quarta-feira, 30 de maio de 2012

Casimiro de Abreu (Carolina) III – A Volta


Estamos em 1849. 

Numa tarde de fevereiro, levado por toda a velocidade de seu bom cavalo, seguia um cavaleiro a estrada de Lisboa a ***, estrada onde ficava essa linda quinta com sua casa, no meio de perfumes e de verdura.

Esse cavaleiro, era Augusto.

Quando ainda de longe ele avistou a casa, seus olhos disseram é ali, seu coração indeciso, murmurava: aquela?!...

Ai! já não era a mesma quinta bela e verdejante, que ele tinha deixado na primavera! O inverno havia-a transformado horrivelmente.

Os ramos das faias e dos choupos gigantes já não se debruçavam sobre o muro. A natureza estava triste. As árvores não tinham folhas: apenas erguiam seus ramos despidos que vergavam com o vento. 

Uma tristeza involuntária apoderou-se do mancebo. 

Prendeu ao muro o seu cavalo coberto de suor e poeira e pôs-se a cantar com uma voz trêmula: 

Ó querida, estou de volta,
Venho-te um abraço dar;
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.

Nenhuma voz respondeu à sua copla apaixonada. Um silêncio profundo reinava nas alamedas; só os ramos das árvores se agitavam. Dir-se-ia ser um cemitério. 

Augusto teve um pressentimento; sua fronte empalideceu por um instante, mas continuou repetindo: 

Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar. 

O mesmo silêncio terrível. Só o eco repetia triste suas últimas palavras: “sê minha, que eu sei-te amar”.

Saltou o muro e alongou a vista impaciente.

Que tristeza! As alamedas estavam desertas, o jardim já não florescia, o lago já não tinha o seu cisne, a natureza já não sorria!

Foi direito ao caramanchão, ele lá estava no mesmo lugar com o seu banco de cortiça, mas a fonte que dantes murmurava parecia gemer agora!

Augusto sentou-se no banco com a cabeça encostada a uma das mãos e olhou para tudo com uma indizível tristeza. 

Ai! os pássaros já não cantavam, nem a brisa brincava travessa!

Então o pranto correu-lhe livre, o seu coração dizia-lhe que chorasse. 

— Foi aqui, murmurava ele, foi aqui que me despedi dela, foi aqui que prometi torná-la a ver. Meu Deus! quantas lágrimas não derramei quando atravessava o Oceano, que me separava da pátria, onde ficara a minha alma! E agora, que torno a ver a terra onde nasci, agora, que devia ver a minha Carolina, não sei por quê, sinto uma vontade imensa de chorar. Carolina! Carolina! bradou ele, vem ver o teu Augusto, vem dizer-lhe que sempre o amaste, vem dar ao desgraçado que chorou os prantos da saudade, o teu beijo de amor: e os soluços abafaram-lhe a voz no peito. 

Mas o mesmo silêncio lúgubre continuou; nem uma voz, nem um som respondeu aos gemidos do amante. 

Ergueu-se pálido e trêmulo e caminhou vagaroso pela alameda que ia dar ao jardim, cantando sempre com a sua voz comovida aquela copla, que tão bem exprimia os desejos do seu coração. 

Chegou ao jardim e olhou. A casa tinha as portas e as janelas todas fechadas. Também estava deserta. 

— Mudaram-se, disse ele, Carolina já aqui não está!

E volta pensativo para o caramanchão  e parou diante da fonte. 

— Onde está Carolina? perguntou ele, como se a fonte pudesse responder-lhe. 

— Onde está Carolina? perguntou ele às árvores, e parecia esperar a resposta. 

Mas a fonte continuava a correr e as árvores a agitar os ramos. 

— Então adeus, meu caramanchão, minha fonte, meu jardim, adeus!

E Augusto saltou o muro e quis passar por diante da casa onde estivera a sua amada. Quando aí chegou, parou e pôs-se a olhar para a janela onde a tinha visto a primeira vez. 

— Jesus! Meu Deus! aquele não é o senhor Augusto? dizia uma saloia, que passava por ali, a seu marido. 

— Parece que é, respondeu o saloio. 

Ao ouvir o seu nome, Augusto olhou para o lado donde partiram as vozes e reconheceu-os. Depois de os cumprimentar perguntou logo:

— Diga-me, o senhor Ferraz já aqui não mora?

— Há que tempos! mudaram-se pelo Natal. 

— Sabe para onde?

— Isso é que não sei; tanto ele como a senhora estavam muito tristes, e tinham razão, aqueles desgostos não são para menos. 

— Então eles tiveram algum desgosto? perguntou Augusto, que pressentia a morte de Carolina.

— E muito grande. Sua filha, a senhora D. Carolina, fugiu...

— Carolina fugiu? perguntou Augusto com uma voz que assustou a pobre mulher.

— Sim senhor, respondeu ela, foi no meado do mês de dezembro. Custa a creditar, que uma menina tão boa deixasse sua mãe. E daí pode ser que fosse roubada, quem sabe!

Augusto já nada ouvia; estava louco.

— Oh meu Deus! meu Deus! murmurou ele.

— Jesus! que é isso, senhor Augusto? perguntou a mulher vendo-lhe a extrema palidez e o chamejar sinistro dos olhos. 

— E eu que a amava tanto! continuou ele em voz baixa. 

A saloia compreendeu-o e afastou-se murmurando:

— Pobre rapaz! o que lhe fui eu dizer!

Augusto ficou ainda algum tempo imóvel com os olhos turvos e o peito arquejante, mas depois erguei a fronte de repente e bradou com uma explosão terrível de dor:

— Ah! mulher, mulher! tu me mataste! 

Desprendeu seu cavalo, montou e desapareceu na estrada. Ainda olhou de longe uma vez para aquela quinta deserta e triste, que lhe inspirava tantas recordações...

Continua…

Fonte:
ABREU, Casimiro de.  Carolina.  in SILVEIRA, Sousa da (org.). Obras de Casimiro de Abreu.  2ª ed.   Rio de Janeiro:  Ministério da Educação e Cultura -MEC, 1955. Texto-base digitalizado por: Fernanda Duarte, Rio de Janeiro – RJ

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 564)


Uma Trova de Ademar  

Todo homem que se entrega 
aos feitiços de um amor 
sofre demais, porém nega 
o tanto da sua dor... 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Diante do encanto desfeito 
por promessas não cumpridas, 
eu sempre encontro outro jeito 
de entrelaçar nossas vidas. 
–Olga Agulhon/PR– 

Uma Trova Potiguar  

Não podemos recompor,
nossos sonhos destruídos;
nem esconder nossa dor,
silenciando os gemidos. 
–Francisco Maia/RN– 

Uma Trova Premiada 

2005 > Belém/PA 
Tema > DELÍRIO > M/H

Em meu delírio utopista
 um sonho não se desfaz:
 é ver um mundo otimista
 unindo as mãos pela paz.
- Licínio Antonio de Andrade/MG-

...E Suas Trovas Ficaram  

Nos açoites da agonia, 
a solidão que me invade 
vai rasgando a fantasia 
com que disfarço a saudade!... 
–Ulysses Carvalho Júnior/RJ– 

Uma Poesia  

Sinto que Deus põe a mão 
na mulher quando engravida, 
a dor se mescla ao prazer, 
a criatura é erguida;
e a vida liberta um Ser 
preso dentro de outra vida. 
–Leonardo Cruz/RN – 

Soneto do Dia  

Ressurreição.
–Reginaldo Albuquerque/MS– 

Eis que volto ao parquinho abandonado... 
De fato, está bem gasto, sem valia, 
porções de entulho e mato lado a lado, 
em vez da meninada em correria. 

Olhando o carrossel empoeirado 
não sei o que dá mais melancolia, 
se o céu de luto todo declarado
ou nossa dupla de alazães vazia. 

Ontem, quantos passeios demos juntos!
Hoje, nesses cavalos já defuntos,
encontro apenas restos de ilusão. 

Mas um clarão de lendas muda o enredo...
Torna a girar o mágico brinquedo,
com a tua imagem me estendendo a mão...

terça-feira, 29 de maio de 2012

Casimiro de Abreu (Carolina) II – Caiu!


No fim da mesma alameda, embaixo do mesmo caramanchão, sentados sobre o mesmo banco onde seis meses antes  dois amantes se beijavam em prantos, dois amantes hoje beijam-se por entre sorrisos de prazer.

Ah! mulher! mulher! que tão cedo esqueceste o homem que te votou o amor mais ardente de sua alma! Esse homem a quem juraste vir aqui todas as tardes escutar o suspiro saudoso, que ele te havia de enviar nas asas da viração!...

Ah! mulher! mulher! que tão depressa esqueceste um homem que te ama, para ouvires os galanteios doutro que te cobiça!... Deixas adormecida em teu peito a imagem daquele por quem teu coração novel bateu as primeiras pulsações, ao mesmo tempo tímidas e suaves, e não te lembras que esse homem virá um dia, implacável como o destino, terrível como o raio, pedir-te o cumprimento das juras que lhe fizeste; exigir-te contas do seu amor, que tu escarneceste; das suas crenças, em que tu cuspiste; da sua alma, que tu assassinaste!...

Não te lembras que os lábios ardentes doutro homem roçaram as tuas faces?
Oh! para o futuro, nas horas mortas da noite, sentirás o pungir desse remorso!
...........................................................................................

O dia está quase no seu termo; em breve virá a noite com seu silêncio, suas estrelas, seus fantasmas, seus mistérios!...

Eles falam; escutamos:

— Olha, Fernando, ontem esperei-te tanto tempo, e tu não vieste! Estava aqui sentada só, triste! Qualquer ruído que sentia na estrada, dizia comigo: é Fernando; e enganava-me, não eras tu! 

— Não vim ontem, porque não pude; mas vi-te. 

— Não vieste e viste-me?!

— Vi-te sim, Carolina, vi-te em sonhos como te vejo todos os dias. E que outra mulher senão tu, há-de vir abrilhantar os meus sonhos? Às vezes, vejo-te similhante a um anjo, fugires da terra envolta em nuvens vaporosas. Ontem vi-te aqui, neste mesmo parque. Tu eras já minha e estavas tão linda como agora; o céu sorria-se para ti, os pássaros gorjeavam para tu os ouvires, a brisa brincava com teus cabelos e tu brincavas com as flores...

— E tu, Fernando?

— Eu?! Corria atrás de ti para te dar um beijo e tu fugias ligeira como a gazela e depois cansada, com teu seio a arfar, com teus lábios entreabertos, com tuas tranças soltas, caías desfalecida em meus braços... e ambos gozávamos gozos, delícias, como só se gozam no céu... estávamos no paraíso. Ah! que sonho tão lindo, Carolina! Mas era um sonho. Foi cruel o despertar. 

— Não te acredito, disse ela com um sorriso, que queria justamente dizer o contrário. 

— Mas eu não te engano; amo-te como um louco, amo-te como ninguém nunca amou, porque és tu a mulher que eu havia sonhado nos meus sonhos da infância, nos meus sonhos da adolescência, nos meus sonhos dos 18 anos, quando o coração tem necessidade d’amor, quando os lábios desejam que os beijos duma mulher venham mitigar a sede que os abrasa. 

E Fernando pôs-se de joelhos aos pés de Carolina, cingindo-lhe a cintura flexível e delicada, com seus braços nervosos. 

— E tu, Carolina, também me amas?

— Muito, muito, disse ela, e subjugada pelo olhar ardente de Fernando, uniu seus lábios corados aos dele, que queimavam...

A noite tinha estendido o seu manto: as estrelas cintilavam no firmamento, grossas nuvens  haviam ocultado a face da lua. 

A noite tem seus mistérios! 
......................................................................

No meio daquela mudez aterradora, soou um grito de mulher, abafado logo por algum beijo. Teria Carolina visto a figura d’ Augusto desenhada no muro fronteiro?...
.......................................................................

Meia hora depois, à claridade da lua que se mostrou de súbito, um vulto de mulher atravessava apressado a alameda, dirigindo-se para casa, grave como um fantasma, trêmulo como um condenado!
........................................................................

As estrelas cintilavam mais frouxas, a lua ocultou-se de novo e um murmúrio indefinível, similhante a um queixume, parecia subir da terra ao céu...

Carolina, tinha uma coroa de virgem que lhe circundava a fronte como uma auréola brilhante; Fernando arrancou essa coroa e calcou-a aos pés!...

O anjo caiu do seu pedestal d’ inocência... a rosa purpurina e bela pendeu na sua haste... o vento da noite levou-lhe as folhas...

Continua…

Fonte:
ABREU, Casimiro de.  Carolina.  in SILVEIRA, Sousa da (org.). Obras de Casimiro de Abreu.  2ª ed.   Rio de Janeiro:  Ministério da Educação e Cultura -MEC, 1955. Texto-base digitalizado por: Fernanda Duarte, Rio de Janeiro – RJ

Tatiana Belinky (A Luva)

Ilustração: Maria Eliana Delarissa

Foi nos tempos distantes do amor cortês. No reino medieval do rei Franz era dia de festa, e o ponto alto das festividades era a exibição de feras selvagens, trazidas de terras distantes, na arena do grande castelo. Em volta da arena erguiam-se as arquibancadas, encimadas por altos balcões onde brilhavam os nobres da corte, ao lado das belas damas faiscantes de jóias. Entre elas se destacava a donzela Cunegundes, tão rica e formosa quanto orgulhosa, e de pé ao seu lado estava o seu apaixonado adorador, o jovem cavaleiro Delorges, cujo amor ela desdenhava, distante e fria.

 Chegou a hora do início da função. A um sinal do rei, abriu-se a porta da primeira jaula, da qual saiu, majestoso, um feroz leão africano e, sacudindo a juba dourada, deitou-se na areia, preguiçoso. Abriu-se a segunda jaula, liberando um terrível tigre de Bengala, que encarou o leão com olhos ameaçadores e deitou-se também, tenso, como quem prepara um bote mortal. Em seguida, abriu-se a terceira jaula, da qual saltaram, quais enormes gatos negros, duas panteras de dentes arreganhados, deitando-se agachados e aumentando a tensão do ambiente.

 Fez-se um silêncio no público: todos aguardavam ansiosos um pavoroso embate mortal entre os quatro monstros felinos... E neste momento, como que sem querer, a donzela Cunegundes deixou cair, do alto do balcão, sua branca luva, bem no centro da arena, entre as quatro feras assustadoras. E dirigindo-se com um sorriso irônico ao seu cavaleiro adorador, falou, afetada:

 "Cavaleiro Delorges, se de fato me amais como viveis repetindo, provai-o, indo buscar e me devolver a minha luva."

 O cavaleiro Delorges não respondeu nada e sem titubear, desceu rápido do balcão e com passos decididos pisou na arena, entre as fauces hiantes e as presas arreganhadas das quatro feras. Calmo e firme ele apanhou a luva, e sem olhar para trás e sem apressar o passo, voltou para o balcão, sob os sussurros de espanto e admiração de todo o público presente.

 A donzela Cunegundes estendeu a mão num gesto faceiro para receber a luva e com um sorriso cheio de promessas, falou:

 "Ganhaste a minha gratidão, cavaleiro Delorges."

 Mas em vez de entregar-lhe a luva, o cavaleiro Delorges atirou-a no belo rosto da dama cruel e orgulhosa: "Dispenso a vossa gratidão, senhora!", ele disse.

 E voltando-lhe as costas, o cavaleiro Delorges foi embora para sempre.

Fonte:
Recontado de um poema de Schiller por Tatiana Belinky
Disponível na Revista Nova Escola

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 563)

Salina no Rio Grande do Norte
Uma Trova de Ademar  

O bom sal que o mar cultiva 
pinta de branco a salina... 
Faz mais rica e produtiva 
a região nordestina! 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Uma Trova Nacional  

Briguei contigo, é verdade, 
peço perdão, volto atrás 
e faço desta saudade 
bandeira branca de paz! 
–DOMITILLA B. BELTRAME/SP– 

Uma Trova Potiguar  

Inveja é coisa mesquinha
de uma pessoa sem brio,
amargurada e sozinha
que faz da vida um vazio...
–HELIODORO MORAIS/RN– 

Uma Trova Premiada  

2006 - Nova Friburgo/RJ 
Tema : FRONTEIRA - M/H 

Sempre estão nos corações
as soluções verdadeiras:
quando o amor une as razões,
somem todas as fronteiras.
–MILTON SOUZA/RS– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Mocidade, quem me dera
retomar, com teu calor,
um pouco de primavera
no meu inverno de amor!
–DURVAL MENDONÇA/RJ– 

Uma Poesia  

MOTE : 
Nossa terra e a terra lusa, 
na doce língua que as liga, 
são cordas nas mãos da musa, 
cantando a mesma cantiga. 
–Dorothy Jansson Moretti/SP– 

GLOSA : 
Nossa terra e a terra lusa, 
se fundem no amor sincero, 
numa amizade que cruza 
esse enorme oceano austero. 
Estando assim irmanadas 
na doce língua que as liga, 
sementes serão lançadas 
nessa língua tão amiga! 
Que esta amizade as conduza, 
pois suas inspirações 
são cordas nas mãos da musa, 
ao bater dos corações. 
Abençoando os amanhãs 
que Deus a musa bendiga, 
unindo as pátrias irmãs, 
cantando a mesma cantiga. 
–GISLAINE CANALES/SC– 

Soneto do Dia  

Poeta 
–JOÃO BATISTA X. OLIVEIRA/SP– 

O poeta, vetor da porcelana,
é o arauto das dores e janelas.
Suas veias, refúgio das procelas;
coração, a ruína da pantana.

Ele é o misto dos olhos sem cancelas
com murmúrios que ouvido não se engana.
E na busca da força sobre-humana
sorve o brilho das auras e aquarelas.

Sonha grande e maior é a plenitude
do caminho perene da altitude
em limite de céu, seu companheiro.

Mente aberta aos meandros das mensagens;
mãos dispostas aos versos das miragens...
eis o vate das asas hospedeiro!

Lidia Izecson de Carvalho (Confusões do Seu José)

Ilustração Victor Malta
Seu José foi ao mercado
 Comprar pra semana inteira
 Pegou de tudo um pouco
 Até uma enorme peneira

 Sem pensar como pagar
 Continuou a gastança
 Abacaxi, melancia e morango
 Não era hora de fazer poupança

 Chegou na fila do caixa
 Já meio de cabeça baixa
 Não sabia onde estava o dinheiro
 Teria esquecido no banheiro?

 Procurou por todo lado
 Remexeu daqui e dali
 Do bolso saiu tanta coisa
 Pandeiro, alicate e jabuti

 Mas onde estava o dinheiro
 Isso todos queriam saber
 De repente ele lembrou
 Assim meio sem querer

 Deu um sorriso amarelo
 E levantou o boné
 Sabia que tinha o dinheiro
 Não era nenhum caloteiro

 O que ninguém esperava
 Foi o que se viu então
 Tinha dez notas dobradas
 Somando quase 1 milhão

 Com tanto ladrão por aí
 Foi logo explicando o José
 O melhor é se prevenir
 Guardar na careca ou no pé

Fonte:
Revista Nova Escola

Fanny Abramovich (Dona Licinha)


A senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas... A senhora ensinava na 3a série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé... Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3a B... Nunca tive tanta inveja na minha vida como tive das crianças da série B... 

 Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silêncio quebrado por uma voz suave...era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia... Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone sem fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos. 

 A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza! 

 Nunca ouvi berros, um "Cala boca", "Aqui quem manda sou eu" e outras mansidões que a minha professora dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de sopetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo... 

 Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3a série. Não fui... Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Também duma 3a série. Agora sou sua colega... Só não esqueço que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forçar barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, bailante. Também quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraçante. 

 Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da Dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas. 

 Um abraço apertado, 
 cheinho de gostosuras, da
Ciça

Fonte:

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sotero Silveira de Souza (O Trovador da Lira Triste)


Quando eu não mais existir,
E talvez só cinzas for,
Creio que alguém há de sentir,
Saudades do trovador!

Quando vejo um beija-flor,
Nas roseiras do jardim,
Corro e beijo o meu amor,
Que também perfuma assim!

Dizem que para se amar,
Deve-se ter coração;
Assim não posso explicar,
Por que tu me amaste então?

A vida é cheia de males,
Às vezes é cheia de dor;
Por isso eu peço que cales,
Eu sofro mal de amor!

Saudade levo comigo,
Contigo deixo também,
A saudade é o inimigo,
Mais cruel que a gente tem!

Se o mundo fosse um canteiro,
E você fosse uma rosa,
Eu queria ser jardineiro,
Para beijá-la, cheirosa!

Essa trova tão singela,
Que exprime amargor,
Foi composta por ela,
Que negou-me o seu amor!

Nesta vida muita gente,
Sofre muito por amar,
Minha dor é diferente,
Eu só quero te deixar!

Quisera ser passarinho,
Para voar na amplidão,
E depois, pousar de mansinho,
Na palma de tua mão!

Caminhei muitos caminhos,
Por estradas mil passei,
Só achei dores, espinhos,
Até que eu te encontrei!

Eu sei que vou padecer,
Uma tortura tão louca,
Mas não me deixes morrer,
Sem antes beijar tua boca!

Irmã gêmea da tristeza,
E talvez, prima do amor,
A saudade é dureza,
E um peito sofredor!

Dizem que o mel é doce,
E que tem um bom sabor;
Quem dera que ela fosse,
Como os lábios do meu amor.

Eu sei que não posso dizer,
O calor que tem seu olhar,
Mas sei que pode ferver
Todas as águas do mar!

Uma coisa neste mundo
Que o meu coração palpita,
É dormir sono profundo,
No colo de moça bonita!

A lembrança mais sentida
Que trago nos dias meus,
Foi o dia de sua partida,
Sem dizer-me um só adeus!

Disse o poeta que a saudade,
É espinho cheirando flor;
Eu penso que é crueldade,
É lembrança de um amor!

Trouxe saudade, desgosto,
Da terra onde nasci,
Mas sepultei-as em teu rosto,
Tão logo, te conheci!

Quisera com emoção,
Feliz, carregar-te em dia
Na palma da minha mão,
Onde teu nome inicia!

Se amar é mesmo pecado,
O próprio Jesus pecou,
Pois amou até o soldado,
Que o peito o transpassou!

Bate o sino na capela,
Na tarde serena e calma;
Quando a vejo na janela,
Bate o sino da minha alma!

Por que choras passarinho,
À hora do pôr-do-sol?
Eu também estou sozinho,
Ó meu triste rouxinol!

Muito eu já tenho rogado,
Se não lhe desse desgosto,
Eu quisera ser enterrado,
Na covinha do teu rosto!

Garimpei por entre escolhos,
À procura de um tesouro;
Vi diamantes nos teus olhos,
E nos teus cabelos, ouro!

Chegaste na minha vida,
Como ave de arribação,
Dei-te agasalhos e comida,
Só me deste desilusão!

Sofro muito e me consolo,
Porque tenho esperança,
De deitar-me no teu colo,
E dormir igual criança!

Dizem que o amor é um ninho,
Macio igual algodão;
Eu creio ser feito de espinho,
E coça igual tinhorão!

Quando miro nos teus olhos,
Às vezes fico pensando,
Se olho verdes abrolhos, 
Ou se eles estão me olhando!

Meu amor, a minha vida
Está toda condenada;
Sou a triste ilusão perdida,
Um vulto só, e mais nada!

Não sei porque tu me olhaste,
Se eu não posso te amar;
Por acaso já pensaste,
Como fere o teu olhar?

Guardo comigo um queixume,
E jamais pude dizê-lo,
Quisera ser vagalume,
Na noite do seu cabelo!

Meu laço de fita verde,
De tão velho desbotou,
Esperando na parede,
Um amor que não voltou!

Uma vez que te pedi um beijo,
Para selar o nosso amor,
Respondeste com gracejo;
Tal selo não tem valor!

Ah! Se Deus me desse sorte,
De escolher onde espirar,
Eu quisera ter a morte,
No abismo de teu olhar!

Não sei dizer o que sinto,
Quando beijo aos lábios teus;
Para mim, juro, não minto,
É a maior graça de Deus!

Teve a boa mãe natureza,
Com você carinho e gosto;
Deu-lhe uma rara beleza,
E linda pinta no rosto!

Tinha tudo e me casei,
Minha mãe ficou chorando,
Até hoje não encontrei,
O que estava procurando!

Se você ver a alvorada,
Quando vai romper o dia,
É uma sombra desbotada,
Da beleza de Maria!

A palmeira solitária,
Lá no alto da colina,
Já a quase centenária, 
Pois te vi quando menina!

Tenho sido humilhado
Muita dor meu peito encerra;
Bem diz o velho ditado;
Ninguém é rei em sua terra!

Se quiseres ver ao certo,
Um oásis de bonança,
Observe bem de perto,
Os olhos de uma criança!

Esta vida é banal,
A grande verdade encerra;
O homem que é mortal,
É um transeunte na terra!

Por ambição eu deixei,
Minha mãe, anjo de luz;
Hoje, saudoso voltei,
E só encontrei sua cruz!

Gameleira mutilada,
Que faz sombra pelo chão,
Vou vingar a machadada,
Que lhe deu aquela mão!

Certa vez eu vi um cego,
Puxado por um menino;
Eu tive inveja, não nego,
Do gesto do pequenino!

Diz alguém que eu sou culto,
De carreira promissora;
Deve tudo a um vulto,
Minha santa professora!

Se pudesse o meu destino,
Conceder-me uma esmola,
Eu quisera ser um menino,
Pra voltar à minha escola!

Relógio da minha vida,
Por que disparas assim?
para que tanta corrida,
Se tem que chegar ao fim?!

O homem que tem juízo,
E bondoso de coração,
Responde com um sorriso,
As afrontes que lhe dão!

Do milionário, triste sina,
Saber que ele vai morrer,
Pode comprar a medicina,
E nada lhe vai valer!

Sem pensar e sem maldade,
Eu esbanjei gastando à bessa,
Um tesouro, a mocidade,
Que acabou-se tão depressa!

O único beijo do mundo,
Que não foi prova de amor,
Foi o de Judas, imundo,
na face do Salvador!

Todos tem o seu destino,
Até o rio que corre,
Mas o pobre peregrino,
Só no dia em que ele morre!

Há homem culto e bronco,
Para nós não é segredo;
Um nasceu para ser o tronco,
O outro simples arvoredo!

Certa vez eu vi um amigo,
Que chorou para morrer!
Até hoje eu não consigo,
A sua lágrima entender!

Na vida há muita gente,
Que nos sorri de alegria; 
Por dentro é diferente,
É tudo hipocrisia!

Os lírios níveos do mato,
Que vicejam na solidão,
Tem muito mais aparato,
Que as vestes de Salomão!

Olhai as aves do céu,
Não plantam, não sabem ler,
Vivem felizes ao léu,
E Deus lhes dá o que comer!

Se eu parar de fazer trova,
Por faltar inspiração,
Quero do doutor a prova,
Que morri foi de paixão!

Há muita gente que insiste,
Em só reclamar da sorte;
Mas a pior vida que existe,
É bem melhor do que a morte!

Meu querido arvoredo,
Meu destino agora é seu,
Você sabe o meu segredo,
Foi aqui que aconteceu!

Deixaste-me por dinheiro,
E trocaste o meu amor,
Por um vil aventureiro,
Que não tem nenhum valor!

Alguém diz que não esquece
Na vida o primeiro amor,
É uma chama que aquece,
A alma do sofredor!

O homem vive em carreira,
Numa luta insofrida;
Tudo! De qualquer maneira,
Chegará ao fim da vida!

A pérola tão luzidia,
Que hoje brilha e reluz,
Foi a lágrima de Maria,
Que correu ao pé da cruz!

Já tive muitos amores,
No curso da minha vida,
São estes os meus valores,
Que levo para outra vida!

Nem sempre a rara beleza,
Felicidade irradia;
Carinho e delicadeza,
É que nos traz simpatia!

Eu quero na sepultura,
Onde um dia eu repousar,
Este dito de ternura:
Voltarei para te buscar!

O olhar que tem mais brilho,
E penetra mais profundo,
É o olhar da mãe pro filho,
Quando este vem ao mundo!

Dizem que o homem de idade,
Volta  a fazer criancice,
Claro, pois sente saudade,
Do tempo da meninice!

O ser mais rico que existe,
Aqui na face da terra,
A sua riqueza consiste,
Em sete palmos de terra!

Alguém diz que de amar tanto,
Vai o homem para o inferno;
Há porém o amor santo,
E também o amor materno!

Os prazeres indizíveis,
Quie adornam o meu passado,
São dias inesquecíveis,
Que vivi, só a teu lado!

Vim para matar saudade,
Consolar meu coração,
Hoje volto pra cidade,
Mais pesado de paixão!

A cruzinha da estrada,
Toda enfeitada de flor,
Faz lembrar-me a doce amada,
Que morreu por meu amor!

Minha mãe, quando nasci,
Contemplou-me a chorar,
Desde então sempre segui,
O fulgor daquele olhar!

Aquele beijo envolvente,
De lembrança tão querida,
Foi o beijo mais ardente,
Que roubei na minha vida!

Eu não posso te querer,
Pois sou pobre, sem valor,
Vou lutar para merecer,
O teu dote, o teu amor!

Não permita o meu fado,
Que eu morra de solidão,
Deixe que eu seja enterrado,
Dentro do teu coração!

Eu nunca aprendi a nadar,
E jamais eu quis fazê-lo,
Só para um dia afogar,
Nas ondas do teu cabelo!

Vou lhe dar o seu presente,
É tão lindo e delicado,
Feito de couro reluzente,
Um rico anel de noivado!

A mulher é criticada,
Pelos lindos dotes seus;
Do demônio não tem nada,
É a obra prima de Deus!

Casimiro de Abreu (Carolina) Parte I - Adeus


I

ADEUS!

Na estrada que conduz de Lisboa a *** erguia-se há poucos anos uma casa de bonita aparência, com sua vinha verdejante, seu pomar odorífero, seu jardim pequeno, mas bonito, suas alamedas, curtas mas frondosas. O muro da quinta era alto bastante, e contudo os ramos das faias e dos choupos gigantes debruçavam-se sobre ele, assombrando com sua folhagem majestosa a estrada, que o mesmo muro flanqueava para um pequeno espaço.

Ao ver-se essa pequena casa cercada de perfumes, de verdura, de sombra e de poesia, podia-se sem receio dizer: seus habitantes são felizes. E eram. Viviam entregues aos prazeres mais doces da vida doméstica. Acordavam quando a natureza despertava, no meio do trinar das aves, do sorrir da manhã e do sorrir das flores; adormeciam sossegados ao som do vento da noite que zunia, dobrando a coma dos arvoredos. 

Era uma bela tarde de maio de 1848. Os raios moribundos do sol no ocaso pareciam dormir nos bastos olivais que coroavam a crista dos outeiros; uma viração suave e branda refrescava a atmosfera, sussurrando por entre as folhas e alterando o espelho tranqüilo do lago onde o cisne vogava majestoso; o céu trajava o azul mais puro apenas manchado aqui e além por ligeiras nuvens brancas, similhantes a vapores, como se fossem os rolos de incenso que os turíbulos da terra enviavam aos pés do Senhor, impelidos pelas auras bonançosas. Era na verdade uma tarde de primavera, da primavera, mocidade do ano, dessa quadra amena e deleitosa, que por toda a parte entoa o canto grandioso da criação!...

No fim duma das alameda da quinta, debaixo dum lindo caramanchão, acabavam de assentar-se um rapaz de 20 a 22 anos e uma menina de 17 ou 18. Tinham os braços entrelaçados e olhavam-se com esses olhares ternos dos amantes. 

Que lindo par! Ele, belo com essa beleza que distingue o homem; ela, bela com essa beleza que Deus dá só às mulheres! Ai! um sorriso que se desprendesse dos lábios formosos daquela virgem, mataria de amores um homem! Um olhar meigo e terno que brilhasse por entre aquelas pestanas aveludadas, venceria o mundo!

— Ora diz-me a verdade, Augusto, sempre partes amanhã? disse a jovem a seu companheiro, com uma voz suave como teriam os anjos, se eles falassem. 

— Não me acreditas, Carolina? Para que te havia de eu enganar?

Carolina fitou seus olhos negros nos de Augusto, e disse-lhe corando: 

— Para quê?!

— Olha, és injusta; um dia to hei-de provar.

— Mas tu não te demoras muito, não é assim?

— Não sei; mas mesmo que me demore muito, um dia hei-de voltar. 

— Ah! tu já não me amas! disse ela, e duas lágrimas despregaram-se de suas pálpebras e vieram cair-lhe no seio. 

— Carolina! Carolina! cada vez te amo mais, meu anjo. 

E Augusto encostou a cabeça da virgem ao seu peito e beijou-lhe a fronte. 

E os pássaros cantavam seus gorjeios, e a fonte murmurava seus queixumes, e a brisa dizia seus segredos!...

— Escuta, querida, podes vir todas as tardes sentar-te sobre este mesmo banco, podes até trazer o meu retrato que eu te dei; e quando os pássaros cantarem, quando o sol s’ esconder, quando a brisa brincar com as flores, tu ouvirás os meus protestos d’amor. Sentado à popa do navio que me levar, pisando solo estranho longe de ti, eu direi à viração do mar, eu direi às brisas da tarde: levai-me este suspiro a Carolina. 

— Sim, sim, murmurava ela, manda-me um suspiro. 

— E quando um dia, continuou Augusto, a estas mesmas horas, tu ouvires uma voz cantar estes versos:
Ó querida, estou de volta,
Venho-te um abraço dar;
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.
Então, meu anjo, sou eu, é o teu Augusto; então, eu o juro, tu serás minha à face do mundo e à face de Deus; então nós viveremos.

— Oh! Augusto! Augusto! não partas, não me deixes! e a jovem banhara-se em pranto e soluçava. 

— Oh! eu devo partir, mas creio em Deus, também hei-de voltar. 

E Augusto com a voz trêmula e os olhos umedecidos, abraçando a virgem, disse-lhe:

— Adeus, Carolina!

— Adeus, Augusto! Para sempre?!...

— Não! não!

E seus lábios se encontraram num longo beijo d’amor, no meio de lágrimas e soluços. 

Um grito, agudo e lúgubre como o do mocho, retumbou no espaço!...

— Jesus! exclamou Carolina, cobrindo o rosto com as mãos. 

— Não creio em agouros! respondeu Augusto cavalgando o muro. 

Um momento depois sentia-se o tropel dum cavalo que partia a toda a brida para Lisboa...

Quando esse ruído se perdeu ao longe, Carolina juntou as mãos e disse em voz baixa: 

— Adeus, Augusto! adeus!...

Quase ao mesmo tempo, o cavaleiro que parecia fugir nas asas do vento, murmurava:

— Adeus, Carolina! adeus! 

Continua…

Fonte:
ABREU, Casimiro de.  Carolina.  in SILVEIRA, Sousa da (org.). Obras de Casimiro de Abreu.  2ª ed.   Rio de Janeiro:  Ministério da Educação e Cultura -MEC, 1955. Texto-base digitalizado por: Fernanda Duarte, Rio de Janeiro – RJ

Flávia Muniz (O Espelho e a Perua)

Ilustração de Ionit
A confusão começou 
 Certa vez, no galinheiro, 
 Quando as aves encontraram 
 Um espelho no terreiro. 

 Uma galinha vaidosa 
 Logo quis contar vantagem: 
 - Com licença, galináceas, 
 Vim conferir minha imagem! 

 A pata, torcendo o bico, 
 Comentou com a vizinha: 
 - Não vale arrancar as penas 
 Pra parecer mais magrinha! 

 E qual não foi a surpresa 
 Das aves estabanadas: 
 No reflexo do espelho 
 Só tinha coisas erradas! 

 Quem era alta e bela 
 Viu-se feiosa e baixinha. 
 Quem era gorda e forte 
 Ficou magrela e fraquinha. 

 - Credo! - grasnou o marreco. 
 - Cruzes! - o pinto piou. 
 - Incrível! - cantou o galo. 
 E o papagaio berrou. 

 A galinha carijó 
 Foi quem depressa falou: 
 - Este espelho tem feitiço... 
 Foi a bruxa que o mandou! 

 - Mentira! - disse a perua, 
 Balançando as pulseiras. 
 - Li esse conto de fadas, 
 Vocês só dizem besteiras! 

 Estufou-se, bem danada, 
 Mostrando o papo vermelho. 
 E com pose de malvada 
 Fez a pergunta ao espelho: 

 - Espelho, espelho meu! 
 Responda se há no mundo 
 Outra ave mais bonita, 
 Mais charmosa e elegante, 
 Mais esperta e fascinante, 
 Mais incrível e imponente, 
 Mais formosa do que eu? 
 Diga logo, espelho meu!! 

 Os bichos, impressionados, 
 Ouviram com atenção 
 A resposta do espelho 
 A tamanha pretensão: 

 - Se você quer a verdade, 
 Vou dizê-la, nua e crua. 
 E mostrar a realidade 
 Para uma simples perua. 

 Você disse que é esperta, 
 Imponente e charmosa. 
 Mas parece antipática, 
 Falando assim, toda prosa. 

 Desfila o ano inteiro 
 Como se fosse a tal. 
 Mas foge do cozinheiro 
 Quando chega o Natal!

Fonte:
Revista Nova Escola

Mia Couto (O Viúvo)


O arrepio nos mostra como a febre se parece com o frio. E é com arrepio que lembro o goês Jesuzinho da Graça, nascido e decrescido em Goa, ainda em tempos de Portugal. Veio com a família para Moçambique nos meados da meninice. Como aos outros goeses lhe perjuravam de caneco. Ele a si mesmo se chamava de Indo-_Português. Lusitano praticante, se desempenhou até à Independência como chefe dos serviços funerários da Câmara Municipal. Seu obscuro gabinete: a vida se poupava a ali entrar. O goês era antecamarário da Morte? Só uma graça ele se permitia. À saída do escritório, o funcionário se virava para os restantes e fatalmente repetia:

-  Ram-ram!- 

Há-de morrer nesse ramerrão, comentavam os colegas. E reprovavam com a cabeça: o caneco não mata nem diz acta. Jesuzinho Graça se ria, no desentendimento. "Ram-ram" era a despedida em concanim, língua de seus antepassados indianos.

Vivia nesse constante apagar-se de si, discreto como abraço da trepadeira. Para ele o simples existir já era abusiva indiscrição. O caneco molhava o dedo no tempo  e ia virando as páginas, com método e sem ruído. A unha do mindinho se espichara tanto, que o dedo se tornara simples acessório.

-  A unha? É para virar a papelada- , respondia ele.

Aquela unha era o - mouse-  dos nossos actuais computadores. O dito apêndice era motivo de zanga conjugal. A esposa o advertia:

-- Com essa garra você nem pense em me festejar!

Jesuzinho da Graça resistia a todos os protestos:

-  Pela unha morre o lagarto!- 

Em tudo o resto era singelo e pardo como selo fiscal. Misantrôpego, fleumaníaco, com vergonha até de pedir licenças, Jesuzinho assistiu, de coração encolhido, à turbulenta chegada da História. A Independência despontou, a bandeira da nação se cravou na alegria de muitos e nos temores do caneco. Aterrado, ele se sentou nas proletárias reuniões onde anunciaram a operação para "escangalhar o Estado". A si mesmo se perguntava a justiça se faz por mão de injustos? Impávido e longínquo, Jesuzinho atendeu à sua despromoção, à mudança de gabinete. Todavia, o Oriente se limitava à aparência. Por dentro, se assustava com os súbitos, os súditos e os ditos da Revolução.

No silêncio da repartição ele ouvia as louças do mundo se estilhaçando. Entrava em casa e o mesmo malvoroço o perseguia. Ainda lograva pestanejar um sorriso quando os discursos anunciavam: "a Vitória é Certa!". Tocava o ombro da mulher e dizia:

-- Vê como você é certificada, Vitorinha?

Se Jesuzinho era sombra, a esposa Vitória era crepúsculo dessa sombra. No terceiro aniversário da Independência, no preciso momento em que clamavam os jargões revolucionários, Vitória ficou certa para sempre. A goesa fechou nos olhos o olhar. Sob a parede do crucifixo, o funcionário a cobriu de lençol e rezas. Findava ali a única família, o único mundo de Jesuzinho da Graça. 

Nos seguintes meses, o viúvo manteve o comportamento. Jesuzinho era como a formiga que nunca descarreira? _única diferença: agora se demorava entre o ali e o acolá. E com o demorar da solidão ele foi entrando na bebida. O jovem empregado doméstico lhe perguntava a medo:

-  O senhor não tem parentesco com ninguém?- 

Jesuzinho apontava a garrafa de aguardente. Aquele era o seu parente por via do pai. Depois, se lembrava e apontava o crucifixo na parede.

-  Esse outro, ali na parede, é via da mãe.

De improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso. Aos poucos, o goês deu sinais de maior desarranjo: as horas se perdiam dele. Funcionário do zelo, eterno cumpridor de regulamento, deixou de espremer o mata-borrão sobre os escritos de sua lavra. Saudades de um tempo em que o mundo era dócil, autenticável em 25 linhas?

Mas mesmo em suas inatitudes ele mantinha aprumo. Terças-feiras era dia de bebedeira, sua única combinação com o tempo. Ia para o bar, transitava lentamente para dentro do copo, espumava as agonias. Chegava tarde a casa, desalinhado mas sempre cuidando do fato branco. Se postava no canapé, acendia o cigarro que diria a falecida? e puxava o cinzeiro de pé alto, passando as mãos pelo ébano torneado. Trançava ainda o cabelo de Vitória? Depois, fazia estalar a unha nas unhas e chamava:

-  Piquinino: ande a desapertar a gravata .

O empregado acorria a lhe aliviar a garganta. Lhe despescoçava a camisa e entornava uns pós-de-talco sobre a camisola interior. Desfeito o nó e já ele estava disposto ao sono. Serviço do moço era ficar vigiando o descanso do patrão.

Aqueles sonos eram sobressalteados. Passava uma frestinha de tempo e o caneco gritava pela falecida. Sua mão trêmula apanhava o telefone, ligava para os céus.  Era então que estreiava a mais nobre função de Piquinino: fingir-se dela, imitar voz e suspiros da extinta.

-  Vucê qui está pagar chamada, Vitorinha. Aí, no céu, tudo sai mais barato.

O empregadinho se esforçava em aflautinar a voz, copiando os esganiços de Vitorinha. Acabadas as conversas, o empregado copiava os modos da antiga senhora e brilhantinava os cabelos do patrão, acertando a risca em diagonal no cabelo.

Todavia e à medida do tempo, o moço se foi tomando de terrores. Ele se interrogava: imitar mortos? Brincar assim com espíritos só podia trazer castigo. Foi consultar o pai, pedir vantagem de um conselho. O velhote concordou: deixe o homem, fuja disso. E foi desenrolando sabedorias: quantos lados tem a terra para o camaleão? Os mortos sabe-se lá para quem estão olhando? O outro mundo é muitíssimo infinito: não há falecido que não seja da nossa família.

E o miúdo regressou decidido a nunca mais se prestar a aparições. Terça-feira chegou e o patrão, nessa noite, não saiu a rondar os bares. Parecia abatido, doente. Ficou deitado no sofá da sala, olhando para muito nada. Chamou o empregadinho e lhe pediu que se transvestisse de Vitória. O miúdo nem respondeu. Surpreso, Jesuzinho ficou a papagaiar baixinho. E se passaram momentos. Até que o jovem serviçal percebeu que o patrão chorava. Se debruçou sobre ele e viu que ladainhava o mesmo de sempre:

-  Vitorinha!- 

O empregado ficou estático. O patrão que implorasse que ele não avançaria um pé. O caneco, afinal, estava bêbado. O hálito não deixava dúvidas. Mas como, se não lhe vira a beber? Tivesse ou não emborcado, o certo é que ele transbordava babas e suspiros. Estava nesse devaneio quando murmurou as mais estranhas palavras: queria encontrar a esposa já devidamente desunhado. Entregando o braço no colo do empregado, implorou: 

-  Me corte a unha, Piquinino!- 

No dia seguinte, encontraram o empregado, imóvel junto à poltrona do patrão. O que o moço falou foi para ninguém deitar crédito. O seguinte: mal começou a cortar o rente da unha, o patrão se desvaneceu, como fumo de incenso. E a unha está onde, pá? O miúdo debruçou-se sobre o soalho e levantou o que, por instante, pareceu ser uma desflorida pétala. Sorriu, lembrando o patrão. E exibiu a derradeira extremidade da sua humanidade.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.