quarta-feira, 25 de abril de 2012

Esopo (Fábula 3: O Lobo e o Cordeiro)


Estava um lobo a beber água num rio, quando avistou um cordeiro que também bebia da mesma água, um pouco mais abaixo. Mal viu o cordeiro, o lobo foi ter com ele.

"Que vem a ser isto, seu malandro ?", disse o lobo. "Que pretendes, turvando a água para que eu não possa bebê-la ?"

"Desculpa", replicou o cordeiro, "mas, como eu estava a beber mais abaixo, não pensei sujar a água onde tu estavas."

O lobo estava resolvido a brigar com o cordeiro.

"Pode ser", disse ele "mas há uns meses disseste mal de mim nas minhas costas, seu malvado."

"Não pode ser", disse o cordeiro."Há seis meses eu ainda nem sequer tinha nascido!"

"O quê?", disse o lobo. "Não tens vergonha? Toda a tua família sempre odiou a minha. Se não foste tu que disseste mal de mim, foi o teu pai!"

E, dizendo isto, o lobo saltou para cima do pobre cordeiro, despedaçou-o e comeu-o.

Moral da história

Os que são desprovidos de sentimentos humanos raramente darão ouvidos à voz da razão.
Quando o poder é dado à crueldade e à injustiça, é inútil argumentar contra eles, porque o
opressor achará sempre maneira de culpar a sua confiada vítima.


Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

Fernando Paganatto (Livro de Sonetos)

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SÃO AMORES?

São amores estas ondas que trazes
Vindas de continentes tão distantes,
Que descrevo, agora, em versos e frases,
Em eternos e pequenos instantes?

São? Ora, me contas uma quimera!
E são as ondas como são amores,
Este incessante vai-e-vem? Quem dera,
Seria tão mais fácil aos amadores!

Mas não! Mais amor do que as ondas são
Recifes que na praia ao longe avisto
E misturam-se, ao horizonte, ao mar.

Marés altas e baixas passarão
E estas pedras tão imóveis, insisto,
Ficarão para sempre em nosso olhar.

GAVETA

Sonha nos braços da amada
Viver pra sempre o poeta,
Como uma frase olvidada
No fundo de uma gaveta.

Não que não será usada.
A frase, inda que secreta,
Vive n’alma apaixonada
E por esse amor completa.

E existe no seio amado,
De frases uma gaveta
A espera de seu poeta.

Para que na hora correta
Possa recitar ao lado
Do motivo de seu fado.

SONHO SOBRE UM CAMPO DE CENTEIO

Voando passei por prado de centeio
Vereda abriu sob meu ventre voador
Voltava num vasto devaneio
Vôo d’alma livre como dum condor

E os trigos gritavam: Sim, ele veio!
E me olhavam os ares com pudor
A tudo em volta voava eu alheio
De tal modo a sonhar ser sonhador

As estrelas calam a fala ao meio
Escala o sol a terra com ardor
Cola a noite o horizonte ao seio

Do menino a luz nos olhos é dor
Lembrar-se torna, ao travesseiro, anseio
De um futuro, de sonhos, rimador.

DOCE MEL

Doce mel de vívidos canaviais,
É a baba dos deuses pelos manjares.
Tem, portanto, propriedades vitais
Como a cura para certos pesares.

E estes pesares são os passionais,
Que vivem espreitando nossos lares
Afim de levar um coração mais
Para o umbral das almas que não têm pares.

Sim, amigo etílico, você entende
O que um homem pode, algum dia, passar.
O ruim é que teu consolo mal rende:

Os olhos já começam a pesar,
O som já quase não mais se compreende
E tudo que se deseja é acordar.

DA TRISTEZA D’MAR

Triste é o mar que é só mar
E milhas à frente nada,
A não ser o alvo luar
E minha rota ignorada.

Triste, então, é meu pensar
Na breve vida passada,
E dirijo ao mar o olhar,
Ao desejar ser tocada

Minh’alma por belas mãos,
Que acariciam, ao vento,
Em farta imaginação,

O bom de haver sofrimento.
Mas, teus olhos voltarão,
Quando não houver mais tempo.

SONETO DO TEU PARTIR

O que restou, somente, foi teu lenço
Largado, na partida, sobre o cais.
Acompanhando-o está meu silêncio
E essa dor que não se despede mais.

Queria que na brisa do oceano
Eu sentisse de novo teu perfume
E tornassem, com ventos assoprando
As lembranças da razão que nos une.

Só assim poderei virar de costas
Para o mar onde agora tu te encontras
E caminhar com o espírito leve.

E a cada atracar de uma nova frota
Uma esperança em meu coração brota:
A de ler, para sempre, quem escreve.

CORAÇÃO SELETIVO

Ao notar o arriar das velas,
Percebi que breve iria
Deixar lembranças mui belas,
Neste porto da alegria.

Sei que nada fiz por elas.
A mente, conservei fria.
Reparei nas caravelas
Que atracavam na baía,

E de todas me esqueci
Quando, de manhã, parti
Somente vendo uma imagem.

E durante toda a viagem,
Acompanhou-me a miragem,
Que, um dia, pude ter de ti.

SONETO DO ETERNO NAVEGAR

É longínquo o horizonte buscado
Como teu semblante, é cálido e firme,
E quanto mais as ondas eu domine
Fica distante o som do teu pecado.

Mas não pretendo, em falso, redimir-me
Pois sei o que me faz ter navegado
Tantas milhas ao mar, desesperado
A alcançar a imaginação sublime.

Se no horizonte não pude atracar
Em muitos portos fui bem recebido
Mas sempre terminei por navegar.

Posso estar sendo marujo atrevido
Porém, é meu destino sempre o mar
E sei, nunca serei bem sucedido.

Fonte:

Fernando Paganatto (1985)


Nasceu em 13 de fevereiro de 1985.
 Escritor profissional.

Estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo.

Possui diversos cursos na área de Comunicação Institucional, Redação, Escrita Criativa e Marketing, principalmente Marketing Político.

Poeta e cronista, com publicações em diversas antologias e sites da internet.

Foi colunista de "Variedades" do site 40graus.com e colaborador de "Crônicas de Viagens" do site literário Blocos on line.

Redator de diversos blogs (literatura, comportamento, juventude, política, movimentos sociais, etc.).

Atuante em direitos humanos.

Publicações de matérias em sites como: Diário Liberdade, Correio da Cidadania, Caros Amigos, entre outros.

Prêmios:

Primeiro colocado no IV Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus de Poesia, 2008.

2º colocado no I Concurso Nacional de Poesia do GASP, 2009.

Finalista no X Concurso de Poesia Agostinho Gomes, Biblioteca Municipal Ferreira de Castro, Portugal, 2009.

Finalista Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro, edição 2009/Contos.

Classificado para publicação no Concurso Nacional Novos Poetas - Prêmio Poetize, 2012.

Fonte:

Angela Lago (Tampinha)


Era uma vez uma menina tão pequena que, cada vez que espirravam por perto, ela voava. Seu nome era Tampinha. Ela usava uma tampinha de garrafa na cabeça para ficar mais pesada e aterrissar mais depressa quando voava.

Tampinha vivia com sua avó numa casa à margem do Rio do Mato Perdido. Essa avó era quem cuidava dos doentes da região. Ela sabia o chá certo para tudo, menos para a pequenez da menina.

Perto morava um rapaz... que eu esqueci o nome. Era um rapaz muito simpático e, para facilitar esta história, vou chamá-lo de Bonito.

Um dia Bonito ficou doente.

- Para salvar o Bonito só um chá da flor preta da árvore do Curupira - disse a avó.

- Mas onde vou arranjar alguém com coragem para buscar essa flor!

Na hora Tampinha respondeu:

- Eu vou.

- Imagina! Logo você, desse tamanhico!

Que tamanhico que nada! A menina entestou que iria de qualquer jeito e danou a falar que ia, porque ia, até a avó ficar desesperada:

- Então vai.

Mas, antes de a menina ir embora, a avó apanhou uma pimenta-malagueta bem forte. Amarrou a pimenta no pescoço de Tampinha e lhe ensinou umas palavras mágicas para ela falar nas horas de perigo.

E lá foi ela no seu barquinho de papel, com uma agulha servindo de espada, uma colherzinha de café como remo e a pimenta dependurada no pescoço.

Enquanto ela remava, ia recitando as palavras mágicas. Tinha medo de esquecer alguma na hora do perigo:

Pimentum, pimentom, pimentém, pimentim;
peixe quer água, eu quero atchim.
Pimentur, pimentor, pimenter, pimentir;
e quero voltar de onde eu quero ir.

Pois muito bem. De repente Tampinha deu de cara com Cobra Grande cantando:

Você tem avó, eu tenho um tio.
Venha comigo pro fundo do rio.
Você tem agulha, eu tenho um fio.
Venha calada sem dar nem um pio.

As palavras mágicas sumiram da cabeça da menina. Com muito custo, saiu, num fiapinho de voz:

- Pimentim, eu quero atchim...

A Cobra Grande se curvou para escutá-la, sentiu o cheiro forte da pimenta, teve uma coceira no nariz e acabou espirrando:

- A... A... Atchim!

Era o que era preciso. Lá se foi nossa heroína voando pelos ares.

Mas, como ela não tinha se lembrado de todas as palavras, a mágica funcionou um pouco errada, e ela aterrissou justo na praia da Onça-Pintada.

A Onça-Pintada viu aquela menina apetitosa, lambeu o beiço e veio andando com suas patas macias.

Tampinha ficou branca de medo e nada de lembrar os versos mágicos. Ela só conseguiu enrolar a língua de qualquer jeito:

- Pimentrim... primentrum...

A Onça espichou o ouvido para tentar entender e aí sentiu aquele cheiro desgraçado de pimenta. Seu nariz danou a coçar e veio o espirro:

- A... A... A... A... Atchim!

Tampinha voou pelos ares.

Mas, como ela tinha se atrapalhado com as palavras, a mágica também ficou meio atrapalhada. Ela logo caiu, como uma geringonça qualquer; por pouco não quebra a perna. De qualquer forma já estava livre da Onça. Na sua frente o que via era uma árvore enorme.

- Céus! A árvore do Curupira! Será que o Curupira...

Tampinha olhou para todos os lados:

- Que sorte! Parece que o Curupira não está por perto! A árvore era belíssima, sem nenhum exagero; alta, imensa. E lá, no último galho, estava a flor preta. O problema era que Tampinha não dava conta de subir nem no primeiro galho! Ela, então, sentou-se num canto, sem saber o que fazer.

Come esta frutinha
e cresça bonitinha.

A árvore farfalhou e deixou cair um fruto.

Tampinha provou, mas achou a fruta muito doce e não terminou de comer. Seus braços cresceram, mas o resto continuou do mesmo tamanho.

Ô filhote louco,
come mais um pouco.

A árvore farfalhou de novo e deixou cair mais um fruto.

Na segunda dentada, Tampinha jogou o fruto longe. Estava muito amargo. Pois muito bem: dessa vez, só suas pernas cresceram. Ela ficou horrível com as pernas e os braços compridos e o resto todo do mesmo tamanho.

Come de uma vez!
Um... dois... três!

Era a árvore jogando mais um fruto. Dessa vez Tampinha comeu tudo.

Quando terminou, estava moça feita. Alta, como qualquer moça, se vocês me acreditam. E o melhor: deu conta de apanhar a flor.

Mas, justo no momento em que ela estava apanhando a flor, alguém apareceu entre as folhas dos galhos... Era o Curupira!

- Com que direito você entrou no meu mato, subiu na minha árvore, apanhou a minha flor?!?

Tampinha ficou branca de novo, e tratou de recitar:

Peixe quer água, eu quero atchim.
Me esperam de volta, de onde eu vim.

Curupira se curvou para ouvir melhor a moça e sentiu o cheiro da pimenta. Seu nariz desandou a coçar e aconteceu o maior espirro que já houve no mundo.

ATCHIM!!!

E mais outro:

ATCHIM!!!

E mais outro:

ATCHIM!!!

A nossa moça, mesmo grande como estava, voou pelos ares, acima das árvores, sobre o rio...

Aterrissou direto na casa do moço Bonito. O chá foi feito imediatamente. Bem, o final vocês já sabem, a avó ficou feliz de ver a neta grande, Bonito sarou e...

- Vocês têm alguma coisa contra casamento?

Fonte:
Historinhas pescadas : antologia de contistas brasileiros / [coordenação editorial Maristela Petrili de Almeida Leite, Pascoal Soto].- São Paulo : Moderna, 2001. – (Literatura em minha casa ; v. 2)

J. G. de Araújo Jorge (Catedral de Eucaliptos)


(À Praça 15, hoje Praça Getúlio Vargas)

I
Coração de Friburgo a pulsar cada dia
desde que o céu se tinge ao rubor matinal,
para mim, não és a praça somente, eu diria
que és, a um só tempo, praça, e imensa catedral.

Catedral de eucaliptos... Verde catedral
cuja cúpula é a densa e inquieta ramaria
que tem em cada copa um rendado vitral
tecido pela luz do luar na noite fria!

Templo leigo do povo aberto a toda gente:
- aos da terra e aos de longe, ao sadio e ao doente,
aos que crêem no belo, mesmo sendo ateus.

Com seu domo de ogivas vegetais, frondosas,
ampla, imensa, soberba, esplêndida, radiosa,
és, - na altura da serra, - a morada de Deus!

II
Catedral de eucaliptos, verdes, farfalhantes,
onde se esgueira o sol pelas manhãs douradas
em mil jatos de luz, nos mais belos cambiantes,
descendo entre os vitrais das mais altas ramadas!

Brincam a sua sombra as crianças confiantes,
e ao seu canto infantil - como em contos de fadas, -
os verdes tinhorões, em gestos cativantes
namoram, lado a lado, as rosas encarnadas...

Imensa catedral de belezas pagãs!
O sol, vem, como um Deus, em seu fulvo esplendor
rezar nos teus altares todas as manhãs...

E eu também, como o sol, ergo um canto feliz,
e rezo ao céu e à terra uma oração de amor
igual a que rezou São Francisco de Assis!

Fonte:
J. G. de Araujo Jorge. Canto à Friburgo,1961.

Eça de Queiróz (A Ilustre Casa de Ramires)


Análise da obra

O romance simbólico, A Ilustre Casa de Ramires, é fruto da maturidade intelectual de Eça de Oueirós, revela o reencontro do autor com os temas e aspirações nacionais. A aproximação entre o protagonista, Gonçalo Mendes Ramires, e Portugal é explicitada no final, na comparação do amigo João Gouveia, que esboça com nitidez, no retrato que faz de Gonçalo, o caráter nacional português. Leia nas palavras de João Gouveia a síntese de um modo de ser português que o romance ilustrou fartamente:

     "- Pois eu tenho estudado muito o nono amigo Gonçalo Mondes. E sabem vocês, sabe o senhor Padre Soeiro quem ele me lembra?

     - Quem?

    - Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o senhor Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua idéia. A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, sentimentos de multa honra, uns escrúpulos quase pueris, não verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre alento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão pairador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antigüidade de raça, aqui pegada à sua velha torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?

    -  Quem?...

    -  Portugal.

    Os três amigos retornaram o caminho de Vila-Clara. No céu branco uma estrelinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquede. E Padre Soeiro, com o seu guarda-sol sob o braço, recolheu à torre vagarosamente, no silêncio e doçura da tarde, rezando as suas ave-marias, e pedindo a paz de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casais adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável, que sempre bendita fosse entre as terras".

O caráter paradoxal do protagonista, volúvel e persistente; desleixado e escrupuloso; sonhador e pragmático; vaidoso e despojado; melancólico e falador; medroso e afoito; covarde e heróico; apegado ao passado, mas que, num arroubo visionário, arremete-se à aventura africana; bom e mau; — todo esse jogo de contradições impõe a antítese como o elemento estrutural do romance, a partir da engenhosa solução de embutir no romance realista do sáculo XIX uma novela histórica, ambientada no sáculo XIII, e de entrelaçá­las como um jogo de antíteses, em torno do eixo fundamental: presente (a decadência) x passado (o heroismo, a glória).

Essa estrutura antitética permitiu a Eça exprimir sua dúbia natureza: a do observador crítico do seu mundo e de lírico visionário, através da composição de duas histórias distintas e contudo integradas, vazadas em dois estilos literários, o realista e o romântico, que dialogam incessantemente, em contraponto, constituindo uma unidade coerente, complexa e artisticamente bem realizada.

A construção e a fusão da história principal de Gonçalo e da novela inserida de Tructesindo exemplificam a mestria do escritor. Ao comparar as duas versões da obra, a publicada em folhetins, na Revista Moderna (1897 / 1898), e a definitiva, ampliada, editada em livro, no ano da morte de Eça, em 1900, Álvaro Lins. observa que, se ao escrever a novela histórica sobre Tructesindo Metidas Ramires, Eça pretendeu satirizar o gênero que consagrou Alexandre Herculano, Garrett e Rebelo da Silva, fazendo um “pastiche”, ou um paródia irônica, acabou por construir uma pequena obra-prima da história portuguesa, uma reabilitação do romance histórico.

Horneni Cidade observa que: “Nenhum romance histórico, de meu conhecimento, é, como este, adequado à demonstração da eficácia, do gênero para a ressurreição de uma alma amortecida, por insinuação das energias evocadas de antepassados históricos. Pode, talvez, admitir-se como possível de Eça a tese da ineficiência da novela histórica no fortalecimento das energias coletivas. Mas seria bem estranho que, para provar tal ineficiência, se pusesse tão poderosamente evidente a transformação, por uma novela, duma vida individual.” (Colóquio-Letras, nº 23, Janeiro de 1975)

Ao analisar o romance, João Medina destaca uma passagem na qual os vizinhos e amigos do fidalgo, sabendo do rasgo de Gonçalo ao castigar o valentia que o desrespeitara, "sorriam para a velha Torre, escura e rígida, na doce claridade da tarde de Setembro, como saudando, depois do herói, o secular fundamento de seu heroísmo”.

Para esse crítico, “todo o romance se condensa nesta frase simbólica: para Gonçalo, confesso retrato-símbolo do país, a questão é, como para Hamlet no palácio pestilencial de Elsenor, a do resgate da comunidade: conto agir? como quebrar o circulo do mal e nele inserir uma ação justa e libertadora? Como salvar-se e, ao fazê-lo, salvar a Dinamarca inteira? A resposta parece ser uma só: pelo recurso aos fundamentos mesmos da nacionalidade, ou seja, reacordando as forças da uma nação prostrada, mas ainda capaz de grandeza e vida." (Colóquio-Letras, nº 14, julho de 1973)

O domínio que o autor exerce sobre o leitor é mais forte na versão do livro por causa do seu emprego maia vasto da narração e da descrição subjetivas, assim como da maior quantidade de diálogos dramáticos. Os ângulos ambíguos da narrativa e do diálogo unem mais o autor, o narrador, a personagem e o leitor na mesma projeção física e emocional. Muitas vezes o leitor não é capaz de dizer quem é que está a conduzir o fio da narrativa, ou quem está a falar em estilo indireto-livre, se é a personagem ou o narrador subjetivo. Essa ambigüidade do ângulo da narrativa e a mudança constante da narração objetiva para a subjetiva fazem parte da visão impressionista que Eça tinha da composição literária. Uma confusão ainda maior do foco narrativo é causada pelos múltiplos planos literários da ficção em A ilustre Casa da Ramires. A história principal (o romance realista-impressionista A Ilustre Casa de Ramires); a história inserida (a novela histórica romântica, ambientada na Idade Média, A Torre de D. Ramires, poemeto épico do tio Duarte, O Castelo de Santa lrinéia e o Fado dos Ramires, trovado pelo violeiro Videirinha; alternam no foco da narrativa e confundem ainda mais o leitor.

Foco narrativo / Tempo

Narrado em terceira pessoa, por narrador onisciente, que não se identifica na trama, o romance realista, ambientado na segunda metade do século XIX, tem a duração cronológica de cinco anos; do início da escritura da novela histórica, A Torre dos Ramires, em junho de, presumivelmente, 1696, até a conclusão da novela e quatro anos após, o regresso de Gonçalo de sua bem-sucedida aventura africana. Assim, o período em que o protagonista Gonçalo escreve a sua novela sobre o avoengo Tructesindo é o mesmo em que Eça escreve o romance realista, que tem como centro exatamente o Gonçalo, narrador de A Torre de Ramires. É o que se pode concluir do seguinte fato: Gonçalo, ao escrever a sua novela histórica, aclimatada no século XIII, tem como fonte um poemeto épico, O Castelo de Santa Irinéia, escrito pelo tio materno Duarte, em 1846. Gonçalo supõe que o poerneto do tio já tivesse sido esquecido, e que seria fácil transpor as formas fluídas do Romantismo de 1846 para a sua prosa máscula (como confessava o Pinheiro), de uma densidade de mármore (maneira lapidária de Salambô".

Ao apontar a dois períodos literários que seriam comparados (o Romantismo de Tio Duarte, ou de Herculano, Garrett e Rebelo da Silva, e o Realismo de Gustavo Flaubert, autor de Salambô, Eça situa claramente a história no seu tempo, cerca de cinqüenta anos depois de 1846, ou seja, em 1896. Quanto à idade do protagonista, quando Gonçalo inicia seu empreendimento literário, pode ser determinada a partir de informações que constam do flash back inicial: Gonçalo encontrou Pinheiro, no Rossio, no mês anterior ao do começo da história - em julho, e isto aconteceu um ano depois de Gonçalo ter se formado em Coimbra. O pai do fidalgo morrera quando ele cursava, com 22 anos, o 3º ano da faculdade. Assim, 22 anos + 2 anos até a formatura + 1 ano depois de formado = 25 anos, quando o romance começa.

Enredo

No primeiro capítulo, o fidalgo aparece trabalhando o seu projeto literário, na livraria do solar de Santa Irinéia, tendo vista para a inspiradora de sua novela, a antiquíssima Torre dos Ramires, que remontava ao século X.

Depois de determinar o tempo imediato e o lugar da história, Eça recua no tempo para narrar a origem e evoluçãoda nobre linha dos Mendes Ramires, a começar com o casamento de Ordonho Mendes, em 987, com Dona Elduara, filha de Bermudo, o Gotoso, rei de Leão. Isto é feito, primeiro imediatamente, por intermédio da voz narrativa do genealogista dos Ramires, em estilo indireto livre: Gonçalo Mandes Rentes (como confessava esse severo genealogista, o barão de S. Prudêncio) era, talvez, o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal.

Desde os tempos de D. Ordonho Mendes que a família Ramires se notabilizara pelos seus feitos heróicos: “E assim, em cada lance da história de Portugal se encontra um Mendes Ramires." O genealogista dá-nos, deste modo, a história dos Ramires, até o presente real. As intenções satíricasde Eça começam a transparecer através de um véu de semi-seriedade. Lourenço Ramires toma parte da batalha de Ourique e testemunha o aparecimento de Jesus Cristo;  Martim Ramires toma parte do cerco de Tavira; Egas Ramires recusa-se a deixar entrar Dona Leonor Teles na torre; Diogo Ramires mostra sua coragem em Aljubarrota; Fernão Ramiree e seu filho ganham fama em Alcácova; Baltazar Ramires deixa-se deliberadamente afundar com seu navio; Paulo RamiIres sacrifica-se em Alcácer-Quibir; Vicente Ramires ajuda na restauração de D. João IV na batalha contra o domínio espanhol.

O Ultimato Britânico de 1890, que exigia a retirada das forças portuguesas de uma de suas possessões africanas, que o governo humilhantemente acatou, e a virtual bancarrota que se seguiu ao duro abalo da ameaça inglesa acenderam os brios nacionais. Foi o que aconteceu também a Gonçalo: depois de ter chicoteado o valentão de suiças loiras, superando suas dúvidas e sua covardia, o fidalgo confessa: “Foi talvez que, depois da desordem, me senti remoçado, com um sangue novo, e me julguei no tempo em que desejávamos urna guerra em Portugal, e nós, cercados na torre, sob o nosso pendão, o nosso terço atirando bombardas aos espanhóis.

O passado imediato do pai de Gonçalo é narrado pela voz do narrador original, onisciente, que substitui o genealogista. O pai do protagonista é descrito como oscilando de partido em partido ora regenerador, ora histórico, vivendo constantemente endividado em Lisboa, até ser nomeado Governador Civil de Oliveira pelo Ministro, cuja amante ele costumava, respeitosameente, acompanhar a S. Carlos. Neste mesmo ano Gonçalo é reprovado no 3º ano de Coimbra. O fracasso do protagonista, na linha do tempo, é colocado em paralelo com as manobrar políticas do pai (semelhantes às que o filho protagonizará mais tarde). O narrador prepara o leitor para o modus operandi de Gonçalo.

O problema central de Gonçalo é a falta de dinheiro. Deve ainda seiscentos mil-réis do último ano da faculdade. O arrendamento de suas terras mal dá para manter o solar, com o Bento, velho criado, e Rosa, a cozinheira. Assim, a política pareceu o caminho mais fácil para a reabilitação econômica e social. Mas havia dois obstáculos: os históricos estavam no poder, e Gonçalo era do Partido Regenerador, e a cadeira de deputado, representante da sua circunscrição eleitoral, estava preenchida pelo velho e poderoso Sanches de Lucena, marido do D. Ana de Lucena, mulher formosa e mal-falada, vulgar, que, mais tarde, já viúva, será incorporada aos planos (frustrados) do fidalgo de arranjar-se economicamente.

Assim, a curto prazo, seus projetos políticos são inviáveis e resta a Gonçalo semear o seu nome através da glória literária, explorando o passado heróico dos ancestrais e associando as glórias dos Ramires à sua própria imagem. É o  que se chamaria hoje de um golpe de “marketing eleitoral".

Não lhe faltava alguma experiência literária. Nos tempos de estudante havia publicado uma novela histórica, Dona Guiomar, no semanário A Pátria, dirigido pelo amigo José Lúcio Castanheiro. Essa mosmo Castanheiro, patriota assumido, tinha agora um projeto mais ambicioso: a edição dos Annaes de Literatura e de História, visando à “ressurreição do sentimento português”. Num encontro casual com Gonçalo, em Lisboa, Castanheiro cobrou o antigo projeto do ex-colega de escrever uma novela histórica, A Torre dos Ramires, acerca de Tructesindo Ramires, um antepassado dos tempos dos primeiros reis de Portugal, os Borgonhas, dos séculos XII e XIII. Gonçalo compreendeu que era a ocasião de implementar o seu projeto, esperando capitalizar algum dividendo eleitoral e social.

Com esses propósitos, na sua livraria, cercado da bibliografia necessária, em sua cadeira de couro, contemplando o grande símbolo de sua estirpe, a torre, principia o seu trabalho de escritor. Tem como base um poema heróico, escrito cinqüenta anos antes, por Tio Duarte - O Castelo de Santa Irinéia, de escassa repercussão na época, e agora certamente desconhecido. Assim, a matéria histórica e mesmo sugestões literárias poderiam ser livremente manipuladas, sem o risco de acusação de plágio. Urgia apenas refazer a linguagem heróica, enfática e romântica dos versos de Tio Duarte, colocando­os em prosa, ao gosto de sua época, o Realismo, e adaptar algumas situações, a principiar dos primeiros versos.

A partir da Restauração, em 1640, inicia-se a narração do declínio da linhagem histórica: Já, porém, como a nação, a raça forte enfraquece. Aqui Eça estabelece um contraste deliberado com o passado glorioso e o elemento humorístico toma-se predominate, à medida que o plano histérico e o contemporâneo convergem para mostrar a degenerescência da nação e da nobre linhagem. Álvaro Ramires, favorito de D. Pedro II, foge para Sevilha com a mulher de um inspetor de finanças que mandara açoitar até a morte, por escravos. E, nesta veia irônica e humorista, continua a enumerar a deterioração de cada menbro da família Ramires, até chegar ao avó de Gonçalo, Damião Ramires, doutor liberal, dado às musas, que desembarca com D. Pedro no Mindelo; compõe as empoladas proclamações do partido, funda um jornal, o Antifrade, e depois das guerras civis arrasta uma existência reumática em Santa Irinéia, embrulhado no seu capotão de briche, traduzindo para o vernáculo, com um léxicon e um pacote de simonte, as obras de Valério Flaco.

Mas as obrigações de proprietário rural desviam as atenções do fidalgo para o cotidiano. Manuel Relho, arrendatário da quinta, por oitocentos mil­réis, numa de suas bebedeiras habituais, começou a atirar pedras contra o solar de Gonçalo, atingindo a livraria. Acovardado, tranca-se no quarto, defendendo a porta com uma cômoda arrastada às pressas. No dia seguinte, vai ao regedor dar queixa do arrendatário, e obtém justa causa para despedi-lo, com a família. Um outro lavrador, José Casco, interessou-se pelo arrendamento e, após algumas negociações, aceita pagar novecentos e cinqüenta mil-réis ao fidalgo. Um aperto de mão sela o compromisso entre ambos, era o que bastava nos antigos códigos de honra.

Retoma a escritura das primeiras linhas da novela A Torre dos Ramires, mas encalacra logo no inicio. Adormece, entediado.

No capitulo segundo o fidalgo recebe a visita do Titó (Antônio Vilalobos), amigo velho, admirado por sua franqueza, pela força física, pela independência, e por una especialização no estudo das bastardias e crimes das famílias nobres de Portugal. Vinha convidar o Ramires para um jantar, no Gago, em companhia de dois outros amigos, o violeiro Videirinha e o João Gouveia. Gonçalo aceita o convite, e dispensa o caldo de galinha que Rosa preparava num rasgo de generosidade, manda levar a canja a uma viúva pobre, a Críspola, adoentada e cheia de filhos. Manda também dar algum dinheiro à viúva, além das suas recomendações. A atitude do fidalgo oscila entre a generosidade, o paternalismo e o populismo eleitoreiro que já se insinua. Atitude idêntica toma, por ocasião de sua visita ao deputado Sanches de Lucena, ao ceder sua montaria ao camponês Manuel Solha, que mal podia andar, ajudando o pobre a subir na sua égua, ainda que tivesse de sujar as luvas impecáveis para erguer o camponês. Sanches de Lucena ironizou Gonçalo a conduzir o trabalhador, comparando o fidalgo ao Bom Samaritano, da tradição bíblica.

André Cavaleiro, que funciona corno antagonista de Gonçalo, é apresentado ao leitor no fiash back expositivo de narrador onisciente, quando ele se detém no quinto ano do protagonista em Coimbra. Inimigo de André, que acabara de ser nomeado Governador Civil de Olveira, o narrador só mais tarde revelará as razões da inimizade do fidalgo. Alude, inicialmente, aos dois artigos ofensivos ao novo Governador Civil, que Gonçalo escrevera na Gazeta do Povo, sob o pseudônimo de Juvenal. Simbolizado pelos bigodes, André Cavaleiro seria atirado abaixo de seu cavalo, diz Gonçalo, fazendo um trocadilho óbvio. Só mais tarde, depois do jantar na estalagem do Gago, é que, através do discurso indireto livre o leitor fica sabendo da razão real do ódio que o fidalgo devotava a André Cavaleiro. Nos tempos de estudante, o agora Governador Civil cortejara Gracinha, irmã de Gonçalo, e freqüentara o solar dos Ramires, estimulado pela tolerância de Miss Rodhes, a governanta inglesa, e do próprio pai. Mas, sem explicação, ao entrar na política, abandonou a Irmã de Gonçalo. Graça acabou se consolando; casou-se com um ricaço apaixonado por ela, o ingênuo José Barrolo, apelidado o Bacoco (= tolo, ignorante, presunçoso), que desconhecia o antigo namoro, não de todo debelado. A proximidade de André, tido como mulherengo, era um perigo que Gonçalo temia, e que se tomou iminente, quando o Governador Civil começou a pavonear-se em frente à Casa dos Cunhaes, palacete em que viviam José Barrolo e Graça; daí o artigo de Gonçalo contra André, com o título apelativo de Monstruoso Atentado.

Vários motivos prenderam o fidalgo em Oliveira: o aniversário da irmã e a escritura de arrendamento da quinta a um outro pretendente, Manuel Pereira, ao preço acertado de um mil e cinqüenta réis, ou um conto e cinqüenta, como se dizia então. O fidalgo rompia, dessa forma, o acordo anterior com José Casco, apalavrado e formalizado com um aperto de mão. Mas as necessidades financeiras do fidalgo eram, momentaneamente, mais fortes que os resíduos de  sua fidalguia.

A essa altura, Gonçalo havia concluído o capitulo segundo da novela histórica A Torre dos Ramires. A escritura da novela e seu desenrolar são entremeados ao dia-a-dia do fidalgo, funcionando como uma espécie de contraponto heróico às contingências tão mesquinhas de seu narrador. No século XIII, Tructesindo, protagonista da novela histórica, assume os riscos de se opor ao novo rei de Portugal, D. Afonso II, por um juramento que fez ao seu pai, D. Sancho, de que seria o protetor de sua filha, D. Sancha. Vai à guerra em desvantagem, pela palavra empenhada. No século XIX, Gonçalo muda de partido, do Regenerador para o Histórico por simples oportunismo eleitoral (como também o fizera seu pai); rompe o compromisso assumido com José Casco, por alguma vantagem financeira, e acovarda-se diante das ameaças dos camponeses. O narrador onisciente diverte-se com o jogo de oposições passado x presente e com o emaranhado de ações e personagens.

Somando-se o romance à novela contabilizam-se noventa e quatro personagem atuantes, que são vistas” em ação; cento e cinqüenta personagens referidas, em diversas circunstância, pelas personagens atuantes; além de trinta e quatro mencionadas na árvore genealógica dos Ramires e da monarquia lusitana, sob a Dinastia de Borgonha (reis, heróis, guerreiros etc.).

José Casco dos Bravaes, enfurecido com a falta de palavra de Gonçalo quanto ao arrendamento das terras, põe o fidalgo a correr, com ameaças. Escoltado por empregados, vai a Vila Clara dar queixa do camponês. Aí as coisas começam a mudar de direção: em Vila Clara, o administrador e amigo, João Gouveia, dá noticia de Sanches de Lucena, o deputado da região: estava morto. Com isso, ficava aberta uma cadeira na Assembléia e ficava disponível a viúva. D. Ana, mulher bonita, rica e vulgar. Superando dois obstáculos: o fato de pertencer à oposição e ter de mudar de partido e, o mais grave, ter de se reconciliar com o inimigo, André Cavaleiro, de quem dependia a indicação partidária, Gonçalo, por sugestão de Gouveia, vale-se do episódio de José Casco para se reaproximar do Governador Civil, dando a ele queixa do camponês.

A reaproximação se concretizou, mesmo pondo em risco a honrada irmã do fidalgo, que ficaria exposta ao assédio de André Cavaleiro. O narrador onisciente, através do discurso indireto livre, reproduz o drama de consciência de Gonçalo, entre a ambição política e a honra familiar. Prevaleceu a ambição e, racionalizando cinicamente, o fidalgo supõe que Graça, volúvel e fútil como toda a mulher queirosiana, saberia defender sua própria honra.

Obtém a nomeação; marca um jantar de confratemização com André no palacete de Barrolo e Graça; participa aos amigos a candidatura; retoma sua novela histórica; ampara a mulher e o filho de José Casco (preso por ordem de André e solto, mais tarde, por pedido de Gonçalo); inicia a campanha política e, auxiliado pela “prima” Maria Mendonça, começa a se aproximar da víúva, D. Ana de Lucena e dos duzentos contos de sua herança, que falavam mais forte que as conhecidas origens da pretendida: filha de um açougueiro e irmã de um criminoso. Tudo parece correr bem para o fidalgo, apesar de alguns contratempos: Gonçalo recebe uma carta anônima insinuando que ele facilitara a aproximação de André e Graça e, numa vendinha de beira de estrada, foi Insultado por um valentão e fugiu, rapidinho, sem reagir: era o Ernesto de Nacejas.

A novela histórica prosperava, já que o José Lúcio Castanheiro, diretor dos Annaes de Literatura e de História, começava a pressionar o fidalgo quanto aos prazos para a publicação de A Torre dos Ramires. Concluído o terceiro capitulo, Gonçalo vai a Oliveira mostrar sua obra literária à irmã e ao Padre Soeiro, espécie de arquivista dos feitos dos Ramires do presente e do passado. De saída para Oliveira, recebe o apoio político do Visconde de Rio-Manso.

Na seqüência, deu-se o previsível. Chegando ao palacete não encontra o cunhado, mas, passeando pelo jardim, surpreende, sem ser visto, um diálogo amoroso (um pouco mais que isso) entre André Cavaleiro e Graça. Volta para Santa Irinéia arrasado, amargando a má consciência de ter facilitado o adultério, e um ódio difuso de todos: Graça, André, Barrolo e de si mesmo. Na verdade, o que temia era a repercussão do escândalo na sua campanha política.

Vive, a seguir, uma fase de profunda depressão. Sem dinheiro, com dívidas vencidas, ausentes os amigos de sempre (Videirinha, Titó e Gouvela), entrega-se ao capitulo final da novela e à projetada união com Dona Ana de Lucena,  com a diligente intermediação da onipresente “prima" Maria Mendonça. Após várias manobras de aproximação, o fidalgo desiste da viúva, quando Titó revela que D. Ana Lucena tinha a um amante (presumivelmente ele mesmo, Titó), além de lazer objeções à conduta da viúva Lucena.

Gonçalo passa a noite a remoer seus insucessos, sente-se medroso, dependente, fraco e exala “um suspiro de piedade por aquela sua sorte tão contrariada, tão sem socorro". Adormece sonhando com os antigos Ramires. Escuta dos avoengos exortações como — “Neto, doce neto, toma minha lança nunca partida!..." — “oh neto, toma as nossas armas e vence a sorte inimiga..." Mas Gonçalo, mergulhado nos seus fracassos, responde: — “Oh avós, de que me servem as vossas armas — se me falta a vossa alma?..."

Estamos já no décimo capitulo, no qual se opera uma mudança no rumo dos acontecimentos. Aqui começa a redenção de Gonçalo e dos valores que simboliza. A descoberta, pelo velho criado Bento, de um antiqüíssimo Chicote, com o castão de prata, perdido no sótão do solar, e que o fidalgo instituiu como seu chicote de guerra, antecipa a retomada das virtudes viris da família. Após o pesadelo com os antepassados, após suas exortações, Gonçalo acordou excepcionalmente implicante. Começou por libertar-se da tutela que Bento vinha exercendo, sorrateiramente, sobre sua vida, tratando o criado com rispidez. Armou-se do chicote de cavalo-marinho e saiu pela estrada, montado na sua égua. Pretendia visitar o Visconde de Rio-Manso, na quinta da Varandinha. Ao interpelar um rapaz, pedindo a indicação do melhor caminho para a Varandinha, Gonçalo topou pela terceira vez com o valentão que o injuriou novamente: — “oh Manuel, que estás tu aí a ensinar o caminho, homem! Este caminho aqui não é para os asnos!” O fidalgo reagiu e o valentão, Emesto de Nacejas, saiu-se com outro insulto: — "...E para diante é que vocêjá não passa, seu Ramires de Merd..."

E começou a redenção: o fidalgo investiu furioso sobre o valentão, a golpes de chicotadas, prostrando-o no chão, quase morto. Arremeteu-se aos berros contra o rapaz, que, em defesa do valentão, atirara de espingarda contra Gonçalo, errando o alvo. O chicote arrancou sangue do pescoço do Jovem Manuel, que caiu inerte, dando com a cabeça num pilar. O pai do rapaz quis interferir para salvar o filho, mas Gonçalo dominou-o e fê-lo correr diante de sua montaria, apesar das súplicas do velho. Sentia-se um verdadeiro Ramires, enfim, era um homem! A noticia da valentia do fidalgo propagou­se rapidamente.

A redenção da honra familiar dá-se na seqüência: Barrolo recebera uma carta anônima. insinuando irônica e maldosamente a relação entre Gracinha e André Cavaleiro, e fora mostrá-la ao fidalgo. Gonçalo guardou a carta e tranqüilizou o cunhado, atribuindo a denúncia às Lousadas, conhecidas maledicentes. Barrolo acatou a idéia de Gonçalo e desconsiderou as insinuações. O fidalgo, em seguida, exibe a carta à irmã e exige dela que ponha fim à relação com André. Obtém mais uma vitória, agora no front interno, na trincheira familiar.

Os jornais da capital noticiaram o feito de Gonçalo, Videirinha compôs mais duas trovas do seu Fado dos Ramires, alusivas à bravura do amigo: 

“Os Ramires doutras eras

venciam com grandes lanças,

este vence com um chicote, 

vede que estranhas mudanças!

É que os Ramires famosos,

da passada geração,

tinham a força nas armas

e este a tem no coração!”

Em meio a cartas de felicitações e homenagens, Gonçalo concluiu sua novela. A campanha eleitoral ia de vento em popa. O rei, por sugestão de André, outorga a Gonçalo o título de Marquês de Treixedo. Títulos de nobreza não faltavam a Gonçalo, fina-flor da nobiliarquia portuguesa. A comenda não o comoveu.

A eleição de Gonçalo deu-se por esmagadora maioria. Finalmente, era deputado. O sucesso literário não foi menos retumbante: a novela A Torre dos Ramires, publicada no primeiro número dos Annaes de Literatura e de História, foi um êxito completo, de critica e de público.

Em janeiro, por ocasião do início do ano legislativo, o fidalgo instala-se como deputado em Lisboa. Freqüenta com desenvoltura a alta roda, e torna-se conhecido na capital.

Mas eis que surge nova reviravolta. Quatro meses depois de instalado em Lisboa, Gonçalo consegue uma concessão de terra em Macheque, na Zambézia, possessão portuguesa na África. Hipoteca suas terras para obter capital e, em junho, acompanhado por Bento, parte para sua aventura africana, embarcado no paquete sugestivamente chamado Portugal. Já no segundo capítulo Gonçalo tivera um sonho em que se viu sobre as selvas profundas de África, debaixo de coqueiros sussurrantes..." No quarto capítulo confessara à sua irmã que andava com a idéia de ir para a África, romântica e ingênua idéia que extraiu da leitura do romance As Minas do Rei Salomão (do qual Eça fizera uma ‘tradução’ para a língua portuguesa).

Quatro anos depois, tendo plantado dois mil coqueiros, muito cacau e muita borracha, Gonçalo regressa a Portugal já abastado, a saúde revigorada e o moral retemperado. O último capitulo ocupa-se dos preparativos para o seu regresso triunfal à Santa Irinéa. Em carta à Graça, Maria Mendonça, a "prima" que se avistara como fidalgo em Lisboa, informa de seu estado de saúde e de espírito, e antecipa a notícia de seu casamento, em breve, com a Rosa, a neta do Visconde do Rio-Manso.

O livro termina com o paralelo entre Gonçalo e Portugal, transcrito e comentado no segundo parágrafo desta análise.

A novela histórica A Torre dos Ramires

Inserido na história principal, a novela escrita por Gonçalo sobre seus antepassados do século XII, sobre Tructesindo Mendes Ramires, pode ser lida em três planos:

1. No plano histórico, focaliza o estabelecimento do território português a consolidação da autoridade real durante o período do século XII. São referidas as figura históricas de D. Afonso Henriques, D. Tereza, D. Sancho I, D. Afonso II e os Infantes. As disputas incluem não só as discórdia entre a família afonsina, mas também a rivalidade entre a nobreza e o clero. A lealdade ao rei é disputada pelas Infantas, que são apoiadas pelas classes superiores do clero, incluindo o Papa. A questão da luta pelo poder - o rei, os nobres e o clero - passa também pela disputa dos direitos de propriedade, dentro da ordem feudal.

A questão da vassalagem e da lealdade, fundamental na Idade Média, a desencadeadora da novela. Tructesindo Mendes Ramires havia jurado lealdade a D. Sancho I, comprometendo-se a servir e proteger a sua filha D. Sancha. Morto o rei, assume o trono o primogênito, Afonso II, que entra em desavença com os irmãos sobre o testamento. Os infantes D. Pedro e D. Fernando, esbulhados, andavam pela França e pelo Reino de Leão. D. Sancha, através do Alcaide de Aveiras (disfarçado em beduíno), pede o auxílio de Tructesindo. Eis o nó da questão: a quem se deve primeiro lealdade? Ao novo rei, D. Afonso II? A D. Sancho I e ao juramento anterior? Ao Papa o aos chefes da Igreja? Para Tructesindo a lealdade ao juramento transforma-se numa questão de honra, mesmo contra o novo rei, contra os conselhos do genro, Mendo Paes e contra os interesses mais imediatos.

"De mal ficarei com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e comigo!" sentencia Tructesindo.

O sistema medieval de resolver as disputas era a guerra, e o protagonista da novela despacha seu filho Lourenço, com quinze cavaleiros e noventa homens de infantaria, para socorrer as infantas D. Sancha e D. Teresa. Em todos os passos da ação de Tructesindo, Lourenço e do antagonista, Lopo de Baião, se fazem presentes os códigos da cavalaria medieval, que admitia armadilhas, espionagem, ataques imprevistos e até a morte infamante, por vingança.

2. No plano humano, estão presentes os temas relacionados à grandeza e virilidade dos bárbaros cristianizados do século XII, especialmente o da vingança. A fortaleza de Tructesindo, na vingança da morte do filho o no cumprimento da palavra, a coragem diante da morto, o orgulho acima do amor, a superação de medo são temas que se entrelaçam na exaltação das virtudes do pai e do filho.

A autoridade de Tructesindo sobre sua família e seus vassalos é incontrastável: ele decide o destino de Lourenço e da filha Violante sem qualquer contestação.

3. No plano literário, que se sobrepõe a qualquer outro na novela inserida, Gonçalo comenta freqüentemente a sua narrativa e as suas personagem, na tentativa de fazer reviver a ficção histórica à maneira realista de Gustavo Flaubert, emSalambô. Seu objetivo é evocar os tempos medievais de maneira lapidar e não no tom melancólico e brando dos românticos. Para isso ele desenha suas personagens de acordo com o rígido código guerreiro, numa linguagem que lembra esses tempos rudes e primitivos. À medida que sua própria história progride, Gonçalo comenta seu estilo, pondo-o em contraste os seus métodos e técnicas com os do poema de Tio Duarte. O tema da oposição entre a ficção histórica romântica e a ficção histórica realista revela, na insistência com que é projetado, o gosto de Eça pela narrativa fantasista, na forma e nos moldes em que, como autor realista, admitia e admirava: “um manto diáfano de fantasia”.

Os elementos simbólicos harmonizam-se com os propósitos do romance e da novela. A torre é o principal símbolo de ligação entre Gonçalo e Tructesindo, no tempo e no espaço. Representando Portugal - passado, presente e futuro - através de Gonçalo e de seus antepassados que nela viveram, a torre é a figura dominante do passado coletivo de Portugal, assim como de seu futuro não realizado.

O brasão dos Ramires, o escudo de Tructesindo e a sua espada, herdada dos antepassados godos, sugerem a imagem de força e violência, das qualidades sublimes e bárbaras do mundo feudal do século XII, em contraste com o mundo de Gonçalo: Portugal do século XIX.

No capítulo cinco do romance, Gonçalo insere a batalha do Canta-Pedra, primeiro cometimento heróico da novela. Lourenço, mandado pelo pai em socorro às infantas, é interceptado pela forças do Lopo de Baião, o bastardo, que se aliara ao rei. Lopo havia sido recusado por Tructesindo corno pretendente à mão de D. Violante, filha mais nova do cavaleiro de Santa Irinéia. Havia entre ambos também uma questão familiar. Lourenço foi capturado e conduzido prisioneiro por Lopo de Baião, que pretendia trocar a liberdade e a vida do filho de Tructesindo pela mão da filha: D. Violanle. O filho, antes do pai, recusa a proposta. Lopo ameaça matar Lourenço com o punhal e Tructesindo atira sua espada no bastardo para que seu filho não fosse morto pelo vil punhal de Baião, mas pela sua nobre espada. O Bastardo se enfurece e enterra o punhal na garganta de Lourenço, abandona o corpo do morto e foge. Tructesindo vocifera seu juramento de vingança: — Muros de Santa Irinéia, não vos torne eu a ver, se em três dias, de sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de Baião!

Na perseguição do Bastardo, Tructesindo conta com um estrategista, D. Garcia de Viegas, que, prevendo os passos do inimigo, planeja sua captura. D. Pedro de Castro, também aliado, acolhe os cavaleiros de Santa Irinéia e oferece reforços a Tructesindo.

Surpreendidos, os cavaleIros de Lopo de Baião são massacrados e o Bastardo é feito prisioneiro e condenado à morte vil. 

Desnudado, amarrado a um poste, com o corpo imerso na água até a virilha, as sanguessugas começam a cobrir o corpo do condenado. Tructesindo saboreia, impávido, sua vingança, vendo o suplício do assassino de seu filho. Morto, depois de lenta agonia, Baião é apedrejado pelos cavaleiros de Santa Irinéia e tem seu rosto recoberto de estrume. Estava concluída a vingança e a novela, com a vitória do protagonista, nas armas, e de seu descendente, o narrador, nas letras.


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