quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Isabel Furini (Viver ou Ver a Vida Passar?)


 Penso que A VIDA É UMA VIAGEM. Não podemos ficar como barcos encalhados. 

Nos anos 90, uma amiga me convidou para participar de um curso de organização mental. Para reconhecer afinidades entre os participantes, a professora, já na segunda aula, deu-nos um questionário. Uma das perguntas era: o que você quer mudar de sua vida?

Céus! A maioria de nós queria mudar tanta coisa que ficamos surpresos porque minha amiga disse: Eu não quero mudar nada, quero que tudo continue igual, sou aposentada. Uma vez por semana vou até Araucária para ver minha cunhada, uma vez por mês desço à praia para comer um peixinho em Paranaguá e duas vezes no ano vou ao Rio para visitar minha irmã. Eu não quero que nada mude.

– Mas você não disse ontem que mora sozinha?

– Sim, mas eu gosto de morar sozinha.

– E não disse que não gosta do clima frio de Curitiba?

– Sim, mas eu não vou mudar de residência.

– Você não disse que gostaria de cantar?

– Sim, mas tenho tempo de participar de um coro. Eu tenho minha vida bem organizada.

– Desculpe, mas se quer que tudo continue igual, quer dizer que não tem nenhum sonho? Nenhuma meta?

– Não! Já fiz tudo o que eu queria na vida. Entrei em uma empresa como estagiária, antes de terminar a faculdade, trabalhei lá toda a vida e me aposentei. Não quero nada novo, quero que minha vida continue como está.

– Parece que deixou de viver... – afirmou a professora.

Um dos alunos, um rapaz muito brincalhão, exclamou: 

– Parece uma morta-viva!

E a namorada do rapaz começou a caminhar como um zumbi pela sala. Minha amiga ficou zangada e reclamou dizendo que quando eles envelhecerem, verão como é a vida realmente.

- Desculpe, senhora. - disse o rapaz - Idosos também têm sonhos. Veja o caso de dona 

Claudina (a velhinha estava sorridente), ela quer conhecer as pirâmides do Egito. Para mim o problema não é que a senhora seja idosa. Para mim, o problema é que a senhora já morreu e ainda não sabe disso.

Eu fiquei impressionada porque esses jovens me apresentaram um retrato de minha amiga que eu não conhecia. Eu tentei falar com ela, mas ela não queria dialogar. Não queria mudar. Entendi que era o momento de afastar-me dela, pois precisamos de amigos vivos, com metas, com sonhos, com alegria. Pessoas capazes de dialogar e, se for preciso, de criar mudanças. Não importa aposentar-se de um trabalho, mas não podemos aposentar-nos dos sonhos, porque a vida é um constante aprendizado.

A VIDA É UMA VIAGEM. Não podemos ficar como barcos encalhados.

Fonte:
http://contosecronicasdeisabel.blogspot.no/2012_04_01_archive.html

Cristina Pires (Sonetos Escolhidos)


SILÊNCIOS QUE PERDURAM

 Serás tu, Tempo, responsável pelo uso
 Dos mares e das naus perdidas nas rotas
 Dos céus gastos p'las asas das gaivotas
 Que rondam o patamar de um olhar difuso?

 Serás tu, Tempo, o guardião das imortais
 Trocas de frases silenciosas e das rondas
 Dos desejos que pululam em tíbias ondas?
 Gastaram-se as janelas, e os véus orientais

 Que estas mãos tanto amarrotaram...figurantes
 De um cenário de passos e risos vagantes!
 Gastaram-se, para sempre, as rocas e os fusos

 Que urdiam colchas em lentas e suaves gavotas.
 Só os muros, forrados com ais poliglotas,
 Ó Tempo, não se usam c'os silêncios reclusos…

EFÉMERO

 Ilusões! Ilusões e desencantos!
 Ouropéis... consciências ressequidas
 Nas ruelas das lágrimas pungidas
 P'la Essência nefanda de alguns cantos.

 Céus! Glória! Entoam mudos os santos
 Do vale Azul da alma, que com bridas
 De algodão chafurdam às escondidas
 Nas promessas olvidadas nos prantos.

 Almos encantos! Queixumes opacos
 Em esquifes sublimes de uns patacos,
 Purgam no fel de ventos subalternos.

 Vai! Adentra, sem dó, no prazer rubro
 E sepulta, na Terra, esse delubro,
 Dos pórticos de ferro e dos Infernos!

GEADAS DE INVERNO

 Por entre as frestas, cinzeladas na janela
 do meu singelo olhar, perdido num vão,
 Assisto a duelos, entre o Sol e o Deus Trovão,
 Nos frios lençóis dum leito ornado de procela.

 Glaciais rajadas, vêm num ímpeto selvagem,
 Fustigar, calmamente, o fraco Sol restante
 nos poiais azuis celestes, do árido semblante,
 Que me ofertaste, gentilhomem, com friagem.

 Se o Vento, cruel, não permite um fim feliz,
 Nem deixa entrar as réstias finais dum dia claro,
 Que seque já a Primavera..., e a cicatriz

 Que tu deixaste, em geadas, e extinguiste, assim,
 as altaneiras chamas, fósseis dum amparo
 num Inverno conjugal; num leito de marfim!

NOITES DE ÂMBAR E D'ARGENTO

 Folheio, em um resumo, as belas noites quentes; 
 As noites salpicadas de âmbar e de argento, 
 Que iluminavam paixões, em quartos crescentes, 
 Com brilhos intensos, levados pelo vento... 

 Foram tão breves as insónias no teu corpo; 
 Nos braços teus..., relíquias dum tempo voraz! 
 Amante fui, amante sou, e serei porto 
 Dos teus passados! Já passados, fica a paz... 

 Relembro, hoje, os teus cabelos já nevados 
 No frio do Inverno cruel; os lençóis enrugados; 
 A minha pele de tons cor de rosa murcha... 

 Agora, não sei dormitar só e ao relento; 
 É, pois, nos braços teus, que morre o sofrimento 
 Do corpo meu, que pelo teu, tanto estrebucha…

XV - REMINISCÊNCIAS DESSE BEIJO 

 Ah ! Aprazíveis eram aqueles momentos, 
 Quando, eufórica, ficava à tua espera 
 À janela, vestida de carmim e hera, 
 Flutuava nas alamedas do firmamento. 

 Ah ! Que ainda hoje rememoro esse beijo, 
 Que de tão incendiário, desbastava o pranto, 
 Quando me banhava sob o nenúfar branco, 
 Na noite..., sob o luar prateado de desejo, 

 E hoje figuram as marcas do resguardo, 
 Nas folhas dos álamos..., nas horas do aguardo 
 Onde deixei solitário e virgem, o carme. 

 Hoje, trajo-me tão só de velhas lembranças… 
 Enterradas no peito ficam as tuas danças, 
 Daquele incendiário beijo pleno de charme.

XIV - BEIJOS LÍRICOS 

 Quando, eufórica, ficava à tua espera, 
 À janela via as andorinhas passar... 
 Vestidas de gala voando no versejar, 
 Voam, como eu voo, nas esquinas da primavera ! 

 Ficam os tempos, vão-se as cálidas vontades, 
 De abraçar o tempo fútil, desperdiçado 
 Em retóricas infecundas do passado, 
 Que só voltam nas asas livres das saudades ! 

 Ah ! Quem me dera viver a vida outra vez, 
 Lutar arduamente contra esta timidez, 
 E deixar de enaltecer tantos sofrimentos ! 

 Cortar as asas do abutre venenoso, 
 Morrer no antídoto do beijo amoroso... 
 Ah ! Aprazíveis eram aqueles momentos !

XII - BEIJO DO PECADO 

 Flutuava nas alamedas do firmamento, 
 De mãos dadas com a cupidez e o pecado. 
 Que mais me dá se me ofertam o mau olhado 
 Se é o teu beijo que me invade o pensamento ? 

 Permaneçam com o meu corpo!... Tanto dá ! 
 Essa não é essa a minha maior preocupação. 
 Que deixem a minha alma viver na monção... 
 Modesta moradia que a Terra engolirá. 

 Para ver-te chegar vestido de canela, 
 Nem os ventos me arredarão desta janela, 
 Nem os Diabos afastarão esta quimera, 

 Recolher esses teus doces lábios nos meus. 
 Impávida vejo-os passar esses ateus, 
 À janela, vestida de carmim e hera.

VII - BEIJO PROFANO 

 E hoje figuram as marcas do resguardo, 
 Nos rostos carcomidos pela vil demência, 
 De pensar que cada beijo alimenta a ausência, 
 Da liaça que preserva cada novo fardo. 

 Assim fui ! Demente ! Ávida de prazer ! 
 Febre delirante..., obcecação pelo achaque. 
 Fui larápia e profana. Ah ! Ignorei o vate. 
 Choro os pesares sem saber o que fazer. 

 Ilumina-me neste empedrado caminho, 
 Deus das Trevas, cede-me as hastes do azevinho, 
 Sucumbirei aos castigos por tanto vicejo. 

 Saberei reprimir esta minha avareza, 
 Quando adormeço nua no seio da natureza, 
 Na noite..., sob o luar prateado de desejo !

IV - BEIJO SALGADO 

 Hoje trajo-me tão só de velhas lembranças, 
 Como um ancião soneto que resiste ao tempo, 
 Em cadência, ritmo da dança do lamento, 
 Nas harpas suaves, acordes e ressonâncias. 

 Salteador implacável foste dos meus véus, 
 Trovador de lira, cancioneiro do luar, 
 Amo da lisonja, ático do meu pecar. 
 Excomungada serei dos valentes céus, 

 Se enxugar o sabor a sal do meu caminho. 
 Ébria solitária, cálice em desalinho, 
 Recuso veementemente a oferenda alarde. 

 Ao lado do orvalho do cardo das saudades, 
 Encaro o maligno Deus das Tempestades, 
 Onde deixei solitário e virgem, o carme !

Fonte:
http://www.sonetos.com.br/meulivro.php?a=4

Carlos Leite Ribeiro (Este Nosso Bairro)


Minha boa amiga, como hoje está a chover e não podemos sair, podíamos coscuvilhar aqui mesmo à nossa porta...

Olhe que este nosso bairro precisa de dar uma grande volta! Olha que precisa, precisa, pois antigamente, não se viam coisas como estas que hoje se veem. 

Sabe que no outro dia, a Isaltina (que é uma verdadeira fera para a filha), implicou com ela por causa de um refrigerante que tinha guardado num dos armários da cozinha? 

- Micas, aonde está o refrigerante que estava aqui, ainda ontem?

A moça corou muito, pensou, e como pode respondeu-lhe: 

- Minha mãe, despejei-o hoje... 

Logo a mãe quis saber "aonde". A Micas já mais confiante, replicou com ela: 

- Tu também queres saber tudo. Olha, despejei-o na sanita.

Coisas chocantes, chocantes, como vês minha boa amiga!
*****

Também a Francelina perguntou à filha: 

- O que aconteceria se tu estivesses grávida?

O que a filha logo lhe respondeu: - 

- Era um grande problema, minha mãe, pois, não sabia quem era o pai.
Isto sem comentários!
*****

Olha, a Emengárdia comentava no outro dia, em altos gritos: 

- O raio do gato comeu o bife que era para o meu marido. O que é que o pobrezinho agora vai comer?

Logo o inocente do seu filho, o Ernestinho, a aconselhou: 

- Agora, o papá terá de comer o gato…

Como vês, minha boa amiga, cá no bairro é tudo tão inocente.
*****

A calhandreira da Rita, comentou com uma vizinha: 

- O meu canário farta-se de cantar quando eu estou calada. Não sei o que lhe hei-de fazer? A vizinha ouviu, ouviu, pensou e depois aconselhou-a: 

- Olhe vizinha, fale você para ver se o canário se cala.

O certo é que o canário nunca mais cantou.
*****

Ai, antes que me esqueça: O Bertolino, aquele que anda sempre "vinicamente bêbado no outro dia entrou em casa em altos berros: - Sou um puro sangue - sou um cavalo de corrida!. 

A Venância, a companheira que está com ele, logo lhe perguntou: 

- Para tu seres um cavalo, o que serei eu? 

O descarado olhou para ela com desdém e, entre os dentes, sarcasticamente, respondeu-lhe: 

-Tu é que sabes, mas é conveniente que sejas uma égua…

Como vês, minha querida amiga, é preciso ter um grande descaramento. Isto só no nosso bairro!
*****

E a Leonilde, que no outro dia entrou no café vestida não sei de quê, e o Roberto, que tem a mania de ser esperto, perguntou-lhe: 

- Olha lá, tu estás mascarada de quê? 

A Leonilde olhou para ele com desprezo e logo lhe respondeu: 

- Estou mascarada de Lady Godiva!

Como o Roberto que não é estúpido de todo, voltou à carga: 

- Para isso tens o cabelo muito curto! 

Ela sorriu e retorquiu-lhe: - 

- É por isso que estou toda vestida.

Enfim, minha querida amiga!
*****

E a Micaela, que começou a andar em volta de um canteiro, em volta de um canteiro, e quando lhe perguntaram o que andava a fazer, respondeu: 

- Ando a ver se encontro o centro da gravidade…

Vê lá tu, minha boa amiga, como ela ainda tivesse o “centro da gravidade"!

Neste mundo ainda existem pessoas muito desavergonhadas, como por exemplo, a Felismina, que na semana passada perguntou à Márcia como estava o marido. Ela, naturalmente, respondeu-lhe que estava bem. Foi então que a desavergonhada lhe atirou com esta: 

- Minha querida amiga, o que é que acontecia, se eu aparecesse toda nua ao pé do teu marido?!

A Márcia, não ficou nada contente com a pergunta. Pensou um pouco e em tom de gozo, retorquiu-lhe:

- Com certeza que o meu marido morreria de susto ao ver uma mulher tão malfeita

A Felismina sorriu desavergonhadamente e, secamente, respondeu-lhe: 

- Mas tu ainda agora mesmo disseste que ele estava vivo…

Ho minha querida e boa amiga, isto só à bofetada, só à pancada!

*****
Mas a melhor é a daquela Isabel, que tem a mania de ser púdica. Comentava noutro dia com a mãe: 

- Não sei aonde ontem meti os collants?

A mãe, tentou lembrar a filha: 

- Olha, minha filha, talvez as tivesses perdido…Como ontem o teu patrão te deu boleia, não te lembras? 

A filha logo concordou: 

- Tens razão mãe - e logo acrescentou: 

- Mas olha que não é o que tu pensas. Eu só tirei os collants... Porque, porque a correia da ventoinha se estragou e eu enrolei-as na poli, compreendes, na poli. - A mãe encolheu o nariz, e continuou: "

- E o que é que aconteceu às calcinhas? 

A filha ficou muito atrapalhada e, como pode, respondeu-lhe: 

- Agora me recordo, tirei-as para limpar o para-brisas, pois estava a chover…

Ai... Isto de mulheres... Os homens que as aturem! 

Nota: com tudo os gostos que as aturamos (pelo menos é a minha opinião.)

Fonte:
O Autor

Lêdo Ivo (Poesia Breve)


Ilustração: Robson Vilalba

A SÍLABA

O mundo inteiro cabe numa sílaba
e nela me refugio
para esperar a aurora.

Aprendi que Isto é Aquilo.
Não preciso aprender mais nada.
Já sei o essencial.

A noite guardou as chuvas de verão
e agora amanhece.
O dia é um voo de pássaro.

O DIA DOS HOMENS

Viver é preciso.
Não existe Inferno
nem Paraíso.

Apenas o chão.
E uma persistente
chuva de verão.

PRESSA JUSTIFICADA

Os mortos vão depressa
e a explicação é simples:
todos os cemitérios
devem fechar às cinco.

A MORTE DE UM ESTILISTA

Sua prosa era lapidar
e a morte o surpreendeu quando
estava castigando o estilo.
Na missa de corpo presente,
no recinto acadêmico
foi comparado a Camilo.
E seus pares derramaram
lágrimas de crocodilo.

OS DOIS TEOLÓGOS

“Se tudo é permitido,
não há liberdade”,
ponderava o poeta
na mesa do abade.

O ALCOÓLATRA

“Bebo porque Deus não existe”,
dizia o alcoólatra, mirando
o mundo com seus olhos tristes.

PARADA DE ÔNIBUS

Nas filas dos ônibus, quando anoitece, e o nada
[recolhe ao seu arquivo mais um dia jogado fora,
um cigarro entre os dedos é tudo o que resta
da iracunda piedade que o homem tem por si
[mesmo.

LAMENTAÇÕES DE CAMÕES

Fui amor, fui paixão e celebrei
o mundo, o vento e as ilhas infinitas.
Mas hoje, neste quarto centenário,
me assombra o meu destino.
Linguistas e filósofos fizeram
de mim uma apostila.

QUEIXA DO EDITOR DE POESIA

“Poesia não se vende,
ninguém a entende!”
− suspira o editor.
Poesia! Poesia!
Ninguém te entende.
És como a morte e o amor.

A TRAVESSIA

Quem ia na balsa
que, naquela noite,
atravessou o rio?
Vestida de preto,
era a própria Morte
morta de frio.

TEMPORAL NOTURNO

A chuva desta noite
pousa no meu sonho.
Pássaro molhado.

OHIO

O céu de Ohio é azul e branco.
A neve de Ohio é azul e branca.

O sol apaga as estrelas caídas sobre
[ os dormentes da ferrovia
por onde passam trens cheios de leite e milho.

Pousado no castanheiro, um pássaro azul
não segrega o seu canto.

ESTAÇÃO DE TRATAMENTO

A gaivota
sobrevoa
o semáforo.

Nenhum rumor da água.
Nenhum frêmito de alga.

Apenas os esgotos
lançam no leve oceano
o sigilo da vida.

O LAGO HABITADO

Na água trêmula
freme a pálida
anêmona.

NOITE DE DOMINGO

Acabou-se a festa.
Resta, no silêncio,
o rumor da floresta.

A INSPIRAÇÃO

Não creio na inspiração,
essa bruxa radiosa
que sopra a canção
e te faz alegre ou triste.
Mas que ela existe, existe!

Fonte:
Lêdo Ivo. Poesia Breve. Brasília/DF: Poexílio, 2012.

Tatiana Belinky (Crônica para Dona Nicota)


Foi nos anos finais da década de 40. (Há tanto tempo!) Meu primogênito Ricardo completara 6 anos de idade, e resolvemos matriculá-lo no primeiro ano primário da Escola Americana, do já então tradicional Mackenzie College, que ficava a três quadras da nossa casa. E Ricardinho, que era uma criança tímida e um tanto ensimesmada, não gostou nem um pouco da experiência de ficar "abandonado" num lugar estranho, no meio de gente desconhecida — uma coisa para ele muito assustadora. E não houve jeito de fazê-lo aceitar tão insólita situação. Ele se recusava até mesmo a entrar na sala: ficava na porta, "fincava o pé", sem chorar mas também sem ceder... Eu já estava a ponto de desistir da empreitada, quando a professora da classe, dona Nicota, se levantou e veio falar conosco. E todo o jeito dela, a maneira como ela olhou para o Ricardinho, o timbre e o tom da sua voz, a expressão do seu rosto e até a sua figurinha baixinha, meio rechonchuda, não jovem demais, muito simples e despojada, causaram imediatamente uma sensível impressão no menino. A tensão sumiu do seu rostinho, seu corpo relaxou, e — ora vejam! — ele respondeu com um sorriso ao sorriso da dona Nicota!

— Vem ficar aqui comigo — ela disse. 

— Você vai gostar. — E acrescentou, para minha surpresa, — Eu mesma vou levar você para a sua casa. E amanhã cedo, eu mesma vou buscar você, para vir à escola comigo.

Eu não sabia como agradecer. E nem foi preciso — o que dona Nicota disse, ela cumpriu. E durante vários dias, até semanas, ela passou pela nossa casa, pouco antes do início das aulas, e levou o Ricardinho pela mão, a pé, até a escola e a sua sala. E o trouxe de volta, da mesma maneira. E até quando, certo dia, o menino estava adoentado e não pôde ir à escola, ela voltou para lhe dar uma "aula particular", em casa – para ele não se atrasar no programa. Tudo isso na maior simplicidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo...

O Ricardinho adorava a dona Nicota — e não era para menos. Dona Nicota era a mais perfeita e linda encarnação da "professora primária" ideal — a mais nobre e fundamental das profissões: a de ser a primeira a preparar uma criança pequena nas suas primeiras incursões na vida real — com competência, dedicação, compreensão, paciência e carinho. E a consciência plena de estar dando à criança uma verdadeira base para o futuro cidadão.

Por que estou contando tudo isso a vocês, hoje? Porque, no Dia do Professor, eu senti que não poderia prestar maior homenagem a todos os "mestres-escolas" do Brasil do que incluí-los nesta "crônica-tributo" a dona Nicota, exemplo e paradigma de uma modesta e maravilhosa professora "montessoriana" e um grande ser humano.

Ricardo saiu de sob a asa de dona Nicota lendo e escrevendo. E hoje, jornalista, tradutor e escritor, esse avô de três netos continua se lembrando de dona Nicota, com carinho e gratidão.

Essa dona Nicota que a estas horas deve estar dando aulas montessorianas aos anjinhos do céu. 

Fonte:
Revista Nova Escola

Celso Sisto (“Obax”, de André Neves)


Do artigo de Celso Sisto, “Imaginação de elefante”, do site www.artistasgauchos.com.br

 NEVES, André. Obax. Ilustrações do autor. São Paulo, Brinque-Book, 2010. 36p.

 Inventar histórias preenche o tempo e a vida. Traz brilho para os olhos, aumenta a nossa experiência com aventuras! Faz a gente treinar brincadeiras e conquistar amigos! E pronto, estamos prontos para sermos felizes!

 A pequena Obax, que vive nas savanas, é solitária e destemida: corre pela planície, vive aventuras e depois conta para todo mundo. Mas, ninguém lhe dá muito ouvidos! Suas histórias são mágicas e os outros às vezes caçoam dela. Um dia, ela tropeça numa pedra em forma de elefante e decide sair pelo mundo em busca de provar a verdade das histórias. Nas costas do elefante Nafisa, Obax dá a volta ao mundo e retorna ao ponto de partida. Cheia de novas histórias, que ninguém acredita. No dia seguinte, ali perto, nasce um baobá, para confirmar que as histórias são sempre possíveis de acontecer. E servem para, no mínimo, fazer sonhar, fazer crescer!

 O livro é lindo! Enxuto, ágil, sem, contudo, deixar escapar nada de essencial. O encantamento começa com a sonoridade do nome da personagem Obax e se derrama pelas paisagens, pelos elementos da savana, pela rica imaginação da menina, pelas pinturas das casas, pelas costas do elefante Nafisa, pelo forte baobá, pela chuva de flores, pelo poder que tudo tem de se transformar.

 Obax significa flor e Nafisa, pedra preciosa! O livro tem essa aura perfumada e preciosa, do início ao fim, e o leitor pode acompanhar o exercício imaginativo da menina, enquanto vai percebendo que nas entrelinhas, outras coisas se avolumam: a necessidade que todo mundo tem de ser aceito pelo seu grupo; a poesia singela que a natureza oferece, mesmo nos lugares mais áridos; o silêncio revelador; o convívio intenso com uma fauna que não é a mesma do lugar em que vivemos; até mesmo a ironia daqueles que não estão acostumados a imaginar.

 Os elementos das culturas africanas também vão se revelando em tudo isso, principalmente nas cores e grafismos que predominam nas ilustrações, na vegetação do lugar, e também nos birotes da menina. Os penteados africanos são verdadeiras obras de arte, e esse que reúne os cabelos no cocuruto da cabeça, leva o nome de birote ou pitote. Mas o autor avisa: esta não é uma história recontada da tradição oral, é uma história totalmente inventada, com liberdade e conhecimento!

 E então, o tempo dá um salto no final da história e remete o leitor para um futuro indefinido, no qual o sonho é o grande Senhor das histórias, oferecidas mesmo por um majestoso baobá.
 As ilustrações deste livro brincam como se fossem lentes, que aumentam ou focalizam detalhes, recortando partes e pedaços que são importantes de perceber. Os vermelhos e amarelos predominam nas páginas, e em contraste com o branco, produzem um impacto ainda maior. E as figuras de André Neves tão fiéis a seu estilo (afiladas, esculturadas, de olhos puxados) se fundem com perfeição às texturas e às aplicações de colagens.

 O livro acaba de ganhar o prêmio Jabuti, nesta 53ª edição, na categoria Infantil.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=615

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 767)



Uma Trova de Ademar  

Quando a inspiração me envia 
a um cenário de beleza, 
eu dou beijos de poesia 
na face da natureza! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Quando pela vida passas,
displicente e linda assim,
o mundo, sem tuas graças,
perde a graça para mim.
–Gabriel Bicalho/MG– 

Uma Trova Potiguar  

Quando eu morrer, vou assim: 
sustendo meu coração... 
Saudade da Terra? Sim! 
Saudade da vida? Não! 
–Auta de Souza/RN– 

Uma Trova Premiada  

2008   -   Caicó/RN 
Tema   -   ESTRADA   -   10º Lugar. 

Caminho, mantendo acesa
a chama da sensatez,
na estrada em que, com certeza,
não passarei outra vez!
–Therezinha Brisolla/SP– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Bebo na fonte sagrada, 
de onde vêm os versos meus. 
Sem ela, eu não faço nada... 
-Esta fonte, amigo, é Deus! 
–Francisco Macedo/RN– 

U m a P o e s i a  

Nossas conquistas são feitas, 
o mundo é nosso cartório, 
a vida é um laboratório 
de diferentes receitas, 
as lágrimas não são aceitas 
como nossos risos são, 
serenidade é canção 
na voz que Deus abençoa; 
passa a vida o tempo voa 
nas asas da ilusão. 
–Geraldo Amâncio/CE– 

Soneto do Dia  

SER TÃO SERTÃO. 
–Rachel Rabelo/PE– 

No trajeto vislumbro tais belezas 
das paisagens de luz deste sertão, 
que são típicas desta região 
completando meu ser de sutilezas. 

O teu povo traduz as realezas 
conquistadas nas artes da paixão, 
na poesia que vem do coração 
retratando histórias e certezas. 

Lá teu sol nasce já metrificado 
vem na chuva um canto ritmado 
entoando os ensaios da natura; 

tua noite tem brilho diferente 
que envolve num manto transparente 
as sementes da arte e da cultura!

Isabel Fontoura (Penhascos)


 Sou um ancião e sempre vivi na Chapada Diamantina, alojado entre grutas milenares que tremeram com a passagem da Coluna Prestes e com os tiros de Lampião. Sei das riquezas que estas cavernas escondem e das lendas que criam vida no ouvido das crianças.

 Garimpeiro de muitas lavras, sonhava encontrar diamantes e uma gema tão sólida que eternizasse a minha história. Lendas de um homem que encontrou a prisão e a alforria junto às pedras preciosas.

 Trabalhava dia após dia no garimpo para um coronel da região. Era parte do ofício envenenar os rios e matar os peixes em uma guerra de peneiras e dragas no ventre da terra, contudo, entre mercúrio, marte e a morte encontrava apenas cascalhos. O patrão ficava furioso e me castigava por achar que estava sendo roubado, não queria acreditar que naquela fazenda nada havia de valioso.

 Uma noite, enquanto dormia, a Santa veio me visitar, desde que me tornei órfão, ainda pequeno, escolhi Nossa Senhora como minha madrinha, e ela me mostrava uma gruta iluminada à beira de um precipício, uma trajetória para os diamantes.

 Lavrei com vigor, o sonho não me deixava, larguei minha peneira e subi córrego acima, andei umas duas léguas beirando o rio, nenhum capataz reparou e deparei-me com um penhasco, desci escorregando entre pedras e lamas até chegar ao começo da lapa. A entrada era sombria, o cheiro entorpecia-me, um bando de aves das cavernas esvoaçou sem me tocar, o medo assolou-me, nunca ouvira falar naquela gruta, todavia eu precisava desvendar aquele recanto de sombra e rochedo.

 Um veio de água corria pelo lajedo; e, em meio à frieza do córrego, insetos cegos, embranquecidos pela noite incessante da caverna, fugiam dos meus passos. Nas paredes, desenhos de homens que viveram sob o manto de pedra e deixaram o registro no seio da gruta. A passagem era muito estreita, o ar parecia escapulir do meu corpo, apertava as mãos, os dentes travavam de frio, enquanto minhas pernas cambaleantes alcançaram uma senda que cintilava no subsolo, e; em meio à escuridão, uma claridade nunca vista ardeu-me os olhos.

 O sonho materializou-se, havia opalas, águas-marinhas, ametistas. Muitas pepitas de ouro. Apanhei o máximo que pude e, ao sair, ouvi tiros: Cães, cavalos e capangas do coronel estavam a minha caça. Voltei à gruta e permaneci lá por muitas luas, alimentando-me de traíra crua e preás, devorei uma serpente que guizou em meus pés. Bebi água do rio que envenenara e sonhei com muitas lapas iguais a esta. Não queria mais sair: recluso no meu castelo de pedras, marajá com temor dos homens e das suas armas, cercado dos tesouros da mina de Nossa Senhora. Só e sozinho no calabouço, estava feliz.

 A lapa, no entanto, enojou-se de mim, e a terra tremeu, fugi tropeçando nas estalagmites milenares construídas no gota a gota do suor do tempo. A gruta ficava cada vez mais escura e as pedras desabavam nas minhas costas, devo ter corrido muito, era zanga de Nossa Senhora, decepcionada com seu afilhado, e receio muito a fúria das mulheres. Na fuga, perdi as pedras que abraçava ao peito e, por mais medo da pobreza que da morte, engoli os diamantes que tinha no bolso. Avistei uma luz intensa ao final de um túnel comprido. Era a luminosidade do dia, o sol, a saída da cratera.

 Embrutecido pelas pedras, desvalido pelo homem. Despertei no corredor de um hospital: tísico, demitido, homem sem saúde não serve para lida. Disseram que eu estava ali há alguns dias, falando frases soltas delirando de febre e clamando por Maria.

 Convalescente, lavrei entre meus dejetos pedras brilhosas: eram diamantes, que se dissiparam aos ventos de aguardentes e bordéis, consegui apenas após duas décadas arrematar a fazenda do coronel, terras estas onde conheci a escassez e a fartura, o retiro e o encantamento. Subterrâneos. Alqueires onde selei minha sina de garimpeiro de lavras do desconhecido.

 Hoje solto ecos nos penhascos, procuro a gruta de tesouro e de água envenenada que entre a rocha, a escuridão e a vida conduzirá meu caminho por trilhas sinuosas para escavar, naquela mina, um diamante de muitos quilates, lapidado pela engenhosidade do tempo. Pedra cintilante que contará a história de um velho garimpeiro, cego e sedento pelo brilho dos minerais, então descansarei naquele jazigo de jazidas, refúgio final de um peregrino.
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Sobre a autora
Isabel Fontoura tem 37 anos, é médica e escritora, membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, regional Bahia. Participou de antologia com outros médicos baianos e publicou sozinha um livro de contos, "Penhascos", que foi premiado no VII Concurso Literário do Banco Capital e do qual extraímos o texto ao lado, que foi publicado pela EPP Publicidade em 2008.

Fonte:
http://www.releituras.com/ne_ifontoura_penhascos.asp