quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Maria Firmina dos Reis (1825 – 1917)


Maria Firmina dos Reis (São Luís, 11 de outubro de 1825 — Guimarães, 1917)

Nasceu em São Luís, no dia 11 de outubro de 1825 sob duas condições que por si só já seriam capazes de exaurir qualquer futuro de uma mulher num país escravocrata. Era mulata e bastarda. Apesar disso, Maria Firmina rompeu com o sistema vigente e estudou até se “formar” professora. Aos 22 anos venceu o concurso público para a “Cadeira de Instrução Primária”, na cidade de Guimarães. Durante grande parte de sua vida, dividiu-se em duas pessoas: uma a professora e a outra, a escritora, sendo esta última a que mais se destacou. Maria Firmina escreveu e publicou por muito tempo, crônicas, poesias, ficção e até charadas. Mulher inteligente e culta teve participação relevante no cenário cultural nacional, atuando também como folclorista e compositora, tendo sido, inclusive, responsável pelo hino da Abolição da Escravatura.

Como romancista teve duas grandes publicações: Gupeva, de temática indianista, publicado em 1861 e Úrsula, publicado em 1859. Este último configura-se como o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira. Nele, a autora aborda a escravidão a partir do ponto de vista do negro. Em 1887, Firmina escreveu também um conto sobre o mesmo tema, "A Escrava". Para fugir da repressão que era comum na época, Maria Firmina assinou a publicação com o pseudônimo “Uma Maranhense”. Se já é difícil publicar um livro nos dias atuais, imagine esse cenário em pleno século 19, ainda mais para uma mulher, negra e nordestina. As dificuldades eram imensuráveis. Até por isso e por outros motivos, o livro Úrsula só veio a público em 1975, através dos estudos de Horácio de Almeida e de Nascimento Morais Filho, grande pesquisador das obras da romancista.

Maria Firmina foi uma mulher à frente de seu tempo que rompeu a barreira do preconceito, fundamentado no racismo e no machismo, e mostrou para o mundo a importância da literatura maranhense. Ao contrário do que era vigente na época, quando os homens, brancos e ricos iam para a Europa, estudar nas melhores faculdades, Maria Firmina provou que a busca pelo conhecimento não tem fronteiras físicas e deu ao mundo um romance recheado de denúncia de injustiças arraigadas na sociedade patriarcal brasileira e que tinham no escravo e na mulher suas principais vítimas.

Foi professora de primeiras letras, colaboradora de jornais literários e fundadora de uma escola gratuita e mista, para meninos e meninas, que causou escândalo no povoado de Maçaricó, em 1880, e teve que ser fechada.

Morreu em 1917, aos 92 anos sem ver sua principal obra reconhecida pelos intelectuais da época.

Suas obras foram recentemente republicadas pelos estudiosos maranhenses Horácio de Almeida e José Nascimento Morais Filho.

Fonte:
Wikipedia
Jornal de Poesia
Arquivos Monstros

Maria Firmina dos Reis (Úrsula)


Ao publicar Úrsula, pela primeira vez em 1859, a autora, Maria Firmina dos Reis, assinou com o pseudônimo “Uma Maranhense”, estratégia muito utilizada por mulheres naquela época, por várias razões, entre elas porque deviam ficar com mais liberdade para expressar suas idéias, sem se preocupar tanto com as opiniões da sociedade. No caso de Maria Firmina, as novas idéias eram não somente sobre a condição feminina, mas também sobre a condição do negro.

Maria Firmina desconstrói igualmente uma história literária etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações afro-descendentes. Úrsula não é apenas o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, fato que, inclusive, nem todos os historiadores admitem. É também o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afro-descendente, que tematiza o assunto "negro" a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condição do ser negro no Brasil. Acresça-se a isto o gesto (civilizatório) representado pela inscrição em língua portuguesa dos elementos da memória ancestral e das tradições africanas. Texto fundador, Úrsula polemiza com a tese segundo a qual nos falta um “romance negro”, pois apesar de centrado nas vicissitudes da heroína branca, pela primeira vez em nossa literatura, tem-se uma narrativa da escravidão conduzida por um ponto de vista interno e por uma perspectiva afro-descendente.

No prólogo da obra, a autora afirma saber que “pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” Por trás dessa declaração de modéstia, a escritora revelou sua condição social: o fato de não ter estudado na Europa, nem dominar outros idiomas, como era comum entre os homens educados de sua época, por si só indicava o lugar que ocupava na sociedade em que nasceu. É desse lugar intermediário, mais próximo da pobreza que da riqueza, que Maria Firmina corajosamente levantou sua voz através do que chamou “mesquinho e humilde livro”. E, mesmo sabendo do “indiferentismo glacial de uns” e do “riso mofador de outros”, desafiou: “ainda assim o dou a lume”.

O romance trata de uma trágica história de amor entre dois jovens: a pura e simples Úrsula e o nobre bacharel Tancredo, e, aparentemente, é uma clássica história de amor impossível, como muitas de seu tempo. Porém, logo se nota, pelo tratamento dado aos personagens negros, às mulheres e à escravidão, que as preocupações presentes no romance são outras, pois, apesar de ter sido escrito num período de nacionalismo exacerbado, destoa da literatura produzida em sua época em muitos aspectos, já que não parece estar comprometido com o projeto romântico que era fundar a idéia de nação, construindo através de suas narrativas um ser nacional.

O prólogo estabelece o território cultural que embasa o projeto do romance. Era 1859, momento em que a prosa de ficção dava seus primeiros passos na literatura brasileira. Com seu gesto, sob muitos aspectos inaugural, Maria Firmina apontou o caminho do romance romântico como atitude política de denúncia de injustiças, há séculos arraigadas na sociedade patriarcal brasileira e que tinham no escravo e na mulher suas principais vítimas. Foi, portanto, como mulher e como afro-brasileira que a autora pôs-se a narrar o drama da jovem Úrsula e de sua desafortunada mãe, ao qual se acrescentaram os infortúnios de Tancredo, traído pelo próprio pai, e a tragédia dos escravos Túlio, Susana e Antero, que receberam no texto um tratamento marcado pelo ponto de vista interno, pautado por uma profunda fidelidade à história oculta da diáspora africana no Brasil. Essa solidariedade para com o oprimido é absolutamente inovadora se comparada àquela existente em outros romances abolicionistas do século XIX, pois nasceu de uma outra perspectiva, pela qual a escritora, irmanada aos cativos e a seus descendentes, expressou, pela via da ficção, seu pertencimento a este universo de cultura.

A narrativa se articula a partir de um triângulo amoroso formado por Adelaide, Tancredo e seu pai. Esse triângulo é desfeito com a derrota de Tancredo. Cria-se, então, um segundo triângulo formado por Tancredo, Úrsula e seu tio. Mas há, também, uma tríade, formada por três personagens negros, que vão aparecendo ao longo da narrativa, cuja importância vai tomando proporções cada vez maiores: Túlio, Mãe Susana e Antero que, juntamente com o jovem Tancredo, dão o tom diferente à narrativa. Um leitor desavisado pode entender seus papéis como mero acessório para o drama dos demais personagens, porém, ao ler com o cuidado que o romance merece, percebe-se que o drama dos escravos vai tomando proporções cada vez maiores, a ponto de prender a atenção do leitor.

Do ponto de vista formal, o texto marca-se pela linearidade narrativa e por personagens desprovidos de maior complexidade psicológica. Tais figuras vivem quase sempre situações extremas, marcadas pelo acaso e por mudanças bruscas do destino. Situando Úrsula no contexto da narrativa folhetinesca, pode-se aquilatar o quanto a escritora se apropria das técnicas do romance de fácil aceitação popular, a fim de utilizá-las como instrumento a favor da dignificação dos oprimidos, em especial a mulher e o escravo. O triângulo amoroso formado pela jovem Úrsula, seu amado Tancredo e pelo tio Comendador, que surge como encarnação de todo o mal sobre a terra, ocupa o plano principal das ações. Além de assassinar o pai e abandonar a mãe da protagonista anos e anos entrevada numa cama, o Comendador compõe a figura sádica do senhor cruel que explora a mão de obra cativa até o limite de suas forças. Ao final, enlouquecido de ciúmes, o vilão mata Tancredo na própria noite do casamento deste com Úrsula, o que provoca a loucura, o posterior falecimento da heroína e o inconsolável remorso que também leva o tio à morte, não sem antes passar pela libertação de seus escravos e pela reclusão num convento. O texto descarta o final feliz e opta pelos esquemas consagrados no romance gótico a fim de estabelecer a empatia com o público.

Todavia, o livro cresce na medida em que emergem os dramas dos escravos. A narrativa se inicia com o jovem Túlio – único cativo da decadente propriedade da mãe de Úrsula – salvando a vida de Tancredo num acidente. Não por acaso, o primeiro capítulo, destinado à apresentação do cenário e dos dois personagens, se intitula “Duas Almas Generosas” e logo sabe-se porquê. De imediato, destaca-se a humanidade condoída do sujeito afro-descendente, cujo perfil dramático e existencial vai além da mera força de trabalho ou do papel de porta-voz do ódio rancoroso dos quilombolas.

Na construção dos personagens nota-se uma valorização das características próprias dos afro-descendentes, rompendo-se, assim, com o estereótipo racial que sempre deu ao negro uma conotação negativa – o que podemos perceber na seguinte descrição de Túlio que é uma verdadeira exaltação à raça negra:

O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar 25 anos, e que na franca expressão de sua fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e a escravidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava; porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco (Reis, 2004: 22).

A composição do personagem já indica a perspectiva que orienta a representação do choque entre as etnias no texto de Maria Firmina dos Reis. A escravidão é “odiosa”, mas nem por isto endureceu a sensibilidade do jovem negro. Eis a chave para compreender a estratégia da autora de combate ao regime sem agredir em demasia as convicções dos leitores brancos. Túlio era vítima, não algoz. Sua revolta se fazia em silêncio, pois não tinha meios para confrontar o poder dos senhores. Não os sabotava nem os roubava, todavia, como os escravos presentes em As Vítimas-algozes, de Joaquim Manoel de Macedo (1869). Seu comportamento pautava-se pelos valores cristãos, apropriados pela autora a fim de melhor propagar seu ideário:

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... aquele que também era livre no seu país... aquele que é seu irmão?! E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista. (Reis: 2004). Ressalte-se de início que não se trata de condenar a escravidão unicamente porque um escravo específico possui um caráter elevado. Trata-se de condenar a escravidão como instituição. E a autora o faz partir do próprio discurso religioso oriundo da hegemonia branca, que afirmou serem todos irmãos independentemente da cor da pele. Se pensar em termos do longínquo ano de 1859 e da longínqua província do Maranhão, pode-se aquilatar o quanto tal postura tem de avançado, num contexto em que a própria Igreja Católica respaldava o sistema escravista.

E não é só. O primeiro capítulo objetiva apresentar os dois personagens masculinos que irão encarnar a positividade moral do texto: um branco e um negro. Assim eles entram em cena, primeiro Tancredo; depois, Túlio. Entretanto, ao utilizar-se do artifício do acidente, a autora faz com que o segundo tome a frente do primeiro e cresça enquanto personagem. Já de início, o leitor passa a conhecê-lo em suas virtudes, enquanto do outro sabe apenas do atordoamento mental que provocou o acidente. Há mais: ao despertar do desmaio, Tancredo deparou-se com o negro à sua frente e, apesar da febre que já lhe turvava novamente os sentidos, vislumbrou no escravo o homem bom que o salvou:

O cavaleiro começava a coordenar suas idéias, e as expressões do escravo, e os serviços que lhe prestara tocaram-lhe o mais fundo do coração. É que em seu coração ardiam sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro: por isso, num transporte de íntima e generosa gratidão, o mancebo, arrancando a luva, que lhe calçava a destra, estendeu a mão ao homem que o salvara. (Reis: 2004)

O negro não foi apenas colocado na trama em pé de igualdade frente ao rico cavaleiro. Mais que isto, ele foi a “base de comparação” para que o leitor aquilatasse o valor do jovem herói branco. Ou seja, no discurso do narrador onisciente, o negro é parâmetro de elevação moral. Tal fato se constitui em verdadeira inversão de valores numa sociedade escravocrata, cujas elites difundiam teorias “científicas” a respeito da inferioridade natural dos africanos. Assim fazendo, a voz que narra mostra-se desde o início comprometida com a dignificação do personagem, ao mesmo tempo em que expressa com todas as letras qual o território cultural e axiológico que reivindica para si: o da afro-descendência. Esse pertencimento se traduz ainda na simpatia que a autora devota a Túlio e aos demais personagens submetidos ao cativeiro.

Ao abrigar o cavaleiro ferido na casa de sua senhora, o escravo propicia o encontro dos dois e o início da paixão que os leva à breve felicidade. Mais uma vez, sobressaem nesses momentos o zelo e a dignidade de Túlio, que termina ganhando a alforria como sinal de gratidão do homem branco. Um forte elo de amizade passa a uni-los e, a partir de então, o negro torna-se companhia inseparável de Tancredo. Ele faz a figura do jovem de bom caráter, que respeita a senhora por não tê-lo maltratado, e que se julga em dívida com aquele que o libertou. No entanto, sua nova condição é desmascarada por Mãe Susana, quando esta ironiza a “liberdade” do alforriado – que afinal, irá conduzi-lo à morte – comparando-a à vida que levava em África:

- Tu! tu livre? Ah não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. (...) Liberdade... eu gozei em minha mocidade! – continuou Suzana com amargura. Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. (Reis: 2004)

Além de reforçar a própria condição afro-descendente do texto, a entrada em cena da velha africana confere maior densidade ao sentido político do mesmo. Mais uma vez, o território de origem é mencionado sem rodeios, ao contrário do que se vê em outros escritos do século XIX, inclusive assinados por afro-brasileiros. Sobressai, então, a condição diaspórica vivida pelos personagens arrancados de suas terras e famílias para cumprir no exílio a prisão representada pelo trabalho forçado. É Mãe Susana quem vai explicar a Túlio o sentido da verdadeira liberdade, que não seria nunca a de um alforriado num país racista. Para tanto, a velha escrava recordava sua terra natal, a infância livre, o amor de seu companheiro e a vida feliz que levavam junto à filhinha até o dia em que foi capturada pelos “bárbaros” mercadores de seres humanos. Segue-se a narrativa do aprisionamento e da crueldade com que foi tratada ao deixar para sempre “pátria, esposo, mãe, filha, e liberdade”:

Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se de minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. (...) Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas que se levam para recreio dos potentados da Europa. (REIS: 2004)

Sobressai de imediato a postura do sujeito da rememoração, na qual o eu individual deságua num nó coletivo. É o discurso do outro fazendo ouvir pela primeira vez na literatura brasileira a voz dos escravizados. Voz política que denunciava, em plena vigência do espírito das luzes, o conquistador europeu como bárbaro, invertendo de forma inédita a acusação racista, corrente na Europa e presente no pensamento de filósofos do porte de Hegel, que excluía a África do mundo civilizado. O romance prossegue com o verismo da descrição sobrepujando-se à ficção propriamente dita. Com isto, o texto ganhou em densidade histórica e humana o que perdeu porventura em termos de aprofundamento psicológico dos personagens e do próprio andamento da trama, suspendendo-se esta para que se ouvisse a versão das vítimas. A narrativa da vida de Mãe Susana, na África, e de seu aprisionamento, ocupa todo o nono capítulo e foi inscrita no texto justamente no momento em que se deu a alforria de Túlio a fim de relativizá-la enquanto conquista da liberdade.

O discurso anti-escravista perpassa praticamente toda a obra de Maria Firmina.

Além das sofridas lembranças de Mãe Susana e da moldura cristã que preside a nova condição de Túlio, Úrsula trata ainda de um outro tipo de escravo: o que perde a auto-estima e se entrega ao vício. Surge então a figura decrépita de Pai Antero, sujeito de bom coração, mas dominado pelo alcoolismo. Saudoso dos costumes de sua terra e do “vinho de palmeira” bebido no ritual africano do descanso semanal, que Maria Firmina nomeia “festa do fetiche”, Antero cumpre na trama o contraponto dramático ao caráter elevado de Túlio. Além disso, ao ressaltar o vício do personagem, o texto escapa à idealização pela qual todo negro seria perfeito e todo branco ruim. Com Antero, fechou-se a estrutura trina encimada por Mãe Susana, e essa tríade negra vai aos poucos seqüestrando a atenção do leitor e superando em importância o previsível triângulo amoroso vivido pelos personagens brancos.

Assim, entre a positividade e a ingênua bondade do jovem afro-brasileiro e a negatividade representada pela decadência do velho africano, Maria Firmina abre espaço para o discurso de Mãe Susana, elo vivo com a memória ancestral e com a consciência da subordinação. Espécie de alter ego da romancista, a personagem configura aquela voz feminina porta-voz da verdade histórica e que pontua as ações, ora com comentários e intervenções moralizantes, ora como verdadeira pitonisa a tecer passado, presente e futuro nos anúncios e previsões que, por um lado, preparam o espírito do leitor e aceleram o andamento da narrativa e, por outro, instigam a reflexão e a crítica. Essa voz feminina emerge, pois, das margens da ação para carregá-la de densidade, do mesmo modo que sua autora, que também emerge das margens da literatura brasileira para agregar a ela um instigante suplemento de sentido: o da afro-brasilidade.

Fontes:
Eduardo de Assis Duarte, Prof. de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UFMG | Adriana Barbosa de Oliveira, Mestra no Programa de Estudos Literários - UFMG, disponível em Passeiweb

Machado de Assis (Uma Águia sem Asas)


CAPÍTULO PRIMEIRO

Era uma tarde de agosto. Caía o sol, e soprava um vento fresco e brando, como para compensar o dia que estivera extremamente calmoso. A noite prometia ser excelente.

Se a leitora quer ir comigo ao Rio Comprido, entraremos juntos na chácara do Sr. James Hope, comerciante inglês desta praça, como se diz em linguagem técnica. James Hope viera para o Brasil em 1830, com pouco mais de 20 anos, e começou imediatamente uma brilhante carreira comercial. Casou pouco depois com a filha de um compatriota, já nascida aqui, e mais
tarde fez-se cidadão brasileiro, não só no papel, como no coração. Do seu matrimônio, teve um filho e uma filha; o primeiro, chamado Carlos Hope, seguia a carreira do pai, e contava 26 anos ao tempo em que começa este romance; a filha recebeu o nome de Sara e tinha 22 anos.

Sara Hope era solteira. Por quê? A sua beleza era incontestável; reunia a graça brasileira à gravidade britânica, e em tudo parecia destinada a dominar os homens; a voz, o olhar, as maneiras, tudo possuía um misterioso condão fascinador. Além disto, era rica e ocupava uma invejável posição na sociedade. Dizia-se à boca pequena que algumas paixões havia já inspirado a interessante moça; mas não constava que ela as houvesse tido em sua vida.

Por quê?

Esta pergunta todos a faziam, até o pai que, apesar de robusto e sadio, previa algum acontecimento que viesse a deixar a família sem chefe, e desejava ver casada a sua querida Sara.

Na tarde em que começa esta narrativa, estavam todos assentados no jardim, em companhia de mais três rapazes da cidade que tinham ido jantar em casa de James Hope. Dispensem-me de lhes pintar as visitas do velho comerciante. Bastará dizer que um deles, o mais alto, era advogado principiante, dispondo de algum dinheiro do pai; chamava-se Jorge; o segundo, cujo nome era Mateus, era comerciante, sócio de um tio que dirigia uma grande casa; o mais baixo não era coisa nenhuma, tinha algum pecúlio, e chamava-se Andrade. Estudara medicina, mas não tratava doentes, por glória da ciência e sossego da humanidade.

James Hope estava extremamente alegre e bem disposto, e todos os mais pareciam gozar o mesmo beatífico estado. Quem entrasse subitamente no jardim, sem ser pressentido, podia descobrir que os três rapazes procuravam obter as boas graças de Sara, tão visivelmente que, não só os pais da moça o percebiam, mas até não podiam encobrir eles mesmos, uns aos outros, as suas pretensões.

Se isto era assim, escusado é dizer que a mesma Sara conhecia o jogo dos três rapazes, porque em geral a mulher sabe que é amada por um homem, antes mesmo que ele o perceba.

Longe de parecer incomodada com o fogo dos três exércitos, Sara os tratava com tanta bondade e graça que parecia indicar uma criatura coquete e frívola. Mas quem atentasse alguns largos minutos, conheceria que ela era mais irônica que sincera, e, por isso mesmo que os igualava, os desprezava a todos.

James Hope acabava de contar uma anedota da sua mocidade, ocorrida em Inglaterra. A anedota era interessante, e o James sabia narrar, talento difícil e raro. Entusiasmado com os vários pormenores de costumes ingleses a que James Hope teve de aludir, o advogado manifestou o grande desejo que nutria de ver a Inglaterra, e em geral o desejo de viajar toda a Europa.

— Há de gostar, disse Hope. As viagens deleitam muito; e além disso, nunca devemos desprezar as coisas estranhas. Eu iria de boa vontade à Inglaterra, durante alguns meses, mas creio que já não posso viver sem o nosso Brasil.

— É o que me acontece, acudiu Andrade; acredito que lá fora haja muita coisa melhor do que cá; mas nós cá temos coisas melhores do que lá. Umas compensam as outras; e por isso não valeria a pena de uma viagem.

Mateus e Jorge não foram absolutamente desta idéia. Ambos protestaram que dariam algum dia um pulo ao velho mundo.

— Mas por que não faz isso que diz, Sr. Hope? perguntou Mateus. Ninguém melhor do que o senhor pode realizar esse desejo.

— Sim, mas há um obstáculo...

— Não sou eu, acudiu rindo Carlos Hope.

— Não és tu, disse o pai, é Sara.

— Ah! disseram os rapazes.

— Eu, meu pai? perguntou a moça.

— Três vezes tenho tentado a viagem, mas Sara opõe sempre algumas razões, e não vou. Creio que descobri a causa da resistência dela.

— E qual é? perguntou Sara, rindo.

— Sara tem medo do mar.

— Medo! exclamou a moça, franzindo as sobrancelhas.

O tom com que ela proferiu esta simples exclamação impressionou o auditório. Bastava aquilo para pintar um caráter. Houve alguns segundos de silêncio durante os quais contemplavam a bela Sara, cujo rosto pouco a pouco readquiriu a calma habitual.

— Ofendi-te, Sara? perguntou James.

— Ah! isso não se diz, meu pai! exclamou a moça com todas as harmonias de sua voz. Não podia haver ofensa; houve apenas uma tal ou qual impressão de espanto, quando ouvi falar de medo. Meu pai sabe que eu não tenho medo...

— Sei que não, e já me deste provas disso; mas uma criatura pode ser valorosa e ter medo ao mar...

— Pois não é esse o meu caso, interrompeu Sara; se lhe dei algumas razões, é porque me pareceram aceitáveis...

— Pela minha parte, interrompeu Andrade, penso que foi um erro que o Sr. Hope aceitasse tais razões. Era conveniente, e mais do que conveniente, era indispensável, que a Inglaterra visse que flores pode dar uma planta sua, quando transplantada às regiões americanas.

Miss Hope seria lá o mais brilhante símbolo desta aliança de duas raças vivaces... Miss Hope sorriu ouvindo este cumprimento, e a conversa tomou diversos caminhos.

CAPÍTULO II

Nessa mesma noite, foram os três rapazes cear no Hotel Provençaux, depois de terem passado duas horas no Ginásio. Havia já dois ou três meses que andavam naquela campanha sem se comunicarem uns aos outros as impressões ou as esperanças que tinham. Estas, porém, se alguma vez as tiveram, começavam a diminuir, pelo que não tardaria muito que os três pretendentes se abrissem francamente e dissessem todas as suas idéias a respeito de Sara.

Aquela noite foi tacitamente escolhida pelos três para as confidências recíprocas. Estavam numa sala particular onde ninguém os perturbaria. As revelações começaram por alusões vagas, mas não tardou que assumissem um ar de franqueza.

— Por que negaremos a verdade? disse Mateus depois de alguns remoques recíprocos; todos três gostamos dela; é claríssimo. E o que também me parece claro é que ela ainda não se manifestou por nenhum.

— Nem se manifestará, respondeu Jorge.

— Por quê?

— Porque é uma namoradeira e nada mais; gosta que lhe façam a corte, e não passa disso. É uma mulher de gelo. Que te parece, Andrade?

— Não concordo contigo, acudiu este. Não me parece namoradeira. Pelo contrário, cuido que é uma mulher superior, e que...

Estacou. Entrou nesse momento um criado trazendo umas costeletas pedidas. Quando o criado saiu, os outros dois rapazes insistiram para que Andrade concluísse o pensamento.

— E quê? disseram eles.

Andrade não deu resposta.

— Conclui a tua idéia, Andrade, insistiu Mateus.

— Creio que ela ainda não encontrou um homem como imagina, explicou Andrade. É romanesca, e só se casará com alguém que lhe realize um tipo ideal; toda a questão é saber que tipo é esse; porque, desde que o soubéssemos, tudo estava decidido. Cada um de nós procuraria ser a reprodução material dessa idealidade desconhecida...

— Talvez tenhas razão, observou Jorge; bem pode ser isso; mas, nesse caso, estamos nós em pleno romance.

— Sem nenhuma dúvida.

Mateus discordou dos outros.

— Talvez não seja assim, disse ele; o Andrade terá razão em parte. Creio que o meio de lhe vencer a esquivança é corresponder, não a um tipo ideal, mas a um sentimento próprio, a um traço de caráter, a uma expressão de temperamento. Neste caso, o vencedor será aquele que melhor disser com o gênio dela. Por outras palavras, cumpre saber se ela quer ser amada por um poeta, se por um homem de ciência, etc.

— Isso ainda pior, observou Andrade.

— Pior será, creio, mas grande vantagem é sabê-lo. Que lhes parece a minha opinião?

Concordaram os dois com esta opinião.

— Ora bem, continuou Mateus, pois que assentamos nisto, sejamos francos. Se algum de nós sente uma paixão exclusiva por ela, deve dizê-lo; a verdade antes de tudo...

— Paixões, respondeu Jorge, eu já as conheci; amei aos 16 anos. Hoje, tenho o coração frio como uma lauda das Ordenações. Desejo casar-me para descansar, e se há de ser com uma mulher vulgar, melhor é que seja com uma formosa e inteligente criatura... Isto quer dizer que nenhum ódio votarei àquele que for mais feliz do que eu.

— Minha idéia é outra, disse Andrade; caso por curiosidade. Uns dizem que o casamento é delicioso, outros que aborrecido; e todavia os casamentos não acabam nunca. Tenho curiosidade de saber se é mau ou bom. O Mateus é que me parece verdadeiramente apaixonado.

— Eu? disse Mateus deitando vinho no cálice; nem por sombras. Confesso, porém, que lhe tenho alguma simpatia e certa coisa a que chamamos adoração...

— Nesse caso... disseram os dois.

— Oh! continuou Mateus. Nada disto é amor, pelo menos amor como eu imagino...

Dizendo isto, bebeu de um trago o cálice de vinho.

— Estamos pois concordes, disse ele. Cada um de nós deve estudar o caráter de Sara Hope, e aquele que atinar com as suas preferências será o feliz...

— Fazemos um steeple-chase, disse Andrade.

— Não fazemos só isto, observou Mateus; ganhamos tempo e não nos prejudicamos uns aos outros. Aquele que se julgar vencedor, declare-o logo; e os outros deixarão o campo livre. Assim entendidos, conservaremos a nossa recíproca estima.

Concordes neste plano, os nossos rapazes gastaram o resto da noite em assuntos diferentes, até que cada um se foi para casa, disposto a morrer ou vencer.

CAPÍTULO III

Algum leitor achará este pacto romanesco demais, e um pouco fora dos nossos costumes. Todavia, o fato é verdadeiro. Não direi quem mo referiu, porque não quero fazer mal a um cidadão honrado. Celebrado o pacto, cada um dos nossos heróis procurou descobrir o ponto vulnerável de Sara.

Jorge foi o primeiro que supôs tê-lo descoberto. Miss Hope lia muito e era entusiasta dos grandes nomes literários da época. Quase se pode dizer que nenhum livro, mais ou menos falado, lhe era desconhecido. E não só lia, discutia, criticava, analisava, exceto as obras poéticas.

— A poesia, dizia ela, não se analisa, sente-se ou esquece-se.

Seria esse o ponto vulnerável da moça? Jorge procurou sabê-lo e não esqueceu nenhum meio necessário para isso. Conversaram de literatura longas horas, e Jorge dava largas a um entusiasmo poético mais ou menos real. Notou Sara esse prurido literário do rapaz, mas sem indagar as causas dele, tratou de o aproveitar no sentido das suas preferências.

Sem nenhuma ofensa à pessoa de Jorge, posso dizer que ele não era grande conhecedor em matéria literária, pelo que não poucas vezes lhe acontecia tropeçar desastradamente. Por outro lado, sentia necessidade de alguma fórmula mais elevada para o seu entusiasmo e andou catando na memória aforismos deste jaez:

— A poesia é a linguagem dos anjos.

— O amor e as musas nasceram no mesmo dia.

— A poesia e o amor são os dois olhos de Deus.

E outras coisas mais que a moça ouvia sem admirar muito o espírito inventivo do jovem advogado.

Aconteceu que um domingo de tarde, andando os dois passeando no jardim, um pouco separados do resto da família, Sara pregou os olhos no céu tingido com as rubras cores do ocaso.

Esteve assim calada durante longo tempo.

— Contempla a sua pátria? perguntou-lhe com meiguice Jorge.

— A minha pátria? disse a moça sem perceber a idéia do rapaz.

— É a bela hora do poente, continuou este, a hora melancólica da saudade e do amor. O dia é mais alegre, a noite mais terrível; só a tarde é a verdadeira hora das almas melancólicas... Ah! tarde! Oh! poesia! oh! amor!

Sara conteve o riso que esteve a ponto de lhe rebentar dos lábios ao ouvir o tom e ao ver a atitude com que Jorge proferiu aquelas palavras.

— Gosta então muito da tarde? perguntou ela com um tom irônico que não escaparia a outro.

— Ah! muito! respondeu Jorge. A tarde é a hora em que a natureza parece convidar os homens ao amor, à meditação, à saudade, ao arroubo, aos suspiros, a cantar com os anjos, a conversar com Deus. Posso dizer com o grande poeta, mas variando um pouco a sua fórmula: tirai a tarde ao mundo, e o mundo será um ermo.

— Isto é sublime! exclamou a moça, batendo palmas.

Jorge parecia contente de si. Deitou à moça um olhar lânguido e amoroso e foi o único agradecimento que deu ao elogio de Sara. A moça compreendeu que a conversa podia seguir um caminho menos agradável. Parecia-lhe ver já dançando nos lábios do rapaz uma confissão intempestiva.

— Creio que meu pai me chama, disse ela; vamos.

Jorge foi obrigado a acompanhar a moça, que se aproximou da família. Os outros dois pretendentes viram o ar alegre de Jorge, e concluíram que ele estava no caminho da felicidade. Sara, entretanto, não mostrava a confusão própria de uma moça que acaba de ouvir uma confissão de amor. Olhava muitas vezes para Jorge, mas era com uns longes de ironia, e em todo caso perfeitamente tranqüila.

— Não tem que ver, dizia Jorge consigo, acertei-lhe com a corda; a rapariga é romanesca; tem vocação literária; gosta de exaltações poéticas...

Não se deteve o jovem advogado; a essa descoberta seguiu-se logo uma carta ardente, poética, nebulosa, carta que nem um filósofo alemão chegaria a entender.

Poupo aos leitores a íntegra desse documento; mas não resisto à intenção de lhes transcrever aqui um período, que bem o merece:

“... Sim, minha loura estrela da noite, a vida é uma
aspiração constante para a região serena dos espíritos,
um desejo, uma ambição, uma sede de poesia! Quando
duas almas da mesma índole se encontram, como as
nossas, já isto não é terra, é céu, céu puríssimo e
diáfano, céu que os serafins povoam de encantadas
estrofes!... Vem, meu anjo, passemos uma vida assim!
Inspira-me, e eu serei maior que Petrarca e Dante,
porque tu vales mais que Laura e Beatriz!...”


E cinco ou seis páginas neste gosto. Esta carta foi entregue, num domingo, à saída do Rio Comprido, sem que a moça tivesse ocasião de perguntar o que aquilo era.

Digamos a verdade toda. Jorge passou a noite sobressaltado. Sonhou que entrava com Miss Hope em um riquíssimo castelo de ouro e esmeraldas, cuja porta era guardada por dois arcanjos de longas asas abertas; depois sonhou que o mundo inteiro, por meio de uma comissão, o coroava poeta, rival de Homero. Sonhou muitas coisas neste sentido, até que veio a sonhar com um chafariz, que deitava, em vez de água, espingardas de agulha, verdadeiro disparate que só Morfeu sabe criar.

Três dias depois foi procurado pelo irmão de Sara.

— Minha demora é pequena, disse o rapaz; venho por parte de minha mana.

— Ah!

— E peço-lhe que não veja nisto nada de ofensivo.

— Nisto quê?

— Minha mana quis por força que eu viesse restituir-lhe esta carta; e que lhe dissesse... Em suma, isto é bastante; aqui tem a carta. Ainda uma vez, não há ofensa, e a coisa fica entre nós...

Jorge não achava palavra para responder. Estava pálido e vexado. Carlos não poupou expressões nem carícias para provar ao rapaz que não desejava a menor alteração na amizade que se votavam um ao outro.

— Minha mana é caprichosa, dizia ele, é por isso...

— Concordo que foi um ato de loucura, disse enfim Jorge, animado pelas maneiras do irmão de Sara; mas o senhor compreenderá que um amor...

— Compreendo tudo, disse Carlos; e é por isso que lhe peço esqueça isto, e ao mesmo tempo posso afirmar-lhe que Sara não tem nenhum ressentimento disto... Portanto, amigos como dantes.

E saiu.

Jorge ficou só.

Estava acabrunhado, envergonhado, desesperado. Não lamentava tanto a derrota como as circunstâncias dela. Entretanto, era preciso mostrar boa cara à sua fortuna, e o rapaz não hesitou em confessar a derrota aos dois adversários.

— Safa! disse Andrade, essa agora é pior! Se ela está disposta a devolver todas as cartas pelo irmão, é provável que o rapaz se não empregue em outra coisa.

— Não sei disto, respondeu Jorge; confesso-me vencido, eis tudo.

Durante esta curta batalha, dada pelo jovem advogado, os outros pretendentes não estavam ociosos, e cada qual por si procurava descobrir o ponto fraco na couraça de Sara. Qual deles acertaria?

Vamos sabê-lo nas páginas que nos restam.

CAPÍTULO IV

Mais curta foi a campanha de Mateus; imaginara ele que a moça amaria loucamente a quem lhe desse sinais de bravura. Concluía isto da exclamação que lhe ouvira, quando James Hope disse que ela tinha medo do mar.

Tudo empregou Mateus para seduzir Miss Hope por esse lado. Em vão! a moça parecia cada vez mais recalcitrante. Não houve proeza que o candidato não referisse como glória sua, e algumas fê-las ele mesmo com sobrescrito para ela.

Sara era uma rocha. A nada cedia.

Arriscar uma carta seria loucura, depois do fiasco de Jorge; Mateus julgou prudente abater as armas.

Restava Andrade.

Teria ele descoberto alguma coisa? Parecia que não. Todavia, era dos três o mais atilado, e se a causa de isenção da moça fosse a que eles apontavam não havia dúvida de que Andrade atinaria com ela. Durante esse tempo, ocorreu uma circunstância que vinha transtornar os planos do rapaz. Sara, acusada pelo pai de ter medo do mar, o induzira a uma viagem à Europa.

James Hope participou alegre esta notícia aos três moços.

— Mas vão já? perguntou Andrade quando o pai de Sara lhe disse isto na rua.

— Daqui a dois meses, respondeu o velho.

— Valha-nos isso! pensou Andrade.

Dois meses! Devia vencer ou morrer dentro daquele prazo. Andrade auscultava o espírito da moça com perseverança e solicitude; nada lhe era indiferente; um livro, uma frase, um gesto, uma opinião, tudo Andrade ouvia com atenção religiosa, tudo examinava cuidadosamente.

Um domingo em que lá se achavam na chácara todos, em companhia de algumas moças da vizinhança, falava-se de modas e cada uma dava a sua opinião.

Andrade conversava alegremente e também discutia o assunto da conversa, mas o seu olhar, a sua atenção estavam voltados para a bela Sara.

A distração da moça era evidente. Em que pensaria ela?

De repente, entra pelo jardim o filho de James, que ficara na cidade para aviar uns negócios do paquete.

— Sabem a novidade? disse ele.

— Que é? perguntaram todos.

— Caiu o ministério.

— Deveras? disse James.

— Que temos nós com o ministério? perguntou uma das moças.

— O mundo caminha bem sem o ministério, observou outra.

— Oremos pelo ministério, acrescentou piedosamente uma terceira. Não se falou mais nisto. Aparentemente, era uma coisa insignificante, um incidente sem resultado, na vida aprazível daquela abençoada solidão.

Assim seria para os outros.

Para Andrade foi um raio de luz, — ou pelo menos um indício veemente. Notou ele que Sara ouvira a notícia com atenção profunda demais para o seu sexo, e depois ficara algum tanto pensativa. Por quê?

Tomou nota do incidente.

Noutra ocasião foi surpreendê-la a ler um livro.

— Que livro será esse? perguntou ele sorrindo.

— Veja, respondeu ela apresentando-lhe o livro.

Era uma história de Catarina de Médicis. Isto seria insignificante para outro; para o nosso candidato era um vestígio preciosíssimo. Com os apontamentos que tinha, já Andrade podia conhecer a situação; mas, como era prudente, buscou esclarecê-la melhor. Um dia mandou uma cartinha a James Hope, concebida nestes termos:

“Empurraram-me alguns bilhetes de teatro: é um espetáculo em benefício de um homem pobre. Sei como o senhor é caridoso, e por isso aí lhe remeto um camarote. A peça é excelente.”

A peça era o Pedro.

No dia aprazado, lá estava Andrade no Ginásio. Hope não faltou, com a família, ao espetáculo anunciado. Nunca Andrade sentira tanto a beleza de Sara. Estava esplêndida, mas o que aumentava a beleza e o que lhe inspirava adoração maior, era o concerto de louvores que ele ouvia à roda de si. Se todos gostavam dela, não era natural que ela só lhe pertencesse a ele?

Pela razão de beleza, como por causa das observações que Andrade queria fazer, não tirou os olhos da moça durante a noite inteira. Foi ao camarote dela no fim do segundo ato.

— Venha, disse-lhe Hope, deixe-me agradecer-lhe a ocasião que me proporcionou de ver Sara entusiasmada.

— Ah!

— É um excelente drama este Pedro, disse a moça apertando a mão de Andrade.

— Excelente só? perguntou ele.

— Diga-me, perguntou James, este Pedro sobe sempre até ao fim?

— Não o disse ele no primeiro ato? respondeu Andrade. Subir! subir! subir! Quando um homem sente em si uma grande ambição, não pode deixar de realizá-la, porque justamente nesse caso é que se deve aplicar o querer é poder.

— Tem razão, disse Sara.

— Pela minha parte, continuou Andrade, nunca deixei de admirar este caráter soberbo, natural, grandioso, que me parece falar ao que há de mais íntimo em minha alma! Que é a vida sem uma grande ambição?

Este arrojo de vaidade produziu o desejado efeito, eletrizou a moça, a cujos olhos parecia que Andrade se havia transfigurado. Bem o percebeu Andrade, que coroava assim os seus esforços. Adivinhara tudo.

Tudo o quê? Adivinhara que Miss Hope era ambiciosa.

CAPÍTULO V

Eram duas pessoas diferentes até aquele dia; daí a pouco pareciam entender-se, harmonizar-se, completar-se. Tendo compreendido e sondado a situação, Andrade não deixou de prosseguir no ataque em regra. Sabia para onde iam as simpatias da moça; foi com elas, e tão cauteloso, e ao mesmo tempo tão audaz, que inspirou ao espírito de Sara pouco disfarçável entusiasmo. Entusiasmo, digo, e era esse o sentimento que devia inspirar quem pretendesse o coração de Miss Hope.

Amor é bom para as almas angélicas.

Sara não era assim; a ambição não se contenta com flores e horizontes curtos. Não pelo amor, mas pelo entusiasmo, é que ela devia ser vencida.

Sara via Andrade com olhos de admiração. Ele soubera, a pouco e pouco, convencê-la de que era um homem essencialmente ambicioso, confiado na sua estrela, e seguro dos seus destinos.

Que mais queria a moça?

Ela era efetivamente ambiciosa e sedenta de honras e eminências. Se tivesse nascido nas imediações de um trono, poria esse trono em perigo.

Para que ela amasse alguém, era necessário que esse pudesse competir com ela no gênio, e lhe afiançasse a vinda de glórias futuras. Andrade compreendera isso.

E tão hábil se houve que conseguira fascinar a moça. Hábil, digo eu, e nada mais; porque, se houve jamais criatura desambiciosa neste mundo, espírito mais tímido, gênio menos desejoso de mando e poderio, esse foi sem dúvida o nosso Andrade.

A paz era para ele o ideal. E a ambição não existe sem perpétua guerra. Como conciliar, pois, este gênio natural com as esperanças que inspirara à ambiciosa Sara?

Deixava ao futuro?

Desenganá-la-ia, quando fosse conveniente?

A viagem à Europa foi ainda uma vez adiada, porque Andrade, competentemente autorizado pela moça, pediu-a em casamento ao honrado comerciante James Hope.

— Perco ainda uma vez a minha viagem, disse o velho, mas desta vez por um motivo legítimo e agradável; faço minha filha feliz.

— Parece-lhe que eu... murmurou Andrade.

— Ande lá, disse Hope batendo no ombro do futuro genro; minha filha morre pelo senhor.

O casamento foi celebrado dentro de um mês. Os noivos foram passar a lua-de-mel na Tijuca. Cinco meses depois estavam ambos na cidade, ocupando uma casa poética e romanesca em Andaraí. Até então a vida foi um caminho semeado de flores. Mas o amor não podia tudo numa aliança iniciada pela ambição.

Andrade estava satisfeito e feliz. Simulou enquanto pôde o caráter que não tinha; mas, le naturel chassé, revenait au galop. A pouco e pouco iam manifestando-se as preferências do rapaz por uma vida calma e pacífica, sem ambições, nem ruído.

Sara começou a notar que a política e todas as grandezas do Estado aborreciam sobremaneira o marido. Lia alguns romances, alguns versos, e nada mais, aquele homem que, pouco antes de casar, parecia destinado a mudar a face do globo. Política era para ele sinônimo de dormideira.

Tarde conheceu Sara quanto se havia enganado. Grande foi a sua desilusão. Como ela possuísse realmente uma alma ávida de grandeza e poderio, sentiu amargamente este desengano. Quis disfarçá-lo, mas não pôde.

E um dia disse a Andrade:

— Por que razão a águia perdeu as asas?

— Qual águia? perguntou ele.

Andrade compreendeu a intenção dela.

— A águia era apenas uma pomba, disse ele, passando-lhe o braço à roda da cintura.
Sara recuou e foi encostar-se à janela.

Caía, então, a tarde; e tudo parecia convidar aos devaneios do coração.

— Suspiras? perguntou Andrade.

Não teve resposta.

Houve longo silêncio, interrompido apenas pelo tacão de Andrade que batia compassadamente no chão. Afinal, levantou-se o rapaz.

— Olha, Sara, disse ele, vês este céu dourado e esta natureza tranqüila?

A moça não respondeu.

— Isto é a vida, isto é a verdadeira glória, continuou o marido. Tudo mais é manjar de almas doentias. Gozemos isto, que deste mundo é o melhor.

Deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Sara ficou longo tempo pensativa, à janela; e não sei se a leitora achará ridículo que ela vertesse alguma lágrima. Verteu duas. Uma pelas ambições abatidas e desfeitas. Outra pelo erro em que estivera até então. Porquanto, se o espírito parecia magoado e entorpecido com o desenlace de tantas ilusões, dizia-lhe o coração que a verdadeira felicidade de uma mulher está na paz doméstica.

Que mais lhe direi para completar a narrativa?

Sara disse adeus às ambições dos primeiros anos, e voltou-se toda para outra ordem de desejos. Quis Deus que ela os realizasse. Quando morrer não terá página na história; mas o marido poderá escrever-lhe na sepultura: Foi boa esposa e teve muitos filhos.

Fonte:
Machado de Assis. Histórias Românticas. RJ: Edições W. M. Jackson, 1938.
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, setembro de 1872.

Emilio de Menezes (Poemas Esparsos)


ELA
" Amar, amar, eternamente amar."

É bela e sedutora! Seus olhares
Muito meigos, serenos, — um portento, —
Representam-me fúlgidos altares,
Onde vou suavizar os meus pesares,
Na muda invocação do pensamento...

Seus lábios de carmim, sempre sorrindo,
E dos dentes mostrando a fina alvura,
Exornam mais e mais seu rosto lindo,
Esse rosto sem par, de encanto infindo,

O Sacrário sublime da ternura.
Seu corpo donairoso de princesa,
D'uma graça indizível modelado,

É a imagem perfeita da beleza,
Ante a qual, com respeito e singeleza,
Eu me curvo e confesso apaixonado...

NATAL

Não há talvez no Calendário, um dia
Como este vinte e cinco de Dezembro,
Em que a própria velhice se avigora
Da lembrança à dulcíssima caudal!

Moço, nele, a esperança me fulgia,
Velho, nele, ainda exclamo: bem me lembro!
Sinto que vivo numa eterna aurora
Neste glorioso dia de Natal.

Passam-se as horas todas, dentro, apenas,
De um pequenino e colossal minuto,
De um minuto que encerra, hora por hora,
O Tempo imperecível e imortal.

Nem ouço a voz de minhas próprias penas
Só do supremo Bem os sons escuto!
— Vibra dentro em meu seio a eterna aurora
Na glória deste dia de Natal!

Os séculos são nada, ante este imenso
Porém diminutíssimo segundo,
De que eles brotarão, tempos em fora,
Como as caudais de escasso manancial!

De anelo e gozo, num fervor intenso
Em suavíssima luz meu ser inundo!
Canta dentro de mim da eterna aurora,
A glória imorredoura do Natal.

É que não tem o Calendário, um dia
Como este vinte e cinco de Dezembro
Em que a própria velhice se avigora,
Da saudade à dulcíssima caudal
Velho, nele, inda exclamo: ó se me lembro!

Mas de mim vai fugindo a eterna aurora,
Deste saudoso dia de Natal! ...

AO TIRO RIO BRANCO

"Ide, galharda flor da Paz armada em Guerra!

Ide, gloriosa flor das gloriosas legiões,
Que a mocidade em si, neste momento encerra,
Como encerra o alto céu áureas constelações.
Que desde a orla marinha às quebradas da Serra,
Que dos Campos Gerais às fecundas Missões,
Que onde comece e finde a vossa amada terra,
Vibre o entusiasmo, a encher os vossos corações!
Da mais ampla campina à mais densa floresta,
A natureza ali, toda rebrilhará
Ao fulgor imortal que o vosso brilho empresta.
Ide, que já pressinto, ide que escuto já
O vosso berço entoar, nos mesmos sons de festa,
Num hino a Rio Branco, um hino ao Paraná!"

NO ÁLBUM DE CORDÉLIA MURAT

Aqui não quero ver-te a formosura
Na glória da mulher bela e perfeita.
Ao ler-te o nome, a mim se me afigura
A Cordélia de todos nós eleita.

A Cordélia que a cada travessura,
De menina risonha e satisfeita,
Dava o clarão de um sol a uma alma escura,
Dava a amplidão de um céu a uma alma estreita.

Crescente. És mulher forte e bonita
E o sangue adulto que hoje te avigora,
Mal recorda a Cordélia pequenita.

Eu, porém, só te vejo como outrora.
É que a velhice a recordar me incita:
Sou tarde. És meio-dia. Eu lembro a aurora...

ESPUMAS
(Lendo Amadeu Amaral)

Na aparente quietude ou plácido remanso
E ao suavíssimo olor com que os versos perfumas,
Se lanço alegre o olhar, se úmidos olhos lanço,
Vejo que a luz do sol não n'a encobrem as brumas.

Abaixo, assim, do leve e ondulado balanço
Da superfície espilmea, eu sinto, umas por umas,
As grandes emoções de oceanos sem descanso,
Estudando ocultamente à aluvra das espumas.

Mas nem sempre a avistar tênue espiral de fumo
Se prevê que à floresta, ao requeimar das franças,
Mortos, só restarão os troncos nus a prumo.

Não, que é chama fecunda essa a que te abalanças!
Do que foste, és, serás, o teu livro é o resumo:
Nobres recordações, certezas, esperanças.
===========

"Entretanto, é intuitiva a impropriedade da escolha do uniforme da Cruz Vermelha para
festejos carnavalescos. Esse uniforme foi sempre e é, com especialidade neste momento,
uma cousa sacratíssima. Ele simboliza a abnegação de milhares de senhoras nestes dias
ae amargura".
(Da seção "Salpicos", de Emílio de Menezes, na Gazeta de Notícias)


À excelsa Sra. Gaby Coelho Neto

Senhora! Aos vossos pés aqui se ajoelha
Não do humorismo a brincalhona musa,
Mas uma alma que à vossa alma se cruza
Ante a bondade ideal que em vós se espelha.

A Santa Instituição dai a centelha
Da vossa caridade ampla e profusa.
Não podeis insistir nessa recusa
De dar o vosso esforço à Cruz Vermelha.

As que, ingênuas, profanam em folia
O símbolo sagrado, eu as contemplo,
Como cegos a quem falece um guia.

Vinde senhora a dar o grande exemplo
De vosso amor, blindado de energia;
Vinde e Correi as más irmãs do templo!

Fonte:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes. RJ: Livraria José Olympio, 1980.

Pedro Malasartes (De Como Malasartes Vende o Cadáver da Velha)


Nisto ele soube no caminho que sua mãe tinha morrido, e, como era muito extremoso, foi logo ter em casa. Lá encontrou os irmãos que se fingiam chorosos. Ele também derramou muitas lágrimas e resolveram logo fazer a partilha, pois que cada um' queria cuidar de sua vida.

A herança não era grande, mas sempre havia um sítio, umas colheitas, umas terras e uma casinha...

Os irmãos começaram a escolher o que havia de melhor: Mas Pedro Malasartes disse:

-Lá por isso não seja a dúvida. Eu quero somente três coisas: uma folha da porta da casa o corpo de minha mãe e o cavalo matungo.

Os outros estranharam aquilo, mas, como era fácil de contentar, combinaram na partilha. Pedro amarrou o corpo da velha no selim do matungo, em posição de cavaleiro. E saiu, puxando o cavalo, prometendo voltar depois, em procura da porta.

Foi dar numa fazenda, já tarde da noite, e pediu pousada. A gente da casa já estava acomodada, mas a pessoa que veio abrir consentiu na hospedagem porque Pedro alegou o cansaço da velha, a doença dela, coitadinha!

Mostraram-lhe um quarto na entrada, onde os dois ficaram. A certa hora, Pedro Malasartes pegou no cadáver, enveredou com ele pelo corredor e foi colocá-lo encostado à porta do quarto do dono da casa.

Este quando, pela manhã, abriu a porta, levou um grande susto ao ver que um corpo pesado caiu dentro do quarto. E havia no chão muito sangue pois a cabeça da defunta, quando o corpo caiu se tinha quebrado.

O homem fez um grande alarma, vindo logo Pedro, esfregando os olhos e fingindo ter-se acordado naquele momento.

Ao ver aquele quadro, lançou-se sobre o cadáver da velha e fez um grande choro, acusou o fazendeiro de haver sido o assassino de sua mãe e pediu grossa gratificação, sob pena de ir queixar-se à justiça. O fazendeiro não teve outro remédio senão cair com o cobre e ainda fazer o enterro do corpo.

E Pedro Malasartes voltou para casa em procura da porta tendo ainda no caminho vendido o punga que logo, logo, causado da viagem, arriou na estrada e morreu. Pedro Malasartes, quando chegou com a porta onde ficara o cavalo, viu que sobre este estava um bando de urubus, atirou a porta sobre o bando, apanhou um urubu que ficou com a perna quebrada e seguiu viagem. Esse dito urubu foi o mesmo que ele vendeu por cinco contos. Estão lembrados?

Lendas e Contos Populares do Paraná (Planalto – Santo Inácio – São José dos Pinhais)


PLANALTO
Tiracisma


Tudo começou na década de 1950, onde próximo da ponte do rio Capanema, a cerca de um quilômetro, no município de Planalto, havia uma estrada de chão que dava aceso a todos que vinham de Realeza a Planalto. Estes deveriam passar por um morro, o morro do Tiracisma. A estrada foi aberta por volta do ano de 1955 e o morro foi batizado com esse nome porque tirava a “cisma” de qualquer motorista que se aventurasse a subir em dias de chuva. Qualquer motorista de caminhão que tentasse subir, ali ficava. Os moradores puxavam os caminhões com juntas de bois. A partir dos anos 1970 utilizavam tratores agrícolas até subir o morro, e a partir daí os motoristas podiam seguir as suas viagens.

Em 1965, o GETSOP batizou o riacho que atravessa a estrada no início do morro, com esse nome. Em 1979, a inauguração da estrada asfaltada PR-281 acabou com o drama dos motoristas nos dias de chuva, embora a estrada que corta o morro no seu lado oposto continue com forte declive.

Contam os populares que no morro houve um desastre. Um lenhador que por ali passava, com uma carga de madeira em seu carro de boi, ao descer o morro teve o azar de seu carro tombar, matando-o. Até hoje, as pessoas que passam pelo morro do Tiracisma dizem ouvir as madeiras rolando e fortes ruídos na mata que o circunda.

Rio Siemens e suas lendas

Por volta do ano de 1974 na localidade de Santa Cecília pesquisadores encontraram ouro em moedas na margem do rio Siemens. Essas pessoas não eram da região e nunca mais se ouviu falar delas. À altura do morro, perto do suposto pé de cactos onde foi tirado o ouro, existe uma grande área de flores de diversas cores, batizada na época pelos alemães de Palzamina. O curioso sobre as flores é que se uma pessoa colhe muda das flores, algo de diferente passa a acontecer na família, como a queima de uma casa, acidentes, assassinatos, separações. O local possui várias nascentes. Inclusive, foram feitos exames da água pela Paranapanema, empresa que asfaltou o trecho até Planalto. O laudo atestou que a água é de excelente qualidade. Existem inúmeras outras lendas associadas ao rio Siemens. Contam que uma mulher de branco aparecia para os rapazes nas noites de sexta-feira, numa estrada próxima ao rio Siemens, aparecia e sumia repentinamente.

Conta-se que, certa vez, dois amigos estavam pescando à noite e foram surpreendidos por uma forte tormenta. O vento balançava fortemente a mata ao lado do rio. Os dois homens saíram correndo, com a finalidade de retornar para casa, quando chegaram próximo à pedreira perceberam que não havia vento algum, o céu estava estrelado, sem indício qualquer de tormenta.

Alguns dias depois, um caçador de pombas encontrava-se no mesmo local e, sem explicação alguma, os dois canos de sua espingarda dispararam, levando-os a cair dentro do rio. Uma outra noite, na mesma localização, um morador local estava pescando e avistou um animal estranho, que lhe pregou um grande susto. Ele estava um pouco distante, porém resolveu atirar no animal. Quando disparou na direção deste, ele duplicou de tamanho e correu em direção ao homem. No ataque, o homem perdeu anzóis e espingarda, sem contar seus apetrechos de pescaria.

Por volta do ano de 1980, na residência de Silvino Kipper, em Santa Cecília, moravam Silvino e esposa, a filha mais nova com seu esposo e seu primeiro filho. Ao jogar comida para os cães, dona Idalina Maria Kipper chamou o genro para ver o bonito cachorro branco, que estava em meio aos cães policiais. Era um lindo cachorrinho peludo branco luzente.

Sugeriram pegá-lo para que ficasse morando com eles. Porém, toda vez que tentavam pegar o cão ele sumia e aparecia alguns metros à frente. Alguém atiçou os cães, que eram ensinados, para que esses o pegassem, mas os cães não conseguiam, nem sequer pareciam ver o cachorrinho. A perseguição continuou até 800 metros do rio Siemens. Quando estava perto do rio o cão branco pulou na água e sumiu. Era uma noite de lua cheia. E o senhor Irineu se deu conta de que estava no meio do mato, perto do rio; o medo foi seu companheiro até chegar em casa, ofegante pelo susto. O pequeno cão peludo e luzente está presente na memória dele até hoje. Jamais encontrou alguma explicação pelo fato vivido.

SANTO INÁCIO
O barulho das correntes


O município de Santo Inácio fica no noroeste do Estado do Paraná. A região na margem esquerda do rio Paranapanema foi ocupada por diferentes sociedades. No século XVII, jesuítas espanhóis fundaram a Redução de Santo Inácio Mini, destruída por bandeirantes em 1628/29. No século XIX, padres capuchinhos criaram aldeamentos indígenas, que sobreviveram por alguns anos. A partir de 1924, ela foi colonizada por agricultores no bojo da frente pioneira do norte do Paraná. Essas várias ocupações legaram diferentes histórias na memória coletiva dos moradores.

Daí surgiu a lenda das correntes. Contam os mais antigos e, principalmente, os que moram perto das ruínas, que na época da redução um navio espanhol atracava e era amarrado por correntes, numa figueira que existe até hoje no local. Dizem que esse navio afundou, devido ao massacre e destruição por parte dos bandeirantes, e que, às vezes, se ouve barulho de correntes batendo à beira do barranco e gritos agonizantes das pessoas que tiveram suas vidas ceifadas pela ganância dos bandeirantes.

SÃO JOSÉ DOS PINHAIS
As cruzes da ponte velha


Em 1930, na antiga estrada que ligava nossa cidade a Curitiba, uma mãe e sua filha, uma criança de cerca de um ano de idade, retornavam da capital quando logo após a ponte do rio Iguaçu, o cavalo, possivelmente assustado por uma cobra, disparou, causando acidente no qual morreram as duas ocupantes da charrete.

Pessoas bastante conhecidas na pequena comunidade de São José, as finadas receberam o pranto da cidade e a homenagem do marido e pai, que para assinalar o local da tragédia mandou ali erigir cruzes, como ainda hoje é costume. Entretanto, como forma de evidenciar a amplitude do desastre, do braço direito da cruz maior edificou-se uma menor, simbolizando portanto a mãe com a filha ao colo. A partir daí, o local tornou-se estéril ao ponto de não se ouvir sequer um passarinho, embora esses cantassem a poucos metros além. As árvores tornaram-se ressequidas e o lugar revestiu-se de um clima lúgubre, invocando luto e dor.

Não se sabe quem foi o passante que ouviu, primeiramente, os lamentos das mortas, mas a expressão de pavor com que chegou à cidade demonstrou desde logo que não se tratava de pilhéria. O lugar, triste durante o dia, tornava-se horripilante à noite, pois os cavalos assustavam-se e seus condutores ouviam nitidamente o choro da mulher e da criança, seus gemidos de dor e a angústia que suplantava a morte.

Os sãojoseenses passaram a evitar a estrada à noite, os menos corajosos utilizavam um contorno de muitas horas pela estrada da Cachoeira, quando não conseguiam retornar à luz do dia; mesmo os mais bravos passavam com os cavalos à toda brida, não obstante o risco de acidentes. Conta-se que até os raros automóveis existentes na época apresentavam problemas ao passar por ali. Muitas foram as pessoas, todas de integral credibilidade, que chegaram a ver a mulher com a filha nos braços, envoltas, ambas, em fantasmagóricas brumas e chorando copiosamente.

A cidade, já naturalmente pequena, fechou-se por completo. Quando, após o cair da noite ouvia-se o tropel de cavalos vindos de Curitiba, automaticamente concluía tratar-se de forasteiros, que, desconhecendo o fato, chegavam esbaforidos e apavorados. Vários meses passaram em tal situação, até que um sãojoseense, ausente da região há muito tempo e portanto desconhecedor da crise, passou pelo local. Apenas havia cruzado a ponte, sentiu o cavalo tornar-se amedrontado e indócil, como que querendo retroceder; habituado ao animal, não compreendeu a atitude, até que viu, à esquerda da estrada e poucos metros à frente, o vulto fantasmagórico, que com a criança no colo vinha em sua direção. Certamente, foi o susto que o fez distrair-se da montaria, que num salto súbito jogou ao chão o cavaleiro e fugiu, a todo galope na direção de São José.

Ninguém soube ao certo, se foi por coragem que o homem dialogou com a morta, ou se foi o medo que, paralisando-lhe as pernas, impediu sua fuga. Mas o fato é que depois de meses de terror finalmente alguém aproximou-se dos fantasmas e indagou o motivo de suas penas, a razão de não se encontrarem no repouso eterno.

“Tirem a criança de meu braço, ela é muito pesada, já não suporto mais”. Foi a resposta do espírito. Nada mais disse, apenas continuou chorando e segurando a criança, que também chorava.

Dizem que aquela noite ninguém dormiu em São José dos Pinhais, a notícia trazida pelo passante espalhou-se como fogo na pólvora e os notáveis do lugar viram o dia amanhecer na casa do viúvo, onde haviam ocorrido para a busca da realização do desejo da morta, cuja solução libertaria não somente os espíritos, mas também a cidade de sua sina.

O preguiçoso nevoeiro de inverno ainda não começava a levantar quando, trêmulos pela falta de sono, ou pelo justo receio, mais de vinte sãojoseenses, acompanhando o viúvo desceram da cidadezinha em direção ao Iguaçu. As mulheres rezavam o terço liberadas pelo vigário, os homens iam silenciosos, talvez pensando se lhes valeriam de alguma coisa as pistolas ocultas sob os paletós. A pequena multidão, rezando, postou-se em frente às cruzes, até que alguém, olhando-as, lembrou-se das palavras da finada e sugeriu que fossem desmanchadas, já que efetivamente eram a mãe com a criança ao colo e talvez essa fosse a causa do sofrimento. Após alguma discussão, finalmente resolveu-se pela retirada das cruzes, já que nada custava tentar.

Foi a solução. Segundo as testemunhas, um momento após o desmanche das cruzes, o lugar pareceu ganhar vida, todos sentiram uma leve brisa e os passarinhos, até então ausentes, encheram de sons o anteriormente lúgubre local. As cruzes foram posteriormente substituídas por uma minúscula capela e as madeiras que as confeccionaram atiradas ao rio. Após algumas semanas de desconfiança, finalmente concluíram os habitantes que a assombração havia desaparecido e a cidade voltou ao normal, embora todos apressassem o passo quando transitavam pelo local.

Algumas décadas mais tarde, com a construção da avenida Marechal Floriano, o local passou a chamar-se Ponte Velha e foi caindo em desuso, até que a própria ponte ruiu. Reparada anos depois, tornou a envelhecer e desapareceu. Hoje, não existe mais a estrada e o mato tomou conta de tudo, da ponte velha restaram apenas alguns vestígios de estacas cravadas no Iguaçu. Do episódio pouca gente se lembra, embora ninguém entenda porque aquela região tão antiga nunca foi convenientemente povoada.

Há, atualmente, pouquíssimas testemunhas da crise, além do velho rio e algumas das árvores antigas. Contudo, mesmo sem conhecer a história, há quem jure que em certas noites de lua pode-se ouvir por ali o riso inocente e alegre de uma criança, mas isso não sabemos se é verdade.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr. (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 21. ed. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005. (Cadernos Paraná da Gente 3).

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 464)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

A fraqueza é um artifício
que leva alguém, sem escalas,
a abrir as portas do vício
e não saber mais fechá-las!...
–HERMOCLYDES S. FRANCO/RJ–

Uma Trova Potiguar


A palavra mais bonita
que busquei com tanto ardor,
em meu peito estava escrita:
era simplesmente amor!
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Mais do que a cobra, a meu ver,
você pode envenenar:
- a cobra tem que morder,
mas você só basta olhar!
–ANTONIO ROBERTO/RJ–

Uma Trova Premiada


2006 - Fortaleza/CE
Tema: ESQUINA - 1º Lugar


A velha esquina esquecida,
toda enfeitada de flor,
sem querer, fez-se guarida
de nossa história de amor.
–MARA MELINNI GARCIA/RN–

Simplesmente Poesia

“Trovas que Sonhei Cantar!”
“Livro de Trovas do Prof. Garcia”
–ADEMAR MACEDO/RN–


Trovador e menestrel,
Garcia escreve ao luar
e transpõe para o papel
“Trovas que sonhei cantar!”

Sua inspiração não finda
e, Garcia, ao se inspirar,
escreveu de forma linda
“Trovas que sonhei cantar!”

Com seus dons inspiradores
este trovador sem par,
mandou pra nós, trovadores
“Trovas que sonhei cantar!”

Um sonho que eu vislumbrei
não pude realizar,
até hoje não cantei...
“Trovas que sonhei cantar!”

Disse Garcia ao seu ego:
neste livro eu vou guardar
mágoas que já não carrego...
“Trovas que sonhei cantar!”

“Trovas que sonhei cantar!”
nos dar verdadeiras provas,
como se deve editar
um best-seller de Trovas.

Estrofe do Dia

Por exemplo, cantando eu nada sinto
sobre a história de Roma, Grécia e Creta,
mas na hora que escuto um bom poeta
um repente me surge com instinto,
me inspiro vendo um boi correr faminto
a procura de um saco de ração,
uma porca sumir sem ter razão
e esconder por um tempo a sua cria;
eu só sinto o sabor da poesia
quando eu canto essas coisas do sertão.
–JÚNIOR ADELINO/PB–

Soneto do Dia

Ninho Roubado.
–CANCÃO/PE–


Aquela rolinha do meu sombrião
sem o seu ninho, seu primeiro leito
já cantou tanto que feriu o peito
sem saber dos filhos, o lugar que estão.

Percorre, às vezes toda vastidão
volta de novo a reparar direito
de galho em galho, a espreitar com jeito
procura ainda, mas procura em vão.

Assim a pobre e infeliz rolinha
levando as horas a gemer sozinha
eriça as penas, depois as sacode.

Ela não chora porque não tem pranto
se ela tivesse choraria tanto...
mas sem ter pranto quer chorar não pode.
--
Fonte:
Textos enviados pelo Autor
Montagem da trova do Ademar por José Feldman com imagem enviada pelo autor

O Índio na Literatura Brasileira (Estante de Livros) 7


ROCHA, Antonio. Fura-nuvens na Amazônia.

Narra a aventura de Luizinho, Loca e Tramela, numa grande viagem pelo Brasil, visitando vários estados, até chegarem à Amazônia, onde convivem com os índios Munduruku, seguindo viagem até se embrenharem pela ilha de Marajó, onde vivem a mais extraordinária das aventuras. Quem foi capaz de construir um avião de caixote, vassoura e escada coberta por pedaços de pano – um avião que voa de verdade, com seu motor-segredo – também é capaz de enfrentar os mistérios de um disco-voador e da grande cobra de boiúna, devoradora de gente. São terríveis mistérios que Luisinho, Loca e Tramela irão enfrentar e decifrar.

ROSA NETO, Ernesto. Geometria na Amazônia.

Trata da aplicação prática dos conceitos de geometria, por meio de construções geométricas. Tudo começa quando André, sua irmã, Isabela, e o comandante Wander são envolvidos numa aventura na Amazônia, após a queda do monomotor em que viajam. Perdidos na floresta, são capturados por estranhos índios e levados como escravos para as
minas, onde índios de diversas etnias estão submetidos à escravidão. Isabela é levada separadamente do irmão, sem que este saiba de seu paradeiro. Aliados aos outros escravos, André e Wander fogem para a aldeia dos Iaumuara. A convivência com este povo acaba por ser um grande aprendizado a respeito de geometria, aplicada à sobrevivência na selva e à construção de um balão, que os levará de volta para casa, após o reencontro com Isabela, resgatada dos Astepec por Aukê, chefe Iaumuara.

SALDANHA, Paula. Um sonho na Amazônia.

Relata a experiência de migrantes vindos do Sul do país para a Amazônia, na pontinha de Rondônia, quase no limite com o Acre. No início, tudo se passa como num sonho. Depois vêm as dificuldades, a falta de dinheiro, de comida e de saúde. A experiência de colonos no Sul não se aplica às terras fracas, protegidas pela floresta tropical densa. As lavouras fracassam. Mas a luta por um ideal acaba se transformando num lindo projeto agrícola, o Projeto Reca.

SALES, Herberto. O mistério das sete estrelas.

Conta a história de sete indiazinhas Makuxi que estão sendo preparadas para as suas funções de mulheres adultas. A vida na mata e seus aprendizados transcorrem normalmente, até que, um dia, tem início uma grande seca. O rio seca e a comida começa a acabar na roça e na mata. Mas, numa certa noite, as sete indiazinhas, de mãos dadas, começam a cantar e dançar, para agradar Ueré, a estrela, pedindo que esta as auxilie. Assim, as sete de mãozinhas dadas vão subindo para o céu, ficando perto de Ueré. Recebem, dos Makuxi, o nome Tamecã, e de “outras gentes”, Sete-Estrelo.

SALOMÉ, Vovó. Rói-Rói,o último índio Pé Verde.

Aborda a questão da preservação da natureza, por meio da história de Rói-Rói, o último índio Pé-Verde, vítima da ambição dos homens brancos, que dizimam seu povo em busca de pedras verdes. Rói-Rói fica só, vagando pela floresta sem sua gente, até que encontra uma família das terras secas que o acolhe. Para ajudar sua nova família, Rói-Rói põe em risco o segredo dos Pé-Verde, mas não o revela nem quando os homens brancos o prendem. Quando recupera a liberdade, Rói-Rói, por meio de um sonho com seus antepassados, descobre que sua missão é replantar o mundo outra vez.

SANTOS, Durvalina. Como apareceu a noite.

Mostra como os índios, em sua cultura, explicam o aparecimento da noite, quando rios cantam, pássaros piam, bichos berram, insetos zumbem, criando um ambiente cheio de mistério e magia, complementado pela lua e pelas estrelas, a dançar sua eterna trajetória no céu.

SANTOS, Joel Rufino dos. O curumim que virou gigante.

Conta a história de um menino indígena, chamado Tarumã, que sonha em ter uma irmã. Ele fica imaginando como ela poderia ser, e começa a agir como se ela existisse. A meninada acredita nele e escolhe presentes para ela. Porém, quando os meninos chegam em sua casa, Tarumã avisa que vai chamá-la e não volta mais. No próximo dia, ele diz que sua irmã foi carregada por um monte de formigas. Mas ninguém acredita. Envergonhado, sai pelo mundo e deita-se na beira do mar. Vira um gigante – seus pés são o Corcovado, seu corpo as montanhas e, em seu rosto, uma estrela, que é a sua irmã.

SANTOS, Joel Rufino dos. Cururu virou pajé.

Narra a história de Baíra, um corajoso índio Kaiowá, que está disposto a roubar o fogo, o qual é guardado pelo urubu-rei, para que seu povo cozinhe os alimentos.

SANTOS, Joel Rufino dos. O Saci e o Curupira.

Narra a divertida história de um casal que faz acordo com o Saci e o Curupira para conseguir alimento.

SCLIAR, Moacyr. Câmera na mão, o Guarani no coração.

Relata aventura de um grupo de adolescentes que participa de um concurso de vídeo, filmando O Guarani, de José de Alencar. Para isso, estudam a obra e a comparam com nossa atualidade.

SIERRA, Ione Maria Artigas de. (Coord.). Contos,mitos e lendas para crianças da América Latina.

Apresenta mitos, lendas e contos populares característicos dos países latino-americanos, para crianças. Cada história contém um pequeno glossário de palavras não conhecidas apresentadas no texto.

SILVA, Aracy Lopes da; RODRIGUES, Maria Carolina Young. Histórias de verdade.

Narra a experiência de Pedro e sua mãe, que vão viver entre os índios, com o objetivo de ensiná-los a cantar, a escrever, a ler, e, em troca, querem aprender com eles sobre sua cultura e o seu jeito de viver.

SILVEIRA, Marcelo Renato da. Taigoara, quer dizer: árvore que floresce.

Mostra as conseqüências devastadoras dos primeiros contatos de índios com não-índios. Taigoara é o principal personagem desta narrativa, um menino indígena que vive feliz e livre em sua aldeia, até o dia em que chegam “os esquisitos homens brancos”, violentando e destruindo a vida de Taigoara e de seu povo.

SOUSA, Maurício de. Manual do índio Papa-Capim.

Conta um pouco da história dos povos indígenas e sua maneira de viver. Fala sobre os índios do Brasil e de povos indígenas de outros lugares, como os Navajos, da América do Norte, os Esquimós do Ártico, entre outros. Também ensina brincadeiras e jogos muito divertidos.

SOUZA, Iza Ramos de Azevedo. Pequenos contos para gente pequena.

Apresenta contos da tradição popular, incluindo alguns de origem indígena, como: Cantor das matas, Lenda do fogo, Lenda do guaraná, Árvore curupira, entre outros.

TAPAJÓS, Paulinho. Amor de índio.

Narra a lenda de Jaci, a lua. No tempo em que a noite era escuridão, sem lua nem estrela, havia uma indiazinha que, à noite, ia banhar-se nas águas calmas de um certo lago das almas. Por lá também vivia Guaraci, um indiozinho que também gostava do lago. Certa noite, encontram-se e se apaixonam. Mas não podem se ver direito e Guaraci, como forma de descobrir quem é sua amada, pinta-lhe o rosto com tinta bem forte, para de manhã reconhecê-la. Quando a encontra, descobre que está prometida, sendo seu amor impossível. Então, Guaraci, com suas flechas, forma uma escada até o céu, por onde Jaci sobe. Hoje, toda vez que anoitece, lá no céu a tal menina ilumina a noite e do seu pranto se formam as estrelas.

Fonte:
Moreira, Cleide de Albuquerque; Fajardo, Hilda Carla Barbosa. O índio na literatura infanto-juvenil no Brasil. - Brasília: FUNAI/DEDOC, 2003.

Guerra Junqueiro (Os Animais Agradecidos)


Um rei, que viajava nos seus estados, encontrou um homem a quem perguntou como se chamava, donde era, e que ofício tinha. Este respondeu:

– Senhor: eu sou um desgraçado, um miserável; nasci no vosso reino e chamo-me Ingratidão.

– Se pudesse contar com a tua fidelidade, disse o rei, tomava-te ao meu serviço.

O nosso homem prometeu ser fiel, e o rei ordenou-lhe que o acompanhasse. Desde que chegaram ao palácio, deu tais provas de habilidade, mostrou-se tão esperto e tão solícito que o rei afeiçoou-se a ponto de o nomear seu intendente, confiando-lhe a administração da sua casa. Deslumbrado por uma fortuna tão rápida, o seu orgulho desde então não conheceu limites; maltratava os inferiores, e não tinha compaixão dos desventurados.

Ora, na vizinhança do palácio, havia uma floresta cheia de animais selvagens e perigosíssimos. O intendente mandou aí fazer por toda a parte covas profundas, cobertas com folhas, de modo que as feras, caindo dentro, pudessem ser agarradas. Um dia que o intendente atravessava a floresta, ia tão absorvido pelos seus pensamentos orgulhosos, que se precipitou ele mesmo dentro de uma das covas.

Passado um instante, caiu um leão dentro do mesmo poço; caiu depois um lobo e em seguida uma enorme serpente, de aspecto pavoroso. O governador, ao ver-se em tão extraordinária companhia, ficou tão horrorizado, que lhe embranqueceram os cabelos; e toda a esperança de salvação lhe parecia perdida, que por mais que gritasse ninguém o vinha socorrer.

Esqueceu-nos dizer que havia na cidade um homem extremamente pobre, chamado António, que todos os dias ia rachar lenha à floresta, para ganhar o pão necessário à mulher e aos filhos. O António também lá foi nesse dia, corno de costume, e pôs-se a trabalhar não longe da cova em que caíra o intendente, cujos gritos de aflição não tardou a ouvir. O pobre rachador aproximou-se, e perguntou quem era que estava ali.
– Sou o governador do palácio do rei, e se me tirares daqui, prometo encher-te de riquezas; estou em companhia de um leão, de um lobo e de uma enorme serpente.

– Eu, respondeu o lenhador, sou um miserável jornaleiro, que não tenho para sustentar a minha família, mais que o produto do meu trabalho; bastava um dia perdido para me causar um grande desarranjo; vê lá, pois, se cumpres a tua promessa!

O intendente continuou:

– Pela fé que devo a Deus e a el-rei nosso senhor, juro-te que cumprirei a minha palavra.

Confiado nisto o rachador de lenha foi à cidade, e voltou com uma corda muito comprida, que deixou correr dentro do abismo. O leão atirou-se a ela, e suspendeu-se com uma tal energia que o lenheiro julgava que era o intendente.

Quando chegou acima, o leão agradeceu ao seu salvador com a maior amabilidade, e foi-se embora à procura de jantar, porque tinha fome.

António deitou outra vez a corda ao fundo do poço, e, julgando tirar o governador, enganou-se, porque era o lobo; à terceira vez subiu a serpente; e foi necessário fazer uma quarta tentativa para sair o governador. Este não perdeu tempo em agradecimentos, e partiu a correr para o palácio. O jornaleiro voltou para casa, e contou à mulher tudo o que se tinha passado, não lhe esquecendo, é claro, as brilhantes promessas do intendente. No dia seguinte, logo pela manhã, foi o pobre homem bater à porta do palácio. O porteiro perguntou-lhe o que queria.

– Faça-me o favor, respondeu o rachador, de dizer a S. Exª o intendente, que o homem com quem ele esteve ontem na floresta, lhe deseja falar.

O porteiro foi levar o recado, mas o intendente zangou-se e exclamou:

– Vai dizer a esse homem que eu não vi ninguém na floresta; que se ponha a andar, porque o não conheço.

O porteiro voltou, e repetiu o que o governador lhe tinha dito.

O pobre homem tornou para casa muito descoroçoado, e contou à mulher a odiosa perfídia de que fora vítima.

A mulher disse-lhe:

– Tem paciência, o senhor intendente estava hoje certamente muito ocupado, e foi talvez por esse motivo que te não pôde receber.

Estas palavras sossegaram o rachador que outra vez nutriu esperanças.

Na manhã seguinte, ainda muito cedo, bateu de novo à porta do palácio. Mas o intendente mandou-lhe dizer em termos ásperos, que não tornasse ali a aparecer, quando não, ver-se-ia obrigado a empregar meios violentos. A mulher ainda desta vez procurou consolá-lo:

– Experimenta terceira e última vez, disse-lhe ela. Talvez Deus o inspire melhor. E se assim não for, ainda que te custe, não penses mais nisso.

No dia seguinte o bom do homem voltou à carga; e tendo o porteiro consentido à força de súplicas em anunciá-lo ainda ao governador, este, encolerizado, atirou-se praguejando fora do quarto, e crivou o pobre homem de uma tal chuva de bengaladas, que o deixou quase morto no meio do chão. A mulher dele, sabendo disto, correu imediatamente com um burro, pôs-lhe em cima o marido, e levou-o para casa. As feridas levaram-lhe seis meses a curar, estando sempre de cama, e vendo-se obrigado a contrair dívidas para pagar ao médico. Quando finalmente tinha recobrado algumas forças, voltou ao bosque segundo o costume para fazer alguma lenha. Apenas lá chegou, apareceu-lhe o leão, que ele tinha ajudado a sair do poço.

O leão conduzia um burro diante de si, e este burro estava carregado de sacos cheios de preciosidades. O leão, vendo o António, parou e inclinou-se diante dele com um ar de respeitoso agradecimento. Depois disto continuou o seu caminho, fazendo-lhe sinal de que ficasse com o jumento. António, doido de alegria, levou o animal para casa, abriu os sacos, e viu que estava rico.

No dia seguinte, voltando de novo à floresta, apareceu-lhe o lobo, que o ajudou no seu trabalho, querendo provar-lhe desta maneira o quanto lhe era agradecido. Quando a tarefa estava concluída, e tinha carregado o burro com a lenha, viu vir ao seu encontro a serpente, que ele tinha tirado do fojo, e que trazia na ponta da língua uma pedra preciosa, em que brilhavam três cores – o branco, o preto e o vermelho. Quando a serpente chegou ao pé do rachador de lenha, deixou cair a pedra junto dele, e depois, dando um salto, desapareceu no matagal. António levantou a pedra, examinou-a por todos os lados, para ver que propriedade ou virtude ela teria. Para isto foi ter com um velho, afamado pela sua habilidade em decifrar o que diziam os astros. Este, assim que viu a pedra, ofereceu-lhe por ela uma grande quantia. António respondeu-lhe que não queria vender, mas simplesmente saber se seria boa.

O velho respondeu:

– São três as virtudes desta pedra: abundância contínua, alegria imperturbável, e luz sem trevas. Se alguém ta comprar por menos dinheiro que vale, tornará imediatamente para a tua mão.

António ficou muito contente com esta resposta, agradeceu ao velho da ciência maravilhosa, e correu a contar à mulher a sua felicidade. Como se imagina, graças à virtude da famosa pedra, não lhe faltaram daí em diante, nem honras, nem riquezas.

Tendo chegado aos ouvidos do rei a notícia destas prosperidades, mandou chamar o António, e mostrou-lhe desejos de adquirir o precioso talismã.

O António, vendo que semelhante desejo era uma ordem, respondeu:

– Devo prevenir a Vossa Majestade, de que se esta pedra me não for paga pelo que vale, tornará ela mesma para o meu poder.

– Descansa, hei-de pagar-ta bem, disse o rei.

E mandou-lhe dar trinta mil libras de ouro. No dia seguinte de manhã, o António achou outra vez a pedra em cima da mesa; e a mulher sabendo isto, disse-lhe:

– Torna a levá-la ao rei imediatamente; não vá ele persuadir-se de que lha furtaste.

O nosso homem seguiu este conselho, e, quando chegou à presença de sua majestade, pediu-lhe que lhe dissesse onde tinha guardado a pedra preciosa.

– Mandei-a meter com todo o cuidado dentro de um cofre de ferro, fechado com sete chaves, disse o rei.

O António mostrou-lhe então a jóia preciosa, e o rei ficou extraordinariamente espantado, e quis saber como ele tinha adquirido semelhante tesouro.

António contou-lhe tudo o que tinha havido, a ingratidão do governador e o reconhecimento dos animais ferozes. O rei indignado, mandou chamar o seu intendente, e disse-lhe:

– Homem perverso, com justo motivo te puseram o nome de Ingratidão, porque és falso e mais pérfido que os animais ferozes, e pagaste com o mal o bem que te fizeram. Mas justiça será feita. Dou ao António as tuas honras e os teus bens, e a ti hoje mesmo o castigo de seres enforcado.

Admiraram todos a sentença do rei, e o António desempenhou as suas altas funções com tanta sabedoria e bondade, que depois da morte do rei foi escolhido para o substituir, e reinou pacificamente durante longos anos gloriosos.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Pena de Papagaio - VI - A formiga coroca


A cigarra estava cantando num galho seco, perto dum formigueiro. Ao aproximar-se da árvore o senhor de La Fontaine parou.

— Gosto do canto das cigarras — disse ele. — Dá-me idéia de bom tempo, sol quente, verão. Este inseto é um pouco boêmio como em geral todos os cantores.

— Há muitas cigarras e enormes no sítio de vovó – disse Pedrinho. — Às vezes cantam até rebentar.

— Morrem cantando, como os cisnes — confirmou o sábio. – Já escrevi uma fábula sobre a cigarra e a formiga, que é outro inseto muito curioso, símbolo do trabalho incessante. Aqui temos um formigueiro onde vocês podem observá-las.

Todos se abaixaram em redor do formigueiro.

— Não param nunca, sempre ocupadas nos trabalhos caseiros — prosseguiu. — Cortam folhas, picam-nas em pedacinhos e guardam nas em perfeitos celeiros para que fermentem. Nessas folhas um cogumelozinho se desenvolve, com o qual se alimentam. São insetos de alta inteligência. A muitos respeitos a formiga está mais adiantada que nós, homens. Há mais ordem e governo na sociedade delas. São mais felizes.

— Felizes? — exclamou Emília com carinha incrédula. — Bem se vê que o senhor nunca sentiu o horrível cheiro de bebida que dona Benta costuma dar a elas lá no sítio, um tal formicida...

O fabulista riu-se com vontade e, voltando-se para Narizinho, disse que a boneca tinha uma “estranha e viva personalidade”. A menina não entendeu muito bem, mas começou dali por diante a olhar para Emília com mais respeito. Se a boneca tinha uma “estranha personalidade”, então tinha alguma coisa, não sendo simplesmente a boba, como lhe costumava chamar.

Nisto a fábula da cigarra e da formiga principiou de novo.

— Psiu. — fez o fabulista. — Silêncio, agora. Vamos ver se é mesmo como eu escrevi.

Todos se calaram, imóveis em roda do formigueiro. A célebre cigarra tuberculosa, que tossia, tossia, tossia, vinha chegando, embrulhada no seu xalinho esfarrapado. Vinha de rastos, como quem está nas últimas, a morrer de fome e frio. Parando à porta do formigueiro, bateu toc, toc, toc.

— Como ela bate direitinho! — murmurou Emília. — Bate tal qual uma gente.

A cigarra bateu e ficou esperando, toda encolhida. Instantes depois apareceu uma formiga coroca, sem dentes, com ares de ter mais de mil anos. Era a porteira da casa e rabugenta como ela só.

Abriu a porta e disse, na sua voz rouca dos séculos:

— Que é que a senhora deseja?

Vendo tanta cara feia, a pobre cigarra quase desmaiou de medo, e foi tomada de outro acesso de tosse. Nem podia falar. Em vez de sentir piedade, a formiga fechou ainda mais a carranca e disse:

— Errou de porta, minha cara. Isto aqui não é asilo de inválidos. Se está doente, vá para a casa do seu sogro.

— Perdão — disse a triste mendiga. — É que não tenho casa, nem sogro, e estou morrendo de fome e frio. Se a senhora não me dá uma folhinha para comer e um cantinho para me abrigar, certo que morrerei à míngua.

— É o melhor que tem a fazer — respondeu a formiga. — Que fazia no bom tempo?

— Eu? Eu cantava, senhora formiga. Sou cantadeira de nascença.

— Hum, já sei! Era a senhora quem cantava em cima dessa árvore o dia inteiro. Bem me lembro disso.

A cigarra sorriu, certa de que a lembrança das suas passadas cantorias tinha amolecido o coração da formiga. Ah, ela não imaginava o que era o coração duma formiga coroca de mais de mil anos!

— Bem me lembro — continuou a formiga. — Cantava de nos pôr doidas aqui dentro. Muita dor de cabeça tive por causa da sua cantoria, sabe? Agora está tísica e não canta mais, não é isso? Pois dance! Cantou enquanto era moça e sadia? Pois dance agora que está velha e doente, sua vagabunda!

E — plaf! deu-lhe com a porta no nariz. A triste cigarra, com o nariz esborrachado, ia pendendo para trás para morrer, quando Emília a susteve.

— Não morra, boba! Não dê esse gosto para aquela malvada. Está com fome? Vou já trazer um montinho de folhas. Está com frio? Vou já acender uma fogueirinha. Em vez de morrer, feito uma idiota, ajude-me a preparar uma boa forra contra a formiga.

A cigarra comeu as folhinhas que a boneca lhe trouxe, aqueceu o corpo na fogueirinha que a boneca lhe acendeu. Sarou da tísica imediatamente e quis começar a cantar.

— Não ainda — disse Emília. — Primeiro temos de ajustar contas com a formiga. Depois você canta até rebentar.

O senhor de La Fontaine, curioso de ver qual seria a vingança da boneca, pôs-se de lado, a observar disfarçadamente. Vendo isso, Narizinho não teve coragem de ralhar com Emília e deixou-a em paz. Emília mandou que a cigarra batesse na porta outra vez. A cigarra obedeceu, batendo três toc-tocs.

Veio a formiga espiar quem era. Dando com a mesma cigarra, disse-lhe um grande desaforo e já lhe ia batendo com a porta no nariz outra vez, quando Emília a agarrou pela perna seca e a puxou para fora.

— Chegou tua vez, malvada! Há mil anos que a senhora me anda a dar com essa porcaria de porta no focinho das cigarras, mas chegou o dia da vingança. Quem vai levar porta no nariz és tu, sua cara de coruja seca!

E, voltando-se para a cigarra:

— Amor com amor se paga. Eu seguro a bruxa e você malha com a porta no nariz dela. Vamos!

A cigarra cumpriu a ordem, e tantas portadas arrumou no nariz da formiga, que a pobre acabou pedindo socorro ao senhor de La Fontaine, seu conhecido de longo tempo.

O fabulista interveio.

— Basta, bonequinha! — disse ele. — A formiga já sofreu a sova merecida. Pare, se não ela morre e estraga-me a fábula.

Emília soltou a formiga surrada, que lá se foi para o fundo do formigueiro com o nariz deste tamanho e mais tonta do que se tivesse bebido um cálice de formicida.
––––––––––––––
Continua… Pena de Papagaio – VII - Esopo

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa