sábado, 29 de dezembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena)Rio, 24 de junho: A Botafogo

A Botafogo!...

Acompanhemos essa linha de carros que desfila pela Glória e pelo Catete; sigamos esse numeroso concurso que vai pouco a  pouco se estendendo pela praia, ao longo do parapeito.

O sol já descambou além dos montes; e as últimas claridades de um dia turvo e anuviado, foram se extinguindo entre as sombras do crepúsculo.

Daí a pouco fechou-se a noite; e no meio da escuridão e das trevas sobressaía uma multidão de luzes, refletindo-se sobre as águas do mar.

Ranchos de moças a passearem, bandas de música tocando nos coretos, senhoras elegantes debruçadas nas janelas iluminadas, muita concorrência, muita alegria e muita animação; tudo isto tornava a festa encantadora.

Quanto ao fogo, queimou-se às oito horas; dele só restam as cinzas no fundo do mar. Não estranhem, portanto, que o respeite como manda a máxima cristã. Parcis sepultis.

Às dez horas, pouco mais ou menos, tudo estava acabado. A praia ficara deserta; e nas águas tranqüilas da baía, apenas as nereidas murmuravam, conversando baixinho sobre o acontecimento extraordinário que viera perturbar os seus calmos domínios.

Não é preciso dizer-vos que isto se passava domingo, no começo de uma semana que prometia tantas coisas bonitas, e que afinal logrou-nos em grande parte.

Tivemos algumas boas noites de teatro italiano, e ouvimos o Trovador e o Barbeiro de Sevilha, com uma linda ária do Dominó noir, que foi muito aplaudida.

Se é verdade o que nos contaram, brevemente teremos o prazer de ouvir toda essa graciosa ópera, em benefício da Sociedade de Beneficência Francesa. A lembrança é feliz, e pode realizar-se perfeitamente com o concurso dos artistas franceses que possui atualmente o nosso Teatro Lírico.

A diretoria decerto não se oporá a uma representação, que, além do auxílio poderoso que deve dar a um estabelecimento de beneficência, não pode deixar de fazer bem aos seus artistas, fazendo-os conhecer num gênero de música diverso, e no qual é muito natural que se excedam.

Quem sabe mesmo se, depois deste primeiro ensaio, a empresa não julgará conveniente, para a variedade dos espetáculos e para excitar a concorrência, dar de vez em quando uma pequena representação francesa?

Sei que a música italiana é a mais apreciada no nosso país; porém lembro-me ainda do entusiasmo e do prazer com que foram sempre ouvidas em nossas cenas a Nongaret, a Duval e mesmo a Preti.

Já que não podemos ter ao mesmo  tempo uma companhia italiana e uma francesa, não vejo porque não se hão de aproveitar os atores que atualmente possuímos, e, contratando mais um ou dois, deram-nos algumas óperas francesas, que estou certo haviam ser mui bem aceitas.

Se não há algum obstáculo, que ignoramos, é de crer que  a diretoria pense em fazer valer este meio de tornar o Teatro Lírico mais interessante e mais variado.

As óperas francesas têm grande vantagem de não fatigarem tanto os atores como a música italiana; e por conseguinte se faria um benefício aos artistas, reservando os meses da força do verão para esse gênero de cantoria.

Assim, podiam-se das as representações italianas com maior intervalo, e não se sacrificaria a voz de alguns cantores, obrigando-os a executar música de Verdi duas ou três vezes por semana.

Fui-me deixando levar pelo gosto de advogar os vossos interesses, minhas belas leitoras, e esquecia-me contar-vos uma cena terna que teve lugar sexta-feira no teatro, quando se representava o segundo ato do Trovador.

Uns bravos e umas palmas fora de propósito acolheram a entrada em cena da Casaloni, e continuaram enquanto ela cantava e seu romance da Cigana.

A princípio a artista procurou resistir à emoção que de certo lhe causava essa zombaria imerecida; mas afinal o soluço cortou-lhe a voz e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

Lágrimas de mulher... Quem pode resistir a elas?

Depois de alguns momentos de confusão, em que a cena ficou deserta e a música em silêncio, a Casaloni entrou novamente em cena com os olhos rasos de pranto e a voz trêmula.

Neste momento é que eu reconheci bem o nosso público, e senti o coração generoso que animava todo esse concurso de espectadores que enchia o salão.

Ninguém disse uma palavra; mas uma salva continuada de aplausos percorreu todos os bancos de ponta à ponta: tudo que tinha um pouco de generosidade no coração e um pouco de sentimento no fundo d’alma protestava contra aquela amarga zombaria, contra aquela ofensa sem causa.

A mulher ofendida que chora é uma coisa sagrada e que se deve respeitar. Dizem que a lágrima é o símbolo da fraqueza; entretanto quantas armas, quantos braços fortes não se têm curvado ao peso dessa gota de linfa que não umedeceria sequer uma folha de rosa?

Deixemos aqui este episódio da semana, que não tem outro interesse senão o de mostrar o efeito de uma imprudência, e de provar a delicadeza do público que sabe preferir uma cantora, sem por isso ofender e maltratar a outras.

O Ginásio Dramático também teve esta semana uma noite feliz, honrada com a presença de SS. MM., que se dignaram estender sobre ele sua benéfica e augusta proteção.

Representavam-se nessa noite duas comédias, cujos papéis foram muito bem desempenhados pelo artista da pequena companhia, que parece se esmerou em dar provas dos progressos sensíveis que tem feito.

O Episódio do Reinado de Jaques I é uma comédia histórica e de muito espírito; tem algumas cenas de uma singeleza e de uma naturalidade encantadoras.

É um idílio de amor aos quinze anos, começado nos muros de uma prisão, à leitura da Bíblia, e entre as flores de clematites, - que de repente se vê oprimido nos salões de um palácio suntuoso, no meio das etiquetas da Corte.

O idílio esteve quase a transformar-se em drama ou tragédia; mas felizmente achou refúgio num coração de rei, coração cheio de bondade e de virtude, e aí continuou a sorrir em segredo até que...

Até que caiu o pano.

Todos os personagens estavam bem caracterizados e vestidos com bastante luxo e riqueza para os recursos da pequena empresa, que não se poupa a sacrifícios sempre que se trata de promover um melhoramento.

Suas Majestades prometeram voltar ao Ginásio esta semana. Neste fato devem os meus leitores ver a prova a mais evidente dos serviços que este teatro vai prestando à arte dramática do nosso país.

Animado por tão alta proteção, acolhido pela boa sociedade desta corte, o Ginásio poderá brevemente estabelecer-se em um salão mais espaçoso e mais elegante, e aí abrir-nos as portas ao prazer, à alegria, a um inocente e agradável passatempo.

No resto das noites, em que os teatros estiverem fechados, muita moça e muita família passeou pela Rua do Ouvidor para ver o modelo de casamento da Imperatriz Eugênia, que se achava exposto na vidraça do Beaumely.

As moças admiravam mais o vestido de cetim branco e o penteado, que dizem ser de um gosto chic; os homens, porém, admiravam mais as moças que o vestido, de quem tinham ciúme, porque lhes roubavam os olhares, a que supunham talvez ter direitos.

É incompreensível este costume que têm certos homens que gostam de uma mulher de se julgarem com direito exclusivo aos seus olhares, sem que ela lhes tenha feito a menor promessa.

Parece que o olhar de uma mulher bonita é como uma vaga de senador. Ninguém tem direito a ela, o que quer dizer que todos o têm.

Assim um fashionable apaixona-se por uma bonita mulher, e, sem que ela lhe tenha dito uma palavra, sem mesmo consulta-la, atravessa-se diante dos seus olhares, segue-a por toda parte como a sombra do seu corpo, julga-se enfim com direito a ser amada por ela. Se a moça de todo não lhe presta atenção e não se importa com a perseguição sistemática, o apaixonado toma uma grande resolução, e despreza a mulher bonita de que ele realmente não faz caso.

O mesmo sucede com a vaga de senador.

Um homem qualquer que tem quarenta anos, seja ou não filho de uma província, tenha ou não a afeição dos povos de certas localidades, sem consultar os votantes, apresenta-se candidato, enche o correio de cartas.

Se a província mostra não se importar com a sua candidatura, o homem de quarenta anos toma igualmente uma resolução, renuncia à eleição a que tinha direito.

Ora, eu não sei como se chama o homem de quarenta anos que renuncia à vaga de senador; mas o apaixonado que despreza a mulher bonita é conhecido entre certa roda pelo título de comendador da Ordem dos Verdes.

Esta ordem é a mais antiga do mundo; é anterior mesmo à época da cavalaria e da mesa redonda. Data dos tempos em que os animais falavam, e deve a sua origem a uma raposa espirituosa, que numa circunstância memorável soltou esta palavra célebre: Estão verdes.

Muito tempo depois Eduardo III, apanhando a liga da Condessa de Salisbury, disse também uma palavra, que é pouco mais ou menos a tradução daquela: Honny soit qui mal y pense.

Assim como desta palavra se criou a jarreteira, estabeleceu-se muito antes a Ordem dos Verdes, na qual são comendadores do número os namorados que desprezam as mulheres bonitas, os ministros que recusam pastas, os patriotas que renunciam a candidatura, os empregados que pedem demissão, e muitos outros que seria longo enumerar.

A insígnia da ordem é uma folha de parreira, que outrora foi o símbolo da modéstia e do pudor.

A cor é o verde, como emblema da esperança; porque o estatuto da ordem embora imponha a abnegação e o sacrifício de uma honra ou de um bem, não inibe que se trabalhe por alcançar coisa melhor.

Os membros desta ordem gozam de grandes honras, privilégios e isenções, e especialmente da graça de obterem tudo quanto desejarem. Para isso são obrigados apenas a uma insignificante formalidade, que é não desejarem senão o que puderem obter.

Concluiria aqui esta revista, se não tivesse dois deveres a cumprir.

O primeiro é a respeito de uma questão que tem ocupado a imprensa desta corte, e que atualmente se acha entregue aos tribunais do país.

Falo de abalroação da Indiana, simples fato comercial, a que a imprensa tem querido dar o caráter de uma questão de classe e de brios nacionais.

Um estrangeiro que perde o seu navio não poderá defender os interesses do seu proprietário e dos carregadores, somente porque semelhante defesa vai ofender a tripulação de um vapor brasileiro?

Ninguém mais do que eu sabe respeitar o espírito de classe, e apreciar a generosa fraternidade que prende os homens de uma mesma profissão; porém confesso que essa maneira de identificar o homem com a classe, de julgar do fato pelo mérito pessoal, não é a mais acertada para a questão.

O comandante do vapor Tocantins pode ser um excelente oficial, a sua  tripulação pode ser a melhor, e entretanto ter-se dado um descuido que ocasionasse o sinistro.

Felizmente hoje a questão vai ser perfeitamente esclarecida por testemunhas imparciais e dignas de todo o sinistro.

O Tocantins foi encontrado na mesma noite de 11, meia hora antes do sinistro, por um navio cujo capitão já atestou que o vapor trazia apenas uma luz ordinária, e não tinha sobre as rodas os faróis verde e encarnado.

Como este, existem muitos outros depoimentos importantes que aparecerão em tempo competente, e que mostrarão de que parte está a verdade e o direito.

O segundo ponto sobre que tenho de falar é a respeito dos espetáculos líricos no Teatro de S. Pedro de Alcântara, dos quais tratei na revista passada.

Um correspondente do Jornal do Comércio contesta a possibilidade desses espetáculos em virtude de um privilégio dado à atual empresa lírica. 

Entretanto semelhante privilégio não pode existir; se o governo o concedeu, praticou um ato que não estava nas suas atribuições, um ato nulo, porque é inconstitucional.

Não é monopolizando uma indústria já conhecida no país, não é destruindo a concorrência que se promove a utilidade pública.

A própria diretoria do Teatro Lírico deverá desejar esta concorrência; porque se, como ela supõe a nova empresa não levar avante, dando-lhe nova força e novo prestígio.

Ainda voltarei a esta questão, que na minha opinião interessa muito ao futuro da arte nesta corte.

Por hoje faço-vos as minhas despedidas.

Vamos ver as fogueiras de São João, brincar ao relento, e recordar as poéticas e encantadoras tradições de nossos pais.

P.S. – À última hora recebo a minha carta prometida para quinta-feira; desta vez reservo para mim a carta, e dou-vos unicamente os versos.

O pronome (em falta do nome) persiste em ser lido em francês, e não em português; porém agora afianço-vos que estou convencido do contrário.

Podeis crer-me. 

Rio de Janeiro, 1855.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Fernando Pessoa (Autopsicografia)



Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão II)


A velha São Luís – antes cantada em verso e prosa por seus largos, espaçosos, e por suas ruas, estreitas e íngremes – não ostenta mais apenas aquele verde luxuriante do capim e das ervas daninhas que se encontram no relato de cronistas do século XIX. Hoje a cidade, em pleno século XXI, tem uma vida complexa – como um prisma de mil faces, refletindo e coruscando todas as cores, simultaneamente, misturadas, mas não tão bem arrumadinhas, uma por vez, como no arco-íris. Essa maneira cromática e dinâmica de ver e sentir São Luís talvez seja a mais abrangente, a que melhor ilustre a percepção que a São Luís quase quatrocentona inspira a quem aqui chega ou aos que refletem sobre sua cidade. Bernardo Coelho de Almeida (1927-1996) foi quem, através de suas crônicas, mostrou muitas dessas cores e seus contrastes: o cinza-chumbo do desânimo causado nos são-luisenses, principalmente em função da miséria e do desemprego; o marrom do medo da violência, predominante entre os mais pobres; o púrpura da irritação com os engarrafamentos no trânsito; o verde-escuro do temor das doenças causadas pela sujeira e pelo risco de a Ilha vir a ser tomada pela poluição de grandes empreendimentos industriais.

As crônicas de Bernardo Coelho de Almeida, reunidas no livro Éramos felizes e não sabíamos, são autênticas memórias do passado de São Luís, cidade muito amada, onde o autor viveu, durante 69 anos, como estudante, boêmio, poeta, romancista, radialista, jornalista e homem público.

Éramos felizes e não sabíamos é um livro interessante, rico em reminiscências, capaz de registrar momentos memoráveis do passado de um homem sensível e preso aos encantos de uma cidade que, ainda hoje, não quer perder a fama de Atenas Brasileira. No livro são relembrados os bares, os cabarés, os folguedos populares, os acontecimentos políticos, a vida intelectual, as velhas amizades, os tipos inesquecíveis, enfim, os flagrantes de um tempo feliz, e aqueles que foram protagonistas do romance desse tempo, na parceria de nossos destinos. Destinos que foram traçados nas ruas, nas praças e nos logradouros minuciosamente catalogados pelo escritor Domingos Vieira Filho (1924-1981), no livro Breve História das Ruas de São Luís, publicado no ano de 1962. Nesta obra, construída com impressionante paciência e obstinação, o autor, que foi, entre outras funções, diretor da Biblioteca Pública Benedito Leite e presidente da antiga Fundação Cultural do Maranhão, aponta, como caminhos iniciais da cidade, a Rua Formosa, a Rua do Egito e a Rua dos Remédios, “mandada abrir por Joaquim de Melo e Póvoas no meio dos matos e que conduzia à ermida dessa invocação construída na ribanceira que deita para o Jenipapeiro”. 

Domingos Vieira Filho faz referência a caminhos grandes, como a própria Rua Grande, a Rua da Paz e a Rua das Violas (ou Rua dos Afogados). 

Ele recorda que, na São Luís daqueles velhos tempos, as ruas eram antes simples linhas de comunicação do que vias de transportes. Por isso podiam ser estreitas, uma vez que por elas não transitavam carros. Imperavam a cadeirinha, a rede, acolhedora, sensual, leito de prazer ou de dor, carro e esquife, a serpentina, o palanque, aparelhos esses que dispensavam rodas e eram conduzidos nos ombros de robustos escravos.

No mesmo patamar que Domingos Vieira Filho e Bernardo Coelho de Almeida, um outro escritor renomado, Erasmo Dias, cantou São Luís em prosa, de forma magistral. Em seu mais novo livro – São Luís em PreAmar: ainda assim, há um Azul! –, o jornalista e poeta Herbert de Jesus Santos também abre uma janela lúcida e criativa sobre São Luís, retratando-a nos nossos dias. 

Com cinco livros publicados, Herbert de Jesus Santos produz uma obra cada vez mais amadurecida, convencido de que São Luís está no detalhe e por isso mesmo ainda se mostra inesgotável como veio poético. Nas páginas deste seu recém-lançado livro de poesia São Luís em PreAmar: ainda assim, há um Azul!, o escritor Herbert de Jesus Santos, que também é cronista, contista e novelista, faz uma contundente declaração de amor a São Luís, pois voltou para ela todos os poemas, com características lírica e social, sem esconder as feridas da cidade, seus maiores valores, entre riqueza de espírito, tipos populares, humanistas, poetas e prosadores beneméritos, o ser e o estar maranhense, a decadência em todos os campos, mas a esperança de um amanhecer com melhor horizonte para o Maranhão, por abrangência, e sua gente. 

O texto apreciativo ficou a cargo do jornalista e poeta Cunha Santos Filho. Na obra ousou ter como prefácio um poema de Luís Augusto Cassas, como apresentação, um poema de Nauro Machado, posfácio de Erasmo Dias (trecho de uma crônica), e epígrafes com soneto de Alex Brasil, poema de Bandeira Tribuzi e fragmentos de poemas de José Maria Nascimento e de Luís Alfredo Neto Guterres, todos relativos a São Luís.

Erasmo Dias ressurge na página final do novo livro de Herbert Santos, com uma de suas crônicas sobre o espírito da terra natal. Enfocando a alma romântica da Cidade dos Bardos e dos Rapsodos, assim escreve Erasmo Dias: 

“As cidades não valem simplesmente pelo seu aspecto material. Como os homens, elas, também, possuem uma alma. A alma das cidades é a soma de todas as vibrações dos seus habitantes, que se misturam e confundem, numa grande e única vibração. 

Quando se pretende retratar com palavras uma cidade, mister se faz que, antes da descrição das suas ruas e das suas praças, se compreenda a sua alma. 

São Luís tem a sua alma: alma de Cidade Romântica, onde dezenas de grandes poetas cantaram, nos ritmos claros da poesia excelsa, todo o esplendor da natureza tropical. 

São Luís é a Cidade da Inteligência e sobre os seus destinos vela impávida, serena e eterna, Atenas Palas Minerva. Gerações e gerações de gigantes do pensamento aqui se formaram, forma e formarão, sempre, escutando os cantares rústicos que se escapam dos bairros pobres, onde Xangô e Afefé recebem o seu culto, ou a prosa castiça e erudita das rodas intelectuais, que se sucedem, gloriosas, numa ciranda abençoada, pelos anos afora”.

No canto destes grandes poetas de que fala Erasmo Dias, ganha realce – entre inúmeros autores – a figura do poeta Ferreira Gullar, que celebra São Luís em muitos de seus poemas, inclusive em Poema Sujo que é, sem dúvida nenhuma, uma das obras mais importantes surgidas no panorama poético brasileiro do século XX. Opinião que é corroborada por intelectuais do porte de Nelson Werneck Sodré, Antonio Callado e Otto Maria Carpeaux, entre outros. E é fácil concordar com isso ao se ler o poema, que é tão forte, comovente e evocativo, que chega mesmo a incomodar, a excitar, a aguçar a sensibilidade. Trata-se de obra que exprime autenticamente a verdade típica da poesia, ou seja, “a verdade que comove”, para usar um conceito do próprio poeta. 

Poema Sujo fala de São Luís, retrata, com a particularidade do reflexo estético, a experiência de vida do poeta nesta cidade, até os 21 anos de idade. Mas, na verdade, o poema é muito mais do que isso: é um retrato de corpo (e alma) inteiro de Gullar, que abarca sua vida, suas idéias políticas e filosóficas, sua saudade de exilado e suas perplexidades. 

Ao falar de São Luis, Gullar fala do Brasil. E falando do Brasil, fala da condição humana. Ele parte do homem mesmo, deste “ser que responde” a situações historicamente dadas, parte de suas experiências vitais, das contradições sociais que o determinam e são por ele determinadas. E isto é o que ele trata de esteticamente (poeticamente) refletir. O homem maranhense, o próprio Gullar: este o ponto de partida, a fonte do Poema Sujo: este, também o elemento que faz a poesia chegar ao universal, o “alimento” do artista. Gullar com ele opera como só os grandes poetas sabem e podem fazer, transformando o real em algo mais real, o mais simples no mais belo e significativo, reconstruindo o mundo, nas ruas e becos de sua infância:

Me extravio
na Rua da Estrela, escorrego
no Beco do Precipício.
Me lavo no Ribeirão.
Mijo na Fonte do Bispo.
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floresço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
na Rua do Carmo berro
na Rua da Direita erro
e na Aurora adormeço.
–––––––––-
Continua…

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
http://www.guesaerrante.com.br/2006/1/20/Pagina653.htm. Edição 115. 20 de janeiro de 2006

Sávio Soares de Sousa (Trova: Tempo & Espaço)


em XXIX Jogos Florais de Niterói, 1999 

É fato sabido e consabido que os tempos mudam e, com os tempos, mudamos nós. Isto ensinava um ditado medieval citado na Description of England, de Harrison (1517) e no Euphues de John Lyly (1579). Tempora mutantur... 

Mudam os hábitos, mudam os gostos, as manias mudam, mudam as filosofias, alternam-se os regimes políticos e econômicos. Também a linguagem humana evolui. Há palavras que se arcaízam, envelhecem, morrem. Outras ressuscitam, animadas por significados novos, ao sopro de novas realidades. Com o surgimento do Trovismo ou Trovadorismo Brasileiro, há cerca de quarenta anos, as palavras “Trova” e “Trovador”, por exemplo, experimentaram vida nova e acepção específica. Digam o que disserem, a tese é perfeitamente explicável. 

Antigamente, considerava-se trova qualquer composição lírica ligeira e de caráter mais ou menos popular, não importando qual fosse a estrutura das estrofes, ou o número de seus versos, ou a disposição das rimas. É o que se lê nos dicionários tradicionais. 

Depois, o termo passou a designar, de modo menos genérico, algumas cantigas ou canções de estrutura regular, também do gosto do povo, dada a sua simplicidade. E, enfim, começou a caracterizar a quadra ou a quadrinha popular, quase sempre destinada a ser cantada, com ou sem estribilho. 

Em sua conceituação atual, que corre entre nós, a trova é um poema de forma fixa, regular, com quatro versos (ou linhas) de sete sílabas (redondilha maior), de rimas cruzadas, isto é: o primeiro verso rimando com o terceiro, e o segundo rimando com o quarto. 

Quanto ao assunto ou tema (questão de fundo ou conteúdo), assim se podem classificar as trovas: lírica (sentimental, amorosa, romântica, intimista); filosófica (conceituosa, reflexiva, sintetizando um pensamento moral ou religioso ou estético); humorística (jocosa, brincalhona, maliciosa); didática (instrutiva, pedagógica, doutrinária, biográfica); descritiva (aquarela em miniatura, retrato sintético, instantâneo fotográfico), etc. Conviria exemplificar. 

TROVAS LÍRICAS 

À distância, se ela passa 
é maior o meu tormento: 
para a saudade, a vidraça 
é sempre um vidro de aumento. 
Cícero Rocha 

Nossa casa é pequenina, 
mas tem a graça de Deus: 
de dia o sol a ilumina, 
e de noite – os olhos teus. 
Augusto Rubião 

TROVAS FILOSÓFICAS 

O filho do Carpinteiro 
foi um artista profundo: 
com três cravos e um madeiro, 
fez a reforma do mundo. 
Raul Pederneiras 

A gente paga o que deve, 
sem recurso ou petição: 
sentença que Deus escreve 
não tem mais apelação! 
Paulo Nunes Batista 

TROVAS HUMORÍSTICAS 

Papai manda, se é solteira... 
Marido, quando casada... 
Manda a vizinhança inteira 
se é viúva ou desquitada... 
Eny do Couto 

Quando a mulher quer, eu acho 
que nem Deus a desanima: 
– é água de morro abaixo 
ou fogo de morro acima!... 
Belmiro Braga 

TROVAS DESCRITIVAS 

A flor do sol, no horizonte, 
fecha as pétalas vermelhas... 
Pelo pescoço do monte 
se deita um colar de ovelhas! 
Félix Aires 

Pelas planuras desertas, 
nas frondes verdes, as comas 
mostram corolas abertas 
num desperdício de aromas. 
Eliézer Benevides 

Como poema autônomo, forçoso é que o sentido da trova fique completo dentro dessas quatro linhas – requisito indispensável. 

E que é um Trovador? 

Trovador era o nome dado, geralmente, na Idade Média, ao poeta lírico, em verdade um compositor musical, que fazia versos e os cantava, ao som da viola, do alaúde, da flauta e do pandeiro. Compunha e instrumentava as próprias canções – escrevia a letra e a música. E, quando não se sentia em condições de, ele mesmo, cantá-las, incumbia de fazê-lo um cantor profissional, que era o jogral ou menestrel. 

Na prática, nem sempre era fácil distinguir o trovador do jogral, e isto criava situações até ridículas. Houve o caso do trovador Guiraut Riquier, que ficou agastado quando o confundiram com um jogral. E protestou, alegando que a confusão era humilhante para os trovadores, que tinham formação intelectual e artística, enquanto os jograis ou menestréis, de nível social inferior, não gozavam de boa reputação, inclusive por serem freqüentadores de tavernas e prostíbulos... 

Historicamente, Guilherme de Poitiers, na França, é o mais antigo trovador conhecido. 

A Literatura Portuguesa começa, a bem dizer, no século XII, com uma cantiga de amor-e-escárnio dedicada pelo trovador Paio Soares de Taveiros, a uma dama chamada A Ribeirinha, que outra não era senão Maria Pais Ribeiro, favorita do rei Dom Sancho I, de Portugal. Aliás, Portugal, celeiro de notáveis trovadores, ostenta, em sua galeria de reis ilustres, a fidalga e luminosa efígie de Dom Dinis (1261/1325), protetor dos poetas, fundador da Universidade de Lisboa e – título que nos fraterniza com Sua Majestade – exímio trovador, cujas cantigas estão registradas nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional, obras-primas do gênero. 

Hoje, a meu ver, o termo trovador deve restringir-se àqueles poetas que fazem trova, isto é, quadras setissilábicas-cas rimadas, porque o uso – neste século da especialização – assim o consagrou, pelo menos nos países de fala portuguesa. 

Os trovadores de Aquém e de Além-Mar contam-se, em nossos tempos pela casa dos milhares. E a trova é cultivada, com êxito, por pessoas das mais diversas classes sociais e ofícios, conforme se apura dos resultados dos Jogos Florais promovidos, em todo o País, pela União Brasileira de Trovadores, a nossa UBT. Poetas há muitos. Mas nem todo poeta é trovador. E não se pode entender trovador que não seja poeta – isto é: talento criador, servido por especial sensibilidade e senhor da técnica da feitura do verso. 

O Trovismo ou Trovadorismo Brasileiro tem suas raízes na tradição popular ibérica, na própria alma ingênua do povo. Mas, como movimento literário, de características bem delineadas, principiou na década de 50, quando o poeta Luiz Otávio (pseudônimo do Dr. Gilson de Castro) começou a reunir, aos sábados, na intimidade de sua residência, no bairro carioca de Vila Isabel, um pequeno grupo de cultores da trova, para tertúlias literárias, informais, entremeadas de “salgadinhos, biscoitos e refrigerantes”, segundo conta Aparício Fernandes, que nelas passou a tomar parte em 1958. Na opinião de Aparício, o Movimento Trovadoresco tem como ponto de partida a publicação, em 1956, por iniciativa de Luiz Otávio, da coletânea “Meus irmãos, os Trovadores” (“A Trova no Brasil”, 1972). 

Em 1959, fundou-se na Bahia um Grêmio Brasileiro de Trovadores (GBT), que reunia, sob essa designação, além dos cultores da quadra setissilábica, vários cantadores, violeiros e autores de literatura de cordel. Quando o Grêmio realizou um Congresso de Trovadores, na cidade de São Paulo, Luiz Otávio foi convidado a representar a entidade na região sul do País, melhor dizendo no Rio de Janeiro. E aceitou o convite. Mas, no Rio de Janeiro, o Grêmio cresceu, ganhando invejável projeção, e esse fato gerou uma dissidência com os seus dirigentes no Nordeste. Então, Luiz Otávio, com o apoio unânime dos trovadores filiados às seções da região sul centro-oeste, propôs a criação da União Brasileira de Trovadores, que se instalou no Rio em 8 de janeiro de 1967. Vitoriosa desde então, a UBT é uma associação de âmbito nacional, que se destina especificamente ao estudo e à divulgação da trova, como instrumento de propagação da cultura, tendo sido Luiz Otávio, por um questão de justiça, seu primeiro presidente nacional. Com organização própria, um presidente nacional, delegacias e seções estaduais e municipais, as quais gozam de relativa autonomia, a UBT promove, anualmente, os Jogos Florais, que habitualmente se inserem nos festejos comemorativos do aniversário dos Municípios onde têm sede suas atividades. 

E que são os Jogos Florais? Com antecedentes que parecem remontar às festas populares realizadas na Antiga Roma em homenagem à deusa Flora, os Jogos Florais eram um certame periódico, instituído em Toulouse, na França, no ano de 1323, por poetas desejosos de manter as tradições e o lirismo da poesia palaciana. O prêmio principal era uma violeta de ouro, havendo também menções honrosas configuradas numa rosa e num malmequer, ambos de prata. Daí por diante, realizaram-se na França, em diversas épocas, novos certames do gênero, contando-se entre seus vencedores figuras do porte de Voltaire, Chateau-briand, Victor Hugo e Lamartine... 

Em Portugal, a Emissora Nacional promoveu também os seus Jogos Florais, inclusive com a finalidade de eleger, a cada ano, o Príncipe dos Poetas Portugueses. Ademais, em terras portuguesas, são famosos os Jogos Florais de Coimbra, do Porto, de Figueira da Foz, de Almada, assim como os das antigas províncias africanas, sobretudo Angola. Há notícias de Jogos Florais realizados no Brasil, nos anos de 1914, 1915 e 1916, pelo Liceu Feminino, da cidade paulista de Santos. 

Atualmente, em nosso País, os Jogos Florais são concursos anuais de trovas, instituídos pelas seções municipais de União Brasileira de Trovadores, abertos a participantes de todos os estados e cidades do território brasileiro, bem como dos demais países de língua portuguesa, segundo um regulamento padrão, comum a todas as seções, com ligeiras variantes de caráter local. As trovas, obrigatoriamente inéditas, sob pena de desclassificação, versando tema preestabelecido, assinadas com pseudônimo, para assegurar a imparcialidade do julgamento, são apreciadas por uma comissão formada por trovadores de diferentes seções da UBT; estes as classificam, mediante a  de uma nota (atribuição de valor subjetivo), e as devolvem à seção de origem, onde, só então, se tornam conhecidos os nomes verdadeiros dos concorrentes. Quase sempre, os prêmios são entregues em solenidade pública, em festivo ambiente de confraternização, sendo que, nos Jogos Florais de Niterói, esses prêmios são representados por troféus alusivos ao tema do concurso. 

É justo recordar que os Jogos Florais do Movimento Trovadoresco tiveram seu berço na cidade serrana de Nova Friburgo, em 1958, sendo vencedores do primeiro concurso os trovadores Rodrigues Crespo, Anis Murad, Colbert Rangel Coelho, Jesy Barbosa, Raul Serrano, Octávio Babo Filho, Walter Waeny, Leila Ribeiro Ferreira e Paulo Fénder. O tema era amor e a trova vitoriosa, da autoria de Rodrigues Crespo, era esta: 

“Não me chames de senhor; 
eu não sou tão velho assim. 
E, ao teu lado, meu amor, 
não sou senhor nem de mim.” 

Ao fim de tudo, a animadora verdade é que o número de excelentes trovadores tem crescido consideravelmente, com a revelação de inumeráveis trovas antológicas. E os Jogos Florais constituem uma gratíssima oportunidade de aproximação fraterna entre poetas de todos os rincões deste continental Brasil, que, em tempos remotos, chegou a ser descrito como um imenso arquipélago cultural. 

A trova, deste modo, cumpre maravilhosamente sua missão, que já estava nos sonhos iniciais de Luiz Otávio – unir o Brasil. 

E viva a Trova! 

Fonte:
Seleções em Folha. Ano 4. N.1 – janeiro 2000. São Paulo/SP

Teatro de Ontem e de Hoje (Eles Não Usam Black-Tie)


Espetáculo que inicia a fase nacionalista do Teatro de Arena e lança o autor Gianfrancesco Guarnieri, que serve de modelo e estimulo para outros jovens escritores dramáticos brasileiros.

Em 1957, José Renato resolve assumir a produção de O Cruzeiro Lá no Alto, texto de Gianfrancesco Guarnieri, prevista para ser a última montagem do grupo, que passa por graves dificuldades financeiras.

Rebatizada, por sugestão de José Renato, como Eles Não Usam Black-Tie, provocativa referência ao Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, e a seu público. A peça trata de uma greve operária, colocando em cena moradores de uma favela e seus problemas socioeconômicos. O texto faz um recorte preciso de um momento altamente dramático: o jovem operário Tião fura o movimento grevista, pois, tendo engravidado a namorada, teme perder o emprego na hora em que mais necessita dele. As conseqüências de sua atitude são dolorosas e ele é obrigado a enfrentar não apenas seu pai, o líder grevista, mas também sua própria namorada, que o impele à frente de luta e o abandona.

Eugênio Kusnet, com sua larga experiência no método de Stanislavski, encarna o velho Otávio; Lélia Abramo, politizada intelectual vinda de experiências junto a grupos operários anarquistas, vive a mãe Romana; Miriam Mehler, recém-formada pela Escola de Arte Dramática - EAD, encarrega-se de Maria, amor de Tião, interpretado pelo melhor ator do Arena no período - Gianfrancesco Guarnieri, depois substituído por Oduvaldo Vianna Filho. Os outros papéis cabem a Flávio Migliaccio, Riva Nimitz, Chico de Assis e Milton Gonçalves.

A encenação de José Renato é simples, direta e eficiente. Valoriza o enredo e dá corpo às personagens, imprimindo dramaticidade e energia à ação. Utiliza um samba composto por Adoniran Barbosa para pontuar passagens significativas da trama. Êxito surpreendente para quem pensava em fechar as portas, Black-Tie permanece um ano em cartaz, cumprindo posteriormente bem-sucedida carreira no interior de São Paulo e no Rio de Janeiro. Animado pelo sucesso, o Arena investe forças na criação de outros textos nacionais, instituindo o Seminário de Dramaturgia, de onde sairão os textos para as montagens seguintes, que respondiam à necessidade do público de ver nos palcos a realidade nacional. Até 1960, foram montados, entre outros: Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho; Quarto de Empregada, de Roberto Freire; Fogo Frio, de Benedito Ruy Barbosa. 

Destaca o crítico Sábato Magaldi: "A encenação de José Renato foi, até aquele momento, a mais homogênea e de rendimento uniforme e satisfatório. E a recompensa supunha muitas dificuldades para transmitir a veracidade do texto, porque formavam o elenco atores inexperientes ou estrangeiros. Valorizou a montagem a maturidade, orientada no sentido do despojamento. [...] Em poucos trabalhos ele não revela a preocupação de inventar algo, para que sua presença ficasse marcada. Aqui, o encenador se libertou da sedução de impor os próprios achados e atingiu a autenticidade, por despir o conjunto de efeitos. Não seguiu, também a falsa pista do pitoresco no morro, despreocupando-se da tarefa quase impossível, na arena, de mostrar a cor local".1

Eles Não Usam Black-Tie é a primeira de muitas outras encenações que colocam o Teatro de Arena como o conjunto de maior representatividade em São Paulo até meados da década de 1960.

Notas 

1. MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: o Arena em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Fonte:

Cássio Pantaleoni (Por que Precisamos de Poesia?)



A pergunta-título que ora se coloca não refere quem a reclama. Poderia ser formulada por quem se depara com a poesia e que, enfadado, desdenha-a. Por outro lado, poderia ser feita pelo próprio poeta, como tentativa de encontrar justificação para sua lida. Contudo, precisamos, sem pressa, preservá-la em sua condição ambivalente, para que possamos responder, tanto ao poeta quanto ao leitor mais refratário, algo que se avizinhe com o real sentido do que se investiga.

Primeiramente, é necessário dizer que se engana aquele que afirma encontrar o traço da premeditação na elaboração poética, como se houvesse alguma intenção prévia do poeta, pretendendo expor algo que já antes andava em convívio com sua alma. Ao contrário, a poesia é rastro de espontaneidade, algo que é deixado como evidência daquilo que é inaugurado no instante em que se manifesta, vazando desinteressada das fímbrias do espírito. É uma incontinência que se conforma em versos, redondilhas e lirismos. 

Ressalte-se que a elaboração poética é, sempre e de algum modo, uma distensão dos costumes, da cotidianidade, expressão que flerta com os sentidos que ainda não nos são de todo conhecidos. É fácil compreender isso. Se concordarmos que o espírito – a cultura – é uma justaposição das idéias do mundo na borda da história, então a poesia é referência, pois nos fala desde um ponto comum, formas e conteúdos legados pela cultura. Também é acedência, possibilitando o acesso para uma nova região do sentido. Ela consente que outros recursos possam colaborar para o entendimento dos tempos em que se vive e das possibilidades futuras, mostrando-se ainda como importante percurso para a invenção de novas acepções. Ela retira do discurso familiar o que é comum a todos para então projetar algo que estranha. A poesia é uma intemperança. 

Podemos perguntar se ela – a poesia – é algo presciente, ou se simplesmente se trata de uma irrupção, e assim investigar os fundamentos dessa disposição dos poetas. Mas talvez assim estaríamos desistindo daquilo que efetivamente está em jogo na poesia – o outro. 

É difícil imaginar que o poeta escreva para si mesmo, mesmo quando assim diz fazer, tal como um agente solitário diante de um mundo de descaso. Ele já sempre discorre diante de. Esse estar diante de é um estar junto com o outro de modo análogo, mas contraposto; conforme, mas independente. O poeta busca denunciar a familiaridade dos discursos. Ele avizinha representação e apresentação, sugerindo uma aventura, convidando à travessura. Assim, o poeta sempre é de algum modo diante de e adiante do outro, mas nunca sem antes encontrar conforto naquilo que aí está como legado das idéias do mundo. A poesia só existe no campo de uma certa inteligibilidade. É uma reconsideração do sentido que só pode ser realizada mediante o outro. Reconsiderar o sentido é especular, no imaginário coletivo, acerca das possíveis intenções perdidas na linguagem, contudo sem recorrer à intencionalidade. A espontaneidade é o destino da poesia e seu começo. Não poderia haver mediação intencional. Intencionalidade é imposição, é desconsideração do outro. 

Responde-se assim porque precisamos da poesia. Pois, poetas ou não, necessitamos crer na espontaneidade. Precisamos crer que ainda é possível se libertar desse condicionamento dos discursos, das idéias, dos rituais sociais. Precisamos recuperar a espontaneidade de modo arrebatador, precisamos ser tomados por ela de tal forma que cada gesto ou palavra seja uma manifestação verdadeiramente divina. Quando perdemos a espontaneidade deixamos a condição humana à deriva, pois aí, sem ela, o que visamos é apenas a autoconsideração. 

Como inspiração, vale lembrar Quintana: “Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão...eu passarinho!” .
––––––––––
SOBRE O AUTOR
Cássio Pantaleoni é Mestre em Filosofia pela PUCRS no campo de especialização da Fenomenologia e da Hermenêutica. Escritor, finalista da edição de 2011 da Categoria Contos da AGES, finalista do concurso de Contos Machado de Assis do SESC-DF em 2011, Segundo Lugar no 21o. Concurso de Contos Paulo Leminski em 2010, fundador da editora 8INVERSO e profissional da área de Tecnologia da Informação. Autor de "Os Despertos" (2000), "Ninguém disse que era assim" (2002), "Desmascarando a incompetência" (2005), "Histórias para quem gosta de contar histórias" (2010) e "A Sede das Pedras" (2012).cassio@8inverso.com.br
www.sextadepalavras.blogspot.com
https://www.facebook.com/cassio.pantaleoni.9

Fontes:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?clid=29
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=74

Paula Raposo (Caravelas da Poesia)


“A TUA CANÇÃO”

O mar voltou a chamar-me,
 brando, azul;
 ondulando
 levemente de espuma e paz.

Eu regresso, de mansinho
 (ao seu afago),
 canto a tua canção
 -num beijo inesgotável-
 quando o mar me desperta
 todas as ausências:
 eu te chamo breve em nós.

CARTA DE PAIXÃO”

Escrevo-te:
 mais uma carta de paixão.
 Conto-te do desejo,
 do incontornável calor
 do teu corpo e do meu,
 da saudade vincada de ti,
 da cama, do suor, do orgasmo.
 É: uma carta de paixão
 (esta), a que te escrevo,
 com palavras que escorrem
 no envelope.
 Vem hoje;
 para que eu me venha, também.

“AQUECE”

Não deixes arrefecer,
 aproveita a imaginação
 e no vento frio,
 que nos gela,
 aquece comigo a noite.
 Deixa que a madrugada
 regresse a casa
 e o calor se faça sentir,
 como a memória,
 agora ausente,
 do que fomos;
 nas entranhas
 os únicos sobreviventes.

“ATRASOS”

Sempre olhavas o relógio
 E as horas marcadas
 Para estar em casa
 Quando começava
 A despir-me
 Olhavas-me cobiçoso
 E tocavas-me
 Onde sabias
 As horas ficavam para trás
 (Mas nunca te atrasavas
 Em casa)
 Atrasavas-te só em mim
 No reboliço
 Em que deixávamos
 Metade de nós

“CANÇÃO DO AMOR”

Gosto das canções de amor
 Embaladas na tua voz
 Como se a música
 Chovesse prateada
 Em torno do meu corpo
 Emudecido
 Gosto de te ouvir
 Nas canções de amor
 Que a tua vida não calou
 E que cantas ainda
 Sob um feixe de luz
 Na madrugada aquecida
 De um quarto de hotel
 Adormeces-me em desvario
 Quando assim me embalas
 E a chuva é prateada
 E o vento se torna poema
 Na tua canção de amor.

“O TEMPO ERRADO”

Tanta palavra dita e redita
 Esquecida e magoada
 Falada no silêncio
 Fechada no tempo
 De não ser nada.
 Palavras repetidas
 Como se fossem verdade
 Como se as quisesse ouvir
 Só para que a minha voz
 Ecoe e eu a escute
 Para que as palavras
 Sejam as da minha solidão
 As da minha vontade
 Aquelas que se entregam
 Sem troca alguma.
 Ditas e reditas
 Enterradas no dia
 Do tempo errado…

DESENHO

Desenho com um lapis,
acabado de afiar,
os traços que contornam
o teu rosto
onde a barba se destaca,
mas não sei desenhar
o tom da tua voz.

Talvez o pinte de azul- maresia
e o acaricie
num longo gesto,
pronunciado
Pelo bico de meu lápis,
junto à nascente
do dia
com a sofreguidão
da maré

Fontes:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/poetas/paula-raposo/
http://o-sol-poente.blogspot.com.br/2009/03/poesia-de-paula-raposo.html

Paula Raposo (1954)


Maria Paula Raposo nasceu em Lisboa, em 1954. 

Chegou a frequentar a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas Interrompeu os estudos para ir trabalhar num banco, trabalho que trocou em 1987, por um escritório de contabilidade. 

Concilia a sua carreira de escritora e poetisa com a atividade que continua a desenvolver nesse escritório. 

O seu primeiro livro, num registo marcadamente autobiográfico, foi editado em 2001, sob o título “Incoerências“. Com o seu segundo livro, “Canela e erva doce”, Paula Raposo estreou-se na edição de poesia. A sua poesia é livre, sem deslumbramentos formais no que respeita a métrica e rima, contendo em si uma contemplação constante, um encanto místico, onde o amor está sempre presente. 

Em 2006 participou com outros autores no livro A Poesia nos Blogs, Ed. Apenas Livros.

Participou na I Antologia de Poetas Lusófonos, com 5 poemas, Folheto Edições & Design, Lda. 

Em 2007 participou com um poema no livro da blogosfera O que é o amor? da Anjo Dourado.

 Em 2008 participou com outros autores no livro misto 22 Olhares sobre 12 palavras, Edium Editores e na "II Antologia de Poetas Lusófonos" com 5 poemas, Folheto Edições & Design, Lda.

 Editou em novembro de 2008 pela Apenas Livros Golpe de asa. 

Em março de 2009 Nevou este verão e em outubro o Marcas ou memórias do Vento todos da Apenas Livros.

 Em 2009 colaborou, com um poema, na "II Antologia das Noites de Poesia" em Vermoim (Maia- Porto).

 A 30 de outubro de 2010 foi apresentado o O verbo Ser também da Apenas Livros.

 Em outubro de 2011 Insubmissa: o lado errado numa linha imaginária, pela Chiado Editora.

 Em fevereiro de 2012 colaborou na Antologia Entre o Sono e o Sonho III da Chiado Editora.

 Em março de 2012 colaborou na I Antologia de Poesia da Editora Universus.

    A autora (in)define-se numa só frase: "Não sou definível, sou apenas uma mulher como as outras".

Fontes:
http://www.estudioraposa.com/index.php/category/poetas/paula-raposo/
http://www.magna-editora.com/paula-raposo.htm
http://www.wook.pt/authors/detail/id/2662172

Machado de Assis (Fagundes Varela: Cantos e Fantasias)


AQUI TEMOS um livro do Sr. F. Varela, que é ao mesmo tempo uma realização e uma: promessa: — realiza as esperanças das Noturnas e das Vozes da América, e promete ainda melhores páginas no futuro. 

O Sr. F. Varela é um dos talentos mais vitais da nova geração; e lendo os seus versos explica-se naturalmente o entusiasmo dos seus companheiros da academia de São Paulo, onde o nome do autor das Noturnas goza de uma indisputável primazia. A academia de S. Paulo, como é natural em uma corporação inteligente, deu sempre um belo exemplo de confraternidade literária, rodeando de aplausos e animação os seus talentos mais capazes. Nisto o Sr. Ferreira de Meneses, autor do prefácio que acompanha os Cantos e Fantasias, é um órgão fiel do pensamento de todos; e saudando esta reunião, no mesmo livro, de dois nomes prestimosos, de dois moços de talento, saudamos ao mesmo tempo o progresso da academia e o futuro das letras brasileiras.

O Sr. Ferreira de Meneses, que conviveu com o poeta dos Cantos e Fantasias indica no prefácio a que aludimos os autores que servem de modelo ao Sr. Varela, e entre eles, Lord Byron. Não nos parece inteiramente exata esta apreciação. É verdade que, durante algum tempo, a poesia de Lord Byron influiu poderosamente nas jovens fileiras da academia; mas se o autor das Vozes da América aprecia, como todos nós, a musa do cantor de Child-Harold, nem por isso reproduz os caracteres do grande poeta, e damos-lhe por isso os nossos parabéns.

Houve um dia em que a poesia brasileira adoeceu do mal byrônico; foi a grande sedução das imaginações juvenis pelo poeta inglês; tudo concorria nele para essa influência dominadora: a originalidade da poesia, a sua doença moral, o prodigioso do seu gênio, o romanesco da sua vida, as noites de Itália, as aventuras de Inglaterra, os amores de Guiccioli, e até a morte na terra de Homero e de Tibulo. Era, por assim dizer, o último poeta; deitou fora um belo dia as insínias de noble lord, desquitou-se das normas prosaicas da vida, fez-se romance, fez-se lenda, e foi imprimindo o seu gênio e a sua individualidade em criações singulares e imorredouras.

Quis a fatalidade dos poetas, ou antes o privilégio dos gênios criadores, que este espírito tão original, tão próprio de si, aparecesse um dia às imaginações de alguns como um modelo poético. Exaltou-se-lhes a imaginação, e adoeceram, não da moléstia do cantor de D. Juan, mas de outra diversa, que não procedia, nem das disposições morais, nem das circunstâncias da vida. A conseqüência era natural esse desespero do poeta inglês, a que alude o Sr. Ferreira de Meneses, não existia realmente nos seus imitadores; assim, enquanto ele operava o milagre de fazer do cepticismo um elemento poético, os seus imitadores apenas vazavam em formas elegantes um tema invariável e uniforme. Tomaram-se de uns ares, que nem eram melancólicos, nem alegres, mas que exprimiam certo estado da imaginação, nocivo aos interesses da própria originalidade. A culpa seria dos imitadores ou do original?

Dos imitadores não era; são fáceis de impressionar as imaginações vivas, e as que se deixaram adoecer tinham nisso a razão da sua desculpa. É supérfluo dizer que, na exposição deste fato, não temos intenção de acusar a poesia quando ela exprime os tédios, as tristezas, os desfalecimentos da alma humana; a vida é um complexo de alegrias e pesares, um contraste de esperança e de abatimento, e dando ao poeta uma alma delicada e franzina, uma imaginação viva e ardente, impôs-lhe o Criador o duelo perpétuo da realidade e da aspiração. 

Daqui vem a extrema exaltação do poeta, na pintura do bem, como na pintura do mal; mas exprimir essas comoções diversas e múltiplas da alma é o mesmo que transformar em sistema o tédio e o cepticismo?

Um poeta houve, que, apesar da sua extrema originalidade, não deixou de receber esta influência a que aludimos; foi Álvares de Azevedo; nele, porém, havia uma certa razão do consangüinidade com o poeta inglês, e uma íntima convivência com os poetas do norte da Europa. Era provável que os anos lhe trouxessem uma tal ou qual transformação, de maneira a afirmar-se mais -a sua individualidade, e a desenvolver-se o seu robustíssimo talento; mas verdade é que ele não sacrificou o caráter pessoal da sua musa, e sabia fazer próprios os elementos que ia buscar aos climas estranhos.

Faremos, a seu tempo, um estudo deste poeta, e então diremos o que nos ocorre ainda a respeito dele; por agora limitamo-nos a atribuir-lhe uma parte da influência exercida em algumas imaginações pela poesia byrônica, e nisso fazemos um ato póstumo de justiça literária. Ora, pois, é o Sr. Varela uma das vocações que escaparam a essa influência; pelo menos, não há vestígio claro nas suas belas poesias. E como o nosso juízo não é decisivo, é apenas uma opinião, podemos estar neste ponto em desacordo com o autor do prefácio, sem por isso deixarmos de respeitar a sua opinião e apreciar o seu talento. No que estamos de pleno acordo, e no juízo que ele forma do poeta, apesar de defeitos próprios da mocidade; é o Sr. Varela uma vocação real, um poeta espontâneo de verdadeira e amena inspiração. Diz o autor do prefácio que os descuidos de forma são filhos da sua própria vontade e do desprezo das regras. Se assim é, o sistema é antipoético; a boa versificação é uma condição indispensável à poesia; e não podemos deixar de chamar a atenção do autor para esse ponto. Com o talento que tem, corre-lhe o dever de apurar aqueles versos, a minoria deles, onde o estudo da forma não acompanha a beleza e o viço do pensamento. Desde já lhe notamos aqui os versos alexandrinos, que realmente não são alexandrinos, pois que lhes falta a cesura dos hemistíquios; outros descuidos aparecem ainda no volume dos Cantos e Fantasias; vocábulos mal cabidos, às vezes, rimas imperfeitas, descuidos todos que não avultam muito no meio das belezas, mas que o nosso dever obriga-nos a indicar conscienciosamente.

Feitos estes reparos, entremos na leitura do livro do Sr. Varela. Divide-se em três partes: "Juvenília", "Livro das Sombras", "Melodias do Estio". Destes títulos só os dois primeiros definem o grupo de poesias que lhes corresponde; o último, não; e há aí poesias que nos parecem caber melhor no "Livro das Sombras"; isto, porém, é crítica de miunças, e veio ao correr da pena. O que importa saber é o valor dos versos do Sr. Varela. A primeira parte, como o título indica, compõe-se das expansões da juventude, dos devaneios do amor, dos palpites do coração, tema eterno que nenhum poeta esgotou ainda, e que há de inspirar ainda o último poeta. 

Toda essa primeira parte do livro, à exceção de algumas estrofes, feitas em hora menos propícia, é cheia de sentimento e de suavidade; a saudade é, em geral, a musa de todos esses versos; o poeta quer rêver et non pleurer, como Lamartine; descrição viva, imagens poéticas, uma certa ingenuidade do coração, que interessa e sensibiliza; nada de arrojos mal cabidos, nem gritos descompassados; a mocidade daqueles versos é a mocidade crente, amante, resignada, falando uma linguagem sincera, vertendo lagrimas verdadeiras.

O título de "Livro das Sombras", que é a segunda parte do volume, faz crer que um abismo a separa do poema de "Juvenília"; mas realmente não é assim. As sombras no livro do Sr. Varela são como as sombras da tarde, as sombras transparentes, douradas pelo último olhar do dia, não as da noite e da tempestade. Não há mesmo diferenças notáveis entre os dois livros, a não ser que, no segundo, inspira-se o poeta de assuntos diversos e variados, e não há aí a doce monotonia do primeiro. O "Cântico do Calvário", porém, avantaja-se a todos os cantos do volume: são versos escritos por ocasião da morte de um filho; há aí verdadeiro lirismo, paixão, sensibilidade e belos efeitos de uma dor sincera e
profunda. São esses também os versos mais apurados do livro, descontados uns raros descuidos. A idéia com que fecha essa formosa página é bela e original, nasce naturalmente do assunto, e é representada em versos excelentes. Quase o mesmo podemos dizer dos versos ao "Mar" que tantos poetas hão cantado, desde Homero até Gonçalves Dias; a paráfrase de Ossian, "Colmar", encerra igualmente os mais belos versos do poeta, e tanto quanto é possível parafrasear o velho bardo, fê-lo com felicidade o Sr. Varela. "Colmar" pertence já ao livro das "Melodias do Estio"; como se vê, a nossa apreciação é rápida, tendo por fim resumir o nosso pensa-mento, acerca de um livro que merece a atenção da análise, e de um poeta que tem jus ao aplauso dos entendedores.

Se há neste volume mais de uma imperfeição, se por vezes aparecem os descuidos de forma e de locução, não façamos desses cochilos de Homero grande cabedal; aconselhemos, sim, ao autor que não erija em sistema um defeito que pode diminuir o mérito das suas obras. Vê-se pelos bons versos que ele nos dá, quanto lhe é fácil produzir certo apuro na forma; emendar não prova nunca contra o talento, e prova sempre a favor da reflexão; e o tempo, cremos ter lido isto algures, só respeita aquilo que é feito com tempo; máxima salutar que os poetas nunca deviam esquecer.

Quanto ao cabedal da natureza, a inspiração a espontaneidade, essa tem-na o Sr. Varela em larga escala; sabemos que é um moço estudioso, e vê-se pelas suas obras, que possui a rara qualidade do gosto e do discernimento. Os que prezam as boas letras interessam-se pela ascensão progressiva do nome do Sr. Varela, e predizem-lhe um futuro glorioso. Que ele não perca de vista esse interesse e essa predição. Aconselhando-lhe a perseverança e o trabalho, o culto desvelado e incessante das musas, a nossa intenção é simplesmente corresponder aos hábitos de atividade que lhe supomos; não entra, porém, no nosso espírito a idéia de exigir dele uma prova de infatigabilidade literária; há quem faça uni crime da produção lenta, e ache virtude nos hábitos das vocações sôfregas; pela nossa parte, nunca deixaremos de exigir, mesmo dos talentos mais fecundos, certas condições de reflexão e de madureza, que não dispensam uma demora salutar. Ao tempo e à constância no estudo, deve-se deixar o cuidado do aperfeiçoamento das obras. Com estas máximas em vista e um talento real, como o do Sr. Varela, é fácil ir longe.

Desperta-nos as mesmas considerações um volume que acabamos de receber do Rio Grande do Sul. Intitula-se Um Livro de Rimas, e é escrito pelo Sr. J. de Vasconcelos Ferreira. Tem o poeta rio-grandense talento natural e vocação fácil; falta-lhe estudo e talvez gosto; alguns anos mais, e podemos esperar dele um livro aperfeiçoado e completo. O que lhe aconselhamos, porém, é que, além do extremo cuidado na escolha das imagens, que as há comuns e nem sempre belas, no livro das Rimas, procure o Sr. Ferreira tratar da sua forma, que em geral é pobre e imperfeita. Faça das musas, não uma distração, mas um culto; é o meio de atingir à bela, à grande, à verdadeira poesia.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Jornais e Revistas do Brasil (Diário do Maranhão)


Período disponível: 1855 a 1911 
Local: São Luis, MA 
  
Criado por empresários locais e dirigido por Antônio Rego, o Diário do Maranhão foi lançado em 1855, na cidade de São Luís. Veio à luz poucos anos após a lei que extinguiu o tráfico intercontinental de escravos para o Brasil (1850), apresentando-se como um “jornal do commercio, lavoura e industria”. Sua circulação foi suspensa em 1858, para reaparecer em 1873, com pequenas modificações.

Até 1858 as edições eram diárias, continham quatro páginas em formato grande, divididas em três colunas. Compunha-se de quatro partes: a oficial, com matérias referentes ao expediente da província; folhetim, espaço destinado a romances e novelas francesas; marítima, sobre o movimento de entrada e saída de embarcações no porto de São Luís, e notícias, com assuntos diversos, como festas, propagandas de mercadorias e serviços, comércio de escravos, de bebidas e leilões. Também publicava fatos ocorridos em outras cidades que não a capital, como Alcântara e Caxias, e notícias internacionais. Defendia a discussão de princípios e se declarava imparcial nas questões públicas ou particulares.
 O jornal oferecia assinaturas anuais por 12$000 réis, semestrais por 6$000 réis e trimestrais por 3$500 réis. Os anúncios para assinantes eram gratuitos (até três vezes com dez linhas, custando o excedente 40 réis por linha). Não assinantes pagavam 60 réis por linha em “typo comum” e 180 réis em “typo diferente”. As assinaturas deveriam ser pagas adiantadas e começavam em qualquer dia, finalizando nos meses de março, junho, setembro ou dezembro. A tipografia ficava na rua dos Barbeiros, 8.

A partir de 1874 o jornal experimentou algumas mudança. Continuou com quatro páginas, porém divididas em cinco colunas. Havia a secção geral, na qual se discutiam temas variados, e a secção de notícias, dividida em anúncios – com ofertas de serviços em geral, de profissionais do ensino, de mão-de-obra escrava em fazendas e construção civil, além de amas (de leite e para serviços domésticos) e mercadorias, como alimentos, bebidas, louças, roupas, remédios e escravos – e secção comercial, com o movimento da alfândega, do tesouro provincial e do setor financeiro.

A assinatura tinha valores diferenciados para capital e interior. Quem morasse em São Luís poderia assinar o jornal por seis meses (8$000 réis) ou por três meses (4$000 réis). Quem morasse no interior só tinha a opção da assinatura semestral (9$000 réis).

A publicação continuou diária, matutina, deixando de sair apenas às segundas-feiras e nos dias seguintes a datas santificadas e feriados. A redação e tipografia do Diário do Maranhão ficavam, então, na rua das Palmas, 6.

No acervo da Fundação Biblioteca Nacional há edições digitalizadas de 11.150 números, publicados entre 1855 e 1911.

Fonte:
http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/diário-do-maranhão