nunca! Esse , acredite, são puros!" E o clímax foi aquele que só um par enamorado consegue haurir do sexo: "Não fui eu que possuí essa mulher; e sim ela que me possuiu todo, e tanto, que não me resta daquela noite mais do que uma longa sensação de imenso deleite, na qual me sentia afogar num mar de volúpia."

Quando Lúcia passou a morar numa casa pequena e pobre, em Santa Teresa, em companhia de sua irmã Ana, menina inocente, não mais houve união carnal entre eles. É que os dois já estavam unidos por um amor espiritual. Uma afeição muito pura unia aquelas duas almas. E tanto a simplicidade do local que "lembra o espaço feliz de sua infância em São Domingos" quanto a inocência da menina não comportava mais a depravação do sexo. O seu beijo quase de irmã apenas de longe em longe bafejava-me a fronte."

Personagens - Em Lucíola uma personagem apresenta grande complexidade psicológica, a par do idealismo romântico com que foi concebida:

Lúcia - Sua principal característica é a contradição. Como cortesã era a mais depravada. Basta que se lembre da orgia romana em casa de Sá. No entanto, a prostituição era-lhe um tormento constante, já que não se entregava totalmente a ela. E os atos libidinosos constituíam para ela verdadeira autopunição aliada à angustiante sentimento de culpa. Coexistem nela duas pessoas: Maria da Glória, a menina inocente e simples, e Lúcia, a cortesã sedutora e caprichosa. No livro, sobressai a Lúcia, Lúcifer, onde aparece 348 vezes contra 10 vezes como Maria da Glória, anjo. Tal disparidade realça o motivo do romance: à proporção que Lúcia vai amando e sendo amada por Paulo, ela vai assumindo a Maria da Glória, sua verdadeira personalidade. E reencontra assim, através dele, a dignidade e inocência perdidas. Pode-se expressar essa duplicidade da seguinte maneira:
Lúcia, mulher, depravação, luxúria, sentimento de culpa, prostituição, caprichosa, excêntrica, rejeita o amor, demônio.

Maria da Graça, menina, pureza, ingenuidade, dignidade, inocência, simples, meiga, tende para o amor, anjo. Perdida a virgindade física, Lúcia, por meio da compreensão e amor de Paulo, tende para a virgindade do espírito. "Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do coração!" Para isso renuncia a qualquer amor sensual. Mesmo ao de Paulo, de quem fora amante e a quem passou a negar um simples beijo. Depois que ela o conheceu, não se entregou a nenhum outro homem. É por isso que não cria no amor de Margarida, de A Dama das Camélias, porque ela não negou ao seu amado Armando o corpo que tantos já haviam comprado.

E Lúcia recupera aos 19 anos a Maria da Glória que perdera aos 14. "Nada perturbava a serenidade de Lúcia. Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo adormecida na crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo e profundo letargo. (...) Ninguém diria que essa moça vivera algum tempo numa sociedade livre."

Mas essa transformação completa custou-lhe penosos sacrifícios e sobretudo muita incompreensão inicial por parte de Paulo. "Incompreensível mulher! (...) Compreendo hoje as rápidas transições que se operavam nessa mulher; mas naquela ocasião, como podia adivinhar a causa ignota que transfigurava de repente a cortesã depravada na menina ingênua, ou na amante apaixonada!"

Seus traços físicos: cabelos e olhos pretos, a pele pálida. Sua expressão, contudo, lembra ao leitor sua dualidade de caráter: o olhar ora é "eloqüente, raio voluptuoso", ora é límpido, raio de luz de sua alma". É bem o ideal de beleza romântica, "com sua virgindade de alma tão pura e tão absoluta, que a não tisnaram os pecados do corpo. Por isso, mesmo nas horas em que mais lhe esplende a glória de cortesã, o romancista a veste simbolicamente de branco."

Se algum leitor não entender bem a complexidade da personagem Lúcia, como o fez Paulo no início do romance, não é de se estranhar, pois afinal ela mesma se auto-definiu: "É difícil conhecer-me; mais difícil do que pensa. Eu mesma, sei o que às vezes se passa em mim? Não repare nestas esquisitices!"

Paulo - É um provinciano de Pernambuco, 25 anos, que veio tentar se estabelecer no Rio de Janeiro. O romance não esclarece se ele é ou não formado. Sugere apenas. É o narrador da história e como tal faz desviar a atenção do leitor para Lúcia e outros aspectos, não revelando certas informações suas. Os detalhes físico, por exemplo. Coisa, aliás, rara em José de Alencar, tratando-se de personagem central.

Traçando o perfil de Lúcia, ele acaba por revelar também os eu: espírito observador e sensível, foi o único a compreender o estranho caráter de Lúcia. Seu temperamento é reservado sem ser tímido: "... é hábito meu, desde que entrei no mundo, não admitir os estranhos à intimidade de minha vida, ainda mesmo quando se trata de objetos sem conseqüência. Só dispo a minha alma entre amigos". E como ele não possui reais amigos no Rio, nuances de sua personalidade conhecem-se por deduções .

Suas reações psicológicas são expressas em suas reflexões: "Que miserável animalidade havia em mim naquela noite! Quando essa pobre mulher atingia o sublime do heroísmo e da abnegação, eu descia até a estupidez e à brutalidade!" Ou nessa: "Não conheço mais estúpido animal do que seja o bípede implume e social, que chamam homem civilizado."

A sua caminhada em direção ao amor pela heroína foi lenta. No início, o que o impelia para ela era atração sexual. Paulo, então, não a entende e transmite ao leitor suas incertezas e desconfianças. "Se eu amasse essa mulher... mas tinha apenas sede de prazer; fazia dessa moça uma idéia talvez falsa... " Tais desconfianças, por vezes, eram-lhe inoculadas pela sociedade através de alguns representantes - Dr. Sá, Sr. Couto, Cunha. "Cunha tinha razão, pensei eu; a cupidez e a avareza são as molas ocultas que movem este belo autômato de carne." E chega mesmo a ser violento e sádico com ela. Isto se deduz de várias passagens, como: "Esta noite a senhora não se pertence: é um objeto, um bem do homem que a vestiu, que a enfeitou e cobriu de jóias, para mostrar ao público a sua riqueza e generosidade." Outras vezes, sentiu foi dó: "Sentia profunda compaixão por essa mulher. O seu pranto me enterneceu; chorei com ela." Houve um período em que a afeição de ambos se arrefeceu. Paulo já a admira e dedica-lhe grande respeito e amizade: "Entramos então numa nova fase de nossa mútua existência, fase original e curiosa que me faria rir quinze dias antes. Com efeito, quem poderia julgar possível uma amizade fraternal e pura entre duas criaturas que meses antes trocavam as mais ardentes expansões da sensualidade?" Para no final devotar-lhe sincero amor a ponto de vibrar com um possível filho de ambos: " -Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende um ao outro. Serás mãe, minha querida Maria?"

É um ingênuo personagem romântico. Apesar de se declarar pobre e até se vexar por isso, vive byronicamente, de sonhos, de amor.

Os demais personagens são secundários face aos dois protagonistas.

Dr. Sá e Cunha - Amigos de Paulo, sendo aquele desde a infância. Encarnam a moral burguesa e suas máscaras: austera com os outros, benigna consigo. Não possuem personalidade bem delineada no livro. Ambos vêem em Lúcia apenas a prostituta.

Couto e Rochina - O primeiro é um velho dado a jovem galante. Encarna a obsessão sexual e a velhice. Representa a sociedade que explora e corrompe. Foi quem aproveitou a necessidade e inocência de Lúcia. O segundo é um jovem de 17 anos, tez amarrotada, profundas olheiras, velho prematuro. Libertino precoce. Eles aparecem assim no romance: "O contraste do vício que apresentavam aqueles dois indivíduos: o velho galanteador, fazendo-se criança com receio de que o supusessem caduco; e o moço devasso, esforçando-se por parecer decrépito, para que não o tratassem de menino; essa antítese vivia devia oferece ao espectador cenas grotescas."

Laura e Nina - São meretrizes, como Lúcia, mas sem sua duplicidade de caráter. Não são capazes de "descer tão baixo" porém, não possuem a "nobreza e altivez" da protagonista.

Jesuína e Jacinto - Aquela, é mulher de 50 anos, seca e já encarquilhada. Foi quem recolheu Lúcia quando seu pai a expulsou de casa e a iniciou na prostituição. Este, é um homem de 45 anos, e "vive da prostituição das mulheres pobres e da devassidão dos homens ricos". Por seu intermédio Lúcia vendia as jóias ricas que ganhava e enviava o dinheiro à família pobre. É quem mantém a ligação misteriosa no livro, entre Lúcia e Ana. Enfim, é quem cuida dos negócios dela.

Ana - É a irmã de Lúcia, que a fez educar num colégio até os doze anos como se fosse sua filha. "Era o retrato de Lúcia, com a única diferença de ter uns longos e de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já conhecia a irmã e a amava ignorando os laços de sangue que existiam entre ambas." Lúcia tenta casá-la com Paulo para ser uma espécie de perpetuação e concretização de seu amor por ele: "Ana te darias os castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo?"

Problemática apresentada - Paulo quer Lúcia, mas ele possui impedimento de aproximação; Lúcia quer Paulo, mas também possui impedimentos. É fácil, agora, entender como se arma o conflito do romance:
Paulo x Lúcia - Há motivos de aproximação e de afastamento entre ambos. E do jogo aproximação-afastamento. Chegamos a uma composição final. A composição é desejada por ambos, mas é preciso que antes muitas arestas sejam aparadas. Não é graciosamente que o ser humano se completa a se acha, mas através de muita luta e muito erro (penitência para superação dos defeitos).

Esta colocação do foco narrativo do romance vem confirmar idéias anteriores, onde se mostrou que a história de Paulo e Lúcia está vazada de situações desarmônicas. Tais situações podem ser melhor entendidas quando sintetizadas em algumas oposições que parecem predominar na obra como idéias centrais. Tais como:

O desnível da situação social - Em Lucíola os conflitos das personagens e entre personagens são determinados pelo confronto do indivíduo com essa sociedade.Há um desnível enorme entre a situação social de Paulo e Lúcia. Esta é prostituta e como tal é vista e rejeitada por todos, inclusive por Paulo, no início. Trata-se de um impedimento sério na aproximação de ambos. Tão sério que acaba por impedir a concretização social (casamento, geração de filhos) do amor do casal. Lúcia errou e deve pagar por isso perante a sociedade. As convenções da moralidade burguesa e da Escola Romântica assim o exigem. O casamento com final feliz do romance romântico não se realiza. Lúcia deve morrer.

Uma das problemáticas centrais levantadas no livro, parece, portanto, esta: a imposição das convenções sociais, criando obstáculos ao par amoroso, sacrificando-lhe a realização de um amor que não se adequava aos seus padrões rigorosos, se bem que por vezes hipocritamente condescendentes.

O conflito entre o bem e o mal - Das muitas oposições enfocadas no livro, esta é a mais importante, agindo como base do enredo e do foco narrativo. Trata-se de um tendência própria do Romantismo que se traduz na "desarmonia" de situações e sentimentos.

Há uma dualidade no caráter de Lúcia: de um lado a mulher, meretriz, depravada, desprezada pela sociedade, encarnacão do MAL; de outro, a menina inocente que ainda teima em substituir nela por mais terríveis que tenham sido os imperativos do vício naquela alma. É a permanência do BEM. "Havia no meu coração certos germes de virtude que eu não podia arrancar, e que ainda nos excessos do vício não me deixavam cometer uma ação vil." E durante todo o tempo, pretende o autor convencer o leitor da "criatura angélica" que habita o corpo da pecadora, da "mulher que no abismo da perdição conserva a pureza d'alma". E é essa Lúcia de "coração virgem", purificada, que renasce nos últimos capítulos graças ao amor de Paulo.

A vitória do amor - E chega-se, afinal, à temática básica de Lucíola. A intriga é calcada em assunto romântico: A situação social da mulher em face do amor. Do "amor" como o concebe o Romantismo: sublimado, capaz de renúncias, de sacrifícios, de heroísmos, que está acima dos fatores sócio-econômicos, que triunfa apesar das convenções sociais.

Em Lucíola, o triunfo do amor não foi na linha do final feliz. Lúcia passará por um processo de transformação, ou renascimento, que fará desabrochar a adolescente pura e ingênua que fora um dia, ao mesmo tempo que irá eliminando a cortesã impudica. E a protagonista alcança, portanto, a purificação através do amor espiritual, que não pode ser contaminado e profanado pela mais leve sombra de desejo físico. É a vitória do amor, numa outra perspectiva. É a temática central do romance: o amor como força regeneradora.

O romance, na sua intriga e temática, bem como no posicionamento das personagens, pode ser visualizado graficamente assim: na busca mútua de Lúcia e Paulo, há personagens que se posicionam como obstáculos, no sentido de impedir o surgimento do amor dos dois: Couto, Sá, Cunha, Rochinha. Outros são basicamente neutros: Jesuína, Jacinto, Laura e Nina. E há uma, Ana, que se coloca no sentido de aproximar o par romântico, a tal ponto de, conforme o desejo de Lúcia, ser um símbolo de perpetuação, na terra, do amor do casal.

Enredo

Paulo Silva, o personagem-narrador, é um rapaz de 25 anos, pernambucano, recém-chegado ao Rio de Janeiro, em 1855, com a intenção de aí se estabelecer.

No dia mesmo de sua chegada à corte (Rio de Janeiro), após o jantar, sai em companhia de um amigo para conhecer a cidade. Na rua das Mangueiras vê passar em um carro uma jovem muito bela. Um imprevisto faz parar o carro, dando a Paulo a oportunidade de repará-la melhor. Dia após, em companhia de outro amigo, o Dr. Sá, Paulo participa da festa de N. Senhora da Glória, quando lhe aparece a linda moça. Informando-se do amigo, fica sabendo tratar-se de Lúcia, a prostituta mais bela, requintada e disputada da cidade. Mas ele se impressiona com a "expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda mesmo quando os lábios dessa mulher revelam a cortesã franca e impudente."

Mais ou menos um mês após sua chegada, Paulo vai à procura de Lúcia, levado, é claro pelo desejo de possuir aquela linda mulher. Após longa e agradável conversa, acaba se surpreendendo com o "casto e ingênuo perfume que respirava de toda a sua pessoa". A um mínimo lance de seus seios, "ela se enrubesceu como uma menina e fechou o roupão" discretamente. E ele, que fora quente de desejos, agora, na rua, se acha ridículo por não haver ousado mais. Além do que, o Dr. Sá lhe confirmara que "Lúcia é a mais alegre companheira que pode haver para uma noite, ou mesmo alguns dias de extravagância."

No dia seguinte Paulo está de volta à casa da heroína. Ao seu primeiro ataque, Lúcia se opõe com duas lágrima nos olhos. Supondo ser fingimento, mostra-se aborrecido e ela reage atirando-se completamente nua em seus braços, já que era isso que Paulo queria. Mas no auge do prazer do sexo, Paulo percebe algo diferente nas carícias de Lúcia: mesmo no clímax do gozo, parece que ela sofria. Sente, na hora, um imenso dó, ao que ela corresponde cinicamente: "- Que importa? Contanto que tenha gozado de minha mocidade! De que serve a velhice às mulheres como eu?" Ele quer pagar-lhe, ela rejeita com um meigo aperto de mão. E ele retira-se realmente confuso com "a singularidade daquela cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma senhora".

E as informações que lhe chegam a seu respeito são as piores. O Cunha diz que ela é "a mais bonita mulher do Rio e também a mais caprichosa e excêntrica. Ninguém a compreende. "Nunca fica muito tempo com o mesmo amante, "pois não admite que ninguém adquira direitos sobre ela." Além do mais, é avarenta. Vende tudo o que ganha. Até roupas. Para Paulo, no entanto, ela parece ser ao contrário de tudo isso. Afinal, ela finge para ele ou já o ama? Paulo fica em dúvida atroz.

Por aqueles dias, numa ceia em casa do Sá, com pessoas (Lúcia, Paulo, Sr. Couto, Laura, Nina, Rochinha, etc...) maldosamente convidadas para transformar a ceia em bacanal, Lúcia desfila toda nua, imitando as poses lascivas dos quadros que estavam nas paredes, ante os olhares voluptuosos dos presentes. Depois, em lágrimas, nos jardins da casa, ela se explica a Paulo. Fez aquilo por desespero, pois ele havia zombado dela momentos antes: "se o Senhor não zombasse de mim, não o teria feito por coisa alguma deste mundo..."E depois porque teria sido uma decepção total, afinal o que Sá pretendia era mostrar a seu amigo Paulo quem era Lúcia. "Não foi para isso que se deu essa ceia?! - explicou Lúcia. E os dois se amaram profundamente, lá mesmo no jardim, á luz da lua, até de madrugada.

Decorridos alguns dias, Paulo de certo modo passa a morar com Lúcia, e, apesar das prevenções e restrições, mais e mais se liga a ela por afeto. Lúcia, por sua vez, já ama Paulo e se entrega e ele como a um dono e senhor. Há momentos de atritos entre ambos. Passageiros, e todos causados pelo egoísmo e incompreensão de Paulo que não entende as profundas transformações que o seu afeto operou nela. E a tal ponto , que ela não suportaria mais a idéia de se lhe entregar na cama, pois sente por ele um amor muito puro e profundo. E ele, levado mais por desejo que por afeto, não consegue aceitar esse comportamento sublime.

As más línguas já comentam que Paulo, além de viver à custa de Lúcia, ainda a proíbe de freqüentar a sociedade. Lúcia que já então procurava viver mais retraída dispõe-se a voltar à vida mundana apenas para salvar-lhe a reputação. Mas Paulo - complicado, sádico, estúpido e chato - não compreende.

Lúcia já não vibra como outrora. Mesmo quando excitada por Paulo. É a doença que já se faz sentir. Paulo não entende essa frieza e por vezes se exaspera. Ela sofre calada pois reconhece que "o amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe!". O grande sentimento que os unia, arrefece, dando lugar a uma amizade simplesmente.

O comportamento de Lúcia é cada vez mais sublime e heróico. Já não existe mais nada da antiga cortesã. E Paulo, por fim, entende essa nobreza de caráter e compreende o porquê das suas recusas. Ela lhe recusava o corpo porque o amava em espírito. E também porque já está doente. Paulo promete respeitá-la de ora em diante.

Lúcia um dia lhe revela todo o seu passado. Chamava-se Maria da Glória. Era uma menina feliz de 14 anos e morava com os pais, quando, em 1850, sobreveio a terrível febre amarela. Seus pais, os três irmãos, uma tia caíram de cama, Ela ficou só. No auge do desespero, resolveu pedir ajuda a um vizinho rico, Sr. Couto, que em troca de algumas moedas de ouro tirou-lhe a inocência. "o dinheiro ganho com a minha vergonha salvou a vida de meu pai e trouxe-nos um raio de esperança." Seu pai, porém, sabendo da origem do dinheiro, e supondo ter a filha um amante, a expulsou de casa. Sozinha, sem ter aonde ir, foi acolhida por uma mulher, Jesuína, que, quinze dias depois, à conduziu à prostituição, estipulando pela beleza de seu corpo um alto preço. O dinheiro, ela o usava para cuidar do que restava da família: "e eu tive o supremo alívio de comprar com a minha desgraça a vida de meus pais e de minha irmã".

Uma colega de infortúnio foi morar com ela. Chamava-se Lúcia. Tornaram-se amigas. Lúcia morreu pouco depois. No atestado de óbito, a heroína fez constar que a falecida se chamava Maria da Glória, adotando para si o nome da amiga morta. "Morri pois para o mundo e para minha família. Meus pais choravam sua filha morta; mas já não se envergonhavam de sua filha prostituída." E todo dinheiro que ganhava, destinava-o à preparação de um dote para sua irmã, Ana, a qual passou a manter num colégio interno depois da morte dos pais.

Agora Paulo compreende ainda melhor as atitudes misteriosas e contraditórias que Lúcia tomava como cortesã. É que esse gênero de vida lhe parecia sórdido e abjeto. Ela suportava como a um martírio, uma autopunição, uma maneira de reparar o seu pecado. Conhecido se passado heróico, ele passa a sentir por Lúcia uma grande ternura e um amor sincero.

Seguem-se dias tranqüilos. Lúcia muda-se para uma casinha modesta e Ana mora com ela. "isto não pode durar muito! É impossível!" É o pressentimento da morte. Lúcia tenta convencer Paulo a se casar com Ana, que já o ama também. Seria uma maneira de perpetuar o amor de ambos, já que ela se julga indigna do puro amor conjugal. Paulo rejeita com veemência em nome do amor que não sente por Ana.

Lúcia aborta o filho que esperava de Paulo. Ela se recusa a tomar remédio para expelir o feto morto, dizendo "Sua mãe lhe servirá de túmulo". E já no leito de morte, recebe o juramento de Paulo prometendo-lhe cuidar de Ana como sua filha. E morre docemente nos braços de seu amado, indo amá-lo por toda a eternidade.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/l/luciola

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 13)


GARIBAR

Preparar um carro superfialmente para vender por bom preço. É uma lixadinha aqui, uma pinturinha ali, uma ajeitadinha no motor e um brilho no capricho. Aí é só esperar o comprador, de preferência míope e meio surdo.
A palavra veio de Guariba, um paulista cuja especialidade era transformar calhambeques em automóveis de boa aparência.

IMUNDO
Assim como incapaz é quem não é capaz e infiel é quem não é fiel, imundo é quem não é mundo. Mundo, como adjetivo (em desuso), significa limpo: "naquela casa há gente munda e imunda". Bonito, não? E está em "Os lusíadas": "Debaixo deste círculo, onde as mundas / Almas divinas gozam" (X, 85).
A palavra latina mundu sofreu praticamente a mesma evolução semântica do seu correspondente grego kásmos (origem de cosmos). Inicialmente mundu significava arca, mais especificamente a arca em que os casados levavam seu enxoval. Depois, mundu ganhou o sentido abrangente de toalete, adornos femininos que se harmonizam.
Mundu também virou adjetivo, com o sentido de elegante, próprio, limpo, e originou as seguintes palavras latinas:
(a) mundare, limpar, purificar, de onde veio o português mondar, limpar de ervas daninhas e, por extensão, rever e corrigir um texto;
(b) munditia, limpeza, asseio, que deu em português mundícia (ou mundície), limpeza, esmero; de munditia se formou, com o prefixo de negação in-, immunditia, de onde veio o português imundícia (também, mais comumente, grafado imundície);
(c) immundu (in-, não + mundu, limpo), origem do português imundo.
Finalmente, mundu chegou ao sentido de universo, mas, na terminologia religiosa, mundu indicava o mundo terrestre (em oposição ao céu), com a conotação pejorativa de profano. E, assim, com esse sentido restritivo, originou mundanu daí mundano. Os franceses chamam o diabo de "l"esprit immonde". Em português, imundo tem, além de sujo, o sentido moral de torpe, indecente. Voltando ao grego, kósmos significa não só universo, como também adorno, enfeite e originou kosmetikós, relativo ao adorno, origem do português cosmético.

IRMÃ- PAULA
E a pessoa extremamente generosa, desprendida. Sim, existiu de fato uma irmã Paula no Brasil. Era uma freira, de nacionalidade francesa, da Congregação das Irmãs de São Vicente de Paulo de Gysegem. Seu nome de batismo era Antoinette Vincent. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 1945 e ficou famosa por suas inúmeras obras de caridade.

JOÃO -DE -BARRO
O nome científico da ave é furnarius rufus, forneiro ruivo, por sua cor e pelo seu ninho - uma obra maravilhosa -, que se parece com um forno de barro e, até hoje, é a última palavra na tecnologia da nidificação.
No Brasil, também se chama forneiro, assim como no espanhol (hornero) e no francês (fournier); em inglês, é ovenbird (de oven, forno + bird, pássaro).
O pássaro, além de sua justíssima fama de trabalhador, é o símbolo da fidelidade. Dizem que o joão-de-barro nunca se separa da sua amada e, se a ingrata foge com outro ou morre primeiro, ele tapa a abertura do ninho e fica solitário o resto da vida. O pássaro foi eleito a ave nacional da Argentina. Pela fidelidade?! - estranhará com razão o leitor; não, pela obra.
Em mais ou menos cinco dias, o casal, no período da reprodução, constrói sua casa, com barro úmido, palha e esterco, sempre com a abertura voltada para o lado contrário do vento (segundo alguns biólogos, é o resultado de uma informação herdada geneticamente). O local escolhido para a construção pode ser uma árvore ou, perigosamente, um poste de energia elétrica (como você já deve ter visto nas estradas). Perigosamente porque com freqüência o pássaro limpa o bico nos isoladores instalados nesses postes e é fulminado, provocando, além de uma viúva, o desligamento da rede (é a causa de mais de 10% dos desligamentos em algumas regiões do Brasil).
Por que joão-de-barro e não reinaldo-de-barro ou márcio-debarro? Porque João é um nome muito comum, tanto que a fêmea dele é chamada maria-de-barro e não irene-de-barro ou biancade-barro.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Casamento De Narizinho – V – Apuros do Marquês


Enquanto Narizinho e Emília eram conduzidas à casa de dona Aranha, Pedrinho, o Visconde e Rabicó tomavam a direção da Floresta Vermelha — a mais linda mata de coral do reino.

— Deve ser lá que moram os polvos — disse Pedrinho. – Quero ver se levo um, para assustar tia Nastácia no sítio.

O Visconde ia abrindo a boca para dar sua opinião sobre os polvos, quando um grito agudo o interrompeu. Era Rabicó. Ao passar perto dum ouriço do mar, o bobinho julgou que fosse coisa de comer e nhoc! Agora berrava com desespero, com o ouriço espetado na boca. Pedrinho correu em seu socorro e só a muito custo pôde livrá-lo do terrível bicho.

— Bem feito! — advertiu. — Quem manda ser tão guloso? Comporte-se como o Visconde que nada acontecerá.

Rabicó respondeu soluçando e ainda com uma lágrima pendurada dos olhos:

— É muito fácil ser bem comportado quando não se tem estômago. Mas eu tenho um estômago que vale por dois. Por mais que coma, estou sempre com fome — e hoje ainda nem almocei...

Pedrinho teve dó dele.

— Pois coma o brinco, e contente-se com isso porque não há mais nada por enquanto.

Sem esperar segunda ordem, Rabicó devorou o brinco de amendoim com casca e tudo. Não perdeu um farelinho! Depois lambeu os beiços, cheio de saudade do outro amendoim, espatifado pela pelotada de Pedrinho. Foram andando. Súbito divisaram ao longe um vulto negro.

— Quem será? — indagou o menino firmando a vista.

— Deve ser um gigantesco polvo — sugeriu o Visconde.

— Polvo o seu nariz. Onde já se viu polvo com mastros? É navio e muito bom navio.

De fato era um navio naufragado — um enorme navio de três mastros, já meio enterrado na areia. Correram todos para lá; e como vissem um rombo no casco, entraram por ele. Puderam assim percorrer o navio inteirinho — os camarotes, os salões, o tombadilho. Rabicó separou-se dos companheiros para descobrir onde era a cozinha, na esperança de encontrar algum resto de comida. De repente gritou, muito alegre:

— Achei uma linda raiz de mandioca! Venham ver!...

Pedrinho e o Visconde foram ver, mas viram coisa muito diferente. Viram Rabicó ferrar o dente na tal raiz de mandioca e viram a raiz mover-se como cobra, enlear-se nele e arrastá-lo para o fundo de um camarote.

— Que será isto? — murmurou Pedrinho aproximando-se na ponta do pé, com o bodoque armado. Espiou. Era um polvo! Estava o pobre marquês nos braços dum enorme polvo, que o olhava muito admirado, como se jamais houvera visto leitão com laço de fita na cauda. — É o que pensei — cochichou o menino para o Visconde. — Rabicó mordeu no tentáculo deste monstro pensando ser mandioca. E agora está perdido!...

— Pelotada nele! — sugeriu o sábio.

— Não adianta — respondeu Pedrinho coçando a cabeça, sem saber o que fazer. Nisto teve uma idéia. – Senhorita — disse a uma sardinha que também estava assistindo ao espetáculo. — Faça-me o favor de ir correndo ao palácio dizer ao príncipe que o marquês está nas garras dum polvo. Ele que mande ajuda com a maior urgência!...

Ia a sardinha dando uma rabanada para partir, quando o Visconde a segurou pela caudinha.

— Senhorita, poderá acaso dizer-me qual é o seu nome científico?

Não sendo uma sardinha culta, julgou ela que o Visconde estivesse caçoando e ofendeu-se.

— Malcriado! Não se enxerga? — retrucou botando-lhe a língua.

E lá se foi em direção ao palácio, toda empinadinha para trás, a resmungar contra o “estafermo”. O Visconde, muito desapontado, ficou a refletir consigo que era uma pena serem totalmente analfabetos os habitantes daquele reino.
––––––––
Continua... O vestido maravilhoso

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Trova 212 - A. A. de Assis (Maringá/PR)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 409)

A "PEDRA DA CAVEIRA" EM PASSA E FICA/RN
Uma Trova Nacional

Cuidado com a falsa imagem.
Beleza é vago argumento:
plantas de linda folhagem
na raiz tem seu sustento!
–ELIANA PALMA/PR–

Uma Trova Potiguar

Eu sinto a força da vida
e a mão divina de Deus,
em cada manhã florida,
na aurora... dos versos meus!
–MARA MELINNI/RN–

Uma Trova Premiada

2005 - Belém/PA
Tema: DELÍRIO - M/E

Nesta fria madrugada,
num delírio sem limite,
beijei a boca deixada
lá no espelho da suíte!
–ANTONIO COLAVITE/SP–

Uma Trova de Ademar


Gentileza recebida,
mesmo aquelas mais banais;
não dura por toda vida...
Mas nos faz feliz demais!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Rosto tranquilo, sereno...
E, em sua fingida calma,
esconde todo o veneno
que destila dentro da alma...
ABIGAIL RIZZINI/RN–

Simplesmente Poesia

Cruviana Sertaneja
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Ah cruviana...
Descobri-a numa noite da minha adolescência
no alpendre da casa grande de Coroas Limpas
na minha Santana do Matos.
Tremia feito "vara verde"
Não, não era o frio!
Era o medo de não saber se tu cruviana,
Seria uma onça ou uma alma penada.
E pela manhã fui dicionarisar o meu medo...
Beleza!
A grande descoberta!
CRUVIANA = É a Deusa do vento, a mulher do alvorecer.
Chega em tornado, acordam os trabalhadores das fazendas
e os envia fora para o trabalho. ...
Meu Deus, que alivio!
E o alpendre da velha casa de Coroas Limpas,
ganhava um "dormidor"
para curtir a cruviana de cada emadrugadecer!

Estrofe do Dia

Tenho pena de quem fuma nesse mundo
carregando para o corpo uma doença,
desde cedo pagando uma sentença
mergulhando de vez em poço fundo,
caminhando para ser um moribundo,
o pulmão transformado numa tela,
se prepare pra ver acesa a vela
pois a vida perdeu a qualidade;
eu fumando o cigarro da saudade
e a fumaça escrevendo o nome dela.
–HUGO ARAUJO/PE–

Soneto do Dia

Memória
–PROF. GARCIA/RN–

Esta dor que me fere e me magoa,
quando lembro da minha mocidade,
pouco me importa que ela tanto doa,
se doendo, não cura esta saudade.

Melancolicamente eu vou lembrando,
de saudade em saudade eu vou vivendo,
mas não posso esquecer, de quando em quando,
que em teus braços aos poucos vou morrendo.

Nesta luta sem trégua, em desatino,
eu me agarro nas rédeas do destino
dos arquivos ingratos da velhice;

mas não posso esquecer que fui criança,
guardarei para sempre na lembrança
a saudade feliz da meninice!

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Lausimar Laus (O Guarda-Roupa Alemão)


O guarda-roupa alemão, segundo romance de Lausimar Laus, publicado em 1970, a autora reconstitui parte da história da cidade de Blumenau, colonizada por imigrantes alemães, valorizando os conflitos culturais e identitários pertinentes aos deslocamentos espaciais e culturais dessa população.

O romance narra, em dois cenários diferentes, Blumenau e Itajaí, a vida dos imigrantes em Santa Catarina. Pelo ponto de vista de Homig, a história da família Ziegel e, através dela, a da imigração alemã no Vale do Itajaí. Quilômetros abaixo, na barra do rio, e pela perspectiva da professora Lula, a da imigração açoriana. A imigração alemã é, no entanto, o ponto central do livro.

Lausimar Laus preocupou-se em registrar as influências culturais trazidas pelos alemães (Goethe, Heine, Verlaine), assim como o folclore catarinense presente na região.

O romance O guarda-roupa alemão é em si mesmo a voz desta cultura híbrida na busca da identidade cultural. Identidade esta que abriga intersecções relativas ao gênero, ao lugar e à experiência. A voz de Lausimar é única na representação de um contexto determinado social e culturalmente, marcado pela feminilidade e suas relações ideológicas e de poder.

Constantemente aparecem as canções dos canoeiros e o modo de falar catarinense (obrados, trasantonte, constipação). Homig representa essa mistura cultural, a qual se constituiu na soma de diferenças. O processo de construção dessa cultura híbrida, seus confrontos identitários serão uma das direções de leitura do romance, desenvolvidas ao longo desse trabalho.

A obra dá destaque às tensões do Estado Novo com a perseguição aos alemães, o medo daí decorrente, as humilhações impostas a um dos protagonistas, o velho Werther no final da guerra: Uma avalanche de gente reunida na praça. Banda de música e tudo (...), vinha o velho Werther com um saco pendurado no pescoço, com a cara de Hitler desenhada em cima. Na praça, (...), mais morto do que vivo, foi sentado numa cadeira de barbeiro (...) e obrigado a beber óleo de carro.

Lausimar mescla, de maneira prazerosa, o cômico, o trágico, o poético. Além disso, seu trabalho com a linguagem é cuidadoso e detalhado. Com Lula nos vem o linguajar de origem açoriana, seus termos característicos, o emprego do “tu”, ainda usado, com o verbo na segunda pessoa, apenas no litoral catarinense e no cearense, justamente onde os açorianos se fixaram.

Do núcleo alemão, os termos que se usam em Santa Catarina, as gozações feitas com os sermões do padre, obrigado a falar português de repente, no período getulista, e mais as idéias nazistas e não-nazistas, as perseguições políticas, o amor realizado e aquele que não se encontra, porque procurado onde não pode estar, como na história de Menininha.

O texto é narrado inicialmente por Homig, o último descendente da família Ziegel e que tinha o dever de abrir a gaveta do guarda-roupa onde estava guardado um segredo de família. O guarda-roupa é a peça que acompanhou as quatro gerações da família. Sentado à sua frente, Homig reconstitui a história destas gerações.

Lausimar Laus deixa claro, em carta para um amigo, que tudo o que escreve vem de suas vivências e, de forma bastante explícita, comenta sobre o guarda-roupa e sua relação com esta peça fundamental dentro do seu romance:

O guarda-roupa era um móvel que havia em casa de minha avó Maria Amélia Stuart, mãe de minha mãe, que se casara com um norueguês. Era, de fato, um móvel alemão, quase até o teto, que me fazia, quando criança, pensar muito nele. Tinha milhões de coisas antigas dentro dele e até figurinos do século XVIII. A minha imaginação maquinava sempre. Pra mim ele não era um móvel. Era gente, porque eu sempre falava muito sozinha, como se houvesse gente a minha volta, quando criança.

O romance de Lausimar Laus retoma parte da história da cidade de Blumenau, colonizada por alemães a partir de 1850, preocupando-se com o registro de fatos históricos reais relativos ao contexto social e político dos primeiros cem anos da cidade. Esse período compreende a chegada dos alemães pioneiros, os quais deviam expulsar os índios e demarcar as terras, até a época da nacionalização imposta por Getúlio Vargas, quando a comunidade de origem alemã sofre grandes repressões. Além da preocupação com a realidade histórica, a autora explora, com muita propriedade, os conflitos culturais e identitários relativos à experiência da imigração, quando duas ou mais culturas devem conviver com suas diferenças e, a partir daí, estabelecer uma nova ordem simbólica para suas referências. Esses conflitos culturais incluem questões relativas à nação, à raça e ao gênero.

O registro dos acontecimentos históricos na narrativa é uma preocupação constante da autora. As enchentes de 1880 e de 1911, as primeiras fábricas da região, Hering e Kormann, a política regional e nacional e suas personalidades, Vitor Konder, a Guerra do Paraguai, a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, o período de nacionalização imposto por Getúlio Vargas constroem o cenário do romance.

Foco narrativo

O tempo da narrativa não segue a cronologia e avança de acordo com o fluxo descontínuo do pensamento do personagem, assim como os vários pontos de vistas que se misturam em uma espécie de fusão de terceira e primeira pessoas. Partes são narradas em primeira pessoa pelo próprio Homig e outras extraídas do diário de sua tia Hilda e de seu avô Klaus, de onde partem os pontos de vista de sua avó Sacramento e da professora Lula.

A narração da terceira pessoa onisciente é feita com maior presença nas descrições de Homig e de seus sentimentos neste dia de reflexão sobre sua história de vida. Por isso, pode-se pensar em um mais um ponto de vista, o do Guarda-roupa alemão, já que este recebe um tratamento humanizador na narrativa de Homig e, estando um à frente do outro, as considerações parecem ser feitas a partir do olhar do próprio guarda-roupa. Homig, o sensível. Chapéu meio desabado na testa. A calça de veludo surrada, puxando mais para o cinza. Houve tempo em que era azul.

Personagens

As mulheres são as personagens centrais de todas as histórias lembradas por Homig. Sua bisavó Ethel, a Grossmutter, e sua avó índia, Sacramento são suas maiores referências, pois foi criado por elas. Sua mãe morreu moça, numa epidemia da gripe espanhola, e seu pai na Segunda Guerra Mundial. São estas duas personalidades contraditórias que marcam a vida de Homig, percorrendo toda a narrativa. Ethel é caracterizada pela típica alemã, trabalhadora, saudosa de sua pátria, impondo sempre a disciplina e a ordem da casa. Porém, por trás da rigidez com os outros e, principalmente, consigo mesma, havia uma mulher sonhadora, ligada à arte e à liberdade. Homig encontra em umas das gavetas do guarda-roupa desenhos de sua bisavó e entende que sua vida dura de colona destruiu muitos de seus sonhos. No meio dos desenhos, uma foto:

Mas como a bisavó fora bonita! Puxa vida! Até que aquele cabelo complicado, com uma grande igrette na cabeça, lhe dava uma graça estupenda. A legenda diz que ela nascera em Paris, de pais alemães e era autora de composições, onde se harmonizavam cores de extrema suavidade.

Tà certo. E a gente nunca soube da genialidade da Grossmutter. Pelo menos vó Sacramento só contava sobre aquela mulher forte como granito. Era lidando. Plantando flores, mas também plantando aipim. O morango. Cavando a terra. O avental sempre muito branco, rodeado de bordado inglês. Pesadona. Vermelha. Dando ordens. Organizando as festas da colônia. Aconselhando o marido. Nunca em jeito macio. Ás vezes, quando o velho Ziegel lhe fazia que não com a cabeça, ou resmungando, contra suas intenções, ela levantava a testa e dizia alto:

- “Mann, ajuda-me. Eu me esforço demais. Quebro todos os atalhos para não encontrar comigo mesma. Porque o dia em que eu encontrar comigo, não sei mesmo o que acontecerá. (pág. 32)

Sacramento é a figura da avó carinhosa, compreensiva e religiosa, com quem Homig tem grande afinidade. Sua adaptação à idéia de casamento e aos costumes alemães, assim como sua iniciação sexual são narrados através do diário de Klaus. Sua ingenuidade e meiguice marcam todos os episódios em que está envolvida, e estes são os sentimentos lembrados por Homig. Ele que ouvia suas histórias enquanto contava as “preguinhas” de seu rosto.

Hilda é a filha mais nova de Ethel, uma figura rapidamente caracterizada no romance, mas com uma personalidade marcante. Amante da liberdade e desprendida de qualquer preconceito. Suas atitudes chocam a todos: Pegava o cavalo bravo no mato, tirava a roupa toda, montava nua em pêlo e cavalgava a vontade. O falatório da vizinhança (p. 6). Em seu diário estão suas indagações sobre a vida e os códigos que a regem, acreditando na natureza das coisas e dos sentimentos como obras de Deus, então, não podem ser pecados. Todos acham que foi para Alemanha, segundo ordens de sua mãe, mas seu verdadeiro destino só é revelado no final do romance.

Grande parte da narrativa é construída a partir do ponto de vista de Lula, uma professora brasileira, vinda de Itajaí, para ministrar aulas de português em uma escola pública. Sua figura é mencionada, inicialmente, no diário de Klaus, mas através de sua mente uma história à parte é contada, a dos brasileiros, descendentes de açorianos, de espanhóis, vindos de Itajaí, de Florianópolis. Estes que chegam a Blumenau na tentativa de uma vida melhor. Lula mora na casa de uma tia, Maria Clara, junto com duas primas, Cidinha e Dora.Viveu dificuldades econômicas em Itajaí, junto à sua avó e seus irmãos, os quais ainda são sua grande preocupação. Através de seu ponto de vista dois importantes episódios são narrados: a enchente de 1911 e o caso de menininha. Desde as notícias da enchente, até a chegada das águas, o abandono das casas e o refúgio das pessoas para o convento das irmãs, o local mais alto da cidade, são vividos pela narração de Lula.

Menininha é filha adotiva de seu Tibúrcio e dona Tita, casal amigo de Itajaí, favorecido economicamente. Foi criada com muito zelo e rigidez pelos pais, os quais não a deixavam sair sozinha de casa, nem ter muitas amizades. Por causa de uma hérnia, seu Tibúrcio deve ser operado e deixa a filha aos cuidados de Dona Maria Clara, única pessoa em quem confia para isso. Menininha, porém, é muito bonita e apaixonada pela vida e esta é a primeira oportunidade para viver suas aventuras longe da prisão de sua casa. Lula descobre seus encontros, às escondidas, com um homem casado, seu Ataliba, foguista do “vaporzinho” Blumenau. Menininha faz revelações de suas experiências homossexuais para Lula, a qual, muitas vezes, sentiu-se atraída por sua beleza. Enfim, Menininha acaba trabalhando como “china” em Itajaí, casa-se, mas nunca se desliga de suas atividades.

Homig, personagem-narrador, o homem que constrói toda a história da família a partir de lembranças que se cruzam no tempo, num tempo que cruza fronteiras constantemente, é resultado da cultura híbrida que se constitui na soma de distintas partes: a língua alemã (dentro de casa), a língua portuguesa (na escola), a língua francesa (da avó indígena). Em uma cena do romance, Homig se encontra na rua tentando afirmar-se como brasileiro diante uma situação que exigia esse tipo de comportamento. Em casa, no entanto, apesar da mãe dirigir-se a ele em língua portuguesa, todas as referências são da cultura alemã.

Temática

O romance aborda várias temáticas sobre a colonização alemã na região de Blumenau. A demarcação de terras e o confronto com os índios são acontecimentos narrados pelo avô Klaus, o qual mostra respeito pela cultura nativa e acaba apaixonando-se por uma indiazinha de doze anos criada por freiras francesas. Sacramento é a vó índia de Homig, representante da simplicidade e religiosidade, por quem ele tem muito carinho e só lembranças ternas. As dificuldades enfrentadas por Sacramento quanto à compreensão da língua, à adaptação aos novos costumes e, principalmente, quanto à rejeição por parte de Ethel, mãe de Klaus, que não aceitava o casamento do filho com uma “bugra”, estão também registradas no diário do avô.

O rigoroso trabalho no campo e com as coisas da casa aparece constantemente na narrativa, mostrando, mais especificamente, a dedicação das mulheres à organização familiar, à educação dos filhos e à manutenção da cultura germânica, pela qual têm tanto orgulho. As descrições das casas, dos jardins, das vestimentas e da própria cidade, demonstram que os imigrantes viveram muitos anos em um núcleo germânico fechado e que recebiam pouca interferência de fora.

Abordagens como racismo, choque entre culturas distintas, o amor dos imigrantes pela pátria distante, assim como a assimilação de diferentes culturas pelas novas gerações, estão registradas na narrativa. Muitos desses conflitos são apresentados através de cenas que chegam ao cômico, construindo uma caricatura do imigrante alemão. É o exemplo da tia de Homig, Herna, a qual, necessitando uma transfusão de sangue, tem como único doador compatível o mulato Praxedes, tripulante do “vaporzinho” Blumenau. Herna, alemã nacionalista, entusiasta da “Nova ordem” proposta por Hitler, não aceitava misturar seu sangue com o de um mulato brasileiro: “Brasileiro tem sífilis...”. O doutor Büchmann, ginecologista conceituado e conhecido por sua personalidade autoritária, acaba usando da força física para realizar tal transfusão, inclusive com as enfermeiras, as quais recebiam caneladas, quando não faziam como foi mandado. Para complicar a situação, o voluntário a salvar a vida da alemã, em meio a tantos xingamentos, acaba desistindo da ação por achar um desrespeito à sua raça:

Sabe o que mais, seu dotô? Eu vou mais é m’imbora. Deixa esse diabo morrê de uma vez...fico dês das 6 da manhã im jejum pra sarvá uma merda dessas e ela ainda me chama de sifílico?... O Dr. Büchmann, vermelho como um pimentão, os dentes cerrados, a boca aberta, agarrou o mulato, deu um safanão, jogou-o na cama e disse com todas as suas forças e todos os seus erres: “Fai a merrrdaaa!”. O Praxedes, de mulato que era, passou a meio desbotado...(p. 153)

Enredo

Lausimar Laus conta, através de uma linguagem simples, descontraída e, muitas vezes, carregada de um grande senso de humor, a história de quatro gerações de uma família de imigrantes alemães, os Ziegel, colonizadores da cidade de Blumenau. A família Ziegel é o centro da narrativa, porém várias outras histórias familiares cruzam-se entre si, tecendo, assim, um painel dos primeiros cem anos da cidade de Blumenau. A autora faz referências desde a chegada dos alemães, por volta de 1850, aos conflitos e ao extermínio dos índios daquela região, até a segunda guerra e o período de nacionalização imposta por Getúlio por volta de 1940.

A história é contada, inicialmente, por Homig, um homem de sessenta anos, solteiro, doente do coração. Sua sensibilidade aguçada alerta que sua vida está chegando ao fim, assim como a história de sua família, já que é o último descendente dos Ziegel. Na casa onde viveu toda sua infância, sentado em frente ao guarda-roupa alemão, Homig revive várias histórias de sua família na colônia de Blumenau. O guarda-roupa é uma peça que veio da Alemanha há cem anos com seus bisavós, Ervin Ziegel e Ethel Moltke, e acompanhou todas as gerações da família, sempre no mesmo lugar, guardando documentos importantes, enxovais e segredos.

Homig tem a incumbência de abrir uma gaveta do guarda-roupa, a qual foi trancada por sua bisavó ao falecer, contendo um segredo que só deveria ser revelado ao último Ziegel vivo. É chegada a hora de abrir a gaveta, pois a casa onde viveu toda sua infância foi vendida, encerrando o ciclo de sua família. Na verdade, havia mais um primo que ainda estava vivo, Ralf. Dez anos mais velho que Homig, chegou da Alemanha já adulto e formado e, por isso, viveu apenas parte da história dos Ziegel em Blumenau. A atitude de abrir a gaveta é hesitada várias vezes e Homig leva um dia inteiro para se decidir enquanto, em frente ao guarda-roupa, as lembranças de vida lhe vêm à cabeça. É Ralf quem o ajuda abrir a gaveta e quem, afinal, descobre o segredo da família, pois Homig já bastante debilitado física e emocionalmente, é levado para o hospital.

Fonte:
Passeiweb

Lausimar Laus (1916 – 1979)


Lausimar Maria Laus nasceu na cidade de Itajaí, SC no dia 16 de abril de 1916. Filha de Pedro Paulo Laus – oficial da marinha mercante condecorado por participar das duas Grandes Guerras Mundiais – e, Maria Stuart Laus – professora do ensino elementar. Foi casada duas vezes, sendo que ficou viúva do oficial do exército Sílvio Conti Filho.

Teve dois filhos: Gualberto e Eli. Em muitos documentos Lausimar Maria Laus é citada pelos nomes Lausimar Laus Gomes e Lausimar Laus Conti. Contudo, adotou o nome artístico de LAUSIMAR LAUS.

Lausimar estudou na Primeira Escola Mista da Barra do Rio e depois se transferiu para o Grupo Escolar Victor Meirelles. Na década de trinta seguiu para Florianópolis onde a cinco de dezembro de 1936 se formou normalista pelo Instituto de Educação. Ato contínuo, Lausimar se transferiu para o Rio de Janeiro, onde iniciou vitoriosa carreira como escritora, educadora e jornalista

No Rio de Janeiro Lausimar trabalhou no Ministério da Educação e Saúde e ingressou no magistério público no ano de 1944. Foi também no Rio de Janeiro que publicou seus primeiros versos no ano de 1942, com o título de CONFIDÊNCIAS.

Em 1948 publicou seu primeiro livro de contos direcionados ao público infantil: HISTÓRIAS DO MUNDO AZUL.

Em 1952 Lausimar ganhou o segundo lugar no concurso da Academia Brasileira de Letras, categoria teses. Como prêmio publicou em 1953 o livro: O ROMANCE REGIONALISTA BRASILEIRO.

Na década de cinquenta intensificou suas atividades no campo da literatura e jornalismo.

Em 1953 publicou BRINCANDO NO OLIMPO e em 1958 publicou o livro de contos FEL DA TERRA. Nesta época colaborou com vários jornais e revistas literárias modernistas, inclusive com o afamado grupo literário de Florianópolis, o GRUPO SUL.

Osvaldo Ferreira de Melo no livro Introdução à História da Literatura Catarinense inclui Lausimar como uma “agregada” aos modernistas do Grupo Sul: “Da geração modernista ou dela próximos, mas sem se terem integrado diretamente aos movimentos de renovação temos:[...] Zedar Perfeito da Silva (história, ficção), Nereu Corrêa (crítica)[...] Lausimar Laus (ficção)”. Junto com Meyer Filho – integrante direto do Grupo Sul, todos estes intelectuais mantiveram ligação histórica com a cidade de Itajaí.

Nas décadas de sessenta e setenta Lausimar Laus promoveu diversas viagens de estudo ao exterior e consolidou sua carreira no magistério superior.

Em 1962 recebeu credencial da revista Manchete para uma série de reportagens na Alemanha e em l965 publicou pela Editora Pongetti (a mesma que publicou diversos livros do poeta Marcos José Konder Reis) o livro sobre observações de viagem e crônicas, intitulado EUROPA SEM COMPLEXOS.

Em 1966 (a exemplo de Silveira Júnior) a convite do governo americano passou três meses em viagem de estudos nos EUA, onde fez observações sobre o sistema educacional daquele país. Em seguida, viajou a estudo para a Espanha e diversos países europeus, publicando uma série de reportagens intitulada NA ROTA DO VASTO MUNDO.

No final da década de setenta chegou a visitar o Japão e muitos outros países asiáticos e europeus. Em 1970 publicou seu primeiro romance, intitulado de TEMPO PERMITIDO, prefaciado por Rachel de Queiroz e editado pelo Instituto Nacional do Livro em parceira com a Editora Americana. Em 1975 publicou pelo Instituto Nacional do Livro e Editora Pallas a sua obra de maior sucesso: O GUARDA-ROUPA ALEMÃO.

Em 1976 recebeu o prêmio Odorico Mendes da Academia Brasileira de letras pela melhor tradução do ano em língua portuguesa para o livro de Alain Robbe-Grillet intitulado PROJETO PARA UMA REVOLUÇÃO EM NOVA YORK

Já no ano seguinte, tendo Afrânio Coutinho como orientador, defendeu dissertação com o título de O MISTÉRIO DO HOMEM NA OBRA DE DRUMMOND, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (publicado em 1978).

Ainda em 1977 recebe do Jornal de Santa Catarina o Troféu Barriga-Verde por sua contribuição na divulgação da literatura catarinense.

Publicou também o ensaio A PRESENÇA CULTURAL DA ALEMANHA NO BRASIL.

Lausimar contribuiu com a revista Manchete e chegou a ocupar a segunda página da revista O CRUZEIRO com suas crônicas. Publicou em O Globo, Diário de Notícias, Correio da Manhã, Jornal do Commércio, Jornal do Brasil (suplemento do livro), O Estado de Minas Gerais (Suplemento Literário), Correio do Povo (Caderno de Sábado), Revista Presença, O Estado de São Paulo (Suplemento Literário) e Jornal do Povo (hebdomadário itajaiense).

Na área musical teve vários poemas seus musicados por Aristides M. Borges e gravados com o selo da RCA/VICTOR. A música que obteve maior sucesso foi gravada com o título: TENHO PENSADO TANTO EM TI.

No setor acadêmico, Lausimar se licenciou em letras clássicas pela Faculdade de Letras da Universidade Santa Úrsula. Titulou-se mestre em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora pela Faculdade de Letras da Universidade de Madri. Exerceu por muitos anos o magistério superior na Universidade Federal Fluminense, em especial como professora de literatura alemã.

Lausimar Laus morreu aos 63 anos de idade, em sua residência (rua Aristides Espíndola, 106, Leblon – RJ), vítima de infarto fulminante, no dia três de outubro de 1979. Lausimar foi sepultada no Rio de Janeiro no Cemitério São Francisco Xavier, bairro do Caju.

Fonte:
http://pt.scribd.com/doc/57492836/O-Guarda-Roupas-Alemao

Orlando Mendes (Poemas Avulsos)


UNIFORME DE POETA

Ajustei minha cabeleira longa,
coloquei-lhe ao de cima meu
chapéu de coco em fibra sintética,
sacudi a densa poeira das asas encardidas
e, dependurada a lira a tiracolo,
saio para a rua
em grande uniforme de poeta.
Tremei guardas-marinhas,
alferes do activo em
situação de disponibilidade:
meu ridículo hoje suplanta
o vosso e nele se enleia e perturba
o suspiro longo das meninas
romântico-calculistas.

JUVENTUDE

É no tempo dos explícitos cantares
à luz do dia e na escuridão da noite
até uma explosiva prova de acção.

É o tempo das dúvidas inconfessáveis
os cigarros ardendo e o café já frio
e o rosto impassível atrás do jornal
contra a devassa de anônimos vigilantes.

É o tempo dos assaltos ao trânsito
imaginando as máscaras arrancadas
e a beleza de a riqueza como seriam
se não coexistissem incólumes com
ignorância e miséria e violência.

É o tempo da solidão entre as gentes
e de solitário sentir a multidão na savana.

É o tempo de não ter fé e crer ainda
na dádiva total por um beijo de amor
e pela sinceridade dum aperto de mão.

É também o tempo de receber-transmitir
uma secreta raiva chamada esperança.

Tempo que o pudor adulto faz caducar.

EXORTAÇÃO

"Jovem, se tens exercícios de literatura
escritos há mais de um mês, destrói-os.
Rasga-os ou queima-os de preferência
(consta ser universalmente mais ortodoxo)
e se a chama te chamuscar unhas e pele
e as sujar a cinza, não queixes a dor
e lava-te. Destrói-os. Guarda-os todavia
fiéis na memória, palavra por palavra,
para que possas transmiti-los a um amigo
quando depois do venal acto de amor
forem também vender a irresistível suspeita
da tua voz trémula e dos teus outros actos.
Mas não deixes de escrever. Peço-te que não."

DEDICATÓRIA

Aos poetas que pensam e dizem versos
mas não os sabem escrever
e por isso anónimos lhes chamam.
Nas rochas corroídas pelo sal de outros mares
navegados para implantar espada cruz e poder
nas rochas onde o luar desnuda o silêncio
pulsando canções da noite assim povoada
e que o sol inflama e semeia
sobre as efémeras gostas de cacimba
renovadas com cintilações das estrelas,
aí eu gravarei seus nomes.
E os amantes pressentindo
os hão-de perguntar e saudar.

Orlando Mendes (1916-1990)

Escritor moçambicano, Orlando Marques de Almeida Mendes nasceu a 4 de Agosto de 1916, na ilha de Moçambique.

Licenciou-se em Ciências Biológicas pela Universidade de Coimbra, onde foi assistente e onde se revelou poeta e prosador.

Pertenceu aos quadros dos Serviços de Agricultura, foi fitopatologista e Funcionário do Ministério da Saúde.

Profundamente influenciado pelo neo-realismo português, o poeta, romancista, dramaturgo, crítico literário, colaborou em diversos jornais moçambicanos e estrangeiros e produziu uma vasta obra literária, como
Trajectória (1940),
Portagem .(1966),
Um minuto de Silêncio (1970),
A Fome das Larvas (1975),
Papá Operário mais Seis Histórias (1983),
Sobre Literatura Moçambicana (1982), entre outros.

Recebeu o prêmio Fialho de Almeida , o dos Jogos Florais da Universidade de Coimbra (1946) e o primeiro Prêmio de Poesia no concurso literário da Câmara Municipal de Lourenço Marques.

Em 1990, Orlando Mendes faleceu em Maputo.

Fonte:
Antonio Miranda

Murilo Rubião (A Armadilha)


Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.

Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.

Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.

Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.

Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:

— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.

O outro teve que insistir:

— Afinal, você veio.

Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:

— Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.

— Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.

— Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?

— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.

Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.

Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:

— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.

— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.

— Nada?

Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.

— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!

Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:

— Calculava, porém desejava ter certeza.

Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam.
O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.

Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:

— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.

— Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.

— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!

— Não posso.

— Não pode ou não quer?

— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.

Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.

Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.

Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:

— Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.

A fúria de Alexandre chegara ao auge:

— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!

— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.

— Gritarei, berrarei!

— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.

E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:

— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

Fonte:
"Para Gostar de Ler — Vol. 9 — Contos", Editora Ática — São Paulo, 1984, pág. 17.

Preservação de Livros (Parte 5, final)


2.7 ACABAMENTO DOS CORTES DO LIVRO

Prensar o livro entre duas tábuas na mesa e lixar os cortes do livro até torna-los em linha reta.

2.8 CONFECÇÃO DA CAPA ·

Quando a capa do livro está em bom estado deve-se aproveitá-la, reforçando-a com uma cartolina. Molda-se a cartolina no livro colocando-a em seguida na capa original.

Quando a capa original não está em condições de ser aproveitada deve ser confeccionada uma capa com cartolina americana.

Molda-se a cartolina no livro cortando duas partes iguais (frente e verso), - neste caso será confeccionado apenas a capa com a lombada já pronta;

Fazer um vinco de 2 cm da lombada para o meio do livro e colar apenas a parte do vinco ao livro. Repetir o procedimento com o outro lado (verso).

CONCLUSÃO

Este trabalho foi elaborado objetivando orientar quanto às atividades ligadas à reparação e conservação de livros pertencentes a acervos de bibliotecas. No entanto, o restauro utilizado em obras bibliográficas que exigem maior conhecimento e cuidado, por se tratarem de obras raras e/ou documentos de cunho histórico, só deve ser executado por especialistas com aprimoramento técnico.

ANEXO 1

INSTRUÇÕES PARA PREPARO, MISTURA E DILUIÇÃO DE COLAS:

CARBOX METIL CELULOSE (CMC)

É um adesivo neutro, sua natureza é de celulose modificada, encontrado como pó branco que ao ser dissolvido forma um gel transparente. Usado como encolante e consolidante em conservação ­ restauração de documentos, fotografias, faceamentos e velaturas.

Procedimento:

– Colocar 1 litro de água morna deionizada, destilada ou filtrada em recipiente de plástico ou vidro;

– Acrescentar aos poucos um copinho (cafezinho) como medida padrão de Metil Celulose;

– Bater na batedeira;

– Deixar descansar mais ou menos 2 horas, até que a mistura esteja com aparência homogênea e gelatinosa;

– Bater novamente na batedeira;

– A viscosidade do adesivo pode variar conforme a necessidade do uso, acrescentando-se mais água.

– Guardar na geladeira em vidro com tampa.

MISTURA DE PVA E CARBOX METIL CELULOSE (CMC):

Esta mistura é usada para remendos, colar folhas de guarda, colar dorso e outras aplicações. O seu uso permite que o papel seja descolado, quando necessário apenas usando a umidade.

Procedimento:

– Colocar em um recipiente partes iguais de cola PVA (cascorez) e Carbox Metil Celulose (50% x 50%) ou duas partes de PVA para uma parte de metilcelulose.

– Misturar bem e deixar no ponto da consistência de um iogurte;

– Se a mistura estiver muito espessa, acrescentar mais água para dissolve-la.
––––––
Fontes:
DIVISÃO DE PRESERVAÇÃO; Preservação e Recuperação de Material Bibliográfico. Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2001.

MILEVSKY, Robert J.; Manual de Pequenos Reparos em Livros; Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos. 2ª edição, Rio de Janeiro, 2001.